CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1967 E A INFLUÊNCIA DO DIREITO ESTADUNIDENSE
10 de dezembro de 2022BRAZILIAN CONSTITUTION OF 1967 AND THE INFLUENCE OF US LAW
Artigo submetido em 6 de dezembro de 2022
Artigo aprovado em 7 de dezembro de 2022
Artigo publicado em 10 de dezembro de 2022
Cognitio Juris Ano XII – Número 44 – Dezembro de 2022 ISSN 2236-3009 |
Autor: Werna Karenina Marques de Sousa[1] |
RESUMO: O artigo apresenta uma análise dos elementos que definiram a influência estadunidense durante a elaboração da Constituição Brasileira de 1967. Para tanto, após contextualização histórico, social e política do período que antecedeu o processo de elaboração desta carta constitucional, o artigo descreve como o poder constituinte dispôs os conteúdos constitucionais a fim de legalizar as ações do poder executivo. Nesse esboço são levantadas problematizações e qualificações às técnicas utilizadas na elaboração da Constituição de 1967 como instrumento jurídico que inaugurou a segunda fase da ditadura civil-militar. O artigo apresenta-se como uma análise histórico-jurídica sob o ponto de vista do constitucionalismo brasileiro em paralelo ao constitucionalismo norte-americano.
Palavras-chave: constituição; repressão; legalidade; constitucionalismo; história do direito.
ABSTRACT: The article presents an analysis of the elements that defined the American influence during the elaboration of the 1967 Brazilian Constitution. For this purpose, after historical, social and political contextualization of the period that preceded the process of elaboration of this constitutional charter, the article describes how the Constituent Power arranged the constitutional contents in order to legalize the actions of the Executive Power. In this outline, problems are raised and qualifications are made to the techniques used in the elaboration of the 1967 Constitution as a legal instrument that inaugurated the second phase of the civil-military dictatorship. The article is presented as a historical-legal analysis from the point of view of Brazilian constitutionalism in parallel to North American constitutionalism.
Keywords: constitution; repression; legality; constitutionalism; history of law.
INTRODUÇÃO
De fato, entre os anos 1950 e 1980, regimes ditatoriais de diferentes tamanhos foram estabelecidos na América do Sul. Os golpes foram realizados pelos exércitos e, em alguns casos, os civis participaram do exercício ilegítimo do poder político. Os países afetados foram Paraguai entre 1954 e 1989, Brasil de 1964 a 1985, Chile de 1973 a 1990, Argentina de 1976 a 1983, Uruguai de 1973 a 1985, Peru de 1968 a 1980, Equador de 1972 a 1976 e Bolívia de 1964 a 1982.
Durante este tempo, o mundo foi dividido, após uma polarização resultante da Guerra Fria. Neste contexto, na América, alguns fatos têm ameaçado a hegemonia ideológica dos Estados Unidos, como a Revolução Cubana de Fidel Castro e Che Guevara. Estes fatos históricos desempenharam um papel muito importante nos acontecimentos que se seguiram.
Todas essas ditaduras mencionadas ocorreram em sociedades parcialmente industrializadas que formaram o grupo econômico mais influente da América Latina. Estes países utilizaram as suas capacidades técnicas estatais, tais como os mecanismos legais, para controlar a sociedade.[2]
Após o suicídio de Vargas em 1954, o vice-presidente Café Filho sucedeu-o e terminou o seu mandato. Em 1955, data das eleições presidenciais, os eleitores votaram no candidato de uma coalizão trabalhista e social-democrata, Juscelino Kubitschek. Essa coalizão é a dos dois partidos, um urbano e progressista, outro rural e conservador, que foram criados pelo ex-ditador em 1945. A sombra dos desaparecidos ainda paira sobre a vida política brasileira.
O novo presidente se beneficiou deste jogo sutil que, para Vargas, consistiu, por um lado, em reunir todos os notáveis do Estado Novo, restaurar a máquina eleitoral do coronelismo e finalmente transformar, ao contrário do que havia sido conseguido em 1937, os funcionários públicos em líderes partidários e, por outro lado, em assegurar o futuro criando um partido popular progressista.
A partir de 1960, porém, a situação tornou-se mais complicada. Naquele ano, na data normal das eleições, Jânio Quadros, candidato da União Democrática Nacional (UDN), que sucedeu Juscelino Kubitschek. Sob a justificativa de simpatizar com os revolucionários cubanos, seus adversários o obrigaram a renunciar em 1961, fazendo do vice-presidente João Goulart o chefe de Estado.
