DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO: UMA INCURSÃO CRÍTICA SOBRE A LEI N. 14.181/2021

DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO: UMA INCURSÃO CRÍTICA SOBRE A LEI N. 14.181/2021

14 de agosto de 2022 Off Por Cognitio Juris

THE PERSONALITY RIGHTS OF THE OVER-INDEBTED CONSUMER: A CRITICAL INCURSION ON LAW N. 14.181/2021

Cognitio Juris
Ano XII – Número 42 – Edição Especial – Agosto de 2022
ISSN 2236-3009
Autores:
Dirceu Pereira Siqueira[1]
Ernani José Pera Junior[2]
Leonan Roberto de França Pinto[3]
Mayume Caires Moreira[4]

RESUMO: O presente artigo oferecerá avaliação crítica sobre as mudanças realizadas pela Lei n. 14.181/2021, que criou tratamento jurídico ao superendividado. A análise será realizada a partir da constatação da grande importância atribuída ao consumo, enquanto prática capaz de conferir identidade ao próprio sujeito. Também serão abordados os fundamentos que ampararam o Código de Defesa e Proteção do Consumidor, de modo que seja protegida e promovida a personalidade humana; para que então seja possível o apontamento das modificações trazidas pela referida lei e a apuração da efetiva proteção que tais normas possam proporcionar aos direitos de personalidade. Adotando-se o método hipotético-dedutivo e a metodologia pautada na revisão bibliográfica, utilizando-se de artigos, livros, teses e dissertações atinentes a temática.

PALAVRAS-CHAVE: Superendividamento, Consumo, Direitos de Personalidade

THE PERSONALITY RIGHTS OF THE OVER-INDEBTED CONSUMER: A CRITICAL INCURSION ON LAW N. 14.181/2021

ABSTRACT: This article will offer a critical assessment of the changes made by Law n. 14.181/2021, which created legal treatment for the over-indebted. The analysis will be carried out from the observation of the great importance attributed to consumption, as a practice capable of giving identity to the subject himself. The fundamentals that supported the Consumer Defense and Protection Code will also be addressed, so that the human personality is protected and promoted; so that it is possible to point out the changes brought by the aforementioned law and to determine the effective protection that such rules can provide to personality rights. The hypothetical-deductive method and the methodology based on bibliographic review will be adopted, using articles, books, theses and dissertations related to the subject.

KEYWORDS: Over-indebtedness, Consumption, Personality Rights

INTRODUÇÃO

O artigo busca correlacionar o Direito do Consumidor, em vista da Lei 14.181/2021, denominada Lei do Superendividamento, aos direitos de personalidade, de modo que seja possível apurar a eficácia das normas inseridas e a efetiva proteção e promoção do ser humano.

O estudo traz aproximação entre o Código de Defesa e Proteção do Consumidor e os direitos de personalidade, e a possibilidade de que a devida regulamentação da relação de consumo proporcione o desenvolvimento e a tutela da personalidade humana.

A partir de premissa bastante conhecida, que acolhe a hipossuficiência do consumidor, a proposta deste estudo partiu de indagações acerca da Lei 14.181/2021 e de sua capacidade de cumprir o desiderato de prevenção e de proteção do consumidor contra as situações de superendividamento. Para tanto, importa saber quais foram os valores e instrumentos disponibilizados pela norma para seja outorgada a devida tutela aos superendividados.

Para seja concretizado o desenvolvimento esperado deste estudo, o presente artigo foi dividido em três partes. No primeiro fragmento são expostas as razões para a transposição de uma sociedade de produção para uma sociedade de consumo, bem como as características e os axiomas desta sociedade atual. É apresentada ainda a relevância a que se atribui ao consumo, enquanto prática indispensável para afirmação da personalidade humana, e a necessidade de que as relações de consumo sejam prontamente resguardadas.

A parte segunda incursiona nas justificativas valorativas que exigem a regulamentação da relação de consumo. É desenvolvido em paralelo valores próprios do Código de Defesa e Proteção do Consumidor, tais como boa-fé objetiva e autonomia privada, e os direitos de personalidade. A abordagem envolveu resposta à indagação de como o adequado ajuste das relações de consumo poderia irradiar o progresso e resguardo da personalidade humana.

Por último, o terceiro tópico elenca as inovações trazidas pela Lei 14.181/2021, com a abordagem que envolve três principais temas aceca do superendividamento: direito à informação; direito ao estudo; mecanismos para o tratamento ao superendividado. O enfoque perpassa pela preservação do mínimo existencial, em virtude da análise do plano voluntário e compulsório para equalização das dívidas. Como não deveria deixar de ser, a reflexão dirige-se à análise crítica sobre as condições da recente norma agir enquanto agente transformador da sociedade no resguardo aos direitos de personalidade.

Utiliza-se o método de abordagem dedutivo, partindo de fundamentos sociológicos e teórico-jurídicos gerais para a ocorrência de situações abstratamente reguladas pela legislação, na busca do derradeiro objetivo representado nesta avaliação, que parte dos valores sociais do consumo, da proteção conferida pelo Ordenamento Jurídico ao consumidor, e os reflexos nos direitos de personalidade, sendo realizada uma análise crítica. Por fim, quanto aos métodos de investigação, emprega-se o bibliográfico e o documental, realizado por meio de consulta de obras, artigos de periódicos e documentos eletrônicos.

1. DO CONTEXTO SOCIAL DE UMA SOCIEDADE CENTRADA NO CONSUMO

O consumo é indissociável da condição humana, as exigências materiais constantes e contínuas mostram-se indispensáveis à própria existência, decorrência da natureza biológica de nosso ser. O ato de consumir representa, assim, a concretização desta existência biológica do ser humano. Não seria forçoso dizer que a maneira como o ser humano lidou com o consumo, ao longo dos Séculos, representa importante faceta histórica do próprio desenvolvimento social. A forma e processo de organização e realização do consumo ao longo das eras confunde-se com a própria história da humanidade (BAUMAN, 2008, p. 38).

