DESVIO E EXCESSO NA ATUAÇÃO DO AGENTE PÚBLICO E RESPONSABILIDADE PESSOAL

DESVIO E EXCESSO NA ATUAÇÃO DO AGENTE PÚBLICO E RESPONSABILIDADE PESSOAL

30 de junho de 2024 Off Por Cognitio Juris

DEVIATION AND EXCESS IN THE ACTIONS OF PUBLIC AGENTS AND PERSONAL RESPONSIBILITY

Artigo submetido em 19 de maio de 2024
Artigo aprovado em 30 de maio de 2024
Artigo publicado em 30 de junho de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 55 – Junho de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Maria Júlia Marcondes de Moura e Souza[1]

RESUMO: A partir da compreensão do fenômeno do abuso de poder por parte de agentes públicos, busca-se por meio do presente trabalho analisar a prática de ato desviante ou que excede o considerado “adequado” e a consequente responsabilização pessoal prevista no artigo 37, § 6º da Constituição Federal de 1988. Para tanto, primeiramente discorrer-se-á sobre os limites à atuação estatal impostos por nossa Carta Magna; após, analisar-se-á os aspectos históricos e doutrinários referentes ao abuso de poder para, em seguida, discorrer acerca das peculiaridades do ato praticado com desvio e excesso na atualidade, possibilitando que, ao fim, examine-se a atribuição de responsabilidade pessoal ao agente.

Palavras-chave: Abuso de Poder. Desvio de Poder. Excesso de Poder. Responsabilidade Pessoal. Administração Púbica.  

ABSTRACT: Based on an understanding of the phenomenon of abuse of power by public agents, this paper aims to analyze the practice of actions that deviate from or exceed what is considered “appropriate” and the consequent personal liability provided for in Article 37, § 6 of the Federal Constitution of 1988. To this end, the paper will first discuss the limits on state action imposed by our Constitution; then, it will analyze the historical and doctrinal aspects related to the abuse of power, and subsequently discuss the peculiarities of actions characterized by deviation and excess in the present day. This will enable an examination of the assignment of personal responsibility to the agent.

Keywords: Abuse of Power. Misuse of Power. Excess of Power. Personal Responsibility. Public Administration.

Sumário: 1. Introdução. 2. Construção da noção de abuso de poder. 3. Responsabilização pessoal do agente público. 4. Conclusão.

1 INTRODUÇÃO

A passagem do regime absolutista para o liberal (ou do modelo de Estado [formalmente] autoritário para o Estado de Direito) foi marcada pela ascensão das liberdades individuais e pelo reconhecimento de direitos (ao menos em tese) universais, além da diminuição do poderio e interferência estatal na esfera privada dos cidadãos.

No Brasil, as características dessa passagem podem ser verificadas de forma especialmente marcante em nossa Carta Magna, que além de elencar extenso rol de direitos que possuem como titular o indivíduo e que são oponíveis ao Estado, disciplina de modo igualmente amplo a atuação da Administração Pública.

Mais ainda: nossa Constituição prevê instrumentos de natureza fiscalizatória, que podem ser utilizados pelos cidadãos para acompanhar a atuação dos agentes integrantes da Administração, tais como o direito à informação (art. 5º, XXXIII) e o direito de petição (art. 5º, XXXIV, ‘a’), além de “remédios” que visam impedir ou corrigir atos ilegais ou praticados com abuso de poder por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, como o Mandado de Segurança (art. 5º, LXIX).

É verificável, portanto, pela própria natureza dos dispositivos constitucionais acima citados (direitos em “sentido lato”; de regulação e de natureza fiscalizatória), que este novo modelo de Estado possui características que impõem equilíbrio: deve-se, simultaneamente, agir ativamente para a concretização dos direitos previstos na Constituição, respeitando os limites de atuação também por ela prescritos, sujeitando-se, ainda, à fiscalização dos próprios administrados.

A fim de delimitar o objeto do presente trabalho, analisaremos o agir estatal sob a ótica dos atos administrativos, concebidos aqui como a execução dos projetos definidos pelos atos políticos (e até mesmo pela própria Constituição), sempre visando a máxima concretização do interesse público.

O ato administrativo enquanto classe possui duas espécies: os atos administrativos vinculados e os atos administrativos discricionários.

