CRIMINALIZAÇÃO DO STALKING NO BRASIL NO ÂMBITO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

CRIMINALIZAÇÃO DO STALKING NO BRASIL NO ÂMBITO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

10 de junho de 2023 Off Por Cognitio Juris

CRIMINALIZATION OF THE CRIME OF STALKING IN BRAZIL IN THE FIELD OF VIOLENCE AGAINST WOMEN

Artigo submetido em 30 de maio de 2023
Artigo aprovado em 07 de junho de 2023
Artigo publicado em 10 de junho de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 47 – Junho de 2023
ISSN 2236-3009

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Autor:
Thaís Ramalho da Silva[1]
Israel Andrade Alves[2]

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RESUMO: Batizada com o nome da farmacêutica bioquímica Maria da Penha Maia Fernandes, após luta para a punição do seu agressor, o economista e professor universitário Marco Antônio Heredia Viveros, a promulgação da Lei 11.340/06, mais conhecida como a Lei Maria da Penha é um importante avanço na legislação penal brasileira no que compreende o enfrentamento e a punição dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo o Artigo 5º, é considerada violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Ela é dividida, ainda, nas formas de violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e violência moral. Passível de aperfeiçoamento a fim de evitar controvérsias em sua interpretação, a Lei passou, recentemente, por algumas alterações que permitem, hoje, o melhor manejo procedimental das medidas protetivas, de assistência e proteção. Além disso, pôs fim à divergência de julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que invocavam fatores referentes à motivação dos atos cometidos pelos agressores. Outra aliada da Lei Maria da Penha é a Lei 14.132, de 31 de maio de 2021, que inseriu ao Código Penal importantes dispositivos que criminalizam a perseguição ameaçadora, conhecida como stalking. Anteriormente, ele era tratado como uma contravenção penal prevista no Artigo 65 do Decreto-Lei n° 3.688/41, a Lei de Contravenções Penais. O termo surgiu como o ato de perseguir alguém, de forma persistente e repetitiva, principalmente configurado nos meios eletrônicos como e-mail, redes sociais, SMS e Whatsapp. Os Estados Unidos da América (EUA) foram o primeiro país a tratar o chamado antistalking como crime após o marco do assassinato da atriz, de apenas 21 anos de idade, Rebecca Schaeffer. No Brasil, um atentado de grande repercussão, ocorrido com a modelo e apresentadora Ana Rickmann em 21 de maio de 2016, chamou a atenção das autoridades mostrou que o país ainda precisava avançar e endurecer as medidas criminalizadoras nesse sentido. Todavia, a legislação traz importantes observações, sendo que, para o stalking ser considerado crime, é necessário preencher alguns pré-requisitos. Vale destacar que, apesar da Constituição Federal não admitir a desigualdade de gênero, estudos doutrinários presentes na pesquisa bibliográfica apontam que a perseguição ameaçadora está diretamente ligada a uma violência de gênero e à violência psicológica, fato esse que majora a pena quando o crime é cometido contra a mulher por razões da condição do sexo feminino. É fundamental ressaltar, sobretudo, que historicamente as mulheres já vieram de um caminho de desigualdade com relação ao homem e que a violência doméstica e familiar contra a mulher acontece independemente de classe econômica. Contudo, a evolução da sociedade tem permitido que a ela saia da posição discriminatória de inferioridade e que as suas demandas sejam reconhecidas. Nesse sentido, observou-se a importância de analisar como as medidas punitivas, protetivas e de enfrentamento vêm sendo implementadas no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher e expor como podem ser utilizadas no combate ao crime.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha; Stalking; Perseguição ameaçadora.

INTRODUÇÃO

            Este estudo foi desenvolvido com a finalidade de mostrar como o crime de ameaça perseguidora, o stalking, introduzido recentemente no Código Penal Brasileiro, também pode ser aplicado aos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Além disso, buscou-se mostrar como o gênero é fator preponderante para que o crime seja majoritariamente cometido em relações íntimas de afeto como em casamento e namoro.