A par da importância do consumo enquanto mecanismo para a concretização das necessidades vitais do ser humano, tem-se que tal prática jamais foi elevada a tão grande relevância como no estágio social atual. Antes de pontuar sobre o elevado significado do consumo na sociedade a que estamos inseridos, cumpre oferecer corte histórico para o período imediatamente anterior, por certo não seria razoável para o presente estudo uma abordagem histórica linear, iniciada naquele momento remoto no qual o ser humano passou a estocar os excedentes de alimentos e demais bens encontrados. Para o presente estudo parece-nos adequado abordagem no período a que Bauman denomina sociedade de produtores. Pela sociedade capitalista incipiente, denominada pelo citado autor de sociedade sólido-moderna de produtores, o mote axiológico a que se buscava era a segurança, e o consumo querido e desejado era de bens que proporcionassem durabilidade, solidez e preservação do estado de segurança (2008, p. 42).

Na sociedade dos produtores o anseio era pela busca pela segurança e proteção contra as incertezas do destino. Atribuía-se aos bens que proporcionassem durabilidade, permanência e visibilidade grande valor e significado. O prazer era postergado a momento futuro, já que a razão principal do sentimento social dominante era a de preservação e proteção. O anseio pela liberdade e a gradual liberação das amarras que prendiam a vontade individual proporcionou a transposição da sociedade dos produtores para a sociedade do consumismo.

O desenvolvimento do capitalismo conferiu uma nova forma de consumo, o que coincidiu com a alteração do axioma central da sociedade, porquanto a segurança deu espaço à liberdade. A sociedade, nesse ponto, desenvolve-se a partir da liberdade contratual e econômica, e o consumo, guiado pelo hedonismo, tornou-se integrante do próprio sistema valorativo e instrumental do arquétipo sociológico dominante. A durabilidade é substituída pela efemeridade e substitutividade, a solidez pela crescente necessidade (ou desejos), a segurança pela autonomia e subjetividade[5]. A esse respeito (LIPOVETSKY, 2005, p. 47):

Com a difusão a grande escala de objectos considerados até então como objectos de luxo (…) e sobretudo o crédito, cuja instituição mina directamente o princípio de poupança, a moral puritana cede lugar a valores hedonistas que encorajam a gastar, a gozar a vida, a obedecer aos impulsos: a partir dos anos cinquenta, a sociedade americana e mesmo a europeia passam a gravitar em boa medida em torno do culto do consumo, dos tempos livres e do prazer.

Portanto, não mais a segurança justificava o consumo, tampouco o status conferido ao detentor do bem, mas sim o desejo expressado por uma ética niilista, de prazer efêmero e transitório, viabilizada pelo crédito e incentivada pela nova face do capitalismo, agora denominado capitalismo de consumo.

Nesse cenário, é imposto ao indivíduo integrante desta sociedade e neste tempo o estilo de vida dominante trazido pelo sistema de produção já consolidado, e neste processo de adaptação dinâmica à cultura formam-se diversos impulsos poderosos que motivam as ações e os sentimentos dos indivíduos (FROMM, 1983, p. 28). Por assim dizer, a sociedade do consumismo é dotada de arcabouço de engrenagens que conduzem as ações humanas e os valores sociais à necessidade de consumo constante e imediato.

A ordem produtiva desenvolve-se ideologicamente no sentido de que as atividades públicas e privadas sejam voltadas à produção e ao consumo crescente. Mecanismos cada vez mais persuasivos de marketing e publicidade, a aplicação de técnicas de neurociência, e o uso indiscriminado de instrumentos de venda “on line”, são exemplos de movimentos destinados a fomentar a vontade dos indivíduos, sempre guiados por uma voracidade capitalista de lucro, sem o compromisso ético e social, indispensável a uma comuna civilizada (PELLEGRINO, 2002, p. 30). O Estado, por sua vez, erige-se como tutor e incentivador do próprio desenvolvimento do capital, estruturado à produção e ao consumo; protege a liberdade contratual, ao estabelecer balizas mínimas de restrições, e oferece condições propícias ao desenvolvimento econômico.

O fetichismo anteriormente dirigido ao bem, o qual seria capaz de conferir a segurança e proteção desejadas, transfere-se ao apelo subjetivo, tido como a expressão da liberdade, ao ser satisfeito o desejo momentâneo de aquisição e de propriedade, por mais efêmero e irrelevante seja o objeto da vontade. 

Nesse contexto de valores e ações, o consumo insere-se como impulso poderoso motivado por sentimentos de inserção e aceitação. O consumo na sociedade, historicamente considerada, limitava-se a suprir as necessidades e desejos humanos, enquanto no momento atual foi resignificado como fundamento hábil a justificar as relações humanas e a própria existência individual. A comodificação tornou-se fenômeno verificado nesta sociedade do consumo, já que o ser humano não somente consome, mas também representa “mercadoria” a ser consumida (BAUMAN, 2008, p. 20):

na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável.

A aquisição de bens, a contratação de serviços e até mesmo a busca por conhecimento tornam-se objetos de consumo para equipar o consumidor e deixa-lo mais vendável, aceito e integrado ao seu habitat social. O consumo assim considerado representa expressão da própria personalidade individual, pois esta ação proporciona não somente condições materiais e imateriais para sua subsistência, mas também confere significado capaz de contextualizar o sujeito como integrante de seu grupo. Nesse ponto talvez seja até possível afirmar que o consumo expressa atributo da personalidade do indivíduo, porquanto através de tal prática seria concretizado mínimo existencial, mas também a autonomia pessoal, a alteridade no convívio com os demais e a individualidade. Sobre tais atributos aplicados ao impulso de consumo, por ora se mostra razoável sua mera citação, já que oportunamente será objeto de pontual ponderação.

Diante da grande relevância ao impulso do ato de consumir, e dos sentimentos que lhes são correlatos, aliado ao funcionamento inorgânico imposto pelo sistema produtivo e social, tem-se como inevitáveis algumas consequências prejudiciais causadas pela prática consumista. A imposição da necessidade pelo crescente consumo confere custo demasiado às pessoas vulneráveis, necessitadas pelo bem ou serviço (ainda que seja de algo irrelevante), destituídas, muitas vezes, de real condição econômica, e cria sério anacronismo diante das pessoas dotadas de hipersuficiência técnica, jurídica e econômica. Não por acaso, já há algumas décadas houve a inserção em nosso Ordenamento Jurídico do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, pela Lei n. 8.078/90, cujo objetivo central foi o de conferir igualdade substancial à relação de consumo.