No entanto, as convicções políticas do vice-presidente preocuparam os membros do Congresso e adoptaram imediatamente, em 2 de Setembro de 1961, uma reforma constitucional para que o Presidente fosse eleito pelo Congresso e, sobretudo, para prever um governo investido pelo Parlamento e responsável perante ele: Esta solução de compromisso permite manter os vice-presidentes no cargo e representa uma reforma ad hoc que não corresponde de forma alguma às tradições políticas do Brasil.
De fato, após uma paralisia quase total do governo e uma instabilidade política permanente, o regime presidencial foi restaurado por referendo em Janeiro de 1963. Os acontecimentos de 1961, porém, já anunciavam os de 1964. O contexto político tenso permitiu que os militares tomassem o poder, segundo Maud Chirio (2016, p.246):
Vemos, por exemplo, que no início dos anos 60, a instituição militar não foi atacada de frente por Goulart, apesar de ser particularmente hostil a ele. Generais e funcionários de escolas militares foram convertidos para a importância da guerra contra a “subversão interna”, ou seja, essencialmente o comunismo. A propaganda interna destaca o risco de contaminação da própria tropa, pois as fileiras temem a politização dos oficiais subalternos. O contexto político tenso permitiu que a “revolução” militar, segundo o termo usado na época, ocorresse na maior calma em 1964.[3]
Em 13 de março de 1964, o presidente Goulart fez um discurso durante uma grande manifestação sindical anunciando uma série de reformas, após um decreto recentemente assinado expropriando terras não cultivadas e prevendo sua redistribuição. Em 31 de Março, o exército tomou o poder, indicando claramente a sua oposição a essa orientação política. Segue-se uma série de reformas institucionais que se sucedem rapidamente.
DESENVOLVIMENTO
Uma das consequências da consagração de direitos e liberdades na Constituição é, sem dúvida, que nessa área há o princípio da rigidez constitucional, mas há um problema, no entanto, em sistemas constitucionais que, como o brasileiro, permitem três procedimentos de modificação: reforma, emenda e ato constitucional. A Constituição de 1946 fez distinção entre esses procedimentos, mas não especificou quando um poderia usar o outro.
No contexto legal, a Constituição de 1946, em vigor na época, determinou que a eleição deveria ocorrer dentro de trinta dias se a presidência e a vice-presidência estivessem vagas e foi o que aconteceu. Enquanto alguns políticos civis estavam discutindo como e quais escolher para substituir o presidente derrubado, os militares estavam pressionando a legislatura para remover partes da Constituição de 1946 que eles consideravam “inaceitáveis”.
Seis dias após o golpe, os ministros militares obtiveram uma legislação que lhes deu poderes para purgar o serviço público e revogar os mandatos das assembleias legislativas federais e comunitárias. Em 9 de abril de 1964, o instrumento jurídico que permitiu o golpe de Estado foi o Ato Institucional. Este primeiro Ato Institucional não tinha um número porque, juridicamente, deveria ser único. Alguns autores consideram o Ato Institucional No. 1 o mais importante porque a ditadura começou com ele.
Um capítulo pode ser encontrado no texto do AI que estabelece “poderes constituintes” para aqueles que se autodenominam “revolucionários”. Os Atos Institucionais estariam, a partir daquele momento, acima do poder legislativo determinado pela Constituição. Assim, a AI – foi durante as duas décadas da AI-1, a força militar.[4]
No preâmbulo do ato institucional no2 o Ditador-presidente Castello Branco declarou que a Revolução de 31 de março não foi, “mas é e continuará”, sendo seu Poder Constituinte, não se exaurindo, portanto, com a autolimitação contida no ato institucional no 1. Como resultado, os militares tomaram o poder de legislar e afirmaram categoricamente que a legitimidade para legislar não vinha mais do Congresso, institucionalizada jurídica e constitucionalmente, mas mantiveram a Constituição de 1946, para não parecerem radicais.
As salvaguardas constitucionais foram suspensas, tal como demonstrado no “Artigo 7º. As garantias constitucionais ou legais de permanência e estabilidade são suspensas por 6 (seis) meses.”[5] Os artigos 8º e 10º conferiram ao poder executivo, o General Castelo Branco, o poder de revogar mandatos e abrir inquéritos contra opositores políticos.
Após a publicação do Ato Institucional no 2 em 27 de outubro de 1965, o grupo conhecido como “linha dura”, jovens oficiais do exército que defendiam o que chamavam de “pureza dos ideais revolucionários” começaram a ganhar força. Por causa de suas convicções, eles estavam prontos para eliminar todos os vestígios do regime caído, e toda a oposição que deveria ser inimiga do Brasil.