            De acordo com o Artigo 5º da Lei Maria da Penha, a violência doméstica é caracterizada como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. No desenvolvimento do artigo, foi mostrado como até chegar à crimininalização do stalking, para fins de punição no âmbito da violência doméstica, a união das mulheres fez com que intensas ondas de movimentos em prol da punição de agressores fizeram crimes tomarem grandes repercussões e, por meio delas, provocassem os poderes Executivo, Legislativo e Judiário para a criação e atenção à leis específicas e mais severas que amparassem as mulheres também quanto à assistência e medidas de proteção.

            Vale destacar que esses movimentos também levantaram a importante pauta de que a violência contra a mulher não era um problema banalizado e sustentado durante décadas como de ordem conjugal ou de classe social e econômica, conforme exemplos trazidos no desenvolvimento deste artigo.

            O método utilizado para o seu desenvolvimento em torno na hipótese de que o stalking incorpora a violência psicológica, confirmado no último capítulo, foi por meio de pesquisas bibliográficas na doutrina, leis, notícias e documentos.

             A começar da aguerrida luta de Maria da Penha Maia Fernandes para a punição do seu agressor Marco Antônio Heredia Viveros, condenado após longos 19 anos do crime, a promulgação da Lei 11.340/06 representou um avanço para as mulheres. No entanto, foi e ainda é passível de questionamentos no que se refere às interpretações para a  sua aplição. Recentemente, a inserção de dispositivos ao Código Penal pôs fim à divergências principalmente no sentido quando a motivação da violência.

            O artigo foi estruturado três capítulos. O primeiro, faz uma abordagem histórica de como a tragetória das mulheres foi marcada pela desigualdade com relação à dos homens e aborda as invovações na Lei Maria da Penha. O segundo especifica as espécies de violência doméstica, sendo elas física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

            Por fim, traz o capítulo que define o crime de stalking ou perseguição insistente e ameaçadora. Aborda que em países como nos Estados Unidos da América e representou reforço no Brasil na ótica penal, visto que anteriormente era tratado apenas como uma contravenção penal e que não implicava em questões de gênero.

1 ANÁLISE HISTÓRICA DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER

            Desde os primórdios, a história da mulher, em comparação à do homem, foi marcada pela desigualdade. Incumbida de desempenhar tarefas domésticas e atividades agrícolas como a coleta de frutos, folhas e raízes, enquanto o homem era responsável pela caça e pesca, o papel feminino era ligado às atividades de cuidados do lar. Consequentemente, tal fato já as colocava em uma posição de vulnerabilidade, enquanto o papel masculino de força e virilidade.

            A evolução da sociedade contemporânea tem permitido, mesmo que em um processo lento, que a mulher saia da posição discriminatória de inferioridade com relação à figura masculina e assuma o papel de protagonista na sociedade.

            Desde a promulgação do Código Civil de 1916, majoritariamente voltado ao homem como figura principal e marcado pela supressão de direitos da mulher; Ao Código Eleitoral de 1932, que avançou no sentido do voto feminino, até a Constituição Federal de 1967, que afirmou a igualdade, no Artigo 153, § 1º, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas políticos. Será punido pela lei o preconceito de raça”, foi necessário percorrer um longo caminho para que a devida importância da mulher na sociedade fosse reconhecida e os seus direitos positivados.

            Além da discussão da igualdade de gênero, surgiu, então, o levantamento de um importante tema a ser colocado em pauta, endossado pela onda de movimentos no final do século XIX: a violência doméstica contra a mulher. É cabível ressaltar que a violência doméstica e familiar contra a mulher sempre existiu. No entanto, devido à cultura do patriarcado machista, o tema ainda não era tratado como linha de frente nos âmbitos Executivo, Legislativo e Judiciário.

            Segundo Vera Andrade (1996, p.87), a violência doméstica, que era considerada como algo da vida conjugal e privada, restrita ao casal, por isso também bastante banalizada, se converteu em um problema público que mereceu forte demanda criminalizadora na esfera Penal.