Além da situação de vulnerabilidade do ávido consumidor, os excessos comportamentais contribuem para a impossibilidade de cumprimento das obrigações assumidas por grande parte da população, sempre impulsionado pelo uso indiscriminado de técnicas de marketing e publicidade, também pela oferta indiscriminada de crédito. Como não poderia deixar de sê-lo, tudo esse cenário se agrava ainda mais em razão da crise sanitária e econômica global, capaz de incrementar a taxa de desemprego ao índice de 11,6% para o mês de novembro de 2021 (IBGE, 2021), e de inflação ao patamar de 10,38% (inflação acumulada em 12 meses para o mês de janeiro de 2022) (IBGE, 2022).

O cenário ilustrado bem representa o contexto ideal para a expansão do superendividamento da população, deve ser entendido como estado de incapacidade econômica, que impossibilita o sujeito (pessoa natural) a saldar suas dívidas atuais e futuras, excluídas os débitos de natureza fiscal, alimentar ou derivados de crimes (SANSEVERINO; MARQUES, 2015, p. 575-580).  Repise-se: de forma remota, tal cenário dá-se pela incidência de valores próprios do tecido social e do sistema de produção que incentiva de forma indiscriminada o consumo, atribuindo significado existencial ao referido ato, como fosse meio inafastável de afirmação da própria personalidade; de maneira mais direta, verifica-se a conjuntura econômica cercada pela inflação, recessão, desemprego, tudo isso agravado pela renitente e severa crise sanitária. Com efeito, o superendividamento dos consumidores revela-se alarmante, a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), realizada pela Fecomércio de São Paulo, apontou que, em dezembro de 2021, 74,5% das famílias encontram-se endividadas, das quais 20,2% possuem conta em atraso e 7,0% não terão condições de adimplir as dívidas. Neste universo de 74,5% das famílias endividadas, 41,0% delas terá comprometida sua renda por pelo menos um ano. A série histórica também revela que os tipos de dívidas que mais comprometem as famílias são o cartão de crédito, cheque especial, carnês, crédito especial, financiamento do carro, financiamento da casa[6].

Como resultado do superendividamento tem-se a restrição ao crédito, maior dificuldade econômica, maior distanciamento com as condições de vida que desejava, preconceito social. Aquele que então seria apenas pobre e, quica, um “fracassado” (em oposição a bem-sucedido na vida) agora e “caloteiro”, “inadimplente”, “mau pagador”, “safado”, para ficarmos apenas nisso. (CAVALIERI FILHO, 2019. p. 71).

Estabelecidas tais premissas, mostra-se oportuna a abordagem sobre a política legal, inaugurada pela Lei n. 14.181/2021, para fazer frente ao crescente superendividamento da população, de modo que seja oferecida proteção aos inúmeros direitos que restam comprometidos em virtude do estado de insolvência, especialmente aos direitos de personalidade. Antes, entretanto, serão apresentados fundamentos sobre os quais repousam a proteção outorgada ao consumidor e os direitos de personalidade afetos, bem como os respectivos fundamentos em comum.

2. DA IRRADIAÇÃO DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE SOBRE AS RELAÇÕES DE CONSUMO

O objeto de estudo deste ponto será a análise da aproximação entre os fundamentos dos direitos de personalidade e a relação jurídica privada de consumo. Serão abordados os elementos que amparam a relação jurídica de consumo, especialmente, a autonomia privada e a igualdade aplicável, além da boa-fé objetiva. O propósito desta aproximação será a de revelar aspectos da personalidade e a tutela da disciplina legal das relações de consumo, para que seja possível, no ponto seguinte, desenvolver os apontamentos específicos sobre a legislação que introduziu regras de proteção contra o superendividamento e os direitos de personalidade que poderão ser (ou não) protegidos.

O Estado de Direito. forjado pela Revolução Francesa e pelos ideais iluministas. ofereceu fundamentos para o desenvolvimento do interesse daqueles que ascenderam ao poder. A liberdade tornou-se lugar comum hábil a justificar o encerramento do absolutismo e a concretização do liberalismo, também justificou o pleno desenvolvimento econômico. Por isso, os direitos sobre a personalidade erigidos referiram-se, inicialmente, a direitos negativos, contrários ao abuso estatal típico do chamado antigo regime. Neste momento histórico ainda carecia de sentido a construção de um modelo de proteção dos direitos fundamentais frente a particulares, uma vez que, se todos os indivíduos são efetivamente iguais e livres, não existem riscos nas relações por eles estabelecidas (SOMBRA, 2011, p. 33).

Na esfera privada, as obrigações e o contrato representavam essa visão positivista e racionalista da plena liberdade e dos valores destinados ao desenvolvimento do sistema de produção. A crença da ausência de defeitos no sistema jurídico e contratual, e na igualdade formal, que privilegiava ampla liberdade contratual, conduziu ao dogma absoluto do pacta sund servanda. O resultado deste excessivo apelo racional e fechado do sistema jurídico, típico do positivismo jurídico e da escola histórica do Direito, impossibilitou a reorientação do direito e sua adequação aos valores que efetivamente mereciam proteção (SZANIAWSKI, 2005, p. 41).

Com a falência do discurso liberal, a abertura axiológica do sistema jurídico e a ressignificação dos valores da ordem estatal forjaram uma nova ordem jurídica, pautada na centralidade da pessoa, tendo como axiomas a dignidade da pessoa humana e seus valores inerentes, tais como, boa-fé, igualdade substancial e direito à diferença, liberdade, solidariedade. No âmbito privado, certo dirigismo estatal tornou-se necessário, a fim de que fossem equalizadas distorções, antes desconsideradas, mas que representavam sério anacronismo e severa desigualdade (SOMBRA, 2011, p. 35):

Com o surgimento de uma nova perspectiva de organização social, o Estado perde o posto de único sujeito passivo subordinado à observância dos direitos fundamentais, visto que os indivíduos, em virtude da complexidade com que as relações sociais se delineiam, passam a estar em constante posição de ingerência aos direitos fundamentais.