Como aponta Flávia Castro (2007)[6], o AI no 2 foi uma das ações políticas com maior impacto nas Constituições brasileiras, especialmente no que diz respeito a emendas ao poder judiciário. Com efeito, a interferência dos militares na formação desse poder era necessária, pois era composto por juízes da sociedade civil tendendo a manter o Estado de Direito, o que não correspondia aos interesses dos detentores do poder político.
Em 1965, os militares detinham o controle de quase todo o Judiciário brasileiro. Em resposta às suas reivindicações totalitárias, a AI no2 concedeu à Corte Militar jurisdição para julgar crimes “contra a segurança nacional”, ou seja, contra a segurança dos membros do governo. Qualquer ação contra o regime pode agora ser julgada como crime pelo Tribunal Militar. Finalmente, a corte comum não tinha mais jurisdição para atos cometidos “em nome da revolução”.
O Ato Institucional nº 1 foi adotado em 9 de abril de 1964, que, embora mantendo a Constituição de 1946 e as dos Estados, aboliu as garantias constitucionais por um período de seis meses. Este ato esteve na origem de uma vasta limpeza dos círculos políticos, que afetou sobretudo Kubitschek e Goulart. Além disso, 40 deputados perderam seus mandatos e, em cinco Estados, os governadores civis foram substituídos por militares.
Em 9 de Julho de 1965, a Lei da Inelegibilidade proibiu os antigos ministros de Goulart e todos os funcionários públicos que foram privados dos seus direitos civis até 1964 de se apresentarem às eleições por um período de um ano. Esta lei também previa que os partidos com menos de 5 deputados no Congresso Federal e menos de 5% dos votos sejam dissolvidos.
Em 15 de Julho de 1965, foi adotada uma lei muito importante sobre os partidos políticos, que reforçou os poderes de tutela da justiça eleitoral, tal como previsto no Código Eleitoral de 25 de Julho de 1950, através da criação de um fundo especial de assistência financeira aos partidos, financiado por fundos eleitorais e créditos especiais, enquanto os partidos não poderiam receber ajuda de outros organismos públicos ou empresas privadas. Este fundo é distribuído pelo Tribunal Eleitoral.
As disposições mais importantes desta lei destinam-se a eliminar os pequenos partidos. Para compreender todo o alcance desta lei, é importante ter em conta o fato de que, nessa altura, restava muito pouco do Partido Social-Democrata e da União Nacional Democrática, que tinham uma enorme abrangência em mais de 7 Estados. O Partido Trabalhista Brasileiro era essencialmente urbano, sendo seu poder explicado principalmente pela densidade populacional de suas zonas de poder, o Partido Comunista foi proibido em 1947. Quanto às outras partes, tinham uma abrangência puramente local.
O antigo sistema de votação é atualizado. É a maioria para eleições para cargos executivos e para o Senado, é proporcional para os membros da Câmara dos Deputados, Assembleias Estaduais e Conselhos Municipais. Mas, contrariamente ao que estava previsto no código de 1950, as alianças entre partidos já não são possíveis, os candidatos a presidente e a vice-presidente estão na mesma lista e, por último, a elegibilidade dos militares está sujeita a determinadas condições. As pessoas privadas dos seus direitos políticos não podem, evidentemente, participar nas atividades dos partidos políticos.
Esta lei de 15 de Julho de 1965 foi complementada 4 dias mais tarde pela chamada lei de lealdade partidária, que proibia os membros de um partido de votar no candidato de outro partido. O General Castello Branco foi nomeado Presidente do Congresso em 11 de Abril de 1965 e comprometeu-se a entregar os seus poderes dentro dos prazos previstos no Ato Institucional n.º 1. Mas em 17 de julho, três meses depois, a eleição presidencial que deveria ter sido realizada em outubro de 1965 foi adiada para um ano.
O ditador-presidente parece ter permanecido, pelo menos no início, ansioso por manter a sua ação no quadro da legalidade. Foi sob seu governo que o ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, foi libertado e o parlamento funcionou, apesar de algumas expulsões. Também requereu a realização de eleições para governador em 11 estados onde elas foram realizadas em circunstâncias difíceis.
Um movimento de resistência inspirado em Brizola, cunhado de Goulart, foi lançado no Rio Grande do Sul. Castello Branco evita as aplicações mais perigosas ao aplicar a lei da inelegibilidade. O Partido Trabalhista (Goulart) esteve ausente da votação, apoiando apenas os candidatos mais moderados do PSD (Kubitschek), que apresentaram candidatos.
