CRAIG AND MULLINS V. MASTERPIECE CAKESHOP: REFLEXÕES COMPARADAS SOBRE A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PARA O CONTEXTO BRASILEIRO

CRAIG AND MULLINS V. MASTERPIECE CAKESHOP: REFLEXÕES COMPARADAS SOBRE A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PARA O CONTEXTO BRASILEIRO

1 de junho de 2022 Off Por Cognitio Juris

CRAIG AND MULLINS V. MASTERPIECE CAKESHOP: COMPARATIVE REFLECTIONS ON THE EFFECTIVENESS OF FUNDAMENTAL RIGHTS FOR THE BRAZILIAN CONTEXT

Cognitio Juris
Ano XII – Número 40 – Junho de 2022
ISSN 2236-3009
Autores:
Bruno Azzolin Medeiros[1]
Jefferson Aparecido Dias[2]
Raquel Cristina Ferraroni Sanches[3]

Resumo: Alguns princípios de valoração normativa coincidente em países democráticos revelam grande riqueza substancial, proporcionando diálogos intersistêmicos pela ótica de ordenamentos jurídicos diversos. O caso “Craig And Mullins v. Masterpiece Cakeshop” expõe esta interconexão. A simples recusa do confeiteiro americano Jack Phillips em preparar um bolo de casamento para um casal de homossexuais colocou na pauta da Suprema Corte Estadunidense um caso de remodelação da tradição anglo-saxã com reflexos para outros países ocidentais como o Brasil. O episódio revelou a incidência de princípios coincidentes nos ordenamentos brasileiro e estadunidense, notadamente a Liberdade de Expressão e Fé Religiosas, Dignidade da Pessoa, Livre-Iniciativa e Direitos Consumeristas. Observou-se, igualmente, uma temática profícua sobre a incidência de direitos fundamentais nas relações privadas presentes naquele conflito que, para além de jurídico, é marcadamente econômico. Reveladas as nuances, nosso objetivo foi evidenciar um fundamento suficientemente apto a trazer uma resposta enriquecida para o intérprete brasileiro que se ache diante de circunstância similar. Empregamos os métodos dedutivo e comparado na pesquisa mediados por pesquisa bibliográfica e jurisprudencial. Como resultado, encontramos um mosaico de valores econômicos e normativos que instrumentalizam uma resposta mais precisa. Concluímos que o confeiteiro americano, e qualquer outro comerciante brasileiro nas mesmas circunstâncias, quando decidiu explorar comercialmente confeitos objeto de convicção religiosa, estabeleceu para si restrições quanto a venda eletiva de seus produtos, estando, todavia, legitimado a negar o fornecimento da peça acaso revele mensagens que ultrapassem a mera simbolização de um matrimônio, passando a expressar o apoio ou defesa, em especial, do casamento homossexual.

Palavras-chave: Dignidade humana. Espaços privados destinados ao público. Liberdade religiosa. Discriminação.

Abstract: Some principles of normative valuation that coincide in democratic countries reveal great substantial wealth, providing intersystemic dialogues from the perspective of different legal systems. The case “Craig and Mullins v. Masterpiece Cakeshop” exposes this interconnection. The simple refusal of American confectioner Jack Phillips to prepare a wedding cake for a gay couple put on the agenda of the US Supreme Court a case of remodeling the Anglo-Saxon tradition with repercussions for other Western countries such as Brazil. The episode revealed the incidence of coincident principles in the Brazilian and US legal systems, notably Freedom of Expression and Religious Faith, Dignity of the Person, Free Initiative and Consumer Rights. There was also a fruitful theme about the incidence of fundamental rights in private relations present in that conflict which, in addition to being legal, is markedly economic. Having revealed the nuances, our objective was to highlight a foundation that is sufficiently apt to bring an enriched response to the Brazilian interpreter who is faced with a similar circumstance. We employ deductive and comparative methods in the research mediated by bibliographic and jurisprudential research. As a result, we find a mosaic of economic and normative values ​​that provide a more precise answer. We conclude that the American confectioner, and any other Brazilian trader in the same circumstances, when he decided to commercially exploit confectionery object of religious conviction, established restrictions on the elective sale of his products, being, however, legitimated to deny the supply of the piece if he reveals messages that go beyond the mere symbolization of a marriage, starting to express support or defense, in particular, of homosexual marriage.

Keywords: Human dignity. Private spaces intended for the public. Religious freedom. Discrimination.

1 INTRODUÇÃO

Na atmosfera inflamada dos antagonismos sociais um evento equiparavelmente pequeno como uma fagulha desencadeia um incêndio de enormes proporções e a resposta para a ameaça incendiária – nos ambientes constitucionalmente garantidos – quase sempre se dá por meio da hermenêutica e ponderação dos tribunais.

Assim se inicia parte dos saltos evolutivos dos países democráticos ocidentais: o que a princípio parece uma simples discórdia inter partes acaba por revelar um choque intenso de valores sociais, muitos dos quais ordenados normativamente.

Foi assim que a simples recusa do confeiteiro do Colorado Jack C. Phillips – em preparar um bolo para um casal de homossexuais – colocou na pauta da Suprema Corte de Justiça Norte Americana um caso que – assim como poucos outros – tem potencial de modificar direitos seculares da tradição anglo-saxã. E avançamos mais: cremos que a controvérsia seja relevante para toda a cultura americana ocidental.

No plano de fundo está o aparente conflito de normas constitucionais: de um lado o direito à liberdade de expressão, abarcando o direito a recusa do confeiteiro, e de outro o direito das minorias, legitimando um direito de consumo a ser deferido em favor do casal.

Os princípios que movem o caso para as diferentes instâncias do judiciário norte-americano detêm idêntica previsão constitucional do Direito Brasileiro, o que por sua vez demonstra que a controvérsia que lá desencadeou uma corrida judicial, e antagonizou grupos sociais, tem terreno fértil para também ocorrer no Brasil.

Depurados os elementos nascedouros do conflito, sedimenta-se o problema que procuraremos solucionar. Afinal, quais são os limites que podem ser impostos pelo particular ao uso e acesso pelos consumidores de seu estabelecimento privado e dos serviços ali prestados? Até que ponto o particular que se dedica ao atendimento público pode recusar prestar um ou mais serviço que originalmente propõe a todos? Se existe esta possibilidade de discriminação, que elementos eventualmente a autorizam?

O objetivo é responder a todas essas formulações levando em consideração a ocorrência de semelhante conflito no Brasil, buscando alcançar uma resposta consentânea e em máxima concordância com nosso ordenamento.

Como método de pesquisa empregamos o dedutivo, partindo, portanto, de certas premissas maiores para que possamos chegar a uma aplicação reduzida ao caso que é real nos EUA e hipotético para o direito brasileiro. O meio empregado é o bibliográfico e comparado. O primeiro com a adoção das obras referenciadas no decorrer do texto, estrangeiras e nacionais; o segundo utilizando essencialmente a jurisprudência do caso investigado, referências bibliográficas e textos legais estadunidenses.

O desenvolvimento do trabalho divide-se em quatro capítulos. No capítulo 2, apresentamos o caso para o leitor com atenção aos elementos cruciais para compreender seu supedâneo fático e a construção jurisprudencial que se seguiu nos EUA. No capítulo 3, discorremos sobre indispensável debate acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas pela ótica estadunidense e brasileira. No capítulo 4, granjeamos validar nossa pretensão comparativa, procurando indicar certas semelhanças e diferenças normativas entre as ordenações legais estadunidense e brasileira, indicando a norma prevalecente, através da fixação de alguns standards hermenêuticos.

2 O DESENROLAR DO CASO NOS ESTADOS UNIDOS

Na seara do ordenamento jurídico norte-americano, consultamos as três instâncias por onde o caso transcorreu: inicialmente na esfera administrativa da Colorado Civil Rights Commission. Em seguida, em grau de recurso, consultamos a decisão da Colorado Court Of Appeals. Finalmente, para completar a explanação e tradução do caso para o leitor brasileiro, estudamos a decisão final proferida pela US Supreme Court pela análise individual dos votos de cada um de seus Juízes.

2.1 Acontecimentos iniciais

Era verão no hemisfério norte, mês de julho de 2012, quando Charlie Craig e David Mullins, um casal homossexual, ingressaram na confeitaria Masterpiece Cakeshop requerendo de seu proprietário e também confeiteiro Jack C. Phillips que lhes preparasse um bolo para o casamento dos então noivos (US SUPREME COURT, 2015, p. 3).