Rompeu-se, assim, a patrimonialização do direito privado e sua lógica individualista, atribuindo-se maior valor à pessoa. A chamada personalização ou despatrimonialização do Direito Civil constituiu uma tendência normativa-cultural; se evidencia que no ordenamento se operou uma opção, que, lentamente, se vai concretizando, entre personalismo e patrimonialismo (PERLINGIERI, 2002, p. 33). Nessa senda, os direitos de personalidade serviram de relevante instrumento para a tutela da pessoa no plano horizontal das relações jurídicas, ao possibilitar a tutela sobre os atributos do ser humano em suas relações com os “iguais”, e permitir fosse trilhado o lento caminho da escolha pela personalização do Direito Civil. Não por acaso, o Código Civil de 2002 fundamentou-se, segundo parâmetros estabelecidos pelo elaborador e coordenador, Miguel Reale, na eticidade, socialidade e operabilidade, com a clara demonstração de que o novo instrumento legal deveria superar o caráter individualista e atuar enquanto agente transformador da sociedade, com ênfase e promoção nos valores morais, éticos[7].

As relações de consumo, enquanto relações privadas, também sofreram influência e ingerência dos direitos de personalidade. A Constituição Federal de 1988 elencou a defesa do consumidor como um dever do Estado e um direito e garantia fundamental do cidadão[8]. Afinal, o consumo constitui relevante aspecto da personalidade do ser humano, porquanto não somente proporciona a obtenção de recursos materiais e imateriais para a proteção e manutenção do indivíduo, mas também comina na própria projeção da personalidade nesta sociedade de consumo, como visto no item anterior. Pode-se afirmar que a exigência de proteção e de defesa ao consumidor constitui desenvolvimento avançado das relações privadas, já que pressupõe a importância desta espécie de relação jurídica e a comum desigualdade entre os integrantes. Aqui se fixa o afastamento da igualdade formal, e outorga-se ponto avançado da isonomia. Trata-se de constatar a existência de uma diferença, de modo que seja possível adequar a desigualdade circunstancial para a concretização não somente da isonomia, mas sim da própria justiça, pois igualdade não é uma ilha, encontra-se conexa com outros princípios, e tem de ser entendida no plano global de valores, critérios e opções da Constituição material (MIRANDA, 2012, p. 280).

Do Código de Defesa e Proteção do Consumidor, Lei 8.078/90, surge como o cumprimento de um imperativo constitucional, servindo como concretização de instrumento para proteção a direito e garantia individual, mas também como a materialização de princípio geral de toda atividade econômica (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 23). Dentre as inúmeras atribuições do Código de Defesa e Proteção do Consumidor, vislumbra-se a definição de inúmeros mecanismos de equalização da desigualdade verificada entre os integrantes da relação jurídica, a exemplo da inversão do ônus da prova, o direito ao arrependimento, desconsideração da personalidade jurídica da sociedade fornecedora de bens ou serviços.

Ponto de grande relevância para a demonstração da irradiação dos direitos de personalidade sobre as relações de consumo, é a autonomia privada, tida como poder jurídico particular, traduzido na possibilidade de o sujeito agir com a intenção de criar, modificar ou extinguir situações jurídicas próprias ou de outrem (AMARAL NETO, 1989).  Historicamente a autonomia privada foi um dos fundamentos do dogma do pacta sund servanda, porquanto a vontade expressada em um negócio jurídico haveria de ser peremptoriamente cumprida. Verificou-se que a autonomia privada, por mais relevante que seja, possui limitações que servem a valores maiores e que por isso pode e deve ser mitigada e regulada (BORGES, 2009, p. 54), o que significa dizer que a autonomia privada não é um valor em si e, sobretudo, não representa um princípio subtraído ao controle de sua correspondência e funcionalização ao sistema de normas constitucionais PERLINGIERI, 2002, p. 277).

Seria possível indagar se as limitações impostas à autonomia privada não seriam danosas aos direitos de personalidade. Sabe-se que as expressões do direito de personalidade envolvem a proteção à liberdade de autodeterminação, como prerrogativa que tutela o aspecto subjetivo e promocional do ser humano. Inegável, por isso, a correlação direta entre os direitos de personalidade e o exercício da autonomia privada. Todavia, sabe-se que nenhuma prerrogativa pode ser ilimitadamente considerada ou exercitada, diante da necessidade de adequação de valores com quem devem ser equilibrados. Nesse sentido, válida a lição de Fernanda Borghetti Cantali (2009, p. 205):

Essa capacidade de autodeterminação pessoal, como expressão da autonomia privada, pode ser exercida livremente desde que respeitados os direitos e as liberdades dos demais que comungam em sociedade, ou seja, não se pode atingir direito de terceiros, devendo ser protegido pelo Estado contra possível violação. A diferença, portanto, se resume à questão da abrangência e dos limites, e por isso não há que se falar em “crise da autonomia privada”.

Nas relações de consumo, em especial, observa-se ainda maior gravidade em se acolher uma autonomia isenta de freios e limites, dado a desigualdade entre os integrantes da relação jurídica e a forma de manejo da contratação, pautada em contratos de adesão e massificados, nos quais a vontade do consumidor restringe-se a aceitar ou não a proposta. Mostra-se, nesse caso, adequada a recusa à liberdade formal e, com base na desigualdade substancial de fato existente entre os sujeitos, para que seja privilegiada a parte mais frágil (PERLINGIERI, 2002, p. 278). Assim, a equalização do exercício da autonomia privada, enquanto expressão de personalidade pautada na autodeterminação, deve ser mediada pela própria legislação e pelos valores que inspiram e regulam a relação de consumo. Nesse particular, o Código de Defesa e Proteção ao Consumidor estabelece balizas que demarcam o limite da autodeterminação e da ação da autonomia privada, sempre com o objetivo de proteção o elo mais fraco da cadeia de consumo, além de promover os axiomas constitucionais como o da boa-fé objetiva, do que se ocupará na sequência.