Costa e Silva, ministro da Guerra, evitou por pouco o confronto, até que uma série de projetos de lei considerados insuficientes pela linha dura de alguns líderes e inaceitáveis pelos partidos políticos (incluindo a eleição do presidente pelo Congresso e a abolição dos privilégios especiais de jurisdição dos cidadãos que tinham um mandato executivo) levou a um impasse. Poucas horas antes da votação, o ditador-presidente Castello Branco e seu governo assinaram o Ato Institucional nº 2.
O Ato Institucional n.º 2, de 27 de Outubro de 1965, contém dois conjuntos de disposições que, em primeiro lugar, alteram definitivamente determinadas disposições constitucionais. O próprio processo de reforma constitucional é modificado a favor do ditador-presidente que pode tomar a iniciativa. Um procedimento acelerado para a aprovação de leis e criação de um procedimento que deixa apenas 5 dias para a Câmara discutir projetos de lei do governo, na falta do qual a lei é tomada como aprovada.
O número de juízes do Supremo Tribunal, nomeados pelo Ditador-Presidente, aumenta de 11 para 16. Os tribunais militares estão se tornando competentes para julgar civis acusados de crimes contra a segurança do Estado e, finalmente, o Presidente da República é agora eleito pelo Congresso, um princípio que é completamente contrário a toda a tradição constitucional brasileira.
O Ato Institucional no 2 contém igualmente disposições que só são válidas para o período excepcional de validade do ato, ou seja, até 15 de Março de 1967. Em especial, retoma e reforça certas medidas do Ato Institucional n. 1 que já não estava em vigor. As pessoas privadas dos seus direitos civis estão sujeitas a um novo regime. Os antigos presidentes da República já não são julgados por um tribunal especial. A liberdade de expressão é extremamente regulamentada.
Além disso, os partidos políticos são dissolvidos e a formação de novos partidos foi sujeita à lei de 15 de Julho de 1965. Por último, este ato prevê que a eleição do novo presidente deve ter lugar antes de 3 de Outubro de 1966 e que o Ditador-presidente Castello Branco não pode ser reeleito.
Dois partidos políticos foram efetivamente formados de acordo com este ato complementar de 20 de novembro: a ARENA (Aliança de Renovação Nacional), composta pela antiga UDN, o PSD, alguns membros do PTB, que reunia 256 deputados e 42 senadores, e o MODEBRA (Movimento Democrático Brasileiro), herdeiro do antigo PTB.[7]
Inicialmente, os poderes excepcionais foram usados apenas como um impedimento: não houve cassação de mandatos, não houve intervenção federal. Castello Branco apenas dissolveu uma organização de extrema direita e um ministro, o Ministro da Educação Nacional, foi demitido por ser demasiado reacionário, Darcy Ribeiro.
No entanto, a situação não melhorava. Castello Branco iniciou e depois multiplicou a cassação de mandatos e teve algumas dificuldades em impor na linha dura do governo a investidura dos governadores eleitos em 3 de outubro e em janeiro, para surpresa de todos, Costa e Silva anunciou sua candidatura à presidência. Um mês mais tarde, em 5 de fevereiro de 1966, o Ato Institucional no. 3 estabeleceu a data para as eleições presidenciais e legislativas.
Este Ato Institucional é rapidamente complementado por um ato complementar (de 20 de novembro) que fixa as regras de constituição dos partidos políticos de forma mais rigorosa do que a lei de 15 de Julho de 1965. O objetivo é preparar as eleições de 1966. As organizações políticas têm 45 dias (um período que foi prorrogado até 25 de março de 1966 pelo Ato de 3 de Janeiro de 1966) para criar novos partidos e submeterem seus candidatos a cursos de formação. A regra essencial é que estes cursos de formação devem incluir um mínimo de 120 deputados e 20 senadores. Como há um total de 409 deputados e 66 senadores, a regra tem o efeito de limitar o número de partidos políticos a dois.
Em 5 de fevereiro de 1966, o Ato Institucional nº 3 foi publicado, estabelecendo a data das eleições presidenciais e legislativas para que o Congresso pudesse escolher o Presidente. Reduz igualmente de seis para três meses o período de tempo entre a data da demissão de um candidato a um cargo governamental e a data destas eleições. Estabelece igualmente a data para a eleição dos governadores e altera o sistema de votação, substituindo o sufrágio direto pelo sufrágio indireto e, mais especificamente, a eleição dos governadores pelos órgãos legislativos dos Estados.