 O casal foi regularmente atendido e teve seu acesso franqueado ao local. Entretanto, logo após comunicarem que o bolo seria utilizado para uma cerimônia matrimonial, tiveram seu pleito recusado por Phillips (US SUPREME COURT, 2015, p. 4).

Os autos noticiam que, logo após a recusa, o casal deixou o local sem que houvesse qualquer discussão acerca da recusa da confeitaria. O último contato se deu quando a mãe de Charlie Craig, Deborah Munn, indagou sobre os motivos da negativa em fornecer o produto via telefone. Na ocasião foi informada pelo Sr. Phillips que a confeitaria Masterpiece não confeitava bolos para casamentos homossexuais e que o Estado do Colorado não reconhecia casamento entre pessoas do mesmo sexo (US SUPREME COURT, 2015, p. 5).

As discussões pessoais se encerraram naquele momento. A ligação e aberta recusa estimularam o casal a procurar o órgão estatal do Colorado com atribuições para regular, interpretar e executar medidas em face de potenciais violações aos direitos civis: a Colorado Civil Rights Division.

2.2 Colorado Civil Rights Commission: Violação à Norma § 24-34-601(2) e CADA, §§ 24-34-301 a 804, C.R.S. 2014[4]

Desde a abertura do caso, não houve debate sobre controvérsia fática (COLORADO CIVIL RIGHTS COMISSION, 2013, p. 1). Os argumentos apresentados pelas partes foram exclusivamente de direito. Essencialmente, o casal apontou conduta discriminatória ilícita na esfera estadual. O confeiteiro argumentou que a confecção do bolo ofenderia sua crença religiosa e que não violou a lei estadual. Alegou, entre outros assuntos, que a negativa não seria because of (em razão da) orientação sexual do casal, mas antes porque as lições bíblicas o proibiam como cristão de realizar quaisquer condutas que desagradariam a Deus (COLORADO CIVIL RIGHTS COMISSION, 2013, p. 3).

A Colorado Civil Rights Comission debruçou-se sob a legislação pertinente na época sobre a: (I) regulação do uso do espaço destinado ao público [24-34-601(2), C.R.S. 2014], bem como, (II) a lei antidiscriminação do Estado do Colorado (CADA, §§ 24-34-301 a 804, C.R.S. 2014) (COLORADO CIVIL RIGHTS COMISSION, 2013).

Decidiu-se que houve no caso violação à legislação que proibia limitar ou negar o acesso, bem como a discriminação da oferta de bens e serviços a indivíduos baseada em orientação sexual. A norma base para decisão da comissão foi a seguinte:

É uma prática discriminatória e ilegal que uma pessoa, direta ou indiretamente, recuse, retenha ou negue a um indivíduo ou grupo, por causa de deficiência, raça, credo, cor, sexo, orientação sexual, estado marital, nacionalidade ou ancestralidade, o pleno e igual gozo dos bens, serviços, instalações, facilidades, privilégios, vantagens ou acomodações de um local de alojamento público. (COLORADO CIVIL RIGHTS COMISSION, 2013, p. 4)[5]

No tocante à subsunção do comportamento à norma, argumentos centrais de parte da confeitaria foram rejeitados. Aos olhos da Comissão, a negativa baseada na crença religiosa está indubitavelmente ligada à opção sexual do casal, fazendo pouco sentido (little sense) o argumento de que a recusa não foi em razão (because of) da opção sexual (COLORADO CIVIL RIGHTS COMISSION, 2013, p. 5). Não houve dissociação como sustentou a defesa. A política da confeitaria foi entendida como conduta una e aberta em face da opção sexual de seus clientes potenciais e não por mera objeção ao matrimônio de pessoas do mesmo sexo.

Houve subsunção dos comportamentos à norma e considerações sobre a origem histórica do dispositivo aplicado (COLORADO CIVIL RIGHTS COMISSION, 2013, p. 4). No transcorrer da deliberação, delinearam-se argumentos de ponderação inaugurando um debate (que depois se aprofundará e é de interesse para a presente exposição) sobre o elo entre o confeiteiro e o público consumidor: a existência de um espaço de mercado destinado ao consumo. Parte do julgado revela este elemento:

Aqui, a recusa de prover um bolo de casamento aos reclamantes agride diretamente o direito dos reclamantes de estarem livres de descriminação no mercado. É prerrogativa estatal minimizar os danos determinando onde os direitos dos reclamados terminam e onde os direitos dos reclamantes se iniciam (COLORADO CIVIL RIGHTS COMISSION, 2013, p. 8).[6]

Neste momento, a Comissão começa a indicar argumentos econômicos em desfavor da confeitaria. A conclusão é de que a aplicação da norma do § 24-34-601 (2) não interfere negativamente no comércio privado da empresa. Ao contrário, ao estender e deferir o consumo a todos os públicos sem distinção, a sentença fomenta e permite o desempenho mais amplo da atividade exercida por Jack C. Phillips (COLORADO CIVIL RIGHTS COMISSION, 2013, p. 12)[7].

Realizada a fundamentação, o juiz administrativo Robert N. Spencer determinou à confeitaria que cessasse e desistisse (cease and desist order) de descriminar contra os reclamados, devendo fornecer o produto tal como forneceria a casais heterossexuais (COLORADO CIVIL RIGHTS COMISSION, 2013, p. 13). Noticia-se que, posteriormente, a decisão foi referendada pela Comissão, fixando de forma mais minudente as obrigações da confeitaria e criando certos deveres de compliance (COLORADO COURT OF APPEALS, 2015, p. 4).

Houve recurso para uma das instâncias judiciais superiores do Estado do Colorado (Colorado Court of Appeals), onde a decisão da Colorado Civil Rights Comission foi mantida, conforme exploramos a seguir.

2.3 Colorado Court of Appeals: Desenvolvimento do Elemento Comercial /Consumerista para Decidir em Favor do Casal

Discutidas as preliminares processuais (COLORADO COURT OF APPEALS, 2015, p. 6-10), quanto ao mérito, a Corte debruçou-se sequencialmente sobre (I) a violação ao CADA (Código de Acomodações Públicas do Estado do Colorado); (II) violação da Comissão à Primeira Emenda Constitucional por obrigar o Confeiteiro a exercer manifestação de pensamento (simbólico inclusive) que é constitucionalmente livre (Compelled Expressive Conduct and Symbolic Speech); (III) Violação da Comissão ao livre exercício e prática religiosa (First Amendment and Article II, Section 4 — Free Exercise of Religion) e, por fim (IV) ilações acerca dos limites estatutários da Comissão em emitir ordens coativas e concretas (cease and desist orders) (COLORADO COURT OF APPEALS, 2015, p. 12-63).

De um modo geral, persistiram massivos debates sobre a generalidade e neutralidade da norma tida como violada. Concluiu-se que a norma não foi idealizada pelo legislador em desfavor especificamente do confeiteiro, afastando, por consequência, argumentos que levariam ao chamado Strict Scrutiny, o que tornaria o Código de Acomodações, neste quesito, altamente suscetível a um controle mais rigoroso de constitucionalidade (COLORADO COURT OF APPEALS, 2015, p. 55).

Prevaleceram detalhamentos sobre os parâmetros para o exercício da liberdade de expressão religiosa, com a subsunção dos argumentos a cases muito variados produzidos tanto pela própria Corte de Apelação julgadora como pela Suprema Corte Norte-Americana.

O debate de mérito é muito rico e extenso. De relevante, podemos indicar que na Corte de Apelação o elemento comercial surgiu novamente como forte argumento decisório. Ao debater sobre ele, a Corte ingressou em tema muito interessante acerca dos efeitos objetivos (extrínsecos) que se poderia esperar do fornecimento do bolo pela confeitaria.

O tribunal se posicionou muito firmemente na constatação de que o fornecimento de um bolo, produzido em local de atividade lucrativa (for profit bakery), não conduziria terceiros à conclusão de que a confeitaria endossa o casamento de pessoas do mesmo sexo (COLORADO COURT OF APPEALS, 2015, p. 36). Por outro lado, não deixou de reconhecer que um bolo de casamento em algumas circunstâncias pode conter uma mensagem “[…] particularizada sobre a celebração de casamentos de pessoas do mesmo sexo e que nesses casos as proteções ao direito de expressão da Primeira Emenda podem ser implicadas”[8] (COLORADO COURT OF APPEALS, 2015, p. 40).

