CONFLITOS CLIMÁTICOS E O PARADIGMA INUIT: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E PERSPECTIVAS

CONFLITOS CLIMÁTICOS E O PARADIGMA INUIT: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E PERSPECTIVAS

31 de maio de 2023 Off Por Cognitio Juris

CLIMATE CONFLICTS AND THE INUIT PARADIGM: HISTORICAL EVOLUTION AND PERSPECTIVES

Artigo submetido em 22 de maio de 2023
Artigo aprovado em 27 de maio de 2023
Artigo publicado em 31 de maio de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 46 – Maio de 2023
ISSN 2236-3009

Autor:
Yury Dutra da Silva[1]

RESUMO

O presente artigo tem como fim abordar os aspectos gerais dos conflitos climáticos e suas principais dificuldades e inovações, a partir de uma perspectiva histórica que toma como baliza inicial o paradigmático caso do povo Inuit. A intenção, portanto, é desvelar a medida das limitações jurídicas enfrentadas pelo Sistema Interamericano de proteção dos direitos humanos nos idos de 2007 e de que forma na hodiernidade a ordem internacional poderia responder a questões similares, com os devidos apontamentos das limitações porventura existentes e a indicação de perspectivas e alternativas hermenêuticas correlatas.

Palavras-chave: Direitos Humanos. Clima. Hermenêutica. Povos Originários.

ABSTRACT

The purpose of this article is to address the general aspects of climate conflicts and their main difficulties and innovations, from a historical perspective that takes the paradigmatic case of the Inuit people as its starting point. The intention, therefore, is to reveal the extent of the legal limitations faced by the Inter-American System for the protection of human rights in 2007 and how in modern times the international order could respond to similar questions, with due notes of the limitations that may exist and the indication of perspectives and related hermeneutic alternatives.

Keywords: Constitutional. Human rights. Climate. Hermeneutics. Indigenous Peoples.

1.     INTRODUÇÃO

Existe uma intrínseca relação entre a higidez do meio ambiente e a qualidade de vida das pessoas. Quanto a isso não há grandes discussões. Os diversos ecossistemas interagem a nível planetário de modo a influenciar as mais variadas conformações sociais e modos de vida, inexistindo unicidade acerca dos limites dessas influências e interações, um dos maiores desafios nas modernas análises dos conflitos climáticos, sobretudo para fins de aferição de responsabilidade dos sujeitos de direito internacional.

Essa interação entre humanos e meio ambiente possui inúmeras implicações e é objeto de estudos, quanto aos seus aspectos de simbiótica e múltipla implicação, da Biocultura, em que se assume a pauta produtiva e reprodutiva da culturalidade, sobretudo de povos tradicionais, a partir da necessária harmonização entre um estilo de existência comunitária e as limitações e necessidades do ecossistema em que inseridas (Gavin et al., 2015).

As mudanças climáticas, potencializadas pelo aquecimento global, consenso científico quanto à larga e preponderante influência humana[2], apresentam-se como um enorme mal à vida de todos os seres humanos, contudo, alguns grupamentos sofrem mais profundamente os efeitos deletérios dessas mudanças, em especial as relativas às elevações abruptas de temperatura média. A este estudo, importa particularmente o caso do povo Inuit, que em 2005 teve sua demanda indeferida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por razões formais, a nosso ver, plenamente afastáveis pelo uso de recursos interpretativos que levassem em consideração a importância da proteção dos direitos territoriais e bioculturais na realização da plenitude de vida de comunidades historicamente vinculadas a um dado ecossistema.

Os conflitos climáticos, desde sempre, foram pautados pelo problema da atribuição de responsabilidade imediata pelos danos causados, o que se tentou contornar com alguns expedientes hermenêuticos, a exemplo do princípio da responsabilidade comum mas diferenciada, que leva em cálculo o poder destrutivo das diferentes nações e a capacidade econômica de cada uma delas para o restabelecimento do status quo ante ambiental.

Essa tentativa cooperativa, porém, possui claras limitações, especialmente porque as práticas governamentais, no mais das vezes, apresentam-se de forma errática e contraditória, na medida em que boa parte dos países que conclamam o mundo à proteção do meio ambiente são historicamente alguns de seus maiores degradadores, alguns dos quais (a exemplo dos EUA, principal implicado processual na questão Inuit) sequer se submetendo à jurisdição das cortes internacionais capazes de compeli-los a mudanças de postura ou aplicar-lhes algum tipo de sancionamento dissuasório.

