DOMÍNIO DO FATO E A CRIMINALIDADE EMPRESARIAL

DOMÍNIO DO FATO E A CRIMINALIDADE EMPRESARIAL

10 de março de 2024 Off Por Cognitio Juris

FACT’S DOMAIN AND CORPORATIVE CRIMES

Artigo submetido em 01 de março de 2024
Artigo aprovado em 07 de março de 2024
Artigo publicado em 10 de março de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 54 – Março de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Icaro Brambila de Souza[1]

RESUMO: O presente artigo científico tem por objetivo esclarecer, ao menos em parte, diversas dúvidas acerca da Teoria do Domínio do Fato, originalmente desenvolvida pelo professor alemão Claus Roxin, cuja obra foi publicada pela primeira vez em 1963. O que vemos no Brasil é uma forte tendência à criminalização dos cargos de gestão, principalmente em grandes empresas ou multinacionais. Busca-se a responsabilização objetiva do presidente ou diretor da empresa pelo simples fato de constar, no contrato social, como quotista majoritário – valendo-se, para tanto, de uma premissa equivocada sobre a Teoria do Domínio do Fato. O estudo realizado, longe de tentar esgotar o tema, buscou demonstrar a impossibilidade de se aplicar a aludida teoria aos denominados “crimes empresariais”, porquanto não cumpridos todos os requisitos exigidos para sua caracterização.

Palavras-chave: Domínio do Fato. Criminalidade empresarial. Responsabilidade objetiva.

ABSTRACT: This scientific article aims to clarify, at least in part, several doubts about the Fact’s Domain Theory, originally developed by the German professor Claus Roxin, whose work was published for the first time in 1963. What we see in Brazil is a strong tendency towards criminalization of management positions, especially in large companies or multinationals. The aim is to hold the president or director of the company objectively responsible for the simple fact that they appear, in the articles of incorporation, as the majority shareholder – using, for this purpose, a mistaken premise about the Fact’s Domain Theory. The study carried out, far from trying to exhaust the topic, sought to demonstrate the impossibility of applying the aforementioned theory to the so-called “business crimes”, as all the requirements required for their characterization were not met.

Keywords: Fact’s Domain. Corporative crimes. Objective responsability.

INTRODUÇÃO

A correlação entre a Teoria do Domínio do fato e a criminalidade empresarial não é um assunto novo. Em que pese diversos autores, nacionais e estrangeiros, terem se debruçado sobre o tema, ainda há muito campo a ser explorado.

Os famigerados “crimes de colarinho branco” ou “crimes de escritório (office crimes), no Brasil, ganham cada vez mais atenção por parte da mídia.

Após a deflagração de grandes operações investigatórias, muitas vezes capitaneadas por membros do Ministério Público, vem à tona dúvidas sobre como enfrentar a questão. Quando tais investigações são transformadas em processos criminais, as mais diversas teorias surgem para tentar se atribuir responsabilidade penal para condutas perpetradas por empresários e/ou gestores – sejam elas comissivas ou omissivas.

Eis daí que emerge, em grande parte, menção à Teoria do Domínio do Fato, desenvolvida e aprofundada pelo professor e jurista alemão Claus Roxin, cuja primeira publicação autoral se deu em 1963[2].

No presente estudo, porém, não serão abarcadas com profundidade as teorias de autoria ou a diferenciação entre os conceitos restritivos e extensivos de autor. O foco será tecer reflexões e, de maneira crítica, analisar o domínio do fato.

Portanto, remenda-se um prévio estudo sobre tais conceitos, a fim de que o leitor não se sinta perdido ou desnorteado.

1. PARTE HISTÓRICA: O USO DA EXPRESSÃO “DOMÍNIO DO FATO”.

Alguns apontam Roxin como o criador da teoria, entretanto, o próprio jurista diz que isso não é verdade. A bem dizer, o aludido professor foi o responsável pelo desenvolvimento e difusão da teoria do domínio do fato para o mundo, utilizada como referência em vários países.

O surgimento da expressão “domínio do fato” ou “domínio sobre o fato” apareceu pela primeira vez em 1915, pelo também jurista alemão Hegler, em sua monografia “elementos do delito”[3]. À época, Hegler aludiu à culpabilidade, isto é, atuaria culpavelmente somente quem teria o pleno domínio do fato (sem estar coagido, agindo por vontade própria, no seio de ser o “senhor dos fatos em sua concreta manifestação”[4]).