Os primeiros são assim nomeados quando a norma – aqui concebida como qualquer estrutura proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória (REALE, 2004, P. 101) não confere qualquer margem de liberdade para que o administrador eleja, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis.

Os segundos, por sua vez, caracterizam-se quando há opções quanto ao comportamento mais indicado para dar cumprimento ao interesse público in concreto, dentro dos limites em que a lei faculta a emissão deste juízo ou desta opção (MELLO, 2003, p. 395-396).

Independentemente da espécie de ato, deve o agente público pautar o seu agir sempre em observância aos princípios dispostos no art. 37 da Constituição Federal, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

O princípio que se faz presente na estrutura de todos os demais e que é o núcleo de todo o regime jurídico público é o da legalidade.

Na lição de Marino Pazzaglini Filho (2008, p. 17):

a legalidade é a base e a matriz de todos os demais princípios constitucionais que instruem, condicionam, limitam e vinculam as atividades administrativas. Os demais princípios constitucionais servem para esclarecer e explicitar o conteúdo do princípio maior ou primário da legalidade.

Assim, entende-se que a atuação do agente deve necessariamente se subordinar à ordem jurídica (conforme a máxima rule by the law, not by men), e ser pautada não apenas pelo cumprimento da lei, mas também pelo respeito aos demais princípios constitucionais, com o objetivo final de efetivar os direitos fundamentais que lhe cabem e garantir a supremacia do interesse público.

Trataremos interesse público aqui como:

conceito jurídico indeterminado de valor, que expressa o interesse da coletividade (reconhecido pela maioria dos seus integrantes) de perseguir, alcançar, manter e aperfeiçoar os bens que ela almeja. Esses bens da comunidade traduzem-se na expressão bem comum. Interesse público, pois, nada mais é que a relação entre a sociedade (povo beneficiário da atividade estatal) e os bens (bem comum) que ela pretende obter, aprimorar e preservar.” (PAZZAGLINI FILHO, 2018, p. 34).

A Administração Pública, a partir de disposições constitucionais (mormente as constantes do art. 5º) assume a posição de guarda e tutela dos interesses públicos, e nesse contexto, não pode dispor de tais interesses, pois inapropriáveis. Deve, portanto, por meio de seus agentes, agir apenas na estrita conformidade do que dispuser a intentio legis.

O princípio da impessoalidade visa também fazer com que os agentes no desempenho de suas funções busquem de forma neutra e objetiva o interesse público. Não são aceitáveis condutas pautadas por interesses pessoais, subjetivos, e que atendam a interesses de qualquer grupo específico em detrimento dos demais. A este princípio relacionado, cumpre mencionar a obrigatoriedade de publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas de órgãos públicos, que devem se prestar a fins educacionais, informativos ou de orientação social, sendo defeso que constem nomes, símbolos, ou imagens que possam caracterizar promoção pessoal do agente.

O princípio da eficiência, por sua vez, busca fornecer ao agente público parâmetros de avaliação de resultados (qualidade, produtividade, por exemplo), além de direcioná-lo ao planejamento, execução e controle de medidas mais benéficas ao interesse coletivo.

Por último, de suma importância para o presente trabalho, cumpre tratar do princípio da moralidade, que segundo leciona Clóvis Beznos (2009, P. 117-141):

diz respeito a pautas de condutas éticas, acolhidas pelo próprio Ordenamento Jurídico, como devidas, em primeiro lugar, no sentido do trato honesto da coisa pública, do respeito aos direitos dos administrados, e na vedação de conduta ardilosa do administrador.

 Observa-se que o professor, em sua definição acima colacionada, confere ênfase no que diz respeito à relação entre a moralidade e o ordenamento jurídico posto, possibilitando a inferência de que a moral a que o administrador deve obediência não necessariamente tem como base os padrões morais prevalecentes na sociedade.

É, inclusive, o que sustenta Márcio Cammarosano (2021) ao conceber a moralidade enquanto princípio jurídico, já que seu núcleo de significação é juridicizado, nos termos em que juridicizado.