A boa-fé objetiva possui sentido semântico vago, sendo mais razoável a busca pela sua função do que pela precisa definição. Judith Martins Costa, nesse sentido, pontua que (MARTINS-COSTA, 2018, p. 32):

agir segundo a boa-fé objetiva concretiza as exigências de probidade, correção e comportamento leal hábeis a viabilizar um adequado tráfico negocial, consideradas a finalidade e a utilidade do negócio em vista do qual se vinculam, vincularam, ou cogitam vincular-se, bem como o específico campo de atuação em que situada a relação obrigacional.

Estabelece a autora, na sequência, que a boa-fé objetiva atua como fonte de deveres jurídicos de cooperação, informação, e proteção na relação obrigacional, limite ao exercício de posições jurídicas, que atua como mecanismo de correção ao conteúdo contratual, diretriz interpretativa das relações obrigacionais (2018, p. 32). Os limites e obrigações impostas pela boa-fé objetiva fundamentam-se na alteridade humana e nos preceitos da eticidade que se espera sejam respeitados pelos integrantes das relações jurídicas estabelecidas. O tratamento da personalidade, no viés da individualidade, permite a toda pessoa realizar a tarefa ética, sua evolução espiritual e seu auto-desenvolvimento (SZANIAWSKI, 2005, p. 115), ao mesmo tempo que confere prerrogativas, impõe obrigações morais, éticas e legais pautadas na equivalência do igual direito alheio.

Saliente-se que o Código de Defesa e Proteção ao Consumidor dispõe expressamente acerca da boa-fé objetiva, atribuindo ao valor o caráter de princípio fundamental da Política Nacional das relações de consumo, conforme artigo 4º, inciso III[9]; e instrumento de avaliação da validade de cláusulas contratuais, de acordo com o artigo 51, inciso IV[10].

A boa-fé objetiva enquanto preceito ético e jurídico constitui instrumento para a limitação da autonomia privada e importante mecanismo de equalização das discrepâncias nas relações de consumo, porquanto impõe o esperado agir especialmente àquele que detém maior poder e condições de concretizar a função social do negócio jurídico entabulado; do que se pode concluir que essa determinação ética e legal do agir de forma honesta, proba e adequada revela-se como expressão da personalidade humana, pois uma concretização normativa, que dispensasse a ponderação do conteúdo ético do direito, tornar-se-ia na tutela do livre arbítrio e acabaria por não estar orientada para a plena realização ontológica da pessoa (GONÇALVES, 2008, p. 96).

A personalidade jurídica, em suas várias expressões, possuem vínculo direto com a base axiológica do Direito do Consumidor. A importância que se atribui ao consumo, enquanto instrumento para obtenção do indispensável à existência e como forma de expressão do próprio “eu”, bem denota o contato entre a personalidade e o consumo. Os institutos jurídicos da autonomia privada e da boa-fé objetiva, que inspiram esta ramo do Direito, perpassando pela igualdade e pelos valores éticos, também encontram profunda ressonância com expressões da individualidade, onde se justificam os direitos de personalidade; porquanto a prerrogativa à promoção e à autodeterminação – vista nesta parte como elocução da autonomia privada – possui limites encontrados nos preceitos éticos de alteridade – também relacionados nesse aspecto, com a boa-fé objetiva. Assim, diante da evidente irradiação dos direitos de personalidade sobre as relações de consumo, agora mostra-se mais adequado o desenvolvimento do estudo específico acerca do tratamento jurídico outorgado ao superendividamento, em sua faceta voltada à proteção integral ao indivíduo.  

3. DO TRATAMENTO JURÍDICO AO SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR E A SUA TUTELA DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE

Neste tópico serão trazidas as inovações trazidas pela Lei 14.181/2021, que inseriu vários institutos jurídicos ao Código de Defesa e Proteção ao Consumidor. Dentre as inovações trazidas, destacam-se: i) a inserção como princípios da política nacional das relações de consumo do desenvolvimento de medidas para desenvolver a educação financeira e ambiental dos consumidores, a prevenção e tratamento do superendividamento; ii) criação de mecanismos judiciais e extrajudiciais do superendividamento, com a instituição de núcleos de mediação e conciliação; iii) a definição, enquanto direito básico do consumidor, da preservação do mínimo existencial, especialmente em situações de superendividamento; iv) estabelecimento de regras específicas para proteção ao consumidor contra o superendividamento, a exemplo do direito à informação específica sobre as condições do negócio financeiro entabulado, o exercício do direito ao arrependimento do negócio financeiro e o principal que lhe deu origem, impeditivo de que sejam realizadas cobranças face dívidas contestadas pelo consumidor; v) criação de mecanismo de composição no caso de superendividamento, realizado por intermédio do Poder Judiciário e dos órgão públicos que integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, pelo qual o consumidor poderá oferecer proposta de pagamento das dívidas perante os credores, a fim de que lhe seja preservado o mínimo existencial e as dívidas quitadas; vi) possibilidade de, em caso de frustração da conciliação, instauração de processo por superendividamento, com a repactuação das dívidas remanescentes mediante de pagamento compulsório.

Pela identificação dos temas trazidos pela Lei do Superendividamento pode-se ressaltar três motes que utilizados para o desenvolvimento da proteção ao consumidor superendividado: i) critérios mais precisos e definidos sobre o direito à informação ao consumidor, a fim de evitar abusos e excessos que costumeiramente são praticadas nas relações de crédito; ii) desenvolvimento da educação financeira à população, contra o uso indiscriminado de crédito; iii) a par das medidas propedêuticas de prevenção ao superendividamento, a criação de mecanismos de socorro àqueles que se encontram em situação de superendividamento, mediante a instituição de procedimento judicial de conciliação, com o posterior plano compulsória, em caso de impossibilidade de composição.