Para o Tribunal, porém, não houve impacto à Primeira Emenda porque os autos noticiaram uma negativa imediata de Jack Phillips, a ponto de não permitir debates acerca do design e detalhamentos do confeito (COLORADO COURT OF APPEALS, 2015, p. 40). Quiçá fosse exigido do confeiteiro desenhar sobre o bolo mensagens escritas ou simbólicas em favor de entidades LGBT, o destino do caso seria outro. Mas não foi o que ocorreu.

Inconformado, Jack C. Phillips recorreu à Suprema Corte dos Estados Unidos, que surpreendeu a todos ao posicionar-se desfavoravelmente ao casal em julgamento ocorrido no ano de 2018 (US SUPREME COURT, 2015).

2.4 Análise e Conclusão da Suprema Corte Americana – Virada na Interpretação em Favor do Confeiteiro

A corte, composta por 09 juízes, reverteu a decisão em favor da Confeitaria (US SUPREME COURT, 2018, p. 3). Justice Anthony Kennedy atuou como uma espécie de relator narrando, já no início de seu parecer, a dificuldade em reconciliar pelo menos dois princípios em colisão: “[…] a autoridade do Estado e de seus entes governamentais em proteger os direitos e a dignidade de pessoas gays” e “[…] o direito de todas as pessoas em exercer liberdades fundamentais sob a primeira emenda”[9] (US SUPREME COURT, 2018, p. 4).

Depois de apontar os princípios debatidos, a decisão perfez todo o retrospecto fático do caso (US SUPREME COURT, 2018, p. 11). Foram tecidas críticas abertas à Comissão de Direitos Civis do Colorado acusada pelo Justice Anthony Kennedy de ter formulado comentários hostis contra o confeiteiro durante as oitivas públicas que precederam o julgamento final, em desapreço à sua liberdade de expressão religiosa (US SUPREME COURT, 2018, p. 14).

Mais adiante, a opinião de Kennedy revelou achados de ao menos 3 peças procedimentais na quais a Comissão considerou legítima a recusa no fornecimento de confeitos baseada em convicção religiosa, indicando, portanto, que o caso de Jack Phillips foi tratado com parcialidade (US SUPREME COURT, 2018, p. 15).

Os três casos se referiam a um amicus curiae admitido nos autos: William Jack. Jack teria solicitado a 3 confeiteiros que preparassem dois bolos distintos em formato de Bíblia aberta, de teor religioso e declaradamente contrário ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Em ambos, requereu a imagem de dois noivos homens, de mãos dadas, com um “X” vermelho sobre a imagem. Em um deles requereu que de um lado fosse inscrito: “Deus odeia o pecado, Salmo 45:7” e no lado oposto “Homossexualidade é um pecado detestável. Levítico 18:2”. No segundo bolo, pediu de um lado as palavras: “Deus ama os pecadores” e do outro lado “Enquanto ainda éramos pecadores, Cristo morreu por nós. Romanos 5:8” (US SUPREME COURT, 2018, p. 54).

Os 03 confeiteiros negaram a confecção da peça. O primeiro confeiteiro disse a Jack que faria bolos em forma de Bíblia, mas não os decoraria com as mensagens solicitadas, alegando que “não discrimina” e “aceita todos os seres humanos”. O segundo confeiteiro disse a Jack que “tinha feito bolos em formato de Bíblia aberta muitas vezes e os confeitos ficaram maravilhosos”, mas não faria o bolo conforme solicitado por acreditar conter mensagens “odiosas”. A terceira confeitaria prepararia os bolos, mas, segundo relatou Jack, não incluiria as mensagens solicitadas (US SUPREME COURT, 2018, p. 55).

Houve reclamação de William Jack indicando ofensa ao Código de Acomodações do Estado do Colorado que, para além da orientação sexual, veda discriminação em razão de credo religioso. Entretanto, a posição das confeitarias prevaleceu junto à Comissão que acabou por endossar a negativa dos 3 estabelecimentos.

Com base em ambas as considerações a respeito da hostilidade das declarações de membros da Comissão e da falta de uniformidade de suas decisões, Justice Anthony Kennedy pontuou que o Estado, representado pela Comissão, deixou de agir com neutralidade acerca da liberdade de manifestação de pensamento de Jack Phillips, qualificada concretamente pela liberdade de manifestação religiosa.

Mais adiante Justice Elena Kagan assentiu com a opinião do voto vencedor, externando especial preocupação com a posição do Estado do Colorado, por meio de sua Comissão de Direitos Civis, em não aplicar a lei com neutralidade como decorrência de sua fiel obediência à Constituição (US SUPREME COURT, 2018, p. 22).

A recusa de 3 confeiteiros ao bolo requisitado por William Jack foi determinante para considerar que a Comissão viola a Constituição ao ponderar diferentemente e casuisticamente o conteúdo de diferentes manifestações, ora de credo religioso, ora de orientação sexual. Vale dizer, ordena comportamentos a particulares nas suas relações privadas emitindo juízos de valor diferenciados sobre as mensagens requeridas pelos consumidores a implicar diferentes ordens de obediência ao Código de Acomodações Públicas do Estado do Colorado.

Em seguida opinou o Justice Neil M. Gorsuch que é seguido pelo Justice Samuel A. Alito. Mais uma vez, prevaleceu a visão de que a Comissão, ao considerar justificável a recusa aos bolos requeridos por Willian Jack, violou o dever de neutralidade do Estado em relação a diferentes opiniões religiosas. Exaltando os votos dos colegas em favor da Masterpiece, pontuou:

Mas nós sabemos disto com certeza: quando o governo falha em agir com neutralidade em relação ao livre exercício religioso, ele tende a ter problemas. […] A Decisão de hoje respeita esses princípios. Como a corte explica, a Comissão de Direitos Civis do Colorado falhou em agir de forma neutra em relação a fé religiosa de Jack Phillips. Talvez mais notavelmente, a Comissão permitiu a três outros padeiros recusar o pedido de um consumidor que lhes pedia para violar seus compromissos seculares. (US SUPREME COURT, 2018, p. 26) [10].

O ponto central da discussão daí em diante foi o grau de generalidade aplicado pela Comissão à expressão contida nos bolos requeridos, ora pelo casal, ora por William Jack. Segundo entenderam os juízes, a aplicação neutra da lei, em consideração à proteção geral dos credos religiosos, é incompatível com a pretensão de órgãos estatais conferirem diferentes generalidades/especificidades às expressões envolvidas nos conflitos (US SUPREME COURT, 2018, p. 35)[11].

A opinião dos Justices claramente indica que não cabe ao Estado (em atendimento à primeira emenda) alargar, expandir, reduzir ou compactar expressões. Ao realizar esta tarefa, estaria inevitavelmente ingressando nos desideratos da fé dos cidadãos. Fé que resulta de manifestações subjetivas de credo que nos dizeres dos prolatores da opinião estabelecem “[…] distinções mais específicas do que o nível de descrição preferido pelo Governo” (US SUPREME COURT, 2018, p. 36)[12].

De modo geral, é inevitável constar que, em especial, as decisões mais fundamentadas e longas da corte, ao defenderem a política da confeitaria, deixam transparecer uma preocupação especial com o credo de seu proprietário, que deve ser preservado independentemente de ilações acerca da profundidade das expressões possivelmente contidas no bolo e de suas caracterizações para o público. Esta preocupação, de ordem subjetiva, fica clara na conclusão da opinião do Justice Neil M. Gorsuch para quem:

Não é mais apropriado para a Suprema Corte dos Estados Unidos dizer ao Sr. Phillips que um bolo de casamento é como qualquer outro – sem levar em conta o significado religioso que sua fé pode atribuir a ele – do que seria para a Corte sugerir a todas as pessoas que Pão Sacramental é apenas pão ou um Quipá é apenas um boné. (US SUPREME COURT, 2018, p. 36) (grifos no original) [13].

Mais adiante, a opinião do Justice Clarence Thomas – assentida pelo Justice Neil M. Gorsuch – busca simplificar o debate, a partir de um ponto de vista fortemente conservador. Na apreciação dos Justices, não seria necessário ingressar na discussão acerca de eventuais expressões ou símbolos colocados no bolo para caracterizar aberta violação à liberdade de expressão do confeiteiro. Excursionando pelos campos da experiência artística e culinária, os juízes apresentaram para a Corte a ideia de que um bolo de casamento, independentemente dos escritos e figuras que o adornam, sempre será um objeto de expressividade.