O ilustre professor ainda ressalta a importância de que a moral seja buscada de fato no direito posto, predeterminando formalmente o que deve ser diante de situações tipo descritas hipoteticamente, fruto da atividade legiferante de órgãos competentes, democraticamente constituídos, pois padrões de comportamento supostamente prevalecentes na sociedade já foram invocados

para justificar até mesmo regimes totalitários, fazendo submeter milhões e milhões de pessoas a autoproclamados salvadores da pátria, do povo e até da humanidade, a déspotas supostamente esclarecidos, cuja vontade e até mesmo desejos não revelados previamente, a todos submetia ilimitada e inexoravelmente.

Não se ignora, entretanto, que o próprio conteúdo do direito posto possui conteúdo axiológico: deve-se somente distinguir as ordens normativas (social e jurídica) para que, principalmente os integrantes da Administração, que agem enquanto Estado, não concebam ambas como ordens impositivas, culminando num agir moral de cunho extra legem que pode resultar em abuso de poder.

Adentrando propriamente no assunto principal do presente trabalho e destacando sua importância na contemporaneidade, reportamo-nos ao início da presente introdução em que brevemente se mencionou a passagem do Estado Autoritário para o Estado de Direito.

Segundo Zaffaroni (2011, P. 41), o Estado de Direito se caracteriza pela submissão de todos os habitantes à lei e opõe-se ao estado de polícia, onde todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam.

Referido autor, entretanto, ressalta que não há nenhum estado de direito puro, pois todos que assim se classificam contêm de forma mais ou menos eficaz, em seu interior, mecanismos legitimadores do estado de polícia, ou seja, de um estado propriamente autoritário.

Neste mesmo sentido, o entendimento de Pedro Serrano (2020, P. 197-223) quanto à democracia contemporânea: o ilustre professor escancara por meio de sua construção do conceito de “autoritarismo líquido”, o modo mais sofisticado, fragmentado e cirúrgico de que se valem autoridades públicas para a legitimação de medidas autoritárias:

O autoritarismo líquido é um mecanismo mais evoluído de autoritarismo na sua ótica autoritária, pois confere ao Estado um poderio que, diluído na rotina democrática, enfraquece os mecanismos de controle típicos do regime jurídico-administrativo nos moldes que conhecemos.

Necessária esta compreensão quanto ao que verdadeiramente ocorre dentro de um Estado Democrático de Direito para que, no seguinte tópico, se possa abordar o contexto histórico do surgimento do conceito de abuso de poder, e em seguida, tendo como base as características do autoritarismo líquido, analisar a forma sofisticada e de difícil detecção de medidas tomadas por agentes públicos que caracterizam abuso de poder.

2 CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE ABUSO DE PODER

Atribui-se o nascimento do instituto do abuso de poder ao Conselho de Estado Francês, órgão superior da jurisdição administrativa do país, que por meio do caso Lesbats, em 25 de fevereiro de 1864, concebeu o détournement de pouvoir como vício de legalidade do ato administrativo.

Naquela ocasião, verificou-se que a proibição exarada pelo Prefeito de Fontainebleau com relação ao estacionamento de ônibus de determinada empresa defronte à estação ferroviária da cidade visava conferir privilégio exclusivo a outra empresa, motivo pelo qual o referido ato, ainda que discricionário e aparentemente legal, representou abuso (da espécie desvio) de poder por parte daquela autoridade.

Percebe-se, diante do caso, que se buscou por meio do referido instituto conferir freio às decisões discricionárias tomadas por agente público, que sob a roupagem da competência a ele conferida, agia com fins diversos aos previstos no ordenamento jurídico.

À título de menção, o Conselho de Estado italiano importou a ideia, denominando sviamente di potere os atos discricionários desviantes da finalidade disposta legalmente, assim como o sistema anglo-saxão, que também concebeu o abuse of discretion como o descompasso do ato administrativo praticado e o objetivo ditado pela lei:

“Discretionary powers must be exercised for the purposes for which they were granted … In general, a discretion must be exercised only by the authority to which it is committed… It must act in good faith, must have regard to all relevant considerations and must disregard all irrelevant considerations, must not seek to promote purposes alien to the letter or to the spirit of the legislation that gives it power to act, and must not act arbitrarily or capriciously” (Judicial review of administrative action. 1. ed. 1959. p. 61 e 172).