A preparação destas eleições múltiplas aumenta consideravelmente o clima político. É a ela, sem dúvida, que deve ser atribuída uma série de medidas excepcionais, a partir de junho, incluindo a demissão do Governador do Estado de São Paulo, Adhémar de Barros, que se tornou, após ter sido partidário do golpe de Estado de 1964, um forte crítico do novo regime, ou a cassação de mandatos e a privação dos direitos políticos de cerca de cinquenta representantes das Assembleias Legislativas Estaduais.
Em 23 de Julho de 1966, a oposição solicitou uma reunião do Congresso em sessão extraordinária, sem sucesso, e, protestando contra as medidas impostas aos seus representantes nas Assembleias de Estado, ameaçava se abster nas próximas eleições.
Em 3 de setembro de 1966, na data prevista no Ato Institucional nº 3, seriam eleitos onze governadores, incluindo os dos Estados de Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul e São Paulo, segundo o novo procedimento, ou seja, pelas Assembleias Estaduais. A limpeza política levada a cabo a alguns meses antes não está dissociada do êxito dos candidatos do partido do governo em todos os Estados.
Em 3 de outubro de 1966, o General Costa e Silva foi eleito o segundo Ditador- Presidente, também por sufrágio indireto, ou seja, pelo Congresso, 295 deputados votaram nele, 41 abstiveram-se, 136 foram declarados ausentes. Os abstencionistas justificaram sua posição, não por hostilidade ao candidato, mas por hostilidade ao método de eleição introduzido pelo Ato Institucional No. 2.
Em 13 de outubro, oito parlamentares foram privados de seus direitos políticos e o Congresso se recusou a ratificar a decisão do Poder Executivo. Esta nova a crise, fez com que o Ditador-Presidente Castello Branco suspendesse o Congresso até 29 de novembro de 1966, data do encerramento da sessão parlamentar. Neste clima, são realizadas eleições para deputados e um terço dos senadores. MODEBRA finalmente fez campanha para a votação. Obteve 132 lugares na Câmara dos Deputados, (ARENA obteve 277) e elevou o número total dos seus senadores para 18 (ARENA tinha 48).
Antes do fim dos seus poderes, em conformidade com os atos institucionais, o Ditador-presidente Castelo Branco pretende reunir, num único documento constitucional que deverá encerrar o período de exceção, todas as reformas adotadas desde 1964, como se explica no ato institucional nº 4. Foi iniciada a preparação para que uma nova Constituição fosse lançada ao mesmo tempo que o candidato do governo ganhasse as eleições indiretas, então, um projeto de do que seria a Constituição de 1967 foi encomendada ao seguintes juristas: Levi Carneiro, Temístocles Cavalcanti, Orozimbo Nonato e Seabra Fagundes.
Em 6 de dezembro de 1966, foi publicado o Ato Institucional nº 4, que previa um procedimento acelerado para a reforma constitucional pelo antigo Congresso convocado em sessão extraordinária (sua sessão ordinária, que em princípio terminou em 30 de novembro, foi suspensa) em Brasília, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967.
É formada uma comissão conjunta de 11 senadores e 11 deputados. Seus membros são nomeados pelo Presidente do Congresso sob proposta dos líderes dos grupos parlamentares, observando a regra da proporcionalidade. Por conseguinte, é composto principalmente pela ARENA. Esta comissão tem 72 horas para aprovar ou rejeitar a proposta do governo, após a Câmara deve fazer o mesmo dentro de 4 dias. Só após a aceitação do projeto, por maioria absoluta dos membros do Congresso, é que as alterações podem ser apresentadas por pelo menos um quarto dos membros das duas assembleias para apreciação pelo Comité Misto, que dispõe então de 12 dias para emitir o seu parecer. O Congresso tem então mais 12 dias para decidir por maioria absoluta de cada Câmara.
Após discussões sobre cerca de 700 alterações, a Constituição foi “promulgada”[8] sem qualquer concessão real à oposição em 24 de janeiro de 1967 (entrou em vigor em 15 de março). Um registro de Osny Duarte Pereira (1967, p.345):
Pela madrugada do dia 25 de janeiro de 1967, o Congresso Nacional, aprovava a Carta de 1967. Ressalte-se uma peculiaridade o processo. Nenhuma regra de ética parlamentar, de respeito à opinião pública e de decôro perante a Nação, o Presidente dos trabalhos se preocupou em respeitar, mas, sim, a todas as imposições do Ato Institucional n.o 4, para a Constituição estar pronta no dia 24. Como fosse materialmente impossível, parou o relógio antes da meia-noite e os trabalhos prosseguiram madrugada a fora, dentro de uma obediência que definirá, perante a História, o comportamento desses parlamentares.