Se uma pessoa comum entrasse em uma sala e visse um bolo branco de várias camadas, ele saberia imediatamente que havia tropeçado em um casamento. O bolo é ‘tão arraigado e inevitável como parte do ato de se casar que poucos pensam em questioná-lo’. […] Quase nenhum casamento, por mais espartano que seja, o bolo é esquecido. […] Embora o bolo seja finalmente comido, este não é seu propósito primário (US SUPREME COURT, 2018, p. 43) [14].

Em seguida – como de regra nas decisões favoráveis à confeitaria – destacaram com riqueza de detalhes a relação subjetiva de Jack Phillips com os bolos confeitados:

Phillips toma cuidado excepcional com cada bolo que cria – esboçando o desenho no papel, escolhendo o esquema de cores, criando o glacê e as decorações, assando e esculpindo o bolo, decorando-o e entregando-o ao casamento. […] Phillips também vê o simbolismo inerente nos bolos de casamento. Para ele, um bolo de casamento comunica inerentemente que ‘um matrimônio ocorreu, um casamento começou e o casal deve ser celebrado’ (US SUPREME COURT, 2018, p. 42)[15].

A opinião da Corte já estava formada quando Justice Ruth Bader Ginsburg – acompanhada da colega Sonia Sotomayor – dissentiu da opinião da maioria. O voto divergente restou assentado em duas constatações. Primeiramente, as juízas não encontraram nas ponderações de determinados membros da Comissão Administrativa do Colorado hostilidade à crença religiosa de Jack Phillips. Em segundo lugar, não visualizaram na decisão da Comissão de Direitos Civis – em respaldar outros 03 confeiteiros no caso William Jack – quaisquer objeções especiais aos ideais religiosos do proprietário da Masterpiece Cakeshop (US SUPREME COURT, 2018, p. 53). O segundo argumento decisório das Justices é o que interessa mais aos nossos propósitos.

Para justificar o respaldo da Comissão à recusa dos 3 confeiteiros dos bolos solicitados por William Jack, a opinião das juízas dissidentes restou assentada em fato revelado nos autos de que Jack requisitou bolos altamente detalhados, contendo mensagens abertamente opostas e, em alguns momentos, hostis ao casamento de pessoas do mesmo sexo e ao homossexualismo (US SUPREME COURT, 2018, p. 53).

 Contrariamente, a Comissão não teria respaldado Jack Phillips porque não houve por parte do confeiteiro e do casal quaisquer discussões acerca da qualidade estética do confeito. A recusa de Jack Phillips veio de pronto, antes que quaisquer elementos de decoração viessem à baila na discussão prematuramente encerrada. Deste modo, a ação, segundo as Justices, diferiria muito daquela narrada pelo amicus curiae Sr. William Jack, que já apresentara para os 3 confeiteiros os elementos estéticos detalhados que gostaria de ver nos bolos encomendados (US SUPREME COURT, 2018, p. 54).

Em interessante passagem, a Justice Ruth Bader Ginsburg demonstra que as diferentes conclusões da Comissão (em um e outro caso) revelam, antes, uma coerência, e não disparidade na aplicação do Código de Acomodações do Estado do Colorado:

Altere a orientação sexual de Craig e Mullins (ou sexo), e Phillips teria fornecido o bolo. Altere a religião de Jack e os padeiros continuariam não dispostos a atender a sua solicitação. As objeções dos padeiros aos bolos de Jack não tinham nada a ver com ‘a oposição religiosa aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo’. […] Em vez disso, os padeiros simplesmente se recusaram a fazer bolos com declarações humilhantes a pessoas protegidas pela CADA. Com relação ao segundo bolo de Jack, em particular, onde ele pediu uma imagem de dois noivos homens cobertos por um ‘X’ vermelho e as frases ‘Deus ama pecadores’ e ‘Enquanto nós ainda éramos pecadores, Cristo morreu por nós’, os padeiros não deram a menor indicação de que as palavras religiosas, para além da imagem humilhante, foram as que provocaram a objeção ao atendimento da solicitação. […] Phillips, portanto, discriminou em razão de orientação sexual; os outros padeiros não discriminaram por causa da crença religiosa; e a Comissão considerou corretamente a discriminação num caso mas não no outro (US SUPREME COURT, 2018, p. 55)[16].

Neste sentido, haveria certa integridade e estabilidade nas decisões da Comissão, ao contrário do que sugeriu a maioria da corte. De qualquer forma, não houve quem concordasse com as juízas dissidentes, vencendo a maioria que acabou por alterar os rumos do caso que, ainda assim, em votos quantitativos, tendeu nas mais diversas instâncias em favor do casal.

3 EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DEBATIDOS NA RELAÇÃO PRIVADA SOB ANÁLISE

Para além de princípios em conflito, e ainda antes desta constatação, o caso envolve um típico problema de eficácia de direitos fundamentais nas relações privadas. A livre iniciativa, que move a atividade comercial do confeiteiro, conflui para a existência de um espaço essencialmente privado, classicamente abrigado de interferências estatais e mesmo de outros atores particulares que não queiram consentir com as cláusulas contratuais livremente estabelecidas por seu proprietário. Problemas começam a surgir, por outro lado, quando este mesmo ambiente é circundado por regras assecuratórias de direitos fundamentais contrapostos.

Diante desta tensão,ao se falar na eficácia dos direitos fundamentais, indagamos a seguir, pela ótica estadunidense e brasileira, se referidos direitos são ou não aplicáveis à relação privada protagonizada pelos atores privados em questão.

3.1 Análise crítica das condições e intensidade da eficácia dos direitos fundamentais no ambiente jurídico estadunidense

Nos anos finais da década de 1940, nos EUA, se observou o nascedouro de um eficiente modelo de jurisdição constitucional baseado na supremacia da Constituição (BARROSO, 2005). Entretanto, ali também se dava o desenvolvimento de um dos arquétipos teóricos mais radicais de negação à aplicação de direitos fundamentais nas relações privadas.

A chamada State Action ou em tradução literal “ação estatal”, como o nome sugere, é uma construção do direito americano para justificar que somente em face do Estado podem ser exercitados os direitos fundamentais.

Nos EUA, a ideia de que os direitos fundamentais são exercidos somente em face do Estado compõe a base da própria concepção do direito constitucional (SARMENTO, 2010, p. 213). Naquele país, a admissão da incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas gera de plano um duplo problema, justificando a existência da State Action.

O primeiro é que a interpretação da Constituição não autoriza na sua literalidade estender prerrogativas fundamentais às relações particulares. A Bill of Rights encarna um aberto projeto liberal e, como tal, prevê que os direitos do homem valem apenas contra o Estado (SARMENTO, 2010, p. 213). Era assim quando a carta foi integrada ao então novel texto constitucional americano e continuou sendo deste modo até os dias de hoje.

O segundo problema refere-se também à própria ideia de pacto federativo. Nos EUA são os entes federados, e não a União, na preservação de sua histórica autonomia, que legislam sobre direito privado (SARMENTO, 2010, p. 213). Para uma federação que caminhou inversamente à brasileira (Estados autônomos que se juntam, ao invés de um poder central que se divide em Estados com fraca autonomia) sempre pareceu inadmissível que os direitos do homem plasmados na Constituição Federal pudessem ser forçadamente introduzidos nas relações privadas.

Como resultado prático, os efeitos desta postura teórica e institucional acabou por resultar em uma histórica hostilidade dos ambientes comerciais em face de minorias, e as graves consequências que daí decorreram são inclusive debatidas na cátedra americana contemporânea.

Neste sentido, vale mencionar o trabalho desenvolvido por Joseph William Singer, professor da disciplina de Direito de Propriedade da Universidade de Harvard, que dentre outros exemplos cita o célebre guia de viagens chamado The Negro Motorist Green Book. O livro de autoria de Victor H. Green servia de guia para o motorista negro americano saber de antemão (especialmente ao viajar pelos antigos Estados Confederados do Sul) quais estabelecimentos admitiram sua presença e a de sua família (SINGER, 2015, p. 935).