Existem dificuldades outras que escapam ao escopo de análise deste estudo, sobretudo por estarem situadas no campo político e que serão eventualmente apenas objeto de abordagem obiter dictum. A segurança climática é questão de primeira ordem

2.     SOBRE O POVO INUIT

O Povo Inuit, por nós conhecido como Esquimó, representa o conjunto de comunidades que habitam especialmente as regiões da Sibéria (Rússia Oriental), Alasca, Canadá e Groenlândia, bastante adaptadas ao ecossistema típico do Círculo Polar Ártico. Seus modos de vida são baseados essencialmente na ligação espiritual com o território, em práticas ancestrais e na interdependência entre recursos ambientais e reprodução cultural (Collignon, 1996). Sua origem mais provável deriva da incursão dos Thules[3] em direção à Groenlândia por volta do Século X d.C.

A tradição oral é nota marcante na experiência Inuit, de modo que os registros e artefatos culturais são passados de geração em geração, segundo as palavras de seus próprios membros[4], pelos mais velhos a suas crianças sobre seu solo, em pleno contato com a plataforma que permitiu a produção dessas experiências retratadas. A confiança no processo oral de transmissão de ensinamentos, aliás, apresenta-se como um desafio às práticas da modernidade, tão pautadas na suposta maior verossimilhança de registros escritos, cada vez mais fragilizados pela perspicácia de utilizadores de recursos virtuais.

A caça de subsistência, outrossim, é o modo precípuo de aquisição de elementos de troca e de consumo. A segurança alimentar dos Inuits depende essencialmente da existência e proteção dos espécimes da região. Assim, as mudanças climáticas, especialmente a elevação das temperaturas do ártico, põem em risco a manutenção dos animais em questão, em prejuízo a todo o equilíbrio ecológico polar, com claras implicações na órbita da proteção à vida do referido povo.

As limitações da modernidade e o desafio à ideia de superioridade de registros escritos é demonstrada em fatídico episódio ocorrido em 1977, durante expedição internacional que buscava definir a existência de risco de extinção às BowHeads (baleias típicas da região) da Groenlândia. Inicialmente, a tecnologia ocidental indicara a necessidade de suspensão da caça de subsistência da espécie. Esses dados foram totalmente desmentidos pela técnica tradicional, por meio da qual os Inuits da região comprovaram que o número de baleias era elevado (bem superior ao anteriormente previsto) e que suas práticas de caça eram sustentáveis (Freeman et al., 1998).

O esquimós[5] ainda se valem da caça de ursos polares, pássaros locais, almíscares, focas, baleias e peixes. Sua dieta é bastante pautada no consumo de proteínas e gorduras, sem muito enfoque em carboidratos, contudo, não há indicativos de prejuízos nutricionais. Essa dieta, aliás, é uma derivação inexorável das condições ambientais em que inseridos, dado que o clima extremamente frio impede o cultivo de fontes sacarídeas. Nem por isso inexiste uso do solo, de onde são coletadas frutas, raízes vegetais e algas, em geral. Mais recentemente, a influência externa produziu uma variação na alimentação dos Inuits, sendo o Muktuk (pele de baleia) um prato derivado dessa interação (Laugrand e Oosten, 2015).

Para os Inuits, o século XX, sobretudo a partir da década de 1920, foi marcado pelo contato não planejado com populações exógenas. No Canadá, políticas de proteção a esses povos surtiram pouco efeito na efetivação de seus direitos territoriais. O contato mais profundo com populações brancas também aumentou os níveis de contaminação dos esquimós por doenças e comprometeu seu estilo de vida, alicerçado na harmonização com o ambiente ártico, contexto agravado pela descoberta, no período, de ricas reservas minerais na região (Niezen, 2000).

Como produto cultural, a arte desse povo é também um registro de suas experiências ancestrais e retratam, dentre várias coisas, a importância que algumas espécies de animal possuem dentro de sua vivência. Esse respeito aos animais e ao meio em que se situam e  desenvolvem-se possui espelhamento, inclusive, sobre suas vestimentas, produzidas com partes desses seres, homenageados em diversos momentos litúrgicos relativos à espiritualidade dos povos do ártico.