Longe de simplesmente incorporar uma série de reformas na Constituição de 1946, o texto de 1967 é completamente novo.
A sua adoção ocorre num momento excepcional em que as antigas disposições constitucionais tinham perdido todo o seu valor. No entanto, não podemos negligenciar a tentativa de normalização que ela representa para a pessoa que a instigou, nem o passo que ela constitui na redução do federalismo, no fortalecimento dos poderes presidenciais e no estreitamento das proteções constitucionais.
A Constituição de 1946, após três atos institucionais renováveis, já não podia ser considerada uma Constituição de fato. Só era usada quando correspondia aos interesses do poder dominante, segundo Bernard e Carraud :
Situações graves de crise que ameaçam a própria existência do Estado e a vida em sociedade representam um dilema difícil para as democracias constitucionais. No entanto, o abuso do poder emergencial, materializado por verdadeiras “ditaduras constitucionais”, apresenta sérios riscos. De fato, a história tem mostrado que, na maioria dos casos, especialmente na América Latina, os estados de emergência não têm sido usados para limitar temporariamente os direitos fundamentais e proteger a democracia e o futuro reconhecimento dos direitos civis, mas sim “têm servido de pretexto para violações sistemáticas dos direitos humanos por regimes inconstitucionais e antidemocráticos.[9]
A nova Constituição foi apresentada em 1966 por uma equipe de constitucionalistas anteriormente mencionados, nomeados pelo Ditador-presidente Castello Branco. Este primeiro projeto foi revisto e tornado mais autoritário pelo então Ministro da Justiça, Carlos Medeiros da Silva.
Em 1967, uma nova constituição foi adotada e uma das alterações foi aumentar o mandato do presidente para seis anos, passando de quatro anos sem eleições diretas. Isto significou a eliminação do maior símbolo da democracia: a participação popular no processo político através da eleição do presidente.
Ainda no preâmbulo, a Constituição de 1967 deixou de ser – dos Estados Unidos do Brasil – para ser simplesmente do Brasil, revelando o intuito de reduzir o caráter federativo da República, transformando-a num Estado Unitário, esvaziando o poder político estadual estabelecido nos vários dispositivos que se seguem, conforme denunciado pelo Deputado Oscar Corrêa, antigo membro da UDN, professor de Minas Gerais, colaborador do golpe de 64 e, posteriormente, tornou-se oposição na câmara dos deputados.[10]
A parte de maior influência do Direito Estadunidense na Constituição de 1967 ficou concentrada na Ordem Orçamentária, tendo em vista que esta deveria se alinhar ao projeto Aliança para Progresso em termos de norma constitucional, o que geraria uma dificuldade maior para reformá-la por ser de classificada quanto à estabilidade como rígida.
O princípio da supremacia da lei, liberdade e autoridade e controle da legalidade de maneira contínua foram inovações trazidas por influência do Direito norte-americano, exemplificado pelo controle e eficiência da administração pública e fiscalização financeira e orçamentária presente no artigo 71 da CF/67:
Art 71 – A fiscalização financeira e orçamentária da União será exercida pelo Congresso Nacional através de controle externo, e dos sistemas de controle interno do Poder Executivo, instituídos por lei.
§ 1º -O controle externo do Congresso Nacional será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas e compreenderá a apreciação das contas do Presidente da República, o desempenho das funções de auditoria financeira e orçamentária, e o julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos.
§ 2º – O Tribunal de Contas dará parecer prévio, em sessenta dias, sobre as contas que o Presidente da República prestar anualmente. Não sendo estas enviadas dentro do prazo, o fato será comunicado ao Congresso Nacional, para os fins de direito, devendo o Tribunal, em qualquer caso, apresentar minucioso relatório do exercício financeiro encerrado.
§ 3º – A auditoria financeira e orçamentária será exercida sobre as contas das unidades administrativas dos três Poderes da União, que, para esse fim, deverão remeter demonstrações contábeis ao Tribunal de Contas, a quem caberá realizar as inspeções que considerar necessárias.
§ 4º – O julgamento da regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis será baseado em levantamentos contábeis, certificados de auditoria e pronunciamentos das autoridades administrativas, sem prejuízo das inspeções referidas no parágrafo anterior.