            Em 1980, a partir do II Congresso da Mulher Paulista, a causa ganhou mais credibilidade e, também, através do envolvimento dos meios de comunicação, o debate foi promovido junto à opinião pública, conforme destaca Maria Amélia Teles (1993, pgs. 130, 131, 132). Segundo ela, dois importantes fatos merecem destaque: o primeiro, ocorrido em São Paulo, quando uma mulher de classe média alta denunciou, através de carta, as violências físicas sofridas pelo seu marido, um renomado professor universitário. Pertencer à classe rica demonstrou, claramente, que o problema não era um fenômeno de ordem econômica. O relato foi ainda mais carregado de emoção uma vez que a violência era cometida por um agressor armado e chegou a ganhar o slogan da campanha: “O silêncio é cúmplice da violência”. Foi através dela que diversas mulheres começaram a denunciar as violências sofridas por seus companheiros.

            O segundo foi quando as feministas tomaram as ruas de Cabo Frio- RJ, pedindo a punição do milionário Doca Street pelo assassinado da sua companheira Ângela Diniz. Após batalha judicial e pressão de grupos de mulheres, Doca Street foi preso e o acontecimento serviu de exemplo para que outros estados e operadores do direito dessem novo tratamento à questão.

            No mesmo sentido, um caso concreto e de grande repercussão, ocorrido com a farmacêutica bioquímica Maria da Penha Maia Fernandes, no dia 29 de maio de 1983, ensejou na promulgação da Lei 11.340/06: a Lei Maria da Penha, considerada um marco na luta pelo fim da violência doméstica e familiar contra a mulher.

            À época, Maria da Penha sofreu, ao longo de seis anos, diversos tipos de agressões e duas tentativas de homicídio por parte seu marido, o economista e professor universitário Marco Antônio Heredia Viveros. A primeira, quando foi atingida por disparos de arma de fogo, nas costas, enquanto dormia. O crime ocasionou lesões graves na terceira e quarta vértebra da sua coluna, que a deixaram paraplégica. A segunda, ainda enquanto se recuperava e duas semanas após sofrer a primeira tentativa, foi empurrada da cadeira de rodas por Marco Heredia que também tentou eletrocuta-la.

            Após esses episódios, Maria da Penha iniciou a sua luta para que Heredia fosse punido e para que, através da sua história, mais mulheres pudessem denunciar e buscar a condenação dos agressores. No dia 28 de setembro de 1984, Heredia foi denunciado pelo Ministério Público e, após pronúncia no dia 31 de outubro de 1986, foi levado a júri popular no dia 4 de maio de 1991 e condenado a 15 anos de reclusão. No entanto, após ter recurso acolhido, o acusado foi a novo julgamento no dia 15 de março de 1996 e foi novamente condenado. Dessa vez, com a pena de dez anos e seis meses de reclusão.   

            Em novo recurso de defesa, dessa vez aos Tribunais Superiores, e após 19 anos de ter cometido o crime, Heredia foi preso no dia 31 de outubro de 2002, na Paraíba, enquanto dava aula em uma universidade no Rio Grande do Norte.

            No dia 20 de agosto de 1998 o caso chegou à Comissão de Direitos Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA) e Maria da Penha protocolou denúncia junto à Comissão Internacional de Direitos Humanos que, por sua vez, apresentou um documento com uma série de falhas do Brasil diante do caso. A ex- desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, doutora Maria Berenice aponta que a Comissão que responsabilizou o país como negligente no caso de Maria da Penha.  (Dias, 2007, p.13).