O respeito ao direito à informação proporciona tutela que respeita a autodeterminação do indivíduo, porquanto somente com o conhecimento preciso das condições do negócio pode-se considerar possível o pleno exercício do direito de escolha. Pela informação adequada permite-se a busca pela equivalência, superação da hipossuficiência do consumidor e a igualdade entre os integrantes da relação de consumo (CAVALIERI FILHO, 2019. p. 121).

Do mesmo modo, o desenvolvimento de uma política de educação financeira destinada a evitar o superendividamento vincula-se ao próprio desenvolvimento da personalidade humana, em aspecto da vida humana de imensa relevância. O direito à educação enquanto direito fundamental abrange a concretização do desenvolvimento da pessoa, e por isso, não se limita a oferta da educação meramente formal. Para tanto, basta vislumbrar o enunciado do artigo 205 da Constituição Federal:

A educação, é um direito de todos e dever do Estado e da família, e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Se o objeto da educação é o pleno desenvolvimento da pessoa, tem-se que tal desiderato poderá ser obtido pelo instrumento que se fizer necessário, seja por uma educação curricular ou por políticas disseminadas de transmissão e difusão do conhecimento (CAVALIERI FILHO, 2019. p. 120).

Antes mesmo das inovações trazidas pela Lei 14.181/2021, a educação para o consumo já era um direito assegurado pelo Código de Defesa e Proteção do Consumidor, conforme se observa do artigo 6º, inciso II, ao estabelecer como direito básico do consumidor: a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações.

A educação para o consumo com vistas a evitar o superendividamento, nestes termos, não abrange simplesmente a informação adequada, mas sim representa o desenvolvimento da personalidade do sujeito, de modo que seja dotado, em suas relações de consumo, de poder de reflexão e de conscientização acerca do consumo de bens e serviços, minimizando, assim, a sua irracionalidade, a sua limitação decorrente da assimetria de informações (RIBEIRO; TIUJO, 2008, p. 599-614). Por isso, inegavelmente que instrumentalização de medidas de educação financeira para evitar o superendividamento da população resultam em importante forma de proteção às prerrogativas envoltas à proteção à personalidade.

As medidas que envolvem a educação financeira e o direito à informação ao consumidor somente poderão ser avaliadas de forma paulatina, já que o objetivo central seria a modificação da forma como as relações de consumo são estabelecidas, o que exigiria a mudança profunda de uma prática reiteradamente consolidada. Esta hercúlea tarefa envolve a modificação da mentalidade dominante, cultura que confere importância desmedida ao consumo.

Como visto anteriormente, o excessivo apego ao consumo constitui consequência de um conjunto de fatores, trata-se de valor impregnado no tecido social e de mecanismo retroalimentado pelos meios de comunicação e pelo sistema de produção. Por isso, pode-se afirmar que o desenvolvimento de políticas voltadas à educação da população, bem como o respeito aos cânones éticos na relação de consumo, como desdobramento do respeito à boa-fé objetiva, não seriam suficientes para modificar o cenário a que estamos imersos. Fosse assim, países em que o respeito ao consumidor é de fato efetivo não haveria de ter como fenômeno social o superendividamento. O superendividamento é um fenômeno global, trazido pela globalização, ao padronizar valores, sistema econômico e de produção, em evidente enfraquecimento do poder local (SARMENTO, 2010, p. 55), alcançando países desenvolvidos e subdesenvolvidos. A despeito da evidente impossibilidade de uma alteração plena do estado das coisas, certamente a educação financeira e a imposição de maiores exigências contra o desrespeito aos direitos básicos do consumidor poderiam atenuar a situação atual. A educação enquanto política pública destina a proporcionar consumo refletido ao consumidor, seria apenas um reforço, um complemento, destinado a atuar, significativamente, na mudança de mentalidade e comportamento do cidadão (RIBEIRO; TIUJO, 2008, p. 612), bem assim não afasta a necessidade de criação de outros instrumentos

Como dito anteriormente, a Lei 14.181/2021 não se limitou a estabelecer o desenvolvimento da educação financeira e do direito a uma informação qualificada como os únicos instrumentos para fazer frente à vulnerabilidade do consumidor, a instituição de procedimento voltado à oferecer solução àqueles já alcançados pelo superendividamento também foi considerada. Agiu bem o legislador ao prever procedimento destinado àqueles que já se encontrem em posição de superendividamento representa importante mecanismo para auxílio e preservação dos direitos de personalidade. A situação daqueles superendividados expõe condição de comprometimento severo das condições mínimas de subsistência, vez que a ausência de recurso e a supressão do crédito afeta diretamente a dignidade do consumidor e de sua família.

O procedimento é dividido em duas fases: fase conciliatória e a fase de julgamento do plano de pagamento. A proposta do plano de pagamento será oferecida pelo consumidor, que seguirá à audiência de conciliação, presidida por juiz ou conciliador. Tal proposta terá como prazo máximo cinco anos para o pagamento das dívidas, e aquele credor que não comparecer à audiência de forma injustificada terá a exigibilidade do crédito suspenso, assim como os encargos de mora, além da sujeição ao plano de pagamento da dívida[11]. Importante destacar a busca pela preservação do mínimo existencial, o que deverá ser objeto de apontamento na própria proposta de pagamento. Com efeito, deverão ser apresentados as necessidades básicas do consumidor e da família que devem ser atendidas e que materializam o mínimo existencial. O valor representativo deste mínimo existencial deverá ser mantido ao consumidor e à família, sem embargo a destinação dos valores remanescentes serem destinado à quitação dos valores devidos.

Poderá o consumidor requerer a instauração de processo por superendividamento, a fim de que seja compulsoriamente estabelecido, aos fornecedores que não acolheram a proposta formulada, plano judicial compulsório para pagamento das dívidas. Para tanto, os fornecedores serão citados e terão prazo de 15 (quinze) dias para justificar as razões da negativa em acolher o plano voluntário. Poderá ser nomeado administrador para que apresente o plano de pagamento. O plano judicial compulsória será fixado segundo alguns parâmetros legalmente estabelecidos: i) os credores terão direito ao recebimento, no mínimo, do capital acrescido de correção monetária; ii) o prazo máximo para quitação dos débitos será de cinco anos e a carência máxima de 180 (cento e oitenta) dias, contada da homologação do acordo[12].