Também vale a menção, ainda que se trate de mecanismo mais recente contra o abuso de poder, do chamado section 1983, estatuto norte americano que permite que cidadãos ajuízem ações civis em caso de violação de direitos praticada por agente público. Ao julgar o caso Owens v. City of Independence, 445 US 622, 651-52 (1980), a Suprema Corte dos Estados Unidos faz menção expressa ao mau uso do poder atribuído a agentes que, agindo enquanto Estado, deveriam estrita obediência à Lei:

“[t]he central purpose of the Civil Rights Act was to provide protection to persons harmed by the ‘[m]essor of power, possessed by virtue of state law and made possible only because the offender is vested with the authority of the state law.” … By creating an express federal remedy, Congress sought ‘to enforce the provisions of the Fourteenth Amendment against those who bear a badge of authority of a State and represent it in any capacity, whether acting upon its authority or misusing it.’”

No Brasil, Cáio Tácito (2005, P. 63-74) aponta que foi possível verificar a acolhida do instituto do abuso de poder, e mais especificamente da espécie desvio, em 28 de julho de 1948, quando, por meio de acórdão, a Desembargadora Seabra Fagundes, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, decidiu de forma análoga ao caso Lesbats.

Coincidentemente, neste caso, uma das partes era também uma empresa de ônibus, que entretanto havia tido horário fixado para circulação entre a capital e cidades vizinhas por autoridade estadual. Ao final, o Tribunal decidiu pela nulidade do ato, já que objetivava o favorecimento de terceiro ao invés de cumprir o fim legal do bom funcionamento de serviços de transporte.

Com relação à positivação do conceito, José Guilherme Giacomuzzi (2002, P. 225) aponta que se deu com a Lei de Ação Popular, em 1965, que prevê na alínea ‘e’ do parágrafo único do art. 2º da lei que o desvio “se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”.

Todos os exemplos acima citados tratam da espécie “desvio de poder” e implicam que necessariamente retomemos a noção por de trás de um dos princípios mencionados na introdução do presente trabalho, qual seja, o da moralidade.

Partindo especialmente do nascimento do instituto do abuso no Conselho de Estado Francês, Giacomuzzi (2002, P. 225-226) apresenta a compreensão de René Chapus, um dos mais conhecidos administrativistas daquele país acerca do caso Lesbast, mencionando que referido autor chegou a dizer que o desvio de poder é uma condenação moral da administração, e que a atuação do Conselho no caso representou um verdadeiro controle da moralidade.

Mais adiante, Gioacomuzzi ainda afirma que na França a ideia de moralidade administrativa encontra-se incorporada na expressão desvio de poder. Segundo esta compreensão, a moral administrativa seria extraída do próprio ordenamento, que estabelece os meios a serem utilizados pelo administrador para perseguir determinado fim também já previamente definido.

Sem a intenção de esgotar o assunto e apenas à título de conhecimento de visão divergente, Emerson Garcia (2002, P. 163) apresenta a ideia de Georges Vedel de que na verdade o desvio de poder também poderia ser analisado como uma variação da ilegalidade, que implicaria na maculação de outros princípios incorporados pelo da legalidade, como por exemplo o da moralidade.

De todo modo, certo é que a compreensão da finalidade exigida pelo Direito, tanto pelo agente público que pratica o ato administrativo quanto pela autoridade julgadora e fiscalizadora de referido ato, não é tarefa simples, e é justamente o que deve se investigar para a verificação do desvio de poder. Isto pois, segundo Cretella Junior (1992, P. 271-272):

O desvio de poder consiste num afastamento do espírito da lei, ou seja, para empregar uma expressão adaptada do direito penal numa aberratio finis legisl.

Base para a anulação dos atos administrativos que nele incidem, o desvio de poder difere dos outros casos, porque não se trata aqui de apreciar objetivamente a conformidade ou não conformidade de um ato com uma regra de direito, mas de proceder-se a uma dupla investigação de intenções subjetivas: é preciso indagar se os móveis que inspiraram o autor de um ato administrativo são aqueles que, segundo a intenção do legislador, deveriam, realmente, inspirá-lo.