            Diante disso, a CIDH manifestou, no relatório nº 54/01, que o país procedesse investigação séria diante do caso, conforme trecho:

A Comissão recomenda ao Estado que proceda a uma investigação séria, imparcial e exaustiva, para determinar a responsabilidade penal do autor do delito de tentativa de homicídio em prejuízo da Sra. Fernandes e para determinar se há outros fatos e ações de agentes estatais que tenham impedido o processamento rápido e efetivo do responsável; também recomenda a reparação efetiva e pronta da vítima e a adoção de medidas no âmbito nacional para eliminar essa tolerância do Estado ante a violência doméstica contra mulher. (Relatório anual 2000)

            Enquanto Heredia ainda não havia sido levado a julgamento, como consequência da omissão do Estado ao não responder os questionamentos feitos pela Comissão, a denúncia foi presumida como verdadeira em cumprimento ao Art. 39 do regulamento da CIDH, o relatório tornou-se público e a Comissão alegou que o Brasil não cumpriu com os dispositivos da 7º da Convenção de Belém do Pará e do Pacto de São José da Costa Rica.

            Após pressão das organizações não governamentais, em 2004 o Poder Executivo editou e apresentou ao Congresso Nacional ao Projeto de Lei nº 4.559 que cria mecanismos de coibir a violência doméstica e familiar, convertendo-se, em 2006, na Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006: a Lei Maria da Penha, em vigor desde o dia 22 de setembro de 2006. Até então, não existia no ordenamento jurídico brasileiro uma lei que punisse, especificamente, os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

  1. INOVAÇÕES NA LEI MARIA DA PENHA

            A Lei Maria da Penha, por si, já é uma completa inovação e um marco na defesa de um problema que atinge milhares de mulheres independentemente da classe social. Conforme o seu Artigo 1º, ela chegou para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do Artigo 226, §8º da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

            O Capítulo I traz o conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial nos âmbitos da unidade doméstica, da família e de qualquer relação íntima de afeto.

            A lei aborda, também, as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, medidas integradas de prevenção, como políticas públicas; assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, atendimento pela autoridade policial e demais procedimentos que contemplam aos atos processuais, bem como medidas protetivas às vítimas.

            Vale destacar o Artigo 33 que retira a competência dos juizados especiais criminais, na Lei 9.099/95, e prevê a estruturação dos Juizados especiais de Violência Doméstica e Familiar para julgar as causas decorrentes ao assunto em questão. No entanto, enquanto não estiverem estruturados, a competência para o julgamento é de responsabilidade das varas criminais.          

            Nesse sentido:

No âmbito das medidas de proteção, tem-se (1) aquelas especificamente direcionadas à esfera jurídica da mulher, vítima da violência doméstica, que deve receber todo o auxílio necessário à garantia de sua integridade física e mental, sendo-lhe assegurado, quando necessário, proteção policial, e, dentre outros, o direito de ser acompanhada para a retirada dos seus pertences do local da ocorrência;41 e (2) aquelas direcionadas à esfera jurídica do ofensor, isto com o objetivo de assegurar a proteção da ofendida, podendo assumir múltiplas formas, como o afastamento do lar e a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, medida drástica e que deve ser aplicada com muita cautela, isto em razão do seu potencial de desintegração da família. (GARCIA, 2009, p. 203)

            A Lei nº 14.550, oriunda do Projeto de Lei (PL) a senadora Simone Tebet, entrou em vigor recentemente, no dia 20 de abril de 2023, a trouxe alterações estratégicas para a Lei nº 11.340/06 para reforçar o caráter protetivo e elucidar divergências jurídicas quanto a motivação dos atos de violência e condições do ofensor ou da ofendida.

            Agora, a Lei Maria da Penha vigora com novos dispositivos, §§ 4º, 5º e 6º, no Artigo 19, que permite melhor manejo procedimental das medidas protetivas e, como destaque, prevê que as concessões podem ser feitas independentemente da existência de inquérito policial ou boletim de ocorrência e devem vigorar enquanto existir o risco do dano à integridade da ofendida ou dos seus dependentes.

§ 4º As medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.

§ 5º As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência.

§ 6º As medidas protetivas de urgência vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.” (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006)

            Outra importante alteração foi o acréscimo do Artigo 40-A, que pôs fim à divergência de alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que descaracterizavam a violência de gênero e invocavam fatores como motivação dos atos como, por exemplo, aqueles eram cometidos sob a influência de álcool ou drogas.