Algumas medidas têm sido implementadas para materializar os mandamentos legais. Os Tribunais de Justiça dos Estados da Bahia[13] e do Distrito Federal[14] disponibilizaram serviços para a solicitação de ações de prevenção e tratamento para a situação de superendividamento. Para tanto, o consumidor terá que realizar um cadastro, participar de aulas de educação financeira, preencher formulário com o plano de pagamento das dívidas, e participar da audiência.

Certa indagação surge acerca do que seria considerado, na prática, as verbas que integram este mínimo existencial. O legislador, certamente de forma consciente, preferiu não se imiscuir na tarefa de catalogar as rubricas que integram o mínimo existencial e, nesse aspecto, agiu mais uma vez bem. Muito embora seja possível prever in abstrato elementos que integram o mínimo existencial, tem-se que se apresenta mais adequada a ponderação casuística e concreta. Afinal, a ideia de indispensabilidade é variável de acordo com a cultura e dado momento histórico, também com as necessidades concretas de cada pessoa. Existem necessidades que, abstratamente se revelariam destituídas de grande relevância, embora possam ser justiçadas por uma necessidade especial do consumidor ou de sua família. Como ilustração, pode-se citar o consumo de produtos alimentícios considerados de alto valor e que, para maioria da população seria um “capricho”, porém, dada a necessidade específica, talvez por uma exigência médica, aquele produto poderia ser considerado de primeira necessidade para aquele consumidor. Veja-se, de diferente modo, situações nas quais abstratamente seria possível cravar o gasto como parcela integrante do mínimo existencial, mas que não se revela adequada diante da situação analisada. Pensemos na seguinte situação: os filhos do consumidor superendividado são alunos de colégio, cuja mensalidade é de valor excessivamente desproporcional ao praticado por outras escolas particulares, e o pagamento de tal custo comprometeria parcela excessivamente significativa da renda familiar. Não se discute a educação enquanto direito essencial da pessoa, todavia, a casuística talvez revele a impossibilidade de manutenção de tal serviço, ao menos nesses patamares.

Muito embora o mínimo existencial seja uma categoria universalista, não se deve remeter ao universalismo abstrato, característico do direito liberal-burguês, cego às diferenças e especificidades de cada sujeito (SARMENTO, pp. 1644-1689). O que se quer ratificar com os exemplos citados é que a parcela que compreende o mínimo existencial, como corolário que preserva o núcleo de direitos fundamentais e de personalidade, deve ser ponderada segundo um juízo de proporcionalidade e razoabilidade, sob pena de subjugar a esperada tutela conferida ou de desrespeitar o interesse dos credores, em clara demonstração de um exercício abusivo do direito.

A inclusão do mínimo existencial como critério para preservação da subsistência do consumidor superendividado permite a concretização de finalidade destinadas ao valor em apreço. A legislação ao garantir a preservação do mínimo existencial ao consumidor superendividado, confere tutela a direitos fundamentais e de personalidade não necessariamente positivados, porquanto a partir desta cláusula geral de proteção erigem-se direitos que merecem ser tutelados, a despeito do vácuo legislativo. As prestações relacionadas à energia elétrica, vestuário, são exemplos de conteúdo irradiado pelo mínimo existencial (SARMENTO, pp. 1658). Em face disso, pode-se afirmar que o legislador pontuou ótima opção para oferecer equalização dos direitos do consumidor em estado crítico de endividamento, sem afastar a responsabilidade esperada daquele que deve.

De mais a mais, pode-se afirmar que a Lei 14.181/2021 trouxe resposta coerente à conjuntura social e econômica que aflige milhares de famílias, proporcionando, num primeiro momento, afirmação da informação e educação financeira como diretrizes para transformação social e de comportamento, a fim de que sejam oferecidas condições para um consumo responsável e refletido; bem como, instrumentos para a solução dos problemas experimentados por aqueles que se encontram na delicada situação de superendividamento. A informação, educação e a preservação, em concreto, do mínimo existencial podem contribuir para a afirmação dos direitos de personalidade, ao oferecer substrato para o desenvolvimento pleno da personalidade e preservar o núcleo essencial de direitos indispensáveis à manutenção do consumidor e de sua família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há consenso sobre a grande relevância social que assume o consumo, enquanto instrumento que concretiza as necessidades materiais e imateriais, mas também como expressão que confere significado à personalidade humana; reflexo de uma sociedade paramentada no cumprimento imediato e efêmero do desejo, sendo muitas vezes pouco relevante até mesmo o transitório objeto a que se deseja.

Como não poderia ser diferente, na sociedade de consumo as respectivas relações jurídicas assumem significado de imensa relevância, não somente em termos quantitativos, mas também como mecanismo de validação do sistema produtivo, que espera seja cada vez mais fomentado, de modo que seja fortalecido o binômico produção-consumo. Naturalmente, o fortalecimento da produção exige a imposição progressiva do consumo e para esse fim, a par dos valores individuais e sociais já sedimentados, o apelo publicitário de toda sorte acaba por laçar o mais precavido indivíduo.

 A imposição da ordem de valores capaz de despertar o desejo pelo consumo, próprio de um sistema produtivo e uma organização social voltada a este fim, confere uma condição de vulnerabilidade ao consumidor, já que lhe é ceifado um consumo refletido, aliado ao desconhecimento técnico sobre o bem ou serviço, além da hipossuficiência econômica frente ao fornecedor. O desequilíbrio da relação jurídica de consumo é marca indelével, portanto. A Ordem Jurídica, ao reconhecer essa condição de inferioridade técnica, volitiva e econômica, assim, criou e cria mecanismos para a proteção do consumidor (ou seria do próprio consumo?), a exemplo do Código de Defesa e Proteção do Consumidor e de sua alteração mais recente pela Lei 14.181/2021.