O livro, que é considerado um documento histórico do preconceito racial nos EUA, reflete interessantes reflexões, revelando os desacertos e desencontros da teoria da State Action com os direitos civis das minorias. Afinal, embora houvesse instalações disponíveis para abrigar famílias negras nos EUA, onde elas estariam? Como chegar até elas? e o mais importante, mesmo munidos do Green Book: “O que teria acontecido se essas instalações não estivessem disponíveis? E se quase toda a terra fosse de propriedade de pessoas brancas que achavam que as raças deveriam ser separadas e apartadas?” (SINGER, 2015, p. 935)

Trazendo toda esta discussão para o caso Craig And Mullins V. Masterpiece Cakeshop, a primeira constatação digna de nota é que a teoria da State Action não é expressamente invocada pelo julgado da Suprema Corte. Entretanto, nem por isso deixa de estar presente. Ao contrário, é destilada através da opinião do Justice Clarence Thomas preponderando pelo interesse do confeiteiro. Para o Justice, a confecção do bolo por Jack Phillips configura manifestação de pensamento, independentemente de ilações sobre conter o confeito ilustrações, mensagens escritas ou outros símbolos em favor do casamento homossexual (US SUPREME COURT, 2018, p. 6). Como tal, a sua mera confecção para Craig e Mullins violaria o direito à liberdade religiosa estampado na Primeira Emenda – entendimento aliás que, com nuances distintas, prevaleceu na Corte.

A partir da visão de Thomas, aquele ambiente comercial (privado) específico, sob o crivo da Primeira Emenda, estaria imune ao Código de Acomodações, blindado pela fé professada pelo seu proprietário. Vale dizer, a teoria da State Action aporta de modo reverso. Reconhece-se, primeiramente, que se o Estado não participa (e na realidade não deve participar) daquela relação, os indivíduos que a compõem não estarão obrigados a contratar observando os direitos fundamentais um do outro. O confeiteiro nega o pedido. O casal, por sua vez, deixa o local e vive dali para frente na esperança de que outro estabelecimento os atenda (isto é… se quiserem atender).

Importante dizer que o contraponto acerca dos valores do casal nunca ficou muito claro, nem na decisão de Thomas, nem na conclusão geral da Corte. Na concepção de Singer, a State Action estaria em quaisquer dos casos enunciada de modo equivocado. Prepondera o autor em tom crítico:

Mas como uma lei que falha regular proprietários constitui uma privação constitucional da proteção igualitária da lei? Onde está a ‘state action’? O Estado nada requer; ao contrário, ele empodera proprietários a controlar suas próprias propriedades e os libera de regulação. Quaisquer decisões discriminatórias são feitas pelos proprietários, não pelo Estado (SINGER, 2015, p. 937)[17]

Nestes termos é que reconhecemos haver na decisão a que dirigimos nosso estudo fortes cores da doutrina da State Action aplicada, entretanto, de modo controverso ou mesmo incoerente. A equação é iniciada com intensos argumentos em favor do direito do confeiteiro contido na primeira emenda (forçando o Estado para fora da equação) para então concluir aquele ambiente privado impermissível ao exercício compulsório de direitos fundamentais. Entretanto, é preciso salientar, embora a hermenêutica da maioria dos juízes apontasse para a ausência da State Action, que foi justamente a normatização constitucional produzida pela ação do Estado que, em última análise, empoderou a negativa do confeiteiro, ao passo que vulnerou a pretensão do casal, o que encerra grande contrassenso.

O leitor crítico então se perguntaria: por que utilizar tão intensamente um caso do direito estadunidense se sabidamente o Estado Brasileiro (como veremos) fornece mais elementos normativos e melhores condições constitucionais para o reconhecimento dos direitos fundamentais nas relações privadas?

Os Estados Unidos possuem uma Constituição liberal e individualista contando mais de 200 anos de sua promulgação. Primeiramente, desta norma secular, por si só, é preciso reconhecer importância quando tratamos de tema que envolva direitos civis. Analisá-la comparativamente ao direito brasileiro, em um verdadeiro processo de “americanização”, é um processo imprescindível, considerando as transformações “extensas e profundas” do constitucionalismo estadunidense na experiência jurídica romano-germânica (BARROSO, 2008, p. 301).

Em segundo lugar, se conseguimos demonstrar que mesmo lá, em um ambiente fortemente liberal, existe forte tendência em assegurar o exercício de liberdades civis e existenciais podemos cogitar que: “ficará mais fácil concluir que, no Brasil, em que vigora uma Constituição muito mais voltada para a justiça social e a igualdade substantiva, não há como escapar de processo semelhante” (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012, p. 186).

Vale dizer, a tensão própria do Direito Americano nos serve duplamente. A manutenção da decisão em favor do casal nas cortes inferiores e a decisão final da Suprema Corte com dois votos divergentes indicam que o caminho para integração do ambiente privado com os direitos fundamentais é de fato uma tendência transnacional.

3.2 Ponderação e contextualização do caso segundo a ótica da eficácia dos direitos fundamentais no Brasil

Em solo brasileiro não chega a haver negação absoluta dos direitos fundamentais nas relações privadas, nos moldes da teoria da State Action. Tampouco se admite na doutrina mais contemporânea, em vista da estrutura constitucional de 1988, a existência de uma eficácia unicamente verticalizada (Cidadão-Estado).

No Brasil, concebem-se três tipos de eficácia acerca da incidência dos direitos fundamentais, embora a denominação de cada uma não seja tranquila (SARMENTO, 2010, p. 22). A primeira, que no Brasil convencionou-se chamar de eficácia vertical, inadmite quaisquer vinculações dos particulares aos direitos fundamentais. A incidência dos direitos fundamentais pela ótica vertical, como o nome sugere, se dá exclusivamente pelo exercício desses direitos pelos cidadãos em face do Estado, pressupondo, portanto, que o governo de alguma forma toque o indivíduo ou a relação privada por ele livremente estabelecida (SARMENTO, 2010, p. 21).

De outro lado, temos a chamada teoria da eficácia horizontal, que diferentemente da primeira, admite que não apenas o Estado, mas também os atores privados devem conduzir-se ao cumprimento e respeito dos direitos fundamentais. Esta linha de pensamento comporta, por sua vez, duas vertentes: a da eficácia indireta ou direta (BARROSO, 2005).

3.2.1 Teoria da eficácia horizontal indireta ou mediata dos direitos fundamentais

Concebe-se a teoria da eficácia indireta dos direitos fundamentais a partir da ideia de que os direitos assim considerados se realizam e se impõem aos particulares por meio de um medeio legislativo e com “atribuição de sentido às cláusulas abertas” (BARROSO, 2005).

Os autores que advogam limitação à incidência direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, embora reconheçam a horizontalidade desta eficácia, estão em última análise preocupados com o arbítrio jurisdicional e eliminação da autonomia privada (SARMENTO, 2010, p. 222). Deste modo, como forma de preservar o espaço privado, creditam ao legislador a posição de julgar na órbita do consenso, por meio da gênese legal, quais situações constitucionais fundamentais previamente estabelecidas podem penetrar a iniciativa privada.

Importante notar, entretanto, que a proposição da eficácia mediata não necessariamente implica a desconsideração absoluta dos direitos fundamentais quando confrontados com as liberdades burguesas clássicas. De certo modo nos parece que, mesmo refletindo uma posição de teor mais econômico-liberal, por salvaguardar separadamente o âmbito das relações privadas, a ótica da eficácia indireta poderia ser, para alguns, consentânea com uma postura de defesa em favor do casal, sem comprometer, porém, um certo grau de previsibilidade naquela relação econômica.

O conhecimento prévio de quais regras fundamentais devam penetrar em dado universo relacional econômico confere àquele ambiente maior previsibilidade. Não se trata de negar que o Estado imponha aos particulares o dever de cumprir direitos elementares, mas admitir que esta eficácia se opere a partir de regras postas a priori, o que labora em favor da segurança jurídica.

Assentando a concepção horizontal indireta em relação ao caso sob análise, poderíamos até mesmo ponderar se seria admissível considerar regras temporais para decidi-lo. A exemplo do que ocorreu em Craig And Mullins v. Masterpiece Cakeshop noticia-se que o Código de Acomodações do Estado do Colorado [24-34-601(1)] passou a incluir a discriminação em razão da orientação sexual somente em 2008 (COLORADO CIVIL RIGHTS COMISSION, 2013, p. 4). Jack Phillips, por sua vez, inaugurou seu estabelecimento comercial em 1993 (“Great Cakes Since 1993” enuncia o cabeçalho de sua homepage[18]). Deste modo, poderíamos afirmar, a partir da aplicação do dispositivo infraconstitucional, que a confeitaria não estaria adstrita a respeitar a orientação sexual de seus consumidores porque, no momento em que ingressou naquele ramo comercial, não consentiu com o regramento posteriormente exigido pelo Governo.