§ 5º – As normas de fiscalização financeira e orçamentária estabelecidas nesta seção aplicam-se às autarquias. (BRASIL,1967)
Quanto ao primeiro o controle parlamentar externo, praticado por intermédio do Tribunal de Contas abandonou-se o critério de fiscalização formal, com o repúdio ao registro prévio de atos e contratos administrativos, para dar ênfase aos processos de auditoria, tão largamente usados nos países que seguem o modelo anglo-saxão do controlador geral de finanças. A experiência inglesa e norte-americana, do Comptroller General ou do General accounting office, estão certamente no cerne da inovação constitucional.(TÁCITO, 1967, P.27)
Outro exemplo de influência foi a consolidação do sistema de Ombudsman, que se trata, em síntese, de um comissário parlamentar, escolhido pelo Poder Legislativo, com atribuições especiais de acompanhar e fiscalizar a regularidade da administração civil ou militar, apreciando queixas que lhe sejam encaminhadas ou realizando inspeções espontâneas nos serviços públicos. Os seus poderes são limitados, não exercendo competência anulatória, nem disciplinar ou criminal, mas, segundo o depoimento dos autores, a sua advertência ou a iniciativa de processos penais contribui, expressivamente, para a contenção dos abusos do poder administrativo. (TÁCITO, 1967, p.28)
No que tange, especificamente aos direitos e garantias individuais a Constituição de 1967 dispôs tais direitos no capítulo IV, a partir do art. 150, rompendo com a tradição das constituições brasileiras republicanas de trazê-los logo no início da carta. Além disso exigia dos partidos políticos a defesa das garantias dos direitos fundamentais do homem, mesmo tendo sido a constituição que mais violou à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Poucos foram os estudos referentes a utilização de um arcabouço legal que justificassem os padrões de legalidade e repressão durante o regime civil-militar brasileiro de 1964-1985, na grande maioria pressupõe-se que a ditadura se instalou e se manteve na força, desconsiderando a possibilidade de que a própria constituição reforçava o autoritarismo[11]. Quando os governantes de um Estado se preocupam com a legalidade dos processos legislativos, mesmo que manipulados, exige-se que os procedimentos formais sejam estabelecidos dando uma aparência de normalidade e legitimidade.
O regime civil-militar brasileiro de 1964 foi um modelo para um novo tipo de autoritarismo na América Latina, segundo Antony Pereira os líderes dos governos militares do Brasil preocupavam-se com a legalidade do regime, despenderam grandes esforços para enquadrar seus atos num arcabouço legal, existia uma zona não muito clara, onde o governo tentava legalizar a repressão por ele praticada, um verdadeiro malabarismo legislativo, que no Brasil culminou na Constituição de 1967.
Como consequência desse padrão de legalidade e repressão, segundo diversos estudiosos[12], ela colaborou para que a sociedade agisse como se estivesse em um quartel, aplicando de maneira ampla e abrangente aos civis uma disciplina militar comportamental que gerava um sentimento de conformismo e de aceitação. A legalidade do regime não permitiu a reivindicação dos direitos humanos básicos dos presos, garantidos na Constituição de 1967, bem como não conteve os excessos de violência das forças de segurança, além de supervalorizar os argumentos do Estado em detrimento do cidadão.
Por fim o Ato Institucional n.o5 (AI-5), suspendeu o Habeas Corpus para crimes contra a segurança nacional, concedendo uma imensa liberdade de atuação às forças de segurança nacional em relação aos presos da época, rompendo de vez com qualquer tentativa de aparência democrática. O Congresso funcionou durante todo o regime civil-militar, sendo brevemente suspenso por alguns meses em 1968-1969.
É de bom alvitre ressaltar, que é impossível isolar a repressão legal, que regulamentava o regime, das exigências econômicas que representavam a força motriz do processo, a Aliança para o progresso[13]. Sobre o conceito de ditadura constitucional “O ponto central do conceito é que trata de um método de concentração do poder e de limitação dos direitos – que é ditatorial – mas cujo único objetivo é “defender a ordem constitucional e não a destruir.”[14] (BREWER; ROUQUIÉ, 1977, p.23)
Na mesma linha, as percepções derivadas do institucionalismo histórico podem ser aplicadas à legalidade de muitos regimes autoritários, inclusive o do Brasil. Os pontos definidores do institucionalismo histórico referem- se, primeiro, à eleição de um projeto científico que se preocupa em elucidar a construção, manutenção e adaptação das instituições. Em segundo lugar, a aproximação a tais temas se dá pela percepção de que os atores políticos detêm metas e objetivos, o que se mostra como uma finalidade da ação social mais ampla do que sujeitá-la exclusivamente a fins racionalmente definidos e associados à otimização de escolhas entre diferentes opções de políticas públicas, que é a hipótese comportamental da escolha racional (SANDERS, 2008).