Art. 40-A. Esta Lei será aplicada a todas as situações previstas no seu art. 5º, independentemente da causa ou da motivação dos atos de violência e da condição do ofensor ou da ofendida. (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006)

            Apesar do gênero ser fator preponderante na violência doméstica e familiar contra a mulher, o texto da lei reforça a ideia de que as consequências criminais que isolam o motivo do crime como critério para discutir a punibilidade não devem sobrepor o fato em si e o direito da ofendida.

2 ESPÉCIES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

            Conforme o Artigo 5º da Lei nº 11.340/06, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Art. 6º A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos. (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006)

            Elas são divididas em três formas: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e violência moral, conforme o Artigo 7º da mesma lei:

I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (Redação dada pela Lei nº 13.772, de 2018)

III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006)

            Consoante à lei, nota-se que a violência doméstica e familiar contra a mulher ocorre de diferentes espécies e que os possíveis fatores que a influenciam não são base para descaracteriza-la.

            Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto descrevem a violência contra a mulher como

Qualquer ato, omissão ou conduta que serve para infligir sofrimentos físicos,

sexuais ou mentais, direta ou indiretamente, por meios de enganos, ameaças,

coações ou qualquer outro meio, a qualquer mulher e tendo por objetivo e como efeito intimidá-la, puni-la ou humilhá-la, ou mantê-la nos papeis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, moral, ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidades físicas ou intelectuais. (CUNHA, 2007, p. 24)

            Dessa forma, é cabível afirmar, ainda, que a violência contra a mulher está diretamente ligada à concepção de desigualdade entre os gêneros feminino e masculino, uma vez que é resultado de valores e estereótipos que, historicamente, vêm sendo desmistificados conforme a sociedade evolui.

3 STALKING: CRIME DE PERSEGUIÇÃO AMEAÇADORA

            Com a crescente transformação econômica, política, social e digital, ocorridas nas últimas décadas, o ciberespaço foi fator crucial para promover debates e estabelecer, por outro lado, uma crescente onda de perseguições ocorridas em ambientes virtuais como, por exemplo, nas redes sociais. Tal fato acarretou na ofensa à Constituição Federal no que tange as liberdades individuais, além das integridades física e psicológica dos ofendidos.

            As novas tecnologias de informação e comunicação mudaram a forma do mundo pensar e agir. Nesse sentido, o stalking surgiu como um termo utilizado ao ato de perseguir alguém, de forma persistente, principalmente nas redes sociais, SMS ou Whatsapp.

            No Brasil, ele passou a ser considerado como crime de perseguição com o advento da Lei nº 14.132/2021 e, com a inclusão do Artigo 147-A ao Código Penal, passou a ser punível com a reclusão de seis meses a dois anos, mais multa.

            Os Estados Unidos da América (EUA) foram o primeiro país a tratar de uma lei que regulasse o crime. Em 1989, um fato marcou o chamado antistalking: o assassinato da atriz de 21 anos de idade, Rebecca Schaeffer, morta por Robert John Bardo, um fã obcecado que, inicialmente, se comunicava com a atriz, frequentemente, por meio de cartas. No entanto, a perseguição ganhou outro rumo quando, Robert a viu, em uma peça, contracenar com outro homem e passou a acreditar que Rebecca estava o traindo. Foi dessa forma que, movido por ciúmes, contratou detetives para descobrir o endereço da vítima até consumar o seu plano de mata-la.

            No Brasil, uma situação semelhante ocorreu em um atentado contra a modelo e apresentadora Ana Hickmann. Após criar diversos perfis nas redes sociais com declarações de amor, Rodrigo Augusto de Pádua, um fã, invadiu, no dia 21 de maio de 2016, um quarto de hotel em que estava hospedada na cidade de Belo Horizonte-MG, na companhia do seu cunhado Gustavo Correa e da sua concunhada e assessora, Giovana Oliveira. Após disparar tiros contra Giovana e entrar em luta corporal com Gustavo, Rodrigo foi morto pelo concunhado da modelo com três tiros de arma de fogo.