Alguns anos depois, em 1932, Hermann Bruns idealizou a questão do domínio do fato já voltado ao concurso de pessoas (autoria e participação)[5]. Dizia ele que a autoria pressupunha, pelo menos, a possibilidade de se ter domínio do fato. Mais à frente, Hellmuth V. Weber[6] menciona o domínio do fato em alusão à teoria subjetiva[7] da autoria, dizendo, basicamente, que autor é quem pratica o fato com vontade de domínio do fato.

Em 1933, em uma análise crítica, Lobe associou de vez a questão do domínio do fato ao plano da autoria[8]. Para ele, havia de existir um animus domini no lugar de um animus auctoris, no sentido de haver a vontade de autor em dominar a execução do fato.

Em seguida, no ano de 1939, Welzel apontou a expressão “domínio final do fato” como determinante para se delimitar a autoria[9]. Perceba-se que a expressão “domínio final do fato” trazida por Welzel, relacionada à ação do indivíduo, não pode ser confundida com a teoria desenvolvida por Claus Roxin em 1963 – não à toa que aquele é conhecido mundialmente pelos estudos e defesa do que se conhece como finalismo.

O próprio Roxin, em sua obra, destaca a importância do tema e a necessidade de sistematizá-lo, pois todos os autores que lhe antecederam chegaram à mesma expressão (ou quase) em áreas diferentes da dogmática penal.

Cita, por exemplo, que Hegler desenvolveu sua teoria no campo da culpabilidade, Bruns na adequação, a justificação da teoria subjetiva por Von Weber, a crítica de Lobe e, finalmente, chega-se à doutrina de ação em Welzel[10].

Eis, em breve resumo, o caminho percorrido que inspirou Roxin a desenvolver o que e onde melhor estaria situado o domínio do fato. Atualmente, após o estudo desenvolvido pelo catedrático alemão, entende-se estar localizado no campo do concurso de pessoas e, essencialmente, soluciona, em casos concretos, quem é autor e quem é partícipe.

2. O DOMÍNIO DO FATO PARA ROXIN.

O conceito de domínio do fato desenvolvido por Roxin não presta para atribuir culpa a quem sem ele não seria condenado. Serve, em verdade, para se determinar a categoria do sujeito na prática da infração penal – pois, em caso de condenação, se o será como autor ou como partícipe (cúmplice ou instigador no direito penal alemão).

Daí a crítica de alguns autores, nos quais me incluo, no sentido da má interpretação da Teoria do Domínio do Fato aqui no Brasil. Confunde-se fundamentos, conceitos e alarga-se o instituto desenfreadamente com vistas à atribuição de culpa (aqui, em sentido amplo) apta para condenação de certas pessoas.

Luís Greco e Alaor Leite mencionam alguns problemas quando se importa uma teoria estrangeira[11]. Isso porque Roxin, enquanto acadêmico, desenvolveu-a para a solução de um caso concreto: o caso Eichmann[12] – e não simplesmente como um mero devaneio.

À época do julgamento de Eichmann em Israel, em 1961, vigorava na jurisprudência alemã a ampla aceitação da teoria subjetiva de autoria – autor é quem quer o fato como próprio, enquanto o cúmplice quer o fato para outrem.

Ora, no caso dos soldados membros do exército nazista, que assassinavam pessoas a mando de seus superiores, não poderiam, em regra, serem punidos como autores, visto que não queriam o fato para si – e sim para outrem.

E o Código Penal alemão, tanto à época quanto atualmente, exige a diferenciação entre o autor e o cúmplice, ou instigador. Para aquela legislação, o autor deverá ter uma pena maior do que os demais (§ 25 e seguintes do Código Penal Alemão).

Sobre esse tema, portanto, é que Roxin se debruçou. Trouxe uma ideia que lhe guiou até o final e serviu de base à teoria: descobrir a figura central do acontecer típico[13].

O autor é aquele que figura no papel central do injusto (acontecer típico). Quem não está neste status, mas às margens do fato típico, é partícipe – e não poderá receber pena maior que os demais.

Portanto, denota-se que se valer de tal construção dogmática para substituição de prova e atribuição de responsabilidade penal, não é possível – ou, sequer, crível. Não é para isso que ela deve ser utilizada.

Tanto é verdade que quando o professor Claus Roxin esteve no Brasil, em 2012, no auge do julgamento da Ação Penal n. 470[14], foi questionado por jornalistas acerca da aplicação de seu conceito desenvolvido – domínio do fato.