Há o risco de que o Estado sucumba ou, mais provavelmente ainda, que os governantes – sem a possibilidade de invocar poderes excepcionais – decidam romper abertamente com a ordem constitucional. Daí a ideia de autorizar em textos constitucionais a existência de “Estados de exceção” que permitam, de forma transitória, uma concentração significativa de poderes a favor do executivo e a limitação de certos direitos, com o objetivo de restabelecer a normalidade e proteger os direitos fundamentais.[15] (BREWER; ROUQUIER, 1977, p.22)
O interesse dos regimes autoritários optarem por um processo legislativo formal, é que frente à lei, esses dirigentes tem duas opções: a primeira delas é optar por um discurso conservador, onde se autoproclamaram defensores da ordem constitucional, onde quaisquer desvio de legalidade é justificado, excepcionalmente, frente a uma ameaça extraordinária; ou uma segunda opção onde há um rompimento completo com a ordem constitucional vigente, proclamando-se uma nova ordem apresentada como melhor opção. Ficou evidenciado que o Brasil se utilizou de ambas as estratégias.
O arcabouço constitucional confere as instituições legitimidade, mesmo se utilizando da manipulação, transferem ao regime uma imagem interna e externa de respeito ao Estado Democrático de Direito, mesmo sendo completamente vazias deste valor.
REFERÊNCIAS
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[1]Werna Karenina Marques de Sousa, Profesora Doutora em Direito com duplo diploma pela Université Grenoble Alpes na França e pela Universitade Federal da Paraíba. Mestra em Direito Público, pela Université Grenoble Alpes com reconhecimento pela Universidade Federal de Minas Gerais.
[2] Association française des constitutionnalistes et alii, La Nouvelle République, Paris, Economica, 1991. – Monclaire S., Barros Filho C., “L’écriture d’une constitution”, in Politix, no 2, 1988. – PINHEIRO DO NASCIMENTO, “Constituante et constitution”, in Problèmes d’Amérique latine, no 90, 1988 in DUHAMEL,O. et MÉNY, Y., Dictionnaire Constitutionnel, PUF, Paris, 1992, p. 91-92.
[3]Maud Chirio, La Politique en uniforme : l’expérience brésilienne, 1960-1980, Presses universitaires de Rennes, 2016, 246 p. *Tradução da própria.
[4] Ato Institucional número 1, Diário Oficial da União, 9 e 11 de abril de 1964.
[5] Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 19 set. 1946, Seção 1, p. 13.059. Republicações: Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 25 set. 1946, Seção1, p. 13.319; Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 15 out. 1946, p. 14.119.
[6] CASTRO F., História do Direito Geral e Brasil, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007.
[7] NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014, 26p.
[8] A Constituição de 1967 foi classificada como promulgada durante a Ditadura civil-militar, entretanto após a redemocratização tal classificação foi revista, em virtude da evidente interferência e controle sob a Assembleia Constituinte, fazendo com que o Poder Constituinte Originário fosse limitado, o que a coloca no rol das Constituições outorgadas.
[9] BERNARD, Marie-Julie et CARRAUD, Michel, Justice et Démocratie en Amérique Latine, CERDAP, Presses Universitaires de Grenoble,2005, p.119.
[10] D.C.N. – Diário do Congresso Nacional de 13.1.1967, pág. 127.
[11] PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo, Paz e Terra, 2010
[12] Citados na obra PEREIRA, O. D., A Constituição do Brasil de 1967, Ed. Civilização Brasileira, 1967.
[13] “A Aliança Para o Progresso resultou de um desafio à Revolução Cubana. O encaminhamento que a rebelião de 26 de julho tomou contra as empresas norte-americanas, alertou o candidato John Kennedy, sobre a importância de alterar a tradicional política, em relação à América Latina.” Opening the Archives: Documenting U.S.-Brazil Relations, 1960s-80s https://repository.library.brown.edu/studio/collections/id_644/.
[14] Les garanties constitutionnelles des droits de l’homme dans les pays de l’Amérique latine (notamment au Venezuela). In: Revue internationale de droit comparé. Vol. 29 N°1, Janvier-mars 1977. p. 23; *Citação traduzida pela própria autora.
[15] Idem. p. 25; *Citação traduzida pela própria autora.