            Damásio de Jesus faz uma relevante consideração com relação ao stalking:

Não é raro que alguém, por amor ou desamor, por vingança ou inveja ou por outro motivo qualquer, passe a perseguir uma pessoa com habitualidade incansável. Repetidas cartas apaixonadas, e-mails, telegramas, bilhetes, mensagens na secretária eletrônica, recados por interposta pessoa ou por meio de rádio ou jornal tornam um inferno a vida da vítima, causando-lhe, no mínimo, perturbação emocional. A isso dá-se o nome de stalking. (Lei nº 14.132, de 31 de março de 2021)

            Até se tornar crime, o stalking era tratado como uma contravenção penal, prevista no Artigo 65 do Decreto-Lei n° 3.688/41, a Lei de Contravenções Penais. Com a Lei nº 14.132/2021, o dispositivo foi completamente revogado.

Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido:

I – Contra criança, adolescente ou idoso;

II – Contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;

III – Mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.

§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.

§ 3º Somente se procede mediante representação.”

Art. 3º Revoga-se o art. 65 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais).

            Todavia, não é qualquer perseguição que pode ser considerada como o crime de stalking, uma vez que é necessário preencher os seguintes pré-requisitos dispostos na forma da lei:

  1. “Alguém”: é necessária a existência de um polo passivo;
  2. “Reiteradamente”: indispensável a constância de uma conduta habitual;
  3. “Por qualquer meio”: qualquer meio de contato seja por ligações, SMS, Whatsapp, redes sociais, envio de presentes, perseguir a vítima em locais em que se encontra, entre outros.
  4.  Bem jurídico protegido: liberdade pessoal e integridade física e psicológica da vítima.

            Estudos doutrinários já apontam o stalking como uma violência de gênero, ocorrido, em grande maioria, com as mulheres. Rogério Greco ressalta os efeitos da conduta, em termos psicológicos:

É uma espécie de terrorismo psicológico, onde o autor cria na vítima uma intensa ansiedade, medo, angústia, isolamento pelo fato de não saber exatamente quando, mas ter a certeza de que a perseguição acontecerá, abalando-a psicologicamente, impedindo-a, muitas vezes, de exercer normalmente suas atividades. Figurativamente, o comportamento do agente se equipara a um gotejamento constante, criando uma situação de perturbação, desconforto, medo, pânico. (GRECO, 2021).

Alessia Mocoli, por sua vez, detalha que o staking é compreendido por diversas condutas:

i) “Stalking das celebridades”: consiste na perseguição de pessoas famosas e/ou com algum interesse para o público, por motivos de ciúme, inveja ou ódio, ainda que não se dispense a própria idolatria como motivo.

ii) “Stalking emocional”: esse tipo é o mais frequente e comum, que vem associado ao término de uma relação afetiva de duas pessoas, sendo que uma delas não se conforma com a perda da outra.

iii) “Stalking ocupacional”: a perseguição, nesta categoria, inicia-se no local detrabalho e termina por invadir a vida privada da vítima. No entanto, não se confunde com o mobbing¹

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¹ Assédio moral no ambiente de trabalho

(…), pois os atos persecutórios do “stalking ocupacional” ocorrem individualmente, tanto de forma afetiva como destrutiva.

iv) “Stalking familiar”: é a perseguição que acontece no âmbito de uma família. (AMIKY, 2014, p. 30)  

            No próprio Artigo 147-A, § 1º, II, o legislador salientou a relevância da sua aplicação no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher:

Art. 147-A(…)§  1º  A  pena  é  aumentada  de  metade  se  o  crime é cometido:

 I –contra  criança, adolescente ou idoso;

II –contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código; III –mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma. (Art. 147-A ao Decreto-Lei nº 2.848)

            Em sua maioria, o crime de stalking é direcionado às mulheres, majoritariamente por uma questão meramente de gênero, conforme pontuam Alice Bianchini, Mariana Bazzo e Silvia Chakian:

A violência de gênero, por sua vez envolve uma determinação social dos papéis masculino e feminino.  Toda sociedade pode atribuir diferentes papéis ao homem e à mulher.  Até aí tudo bem.  Isso, todavia, adquire caráter discriminatório quando a tais papéis são estabelecidos pesos e importâncias diferenciadas. Quando a valoração social desses papéis é distinta, há desequilíbrio, assimetria das relações sociais, o que pode acarretar  violência.  No caso da nossa sociedade os papéis masculino são supervalorizados em detrimento dos femininos, trazendo prejuízos para as mulheres que, em sua dimensão mais acentuada, chegam à violência contra a mulher. (BIANCHINI, BAZZO e CHAKIAN, 2020, p. 20)

Reis, Parente e Zaganelli completam:

O stalking é considerado um dentre os muitos tipos de violência de gênero e, apesar de tal conduta possuir como alvo tanto homens quanto mulheres, é evidente que estas últimas são os principais alvos desse comportamento. Isso porque a sociedade como um todo ainda é firmada de modo geral em ideias machistas e em formas de pensamento fundadas na objetificação das mulheres. (REIS, PARENTE E ZAGANELLI, 2020, p. 85).

A Constituição Federal não admite a desigualdade de gênero. Destarte, pode-se afirmar que o crime de stalking reforçou a punibilidade para o crime de violência doméstica e familiar, dado que é praticado, nesses casos, em razão do gênero feminino e corrobora, sobretudo, com a discrepância quando o tratamento é diferente quanto o gênero masculino.

CONCLUSÃO

A violência doméstica e familiar contra a mulher é um problema grave que ocorre em diversas partes do mundo e em todas as classes sociais. Referenciada ao comportamento abusivo físico, psicológico, sexual e patrimonial que ocorre frequentemente entre pessoas que têm ou tiveram um relacionamento íntimo como casamento, namoro, convivência ou parentesco.

É fundamental destacar que, sobremaneira, está presente historicamente na sociedade como um fator estrutural e que, ainda que a passos lentos, vem mudando conforme o assunto alcança importantes espaços de discussões tanto para conscientização quanto para a provocação das autoridades e poderes competentes.

Vale ressaltar que a violência doméstica não é limitada apenas a uma agressão física evidente, mas também inclui outras formas de abuso como a psicológica que envolve o controle excessivo por meio de humilhação, manipulação emocional e a perseguição ameaçadora. Todas essas formas de violência contra a mulher têm algo em comum: o desejo de controlar e subjulgar a vítimas causando danos que, muitas vezes, são irreversíveis.

Ao tratar do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, é fundamental destacar que a legislação brasileira tem evoluído quando à adoção de medidas punitivas, apoio às vítimas e implementação de políticas de proteção. A exemplo, a Lei Maria da Penha foi um importante marco jurídico na proteção os direitos das mulheres e na luta contra a violência doméstica no Brasil que estabelece diretrizes para o enfrentamento e é aplicável a qualquer relação íntima de afeto independentemente do estado civil.

Outra aliada das mulheres foi a Lei nº 14.132/2021, que criminaliza a perseguição ameaçadora, mais conhecida como “crime de stalking”. O comportamento repetitivo e insistente, de forma indesejada e ameaçadora, que já era considerado crime em outros países, em sua maioria também é relacionado a ex-companheiros. Suas consequências também estão ligadas à violência psicológica e a ofendida pode experimentar o medo constante, ansiedade, depressão, entre outros.

No entanto, apesar dos avanços proporcionados por meio dessas legislações, muitos desafios ainda precisam ser enfrentados na implementação de mais normais eficazes que protejam as mulheres e que tornem mais graves as condutas que ensejam nas formas de violências doméstica e familiar contra a mulher. 

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[1] Graduanda em Direito pela Faculdade Serra do Carmo – FASEC. Email: jorthaisramalho@gmail.com

[2] Mestrando em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins e Escola Superior da Magistratura Tocantinense. Pós-graduado em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Prática Criminal no curso de Direito na Faculdade Serra do Carmo – FASEC. Delegado de Polícia Civil do Estado do Tocantins. Email: prof.israelalves@fasec.edu.br