Considerando especificamente o ordenamento jurídico brasileiro e conforme entendimento de Pedro Serrano (2020, P. 219), podemos apontar como uma das causas para tanto, o excesso de normas:

A textura aberta da linguagem, a vagueza dos princípios e dos conceitos jurídicos indeterminados contribuem, decisivamente, para a hipernomia, conferindo ao intérprete dotado de poder decisório o ilegítimo poder de conferir extensão e alcance casuístico, em detrimento, dentre outros, da segurança jurídica. Do mesmo modo, referidos atributos conferem ao aplicador a possibilidade de sempre reinterpretar a norma geral e abstrata, da qual decorrerá, também de acordo com os interesses momentâneos, o sancionamento ou não da conduta e, ainda, aplicação de uma sanção que, desprovida de qualquer critério jurídico objetivo e previsível, oscila de acordo com as conveniências momentâneas.

Tão complexa quanto a compreensão da finalidade prevista na lei é a percepção de ato praticado que atinge o fim eleito, mas que decorre de atuação desproporcional e excessiva do agente público.

Segundo leciona Hely Lopes Meirelles (2000, P. 312), o excesso de poder ocorre quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, vai além do permitido e exorbita no uso de suas faculdades administrativas.

É verdade que há casos em que o excesso de poder é mais perceptível, como por exemplo quando o agente atua totalmente sem competência. A dificuldade ocorre quando, conforme tratado por Hely Lopes na definição acima, há extrapolação dos limites da competência, ou quando o agente extrapola o considerado proporcional e adequado para atingir o fim previsto em lei no caso concreto.

Por mais que de difícil percepção, há meios de detecção do abuso de poder praticado por agente público que podem culminar na sua responsabilização pessoal.

3 RESPONSABILIZAÇÃO PESSOAL DO AGENTE PÚBLICO

O parágrafo 6º do artigo 37 de nossa Carta Magna estabelece como regra um sistema de responsabilização objetiva em se tratando da Administração Pública, dispondo que

§ 6° As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Conforme se infere do referido dispositivo, caso determinado indivíduo tenha sofrido dano causado por agente público, pode o lesado optar por demandar diretamente a pessoa jurídica de direito público ou a de direito privado prestadora de serviço público a que o servidor se encontra vinculado, estando dispensada a necessidade de demonstração da intenção do agente.

Mais especificamente: basta haver o dano e o nexo causal entre ele e o ato praticado pelo agente para que esteja legitimada a demanda do lesionado contra a Administração Pública.

Isto ocorre pois o agente, desde que agindo em estrita observância às suas atribuições funcionais, representa a própria Administração. Não faria sentido que em qualquer caso fosse possível demandá-lo pessoalmente, pois o seu agir é vinculado, tem base legal, ainda que se pense em atos de natureza discricionária (em que há liberdade mínima para a atuação, desde que em observância a todos os princípios administrativos).

Nesse sentido, conforme bem detalhado no voto do Excelentíssimo Ministro Luis Felipe Salomão no julgamento do REsp nº 1842613/ SP (2019/0235636-7) em 10 de maio de 2022, não há qualquer possibilidade de se demandar diretamente o agente público:

nas hipóteses em que a conduta da qual deriva o dano consistir no exercício das funções públicas regulares, do agir funcional, o particular que se considera prejudicado por conduta do agente público não possui mais a opção de escolha de quem irá ocupar o polo passivo da demanda ressarcitória: se o próprio agente ou se a entidade estatal a que o agente seja vinculado, ou mesmo, se ambos naquela posição estarão. Na linha de orientação da Suprema Corte, nessa individualizada situação, a demanda, necessariamente, será ajuizada em face do Estado, que, em ação regressiva, poderá acionar o agente público.

O agente público, portanto, é em regra, a própria Administração, pois somente manifesta a vontade desta, literalmente confundindo-se com ela.

Diferente, entretanto, é o que ocorre quando o agente age com abuso de poder, praticando qualquer das modalidades detalhadas no tópico anterior, buscando na blindagem do cargo uma fuga da responsabilização pessoal.

Nesses casos, pode o lesado, resguardado pelo art. 186 e 187[2] do Código Civil, demandar diretamente o agente, já que, ao abusar do poder a ele atribuído pela Administração, não mais a representava.