Para estabelecer regras de proteção e equalização da relação de consumo erigem-se valores que devem ser preservados, a exemplo das limitações da autonomia privada, da boa-fé objetiva, da função social do contrato. Tais axiomas encontram perfeita sintonia com a tutela dos direitos da personalidade. Se o consumo representa desmedida (e indevida) expressão da personalidade, nada mais adequado do que os axiomas que proporcionam a equalização das relações de consumo também se dirijam à proteção da própria personalidade do indivíduo, o que abrange os direitos fundamentais e de personalidade.

Nesse sentido, a Lei 14.181/2021 prossegue no desiderato protetivo do consumidor. As medidas envolvem a regulamentação especialmente das relações de consumo voltadas ao crédito e podem ser divididas em três pontos, segundo seu conteúdo em especial: i) medidas voltadas à maior informação, o que impõe maiores obrigações ao fornecedor para que seja possível ao consumidor o exercício de sua vontade refletida; ii) a criação de medidas voltadas ao desenvolvimento progressivo de educação financeira e consumerista, para impedir o exercício irresponsável do crédito e do consumo; iii) a instituição de medidas para fazer frente aos danos causados pelo consumidor alcançado pelo superendividamento, mediante procedimento de composição das dívidas ou de determinação compulsória do plano de pagamento pelo Poder Judiciário. Este último ponto chama a efetivação do equilíbrio entre o saneamento das dívidas e a manutenção do mínimo existencial, pois o plano de pagamento deverá preservar as condições mínimas de dignidade do consumidor e de sua família.

De forma pontual, pode-se afirmar que as medidas servem para a proteção da dignidade da pessoa humana e da preservação da personalidade do indivíduo enquanto consumidor, ao ofertar o desenvolvimento da personalidade mediante o desenvolvimento do conhecimento e de informações adjacentes às relações de consumo, e tutelar o núcleo mínimo essencial de prestações materiais, mesmo àquele destituído de crédito e de recursos suficientes para o pagamento das dívidas.

De outro lado, seria demasiadamente ingênuo crer que as medidas voltadas ao implemento de maiores informações e da educação, formal ou informal, nas relações de consumo tenham o condão de superar sua desigualdade e seu desequilíbrio típicos. Como já foi dito, o consumo traduz-se em uma imposição moral ao sujeito, e a ordem de valores assimilada cria cotidianamente o desejo e exige sua imediata satisfação. A informação e o ensino voltado ao próprio consumo prestam-se como forma de manutenção do mesmo sistema contra os abusos capazes de romper com o status quo. Afinal, a informação e a educação não são dirigidos ao desenvolvimento pleno e racional do indivíduo, mas sim à proteção do próprio ato de consumir. Espera-se, entretanto, que as medidas inseridas proporcionem, ao menos, o manejo de um procedimento efetivo para atenuar os maléficos efeitos do superendividamento.

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[1] Coordenador e Professor Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito da Universidade Cesumar, Maringá, PR (UniCesumar); Pós-doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal), Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino – ITE/Bauru, Especialista Lato Sensu em Direito Civil e Processual Civil pelo Centro Universitário de Rio Preto, Pesquisador Bolsista – Modalidade Produtividade em Pesquisa para Doutor – PPD – do Instituto Cesumar de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICETI), Professor nos cursos de graduação em direito da Universidade de Araraquara (UNIARA) e do Centro Universitário Unifafibe (UNIFAFIBE), Professor Convidado do Programa de Mestrado University Missouri State – EUA, Editor da Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas (Qualis B1), Consultor Jurídico, Parecerista, Advogado. Endereço profissional: Universidade Cesumar, Av. Guedner, 1610 – Jardim Aclimacao, Maringá – PR, 87050-900, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9073-7759. CV: http://lattes.cnpq.br/3134794995883683. E-mail: dpsiqueira@uol.com.br

[2] Doutorando em Direito pela Universidade Cesumar – UNICESUMAR, Maringá-PR. Advogado. E-mail: ernanipera@hotmail.com

[3] Mestrando em Direito pela Universidade Cesumar – Unicesumar; Especialista em Direito Eleitoral pelo Instituto Damásio de Jesus e em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp; Procurador do Estado de Mato Grosso. CV: http://lattes.cnpq.br/2446652361102705. E-mail: leonan.roberto@gmail.com

[4] Mestranda em Ciências Jurídicas junto ao UniCesumar, na linha de pesquisa com enfoque nos instrumentos de efetivação dos direitos da personalidade. Bolsista PROSUP/CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas e Instrumentos Sociais de Efetivação dos Direitos da Personalidade.” Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8163-7406. E-mail: mayumecaires@hotmail.com

[5] Sobre a modificação da sociedade de produtores para a sociedade de consumo Bauman também apresenta diferenciações no livro Globalização: As Consequências Humanas, como se observa do seguinte excerto: Quando a espera é reiterada do querer e o querer da espera, a capacidade de consumo dos consumidores pode ser esticada muito além dos limites estabelecidos por quaisquer necessidades naturais ou adquiridas; também a durabilidade física dos objetos não é mais exigida. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As Consequências Humanas. Rio de Janeiro: 1999, p. 90.

[6] Disponível em: https://www.fecomercio.com.br/pesquisas/indice/peic; acesso em 05 fev. 2022.

[7] Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70319/743415.pdf?sequence=2&isAllowed=y ; acesso em 22 fev. 2022.

[8] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

[9] Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

(…)

III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

[10] Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

(…)

IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;

[11] ‘Art. 104-A. A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.

§ 1º Excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.

§ 2º O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação de que trata o caput deste artigo acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória.

[12] Art. 104-B. Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado.

§ 1º Serão considerados no processo por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas em audiência.

§ 2º No prazo de 15 (quinze) dias, os credores citados juntarão documentos e as razões da negativa de aceder ao plano voluntário ou de renegociar.

§ 3º O juiz poderá nomear administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30 (trinta) dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.

§ 4º O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no art. 104-A deste Código, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.

[13] Disponível em: http://www5.tjba.jus.br/juizadosespeciais/index.php/superendividado; acesso em 22 fev. de 2022.

[14] Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/carta-de-servicos/servicos/conciliacao-e-mediacao/solicitar-acoes-de-prevencao-e-de-tratamento-para-a-situacao-de-superendividamento. acesso em 22 fev. de 2022.