Há época, aos 81 anos de idade, Roxin disse ao jornal Folha de São Paulo que a simples posição hierárquica de uma pessoa não era suficiente para atribuir-lhe domínio do fato, é preciso prová-lo. O mero “ter que saber” não basta[15].

Assim, para que se atribua a autoria da prática delitiva ao sujeito, figura central do acontecer típico, Roxin previu três possibilidades, quais sejam, (i) domínio da ação (autoria imediata / única); (ii) domínio da vontade (autoria mediata) e; (iii) domínio funcional do fato (coautoria)[16].

Portanto, passar-se-á ao estudo de cada uma dessas formas de domínio do fato, a fim de, ao final, ter-se a possibilidade de concluir sobre a possibilidade (ou não) de aplicação de uma delas aos crimes empresariais.

2.1 DOMÍNIO DA AÇÃO (Handlungsherrschaft)

Quem pratica a conduta definida como infração penal, pelas próprias mãos, sempre será autor. Roxin alude que esta espécie de domínio do fato é relativamente fácil, porquanto o sujeito que executa o núcleo elementar do tipo penal incriminador, é autor[17].

Em todos os casos possíveis em que isso ocorrer, o sujeito terá o domínio do fato, por meio do domínio da ação. Ainda que a pessoa tenha sido instigada por outra, ou mesmo cumprido um plano pensado por um superior, não perderá o seu status de figura central do acontecer típico.

Somente a partir desta primeira face do domínio do fato já se resolveu o caso dos soldados nazistas que assassinavam a mando de seus superiores. Isso porque, em que pese estivessem cumprindo ordens e quisessem o fato para outrem (a ideia não surgiu de sua cabeça, mas, sim, injetada), foram os responsáveis diretos pela execução integral do tipo penal incriminador.

Apontaram a arma. Puxaram o gatilho. Homicídio configurado. Autoria atribuída por meio do domínio da ação – sempre pensando nas ressalvas feitas acima, no sentido que o executor, autor imediato, não está sob coação, erro ou é inimputável, pois, nestes casos, serão autores inculpáveis, mas continuam autores[18].

Outro exemplo, apresentado diretamente por Roxin, é o caso de um pai de família que vê o filho sequestrado por criminosos e, diante do cenário, precisa assassinar uma pessoa para que a criança seja liberada. O pai, em desespero e sob coação, pratica o fato criminoso.

O cenário é praticamente idêntico. Por ter o domínio da ação, o sujeito será considerado autor do crime de homicídio, ainda que faça jus a uma (ou mais) causa excludente de culpabilidade.

Desse modo, para se ter o domínio da ação, é preciso executar a conduta criminosa pelas próprias mãos, e, em todos os casos da prática de condutas delitivas, será considerado autor.

2.2 DOMÍNIO DA VONTADE (Willensherrschaft)

Na segunda espécie, denominada domínio da vontade, figura-se a denominada autoria mediata. Neste cenário, o “homem de trás” vale-se de um autor imediato para a prática delitiva. Ao contrário do domínio da ação, neste caso, o autor mediato não executa o núcleo do tipo penal incriminador por suas próprias mãos, mas se utiliza de pessoa sob coação, em erro, inimputável ou em um aparato organizado de poder[19].

Por primeiro, a coação é trazida por Roxin como a forma mais simples de se obter o domínio da vontade de outrem. Menciona a existência do princípio da responsabilidade, isto é, não responsabilizar o ‘homem da frente’ é a exceção – conforme previsto, para nós, no artigo 22 do Código Penal.

Isso porque no domínio da vontade há uma dupla autoria (aqui, frise-se, ainda não se está diante do instituto da coautoria, tema mais bem abordado no próximo tópico), sendo que, por opção do legislador, tanto alemão, quanto brasileiro, é de exculpar o ‘homem da frente’, coagido, apenas em casos específicos previstos em lei.

O próximo parâmetro para configuração do domínio da vontade é o erro (erro de tipo, erro de proibição etc.). Nestes casos, Roxin rememora e desenvolve o conceito do “autor por de trás do autor”, trazido por Richard Lange[20] – em outras palavras, a possibilidade de atribuir autoria ao autor (mediato) por de trás do autor (imediato), visto que este é controlado como se fosse um boneco ou, como diz Luís Greco, uma marionete.