O mesmo se diga no Brasil. Como veremos no próximo e derradeiro capítulo 4, a norma infraconstitucional que estende às relações privadas vedação à discriminação na oferta de bens e serviços é do Código De Defesa do Consumidor (artigo 39, incisos I e II) infiltrando o princípio constitucional econômico de defesa do consumo (artigos 5º, inciso XXXII e 170, inciso V) nas relações privadas a partir de 11 de março de 1991.

Deste modo, seria conveniente concluir que no intervalo entre a promulgação da Carta Constitucional de 1988 e a vigência do Código de Defesa do Consumidor (1991), quem inaugurasse comércio não estaria obrigado a observar em seus contratos o atendimento dos modernos direitos consumeristas, estando autorizado a selecionar quem se dispusesse a consumir.

Não desejamos com os exemplos acima encerrar uma visão simplista da eficácia mediata ou indireta dos direitos nas relações privadas. Pelo contrário, a ideia é demonstrar, pela breve idealização aplicativa do preceito temporal acima, como é lastreada a principal crítica formulada pelos adeptos da eficácia imediata e direta, demonstrando, paralelamente, como a tese destes últimos é construída.

Reduzir a aplicabilidade de certos direitos fundamentais, creditando a instrumentos legislativos uma capacidade de, por meros lapsos temporais, derrogar princípios constitucionais maiores, parece evidentemente reduzir a normatividade da Constituição, que passa a ser modulada segundo ordenações infraconstitucionais, tornando os direitos fundamentais no espaço privado dependentes “dos incertos humores do legislador ordinário” (SARMENTO, 2010, p. 228).

Veja-se, portanto, que a adoção desta linha teórica pode implicar até mesmo uma espécie de modulação calculista-temporal da eficácia dos direitos fundamentais por meio de um reducionismo infraconstitucional, problema este que compõe o eixo de justificação dos defensores da eficácia horizontal imediata, que passamos a ver a seguir.

3.2.2 Teoria horizontal direta ou imediata dos direitos fundamentais

O alinhamento dos direitos fundamentais nas relações privadas é corolário do movimento histórico que surgiu e se desenvolveu nas últimas décadas do século XX (BARROSO, 2005) conhecido como neoconstitucionalismo.

A chamada eficácia horizontal é qualidade desta nova orientação do pensamento jurídico constitucional, que tem como atributo central a ideia de constitucionalização do direito entendida como: “efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico” (BARROSO, 2005). Apenas reconhecendo na norma constitucional conteúdo jurídico é que se pode falar em verdadeira força normativa de caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições (BARROSO, 2005). Neste sentido, a necessidade de observância dos princípios constitucionais entre os particulares seria uma segunda e evolutiva consequência do fenômeno da constitucionalização (BARROSO, 2005]). Neste novo esquema, os direitos fundamentais garantem, portanto, muito mais do que uma garantia do cidadão contra o Estado.

Entretanto, é preciso cuidado, porque nem todas as vertentes da eficácia horizontal assumem conformação democrática. A posição de defesa de valores objetivos e essencialmente públicos na relação privada pode, igualmente, comportar exageros odiosos, podendo radicalizar-se muito facilmente na forma de uma “socialização” forçada no ambiente da autonomia da vontade[19].

É preciso avaliar bem, portanto, que proposta doutrinária atende os objetivos que traçamos para esta breve exposição, e felizmente a tarefa não é complexa. De fato, hoje é amplamente conhecida, na academia e nos tribunais, doutrina que equilibra satisfatoriamente os extremos que o reconhecimento da horizontalidade direta revela.

O que esta corrente de conformação verdadeiramente democrática propugna não é a incidência forçada dos valores fundamentais, admitindo-se, uma vez que ingressem na relação particular, a derrogação automática dos valores liberais ali presentes. É dizer, para o caso que deitamos análise, que a dignidade e o direito de proteção ao consumo por parte do casal não prevalecem imediata e diretamente sobre a livre iniciativa e a liberdade religiosa que compõe a esfera jurídica do confeiteiro – como poderiam pressupor os adeptos da eficácia mediata.

Na realidade, reconhecida a existência de direitos fundamentais titularizados em um dos polos do conflito, abre-se uma nova etapa na qual estes direitos, transplantados e agora colidentes com aqueles de matiz liberal, por meio da observância de critérios diversos (extraídos dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade) são ponderados.

Esta posição corresponde inclusive a de Robert Alexy, que merece citação pela sua notória relevância na doutrina e jurisprudência. Alexy nos revela como a defesa da eficácia direta está atrelada à necessidade da ponderação. O autor germânico, para além de adepto da primeira, é o mais notável precursor do segundo conceito. Segundo leciona:

[..] as normas de direitos  fundamentais têm, em razão da dupla titularidade de direitos fundamentais, uma outra “intensidade de efeitos” na relação cidadão/cidadão se comparada com a da relação cidadão/Estado.

Mas existe uma terceira possibilidade para compreender o que significam efeitos diretos perante terceiros. Segunda ela, por razões ligadas aos direitos fundamentais, há determinados direitos e não-direitos, liberdades e não-liberdades e competência e não-competências na relação cidadão/cidadão, os quais não existiriam sem essas razões. (ALEXY, 2008, p. 538-539).

Para além de aprovar o acerto da eficácia imediata, Alexy ainda revela que não há na admissão da incidência de dado direito fundamental na relação privada eliminação automática da autonomia privada considerando que é “[…] fácil refutar a objeção segundo a qual todo efeito direto conduziria a uma eliminação ou a uma restrição não aceitáveis da autonomia privada” (ALEXY, 2008, p. 540). Pelo contrário, a forma como se trata os limites da competência do direito privado é “uma questão substancial e,  no fim das contas, uma questão de sopesamento” (ALEXY, 2008, p. 540).

Esta parece ser, portanto, a posição mais acertada quando objetivamos transplantar o caso estudado com o intuito de conformá-lo à ordem jurídica brasileira, valendo lembrar que a eficácia horizontal imediata teve seu espaço reconhecido também na jurisprudência brasileira, a exemplo da decisão final no Recurso Extraordinário número 201.819-8 oriundo do Estado do Rio de Janeiro (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2005).

Mas é evidente que simplesmente conhecer a tendência brasileira não socorre o problema que propomos elucidar. Necessitamos prosseguir com a efetiva comparação e ponderação concretas das normas que justificam os princípios em conflito, sugerindo standards decisórios possíveis.

4 COMPARAÇÃO E SELEÇÃO DAS NORMAS PREVALECENTES

Para cada norma controvertida do caso, encontramos dispositivo equivalente no ordenamento brasileiro. Nos Estados Unidos, o direito à livre manifestação religiosa é corolário da Primeira Emenda à Constituição (First Amendment) que expressamente veda ao Congresso legislar “no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra” (US SENATE, 2017) [20]. No direito brasileiro temos o artigo 5º, incisos IV e VI da Constituição Federal a tratar sobre a liberdade de manifestação, expressão e crença religiosa (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988)[21].

Ainda em nível constitucional, no Brasil temos a proteção ao consumidor previsto em dois momentos: no rol dos direitos fundamentais no artigo 5º, inciso XXXII, e como princípio da ordem econômica no artigo 170, inciso V (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988).

Como último componente constitucional em debate temos para o Brasil no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal a dignidade da pessoa humana: “A República Federativa do Brasil, […] tem como fundamentos: […] a dignidade da pessoa humana” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988), sem equivalente na Constituição Americana, embora presente nas discussões doutrinárias por lá, como verificamos no trabalho de Singer (SINGER, 2015).

Em nível infraconstitucional, sobre a recusa de atendimento à demanda do consumidor, nos Estados Unidos, mais especialmente no Estado do Colorado, temos a norma 24-34-601(1) que regula os espaços de acomodação pública, bem como as normas complementares 24-34-601(2), 24-34-301(5), 24-34-301(7) (COLORADO CIVIL RIGHTS COMISSION, 2013, p. 04), já transcritas, e que definem conceitos e consequências pela violação ao comando legal.