Nesse sentido, o mesmo voto do Ministro Luis Felipe Salomão:

nas situações em que o dano causado a terceiro é provocado por conduta irregular do agente público, compreendendo-se “irregular” como conduta estranha ao rol das atribuições funcionais, a ação com desígnio indenizatório, cujo objeto seja a prática do abuso de direito, que culminou em dano, pode ser ajuizada em face do agente. Isso porque, não pertencendo o atuar abusivo ao rol dos atos funcionais, não se reconhece no ordenamento jurídico fundamento capaz de legitimar a inclusão do ente estatal na demanda.

Evidente, portanto, que em agindo com abuso de poder, ainda que no exercício de sua função pública, o agente se desvincula da Administração, pois tanto em caso de excesso quanto em casa de desvio, agirá movido por razões alheias ao regime de direito público.

O próprio entendimento do diploma material civil que embasa a responsabilização trata da diferenciação entre abuso e exercício regular de direito. Segundo Rubens Limongi França, o abuso de direito consiste em um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito. (1991, P. 889).

Para além dos princípios administrativos e toda a regulação da atividade administrativa pela Carta Magna e diplomas correlatos, deve-se ter em mente que permitir que a Administração (ainda que por meio de seus agentes) cause danos deliberadamente a terceiros fere de morte a ideia central do Estado Democrático de Direito, que é justamente a contenção de poder.

De toda forma, por mais que desejável uma atuação a beira do impecável por parte da Administração, não se ignora que falhas, erros ou equívocos podem ocorrer (especialmente considerando a problemática da hipernomia já mencionada), de modo que a punição simples e deliberada de agentes pode ocasionar outro problema: o apagão das canetas.

Conforme bem lecionado por Fabrício Motta e Irene Patrícia Nohara (2019, P. 24), a referida expressão designa

A paralisação de decisões, por causa do temor de responsabilização, perante a Administração Pública ‘do medo’, pois, em determinados casos, tendo em vista as decisões imprevisíveis e oriundas dos mais variados órgãos de controle, os bons gestores acabavam ficando com receio de decidir e futuramente ser responsabilizados por uma decisão justa, mas que iria de encontro às orientações cambiantes de diversos dos órgãos de controle.

Dessa forma, o “receio de decidir”, em razão da mera possibilidade de responsabilização pessoal, acaba por afastar agentes bem-intencionados, que poderiam de fato fazer bom uso das atribuições funcionais, o que, em efeito cascata, torna o aparato público moroso, ineficiente e mais desacreditado aos olhos da coletividade.

CONCLUSÃO

Em assim sendo, é essencial que os limites para atuação dos agentes estejam bem definidos e claros, por meio de Estatutos funcionais que disciplinem regras de forma clara; Códigos de Ética e Disciplina que disponham sobre normas e padrões éticos de conduta; estímulo à instituição de ouvidorias nos órgãos públicos, com o propósito de receber denúncias por parte da população e dos próprios agentes públicos; atuação transparente e ativa do Ministério Público, juntamente com a fiscalização por parte do Tribunal de Contas, entre outros.

Em estando claro os limites de atuação, o agente compreenderá que para além de suas atribuições, exerce verdadeira função social, que implica constante diálogo com a boa-fé objetiva para fins de concretização do interesse público, já eleito pelo próprio Direito.

Nesse sentido, conforme leciona Canotilho (2003, p. 243- 245),

o direito compreende-se como um meio de ordenação racional e vinculativa de uma comunidade organizada e, para cumprir esta função ordenadora, estabelece regras e medidas, prescreve formas e procedimentos e cria instituições. Articulando medidas e regras materiais com formas e procedimentos, o direito é, simultaneamente, medida material e forma da vida coletiva. Forma e conteúdo pressupõem-se reciprocamente: como meio de ordenação racional, o direito é indissociável da realização da justiça, da efetivação de valores políticos, econômicos, sociais e culturais; como forma, ele aponta a necessidade de garantias jurídico-formais de modo a evitar ações e comportamentos arbitrários e irregulares de poderes políticos.

Conclui-se, portanto, que ao utilizar o agente público de seu direito funcional para agir contra o próprio direito, este se despe da roupagem de Estado, e passa a responder pessoalmente pelos danos que neste ato causar a terceiros.

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[1] Mestranda em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – SP (Brasil) e advogada.

[2] Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.