Quanto aos inimputáveis, trata-se do mesmo sistema. O sujeito vale-se da incapacidade do inimputável para alcançar o resultado desejado, configurando-se a autoria mediata.

Por último, e, com certeza, o que gera as grandes discussões na doutrina e na jurisprudência, é o aparato organizado de poder. Inicialmente, é preciso esclarecer o que é o tal aparato organizado de poder.

Roxin diz que o aparato organizado de poder é uma organização, apartada do ordenamento jurídico, com hierarquia verticalizada e fungibilidade de seus executores[21]. Basicamente, são estes os requisitos para que se configure um aparato organizado de poder.

Assim, aquele que detém poder de mando em uma organização apartada do Direito e com executores fungíveis, é autor mediato diante do aparato organizado de poder.

Roxin também faz a ressalva quanto ao ponto (mais polêmico, diga-se) da dissociação do Direito. Quando se fala em Estados totalitários ou ditaduras, como foi a Alemanha nazista, está-se diante de um aparato organizado de poder – mesmo estando, em tese, dentro da ‘legalidade’ ali estipulada.

Com isso, resolve-se o caso Eichmann, estopim para o pensamento roxiniano. Ora, em que pese Adolf Eichmann ter ocupado um cargo de alta liderança dentro do Partido Nacional-Socialista, as ordens emitidas eram nitidamente ilegais e moralmente questionáveis. Ele tinha poder de mando naquele regime totalitário e havia a fungibilidade dos executores (pois, se um soldado não atirasse, outro o faria).

Com isso, por meio do domínio da vontade via aparato organizado de poder, Eichmann poderia ter sido classificado como autor das centenas de milhares de mortes por ele determinadas.

É neste aspecto que se discute sobre a possibilidade de autoria mediata, mediante aparato organizado de poder, na criminalidade empresarial. Depois da introdução do que defende desde 1963, bem como em artigos recentes, Roxin assegura que não se pode atribuir o domínio do fato, mediante o domínio da vontade via aparato organizado de poder, a gestores de empresas constituídas legalmente – simplesmente porque não cumpre o requisito essencial da teoria.

Isso serve, também, para cargos públicos de lideranças, como chefes do Poder Executivo, Legislativo e o Judiciário. Até porque em um Estado Democrático de Direito, com a liberdade e garantia dos direitos fundamentais aos cidadãos, não se tolera ou se cumpre ordens proferidas por lideranças que são manifestamente ilegais.

Schunemann[22], em sua obra, expõe o medo que sente a respeito de uma possível manipulação do aparato organizado de poder, ampliando-se ferozmente o instituto e utilizando-o para não só identificar quem é autor mediato, mas sim para fins de atribuição de responsabilidade penal – o que, de fato, não é e nunca foi possível.

Assim, alguns pontos cruciais precisam ser destacados. O domínio da vontade somente se configurará quando o ‘homem de trás’ se valer de um ‘homem da frente’ sob coação, erro, inimputável ou em um aparato organizado de poder – conforme delimitado nos parágrafos anteriores.

O que muitas vezes ocorre, seja por desconhecimento acerca dos princípios dogmáticos principais do domínio da vontade, ou por má interpretação, acredita-se que uma pessoa em posição de liderança detém o domínio da vontade de outrem – sem avaliar os requisitos para tanto.

Na criminalidade empresarial, principalmente em companhias de grande porte, com inúmeros funcionários, há imensa divisão de departamentos e de tarefas. Nesse sentido, a prática criminosa eventualmente perpetrada por um dos funcionários, na maioria das vezes, sequer chega ao conhecimento da gestão – ainda que ela se beneficie de tal fato, como no caso da prática de crimes contra a ordem tributária.

Nesta seara merece atenção as considerações feitas por Pablo Alflen, que, igualmente pautado nas bases roxinanas, alude que na criminalidade empresarial faltam os requisitos essenciais para o domínio do fato por meio de aparato organizado de poder. A deficiência está nos fins originários da concepção da empresa, originada à luz da legislação, na impossibilidade de substituição do executor e na falta da disposição elevada ao fato criminoso[23].

Não se está a sustentar, contudo, a impunidade. Pelo contrário, existem outros mecanismos que podem ser utilizados a fim de, primeiro, descobrir a participação efetiva de determinada pessoa na prática de uma infração penal e, se o caso, atribui-lhe responsabilidade.