No Brasil, temos o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor[22] em proibição à recusa de fornecimento de bens e serviços ao consumidor.

No que toca às regras infraconstitucionais, nos parece que Jack C. Philips, e qualquer outro comerciante brasileiro nas mesmas circunstâncias, quando decidiu explorar comercialmente os confeitos objeto de sua convicção religiosa, estabeleceu para si restrições quanto à venda eletiva de seus produtos, mesmo quando amparada no livre exercício e manifestação de liberdade religiosa.

É evidente, porém, que esta obrigatoriedade deve ser lida com os temperamentos que a norma constitucional impõe. E é neste cerne que elementos importantes começam a surgir em atendimento aos objetivos que traçamos para o presente artigo.

Pela leitura dos dispositivos constitucionais, de plano percebe-se que a disciplina de ambos os países em matéria de liberdade de manifestação, crença e culto religioso é expressa, textual e direta. O ideal religioso do confeiteiro, portanto, seja em território estadunidense ou brasileiro, ostenta proteção constitucional grafada vividamente em ambas as Constituições.

E é preciso que se diga, a dimensão da liberdade de expressão religiosa é ampla (FERREIRA FILHO, 2005, p. 33). Engloba necessariamente a proteção de toda a capacidade e vontade de o sujeito externar seus hábitos, linguagens, rituais e ideias, seja pela palavra falada, escrita, seja pela manifestação artística. Deste modo, se o artista produz suas obras como exteriorização da vontade e características de sua divindade, ao Estado e a ninguém é legítimo demovê-lo de seu ministério.

Esta definição aliás restou assente em uma das opiniões mais vigorosas da US Supreme Court conduzida pelo Justice Neil Gorsuch. É interessante observar a extensão absoluta conferida por Gorsuch à liberdade religiosa do confeiteiro, sinalizando quanto à necessidade de assegurar um grande distanciamento do Estado em relação a fé religiosa professada pelos cidadãos. Ao falar sobre “níveis de generalidade” e “especificidade” com referência aos bolos requeridos por Jack Phillips e William Jack, o magistrado deixou claro que nem a comissão e nem a corte poderiam aplicar um nível mais específico de generalidade para Jack enquanto aplicaria um nível maior de generalidade para o caso da confeitaria (US SUPREME COURT, 2018, p. 35).

Neste sentido, para ele, não cabe ponderar se o confeito ostenta este ou aquele sinal em favor ou não do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Incursionar sobre estes detalhamentos já seria por si só uma interferência do Estado inadmitida pela primeira emenda: “[…] para que qualquer lei cumpra a Primeira Emenda […], ela deve ser aplicada de maneira a tratar a religião com respeito neutro. […] o governo deve aplicar o mesmo nível de generalidade nos casos – e isso não aconteceu aqui” (US SUPREME COURT, 2018, p. 36). Entretanto, este ponto de vista não subsistiu incombatido.

A despeito da opinião de Gorsuch, diversos outros juízes, favoráveis ao confeiteiro, ingressaram em nuances a respeito dos detalhes do confeito. É o caso do Justice Clarence Thomas, quando discute em pormenores o significado objetivo da peça para o público, não deixando ele próprio de tecer comentários sobre o bolo, dizendo: “Se uma pessoa comum entrasse em uma sala e visse um bolo branco de várias camadas, ele saberia imediatamente que havia tropeçado em um casamento” […]. E continua: “Quase nenhum casamento, por mais espartano que seja, o bolo é esquecido” […] (US SUPREME COURT, 2018, p. 43).

É visível, portanto, que mesmo entre os votos majoritários em favor da confeitaria não há uma necessária conversão de entendimentos por parte dos Justices. Embora admitam em diversos momentos que ao Estado não é permitido adotar diferentes graus de generalidade ao apreciar manifestações de fé, a própria Corte, como órgão máximo de Estado, o faz em diversas ocasiões, contrariando sua auto prescrição.Eis a prova maior de que não se interpreta casos como o analisado sem, de fato, incursionar sobre o objeto material em debate, ainda que resulte de manifestação de crença religiosa.

Para o Brasil, esta constatação parece ainda mais necessária se caso semelhante ocorresse. Ao explanarmos sobre a eficácia horizontal imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas no Brasil, alertamos que a técnica necessariamente impõe ponderação (ALEXY, 2008, p. 538-540).

Neste sentido, é de suma importância ressaltar que não se admite em solo pátrio, a bem de um modelo econômico desenvolvimentista, a imposição pura e simples de um valor social em sobreposição à livre-iniciativa e outros valores liberais clássicos como a liberdade religiosa. Por outro lado, a reserva absoluta de normas jurídicas de teor liberal, clausuradas hermeticamente em dado espaço privado, não socorre ao nosso modelo atual de ordem econômica e das tendências jurídicas despertadas a partir desta conformação constitucional (TAVARES, 2011, 62-65).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando o confeiteiro Jack Phillips inaugura seu comércio, a seleção de um público consumidor geral, não permite futuras escolhas discriminatórias, em especial quando tipificadas como proibidas nos respectivos códigos do consumidor ou de acomodações em espaços privados destinados ao público. Diferente seria se o estabelecimento não ostentasse portas abertas ao passeio público, dedicando-se somente, em expediente interno, ao atendimento de comunidades religiosas pela confecção de peças unicamente sacramentais. Eis o primeiro standard que nossa análise permite consignar como perfeitamente aplicável à lógica constitucional brasileira.

Em segundo lugar, parecer-nos-ia certamente equivocada qualquer postura que, em território brasileiro, desconsiderasse diligenciar os detalhes do objeto comercial solicitado pelo consumidor, a fim de avaliar-lhe a expressividade. Esta imersão seria tributária de uma necessária ponderação à luz de direitos fundamentais que se encontram alinhados horizontalmente entre os atores privados. Eis, portanto, um segundo standard: nos EUA e tampouco no Brasil poder-se-ia aplicar corretamente o direito ao caso concreto, sem avaliar o objeto tal como foi requerido pelos consumidores e suas significações para eles, para o público geral e para os fornecedores de serviço.

Por fim, como os princípios não se excluem mutuamente, mas se obtemperam, não podemos deixar de reconhecer, em que pese toda a linha de argumentos expendidos, que a liberdade religiosa do comerciante em casos como o analisado, continuaria implicada. Seja como for, mesmo para quem prefira copiosamente afirmar a gravidade da diminuição desta liberdade, remanescem vias alternativas que podem favorecer uma visão intermediária e que pode ser tida como mais razoável. Aqui passamos a revelar um terceiro standard.

Começamos por rememorar o próprio alerta da Corte de Apelações do Colorado que reconhece não haver impacto à Primeira Emenda porque os autos noticiaram uma negativa imediata de Jack Phillips, a ponto de não permitir debates acerca do design e detalhamentos do confeito (COLORADO COURT OF APPEALS, 2015, p. 40). É defensável imaginar, na linha de pensamento exposta, que se o bolo requerido pelo casal (nos moldes daqueles que foram solicitados pelo Amicus Curiae William Jack) simbolizasse mais do que simplesmente uma cerimônia de casamento, a convicção religiosa de Jack Phillips, ou de qualquer confeiteiro brasileiro nas mesmas circunstâncias, poderia ser implicada severamente demais. Nestas circunstâncias, não se poderia obrigar o fornecedor a lançar símbolos, frases e outras mensagens de apoio direto a causa dos casais de mesmo sexo.

Em um contexto transnacional, nos parece ser esta uma lição (extraída da Corte de Apelação do Colorado e dos votos dissidentes das Justices Ruth Bader Ginsburg e Sonia Sotomayor) igualmente válida para o contexto brasileiro.

A garantia da plena e direta eficácia dos direitos fundamentais na relação comercial travada na confeitaria revela uma opção pela salvaguarda dos princípios do Estado Brasileiro, idealizado de modo a temperar valores liberais e sociais. Entretanto, se o bolo requerido pelo casal simbolizasse mais do que simplesmente uma cerimônia de casamento, a convicção religiosa de qualquer fornecedor de serviços nas mesmas circunstâncias, poderia ser implicada muito severamente, violando nos Estados Unidos o teor da primeira emenda à Constituição e no Brasil o teor do artigo 5º, inciso VI da Constituição Federal.