Deve-se, pois, haver prova – sempre se respeitando os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. A mera suposição acusatória de uma pseudociência do gestor não deve ser tolerada. E mais, caso se comprove a ciência do gestor acerca da prática delitiva de um de seus empregados, surge outro problema: qual a contribuição do gestor naquela conduta. Uma omissão penalmente relevante? Para isso, os gestores figuram como garantes de seus empregados? Houve uma efetiva ordem hierárquica?

Muitas dúvidas pairam para que se analise com leviandade.

Por isso, Heloísa Estellita disserta sobre uma possível posição de garantidor dos empresários e gestores, passando por diretores, supervisores ou aqueles que detém algum cargo de liderança no âmbito empresarial. Trata-se, assim, de caminhos alternativos para se dar uma resposta penal à criminalidade empresarial[24] – e não a aplicação automática de domínio do fato, sem base teórica.

À visto disso, extrai-se a impossibilidade da aplicação de domínio do fato, via aparato organizado de poder, à criminalidade empresarial, assegurada pelo próprio Roxin em diversos momentos, ao passo que forçar essa situação não há qualquer embasamento dogmático.

2.3 DOMÍNIO FUNCIONAL DO FATO (Funktionale Tatherrschaft)

O domínio funcional do fato é a terceira e última espécie do domínio do fato. Esta é, pois, a clássica forma de coautoria. Oswaldo H. Duek Marques e Gustavo Junqueira, em igual sentido, aludem o domínio funcional do fato como aquele que mais se aproxima do concurso de pessoas, com divisão de tarefas e decisões conjuntas[25].

Roxin esclarece a necessidade de que ambos os executores pratiquem condutas nucleares do tipo penal incriminador, mediante ajuste prévio e divisão de tarefas.

O exemplo clássico, citado por Luís Greco e Alor Leite[26], é de que A e B decidem roubar um pedestre que trafegava pela via pública. Com isso, A ameaça a vítima enquanto B subtrai seus pertences, ambos empreendendo fuga em seguida.

Aplicando-se o domínio funcional do fato, denota-se que cada um dos roubadores praticou uma conduta nuclear o crime de roubo (art. 157 do CP), pelo que ambos figurarão como coautores do crime – A não responderá por ameaça enquanto B por furto, mas ambos por roubo consumado.

Trata-se, pois, do fenômeno da imputação recíproca.

Aqui, um cuidado especial para não se confundir domínio funcional do fato com domínio da vontade, pois espécies diferentes do gênero domínio do fato.

CONCLUSÃO

Finalmente, feitas as considerações principais acerca da Teoria do Domínio do Fato desenvolvida por Claus Roxin, foi possível extrair sobre a impossibilidade de se aplicar a modalidade do domínio da vontade, via aparato organizado de poder, à criminalidade empresarial.

Isso porque, conforme visto, é preciso cumprir uma série de requisitos para que a autoria possa ser atribuída, tais como, (i) ter uma posição de mando; (ii) estar em uma organização apartada do Direito, às margens da legislação, como máfias, organizações criminosas, governos totalitários ou ditaduras etc.; e (iii) haver a fungibilidade do executor, isto é, o autor imediato.

Na falta de um ou mais elementos, não será possível afirmar a existência de domínio da vontade apto a configurar a autoria mediata.

Isso não significa, de certo, que nunca será possível responsabilizar o ‘primeiro escalão’ de grandes empresas ou de figuras públicas importantes no cenário nacional. Pelo contrário, há diversas outras formas de se determinar a autoria de determinado sujeito da prática delitiva.

O próprio Roxin faz menção à possibilidade de responsabilização penal por omissão imprópria (comissivo por omissão), para além de todo o cenário probatório que pode se chegar a uma conduta definitivamente comissiva.

O que não se pode permitir é um desvirtuamento daquilo idealizado por Roxin a fim de perseguir ou punir alguém que, sem a teoria, não seria punido – em uma verdadeira tentativa desesperada de valer-se da Justiça Penal como instrumento persecutório pessoal.

REFERÊNCIAS

ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do domínio do fato. São Paulo: Saraiva, 2014.

CUNHA, Mariana Tomaz da. Teoria do domínio do fato e ação penal 470: Entre a obra de Claus Roxin e o julgamento do mensalão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

ESTELLITA, Heloísa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudos sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017.

GRECO, Luís [et alii]. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p.22.