REFERÊNCIAS

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BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). JUS.COM.BR. Data: 01 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7547/neoconstitucionalismo-e-constitucionalizacao-do-direito. Acesso em: 06 jul. 2022.

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[1]     Mestre e Doutorando em Direito pela UNIMAR (Universidade de Marília). Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, Jurídicas, Títulos e Documentos de Bandeirantes (PR)

[2]     Doutor em Direito pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilha (Espanha). Professor da Graduação, do Mestrado e do Doutorado da UNIMAR (Universidade de Marília). Procurador da República

[3]     Mestre e Doutora em Educação pela UNESP/Marília (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho). Professora da UNIMAR (Universidade de Marília).

[4] Diferente da legislação brasileira organizada segundo critério cronológico contínuo, a americana é indexada segundo uma lógica orgânica, catalogada segundo tenha afinidade temática com as atribuições dos órgãos destinados à sua execução. No presente caso temos os dispositivos 24-34-601(2), 24-34-301(5), 24-34-301(7), iniciados pelo número 24 que equivale a grande categoria: “Governo-Estado”, título 24 (Title 24. Government -State). Em seguida o número 34, equivale aos Departamentos de Agências Reguladoras, artigo 34 (Article 34. Department Of Regulatory Agencies). Na sequência, os numerais 601 e 301 (5) e 301 (7) referem-se: o 601 (componente da parte 06 – part 06) a definição do que sejam espaços e acomodações públicas (place of public accommodation). O 301 (5) e 301 (7) definem competências da Comissão de Direitos Civis do Colorado (Colorado Civil Rights Comission), demonstrando a pertinência do órgão apreciar e sancionar medidas em desfavor da confeitaria.

[5] It is a discriminatory practice and unlawful for a person, directly or indirectly, to refuse, withhold from, or deny to an individual or a group, because of disability, race, creed, color, sex, sexual orientation, marital status, national origin, or ancestry, the full and equal enjoyment of the goods, services, facilities, privileges, advantages, or accommodations of a place of public accommodation.

[6] Here, the refusal to provide a wedding cake to Complainants directly harms Complainants’right to befree of discrimination in the marketplace. It is the state’s prerogative to minimize that harm by determining where Respondents’ rights end and Complainants’ rights begin.

[7] As discussed above, Respondents have not demonstrated that § 24-34-601 (2) violates their rights of free speech; and, there is no evidence that the law takes or impairs any of Respondents’ property or harms Respondents’ business in any way. On the contrary, to the extent that the law prohibits Respondents from discriminating on the basis of sexual orientation, compliance with the law would likely increase their business by not alienating the gay community: Como discutido acima, os Reclamados não demonstraram que o § 24-34-601 (2) viola seus direitos de liberdade de expressão; e, não há evidências de que a lei assuma ou prejudique qualquer propriedade dos Reclamados ou prejudique de alguma forma os negócios dos Reclamados. Pelo contrário, na medida em que a lei proíbe os Reclamados de discriminar com base em orientação sexual, o cumprimento da lei provavelmente aumentaria seus negócios ao não alienar a comunidade gay.

[8] We recognize that a wedding cake, in some circumstances, may convey a particularized message celebrating same-sex marriage and, in such cases, First Amendment speech protections may be implicated.

[9] The case presents difficult questions as to the proper reconciliation of at least two principles. The first is the authority of a State and its governmental entities to protect the rights and dignity of gay persons who are, or wish to be, married but who face discrimination when they seek goods or services. The second is the right of all persons to exercise fundamental freedoms under the First Amendment, as applied to the States through the Fourteenth Amendment.

[10] But we know this with certainty: when the government fails to act neutrally toward the free exercise of religion, it tends to run into trouble. […] Today’s decision respects these principles. As the Court explains, the Colorado Civil Rights Commission failed to act neutrally toward Jack Phillips’s religious faith. Maybe most notably, the Commission allowed three other bakers to refuse a customer’s request that would have required them to violate their secular commitments.

[11]If “cakes” were the relevant level of generality, the Commission would have to order the bakers to make Mr. Jack’s requested cakes just as it ordered Mr. Phillips to make the requested cake in his case. Neither the Commission nor this Court may apply a more specific level of generality in Mr. Jack’s case (a cake that conveys a message regarding same-sex marriage) while applying a higher level of generality in Mr. Phillips’s case (a cake that conveys no message regarding same-sex marriage). That means the government must apply the same level of generality across cases—and that did not happen here: Se ‘bolos’ fosse o nível relevante de generalidade, a Comissão teria que ordenar aos padeiros que fizessem os bolos solicitados pelo Sr. Jack, assim como ordenou ao Sr. Phillips que fizesse o bolo pedido no seu caso. […] Nem a Comissão nem este Tribunal podem aplicar um nível mais específico de generalidade no caso do Sr. Jack (um bolo que transmite uma mensagem sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo) enquanto aplica um nível mais alto de generalidade no caso do Sr. Phillips (um bolo que não transmite nenhuma mensagem sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo). […] Isso significa que o governo deve aplicar o mesmo nível de generalidade entre os casos – e isso não aconteceu aqui.

[12] There is another problem with sliding up the generality scale: it risks denying constitutional protection to religious beliefs that draw distinctions more specific than the government’s preferred level of description.

[13] It is no more appropriate for the United States Supreme Court to tell Mr. Phillips that a wedding cake is just like any other—without regard to the religious significance his faith may attach to it – than it would be for the Court to suggest that for all persons sacramental bread is just bread or a kippah is just a cap.

[14] If an average person walked into a room and saw a white, multi­tiered cake, he would immediately know that he had stumbled upon a wedding. The cake is “so standardised and inevitable a part of getting married that few ever think to question it.” […] Almost no wedding, no matter how spartan, is missing the cake. […] Although the cake is eventually eaten, that is not its primary purpose.

[15] Phillips takes exceptional care with each cake that he creates sketching the design out on paper, choosing the color scheme, creating the frosting and decorations, baking and sculpting the cake, decorating it, and delivering it to the wedding. […] Phillips also sees the inherent symbolism in wedding cakes. To him, a wedding cake inherently communicates that ‘a wedding has occurred, a marriage has begun, and the couple should be celebrated.’

[16] Change Craig and Mullins’ sexual orientation (or sex), and Phillips would have provided the cake. Change Jack’s religion, and the bakers would have been no more willing to comply with his request. The bakers’ objections to Jack’s cakes had nothing to do with “religious opposition to same-sex weddings.” Ante, at 6 (GORSUCH, J., concurring). Instead, the bakers simply refused to make cakes bearing statements demeaning to people protected by CADA. With respect to Jack’s second cake, in particular, where he requested an image of two groomsmen covered by a red “X” and the lines “God loves sinners” and “While we were yet sinners Christ died for us,” the bakers gave not the slightest indication that religious words, rather than the demeaning image, prompted the objection. See supra, at 3. Phillips did, therefore, discriminate because of sexual orientation; the other bakers did not discriminate because of religious belief; and the Commission properly found discrimination in one case but not the other.

[17] But how can a law that fails to regulate owners constitute an unconstitutional deprivation of equal protection of law? Where is the ‘state action’? The state requires nothing; rather, it empowers owners to control their own property and it liberates them from regulation. Any discriminatory decisions are made by the owners, not the state.

[18] Disponível em: <http://masterpiececakes.com>. Acesso em 15 fev 2019.

[19] Sarmento, por exemplo, revela a posição polêmica de Jürgen Schwabe segundo a qual toda a relação privada inexoravelmente desenvolve-se, implícita ou explicitamente, a partir de uma autorização estatal sendo, portanto, desnecessária a construção de uma eficácia horizontal (SARMENTO, 2010, p. 245). Não haveria relação particular desprovida de feições publicísticas. Por meio deste enunciado, Schwabe, ainda que de modo peculiar, discorre sobre a ideia de State Action, embora o faça de modo diverso ao enunciado estadunidense, justificando, a contrário senso, que a permanente presença do Estado na vida privada, acaba por justificar – e não negar – aos atores privados deveres de observância aos direitos fundamentais no universo particular (SARMENTO, 2010, p. 246). Deste modo, todo o indivíduo, na órbita de suas relações com outros particulares, deve obedecer aos direitos fundamentais, porque sua própria autonomia advém de uma permissão governamental.

[20] Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances (US SENATE, 2017): O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos.

[21] Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988).

[22] É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: II – recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes; IX – recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais (CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, 1990) (grifos nossos).