GRILLO, Cristina; MENCHEN, Denise. Participação no comando de esquema tem que ser provada, diz jurista. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 de nov. de 2012. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/77459-participacao-no-comando-de-esquema-tem-de-ser-provada.shtml>. Acesso em: 02 de nov. 2023.

HEGLER, Die Merkmale des Verbrechens, ZStW 36 (1915), p. 19-44.

JUNQUEIRA, Gustavo; DUEK MARQUES, Oswaldo Henrique. Reflexões sobre a teoria do domínio do fato. In: REALE JÚNIOR, Miguel; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. (coord.). Coleção 80 anos do Código Penal. vol I. 1. ed. 2020.

ROXIN, CLAUS. Autoría y domínio del hecho em derecho penal. Trad. Joaquim Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2016, p. 77.

SCHUNEMANN, Festschrit Roxin, 2011, p. 799-801. WELZEL, Studien zum System des Strafrechts, ZStW, t. 58, 1939, p. 491-566.


[1] Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2022). É mestrando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2023-atual). É advogado e assistente especial parlamentar na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

[2] Trata-se da obra intitulada Täterschaft und Tatherrschaft (autoria e domínio do fato no direito penal), originada de sua tese de habilitação ao grau de professor catedrático na Alemanha.

[3] HEGLER, Die Merkmale des Verbrechens (elementos do delito), ZStW 36 (1915), p. 19-44.

[4] Op. cit., p. 207.

[5] Em sua obra intitulada Kritik der Lehre vom Tatbestand (crítica à doutrina dos fatos).

[6] Em sua obra intitulada Zum Aufbau des Strafrechtssystems (sobre a estrutura do sistema criminal).

[7] A teoria subjetiva, que não é o foco deste estudo, foi utilizada na Alemanha por muitos anos. Para ela, autor é aquele que quer o fato como próprio. O cumplice, ou partícipe, quer o fato para outrem.

[8] Em sua obra intitulada Einfuhrung in den allgemeinen Teil des Strafgesetzbuches (Introdução à parte geral do Código Penal).

[9] Tal menção surgiu em sua obra Studien zum System des Strafrechts (estudos sobre o sistema de justiça criminal), ZStW, t. 58, 1939, p. 491-566.

[10] ROXIN, CLAUS. Autoría y domínio del hecho em derecho penal. Trad. Joaquim Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2016, p. 77.

[11] GRECO, Luís [et alii]. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p.22.

[12] Adolf Eichmann foi um oficial do exército nazista, apontado, por muitos, como o responsável pela logística e distribuição de judeus em campos de extermínio durante o holocausto. Foi atribuído a ele centenas de milhares de mortes, o que culminou no apelido de o “arquiteto da solução final”.

[13] ROXIN, CLAUS. Autoría y domínio del hecho em derecho penal… p. 42.

[14] Popularmente conhecido como “Mensalão”. Sobre o tema, importante obra: CUNHA, Mariana Tomaz da. Teoria do domínio do fato e ação penal 470: Entre a obra de Claus Roxin e o julgamento do mensalão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

[15] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/77459-participacao-no-comando-de-esquema-tem-de-ser-provada.shtml>. Acesso em: 02 de nov. 2023.

[16] ROXIN, CLAUS. Autoría y domínio del hecho em derecho penal… p. 132.

[17] ROXIN, CLAUS. Autoría y domínio del hecho em derecho penal… p. 133.

[18] ROXIN, CLAUS. Autoría y domínio del hecho em derecho penal… p. 139.

[19] ROXIN, CLAUS. Autoría y domínio del hecho em derecho penal… p. 148.

[20]KOHLRAUSCH, Eduard; LANGE, Richard. Strafgesetzbuch. Mit Erläuterungen und Nebengesetzen. p. 146.

[21] ROXIN, CLAUS. Autoría y domínio del hecho em derecho penal… p. 238.

[22] SCHUNEMANN, Festschrit Roxin, 2011, p. 799-801.

[23] ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do domínio do fato. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 145-146, p. 145-146.

[24] ESTELLITA, Heloísa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudos sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017.

[25] JUNQUEIRA, Gustavo; DUEK MARQUES, Oswaldo Henrique. Reflexões sobre a teoria do domínio do fato. In: REALE JÚNIOR, Miguel; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. (coord.). Coleção 80 anos do Código Penal. vol I. 1. ed. 2020.

[26] GRECO, Luís [et alii]. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 30-31.