O alimento do povo Iñupiaq, por exemplo, é fundamentalmente advindo da caça. Um “gelo mais gelado” que o normal, faz da costa ocidental do Alasca uma região considerada desértica. Sobre uma terra que permite o crescimento apenas de Tundra, a população milenar dessa área tem na caça de subsistência uma condição inexorável de sobrevivência (autor, data). Essa caça, porém, não se dá de forma indiscriminada e a própria cosmologia do “Povo Verdadeiro”[6] presta as devidas deferências aos espécimes que permitem sua sobrevivência.

Outra circunstância das sociedades Inuits é a dependência e ligação inegável com o aspecto físico de seu território, mais especificamente com o solo. A plataforma sobre águas é há séculos a trilha de sua sociabilidade. O deslocamento para a caça, o encontro comunitário, a escolarização e todas as atividades do dia a dia em terras do extremo norte do globo dependem de um certo nível de homeostase climática. A destruição da plataforma gélida significa também a obstrução dos trilhos da experiência social esquimó.

A economia da maior parte dos Inuits, que formam um agrupamento com mais de um milhão de habitantes, é baseada na troca e seu modo de produção desenvolve-se essencialmente na forma cooperativa e coletivista. Quando uma baleia é caçada na Ponta Arrow, por exemplo, todos os participantes da comunidade envolvem-se no processo, dos caçadores às esposas que ficam na salvaguarda. Ao finalizarem a caça, limitada a 22 baleias por ano (consideradas as perdidas), a totalidade da comunidade participa do carregamento, corte e divisão do produto da empreitada, que também é uma forma de entregar respeito pelos nutrientes providenciados pelo animal abatido[7].

Muito mais poderia ser dito desse povo rico em variações, experiências e tradições, exemplarmente conectados ao seu território,interessados e comprometidos com a proteção das espécies e do meio ambiente em que inseridos, contudo, para os fins deste estudo, importa a caracterização da íntima relação que possuem com as condições estruturais do ambiente ártico, a constatação de que há uma mútua relação entre a qualidade de vida desse povo e a higidez das condições físico-químico-biológicas da região e, consequentemente, de que a ruptura desse equilíbrio afeta à vida digna das pessoas que habitam os confins setentrionais da Terra.

3.     O PETICIONAMENTO DO POVO INUIT: RAZÕES FÁTICO-JURÍDICAS E DESLINDE

Há quem diga, em pleno ano de 2023, que o planeta Terra é plano. Não é de espantar-se o fato de também haver negacionistas do aquecimento global. Contudo, esse fenômeno é consenso no âmbito científico, não cabendo nas linhas deste modesto estudo uma análise minuciosa sobre os aspectos técnicos das inúmeras evidências que corroboram esse evento. A esse respeito, existem largas análises sobre o efeito estufa, relatórios do IPCC e outros tantos levantamentos de dados específicos.

Fato é que o aumento da temperatura é sentido mais abruptamente em determinadas regiões do planeta. O ecossistema ártico, esteticamente coroado por cenários gélidos ou congelados, é uma espécie de marcador climático mundial. As elevações das temperaturas médias globais reverberam em níveis maiores nessa região (autor, data). Visualmente, a repercussão mais imediata é o degelo de várias de suas majestosas calotas.

O comprometimento da vida na região é indelével e o efeito é acentuado num sistema causal contínuo. Nesse sentido, o derretimento da neve e do gelo no Ártico revela superfícies mais escuras, com a consequente maior absorção de energia, potencializando os efeitos de um cenário já desajustado. Soma-se a isso o fato de a camada atmosférica na região ser menor e esse derretimento generalizado aumentar o quantitativo total de água líquida exposta, de modo a ampliar o total de energia emitida pelos oceanos no inverno, dada a capacidade térmica dessa forma. Ainda, as alterações nos padrões de circulação oceânica e atmosférica causadas pelo aquecimento global permitem que mais energia térmica seja transportada para a área (Yndestad, 2006).

Foi diante desse cenário que os Inuits, representados por Sheila Watt-Cloutier (legitimada pela assinatura de 62 membros da comunidade), apresentaram em 2005 petição perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a fim de responsabilizar os Estados Unidos pelos danos ambientais causados, de natureza climática, em função da não adoção dos limites internacionais de emissão de poluentes.

A petição possui algumas linhas gerais estruturantes, perpassando diversos aspectos das discussões correntes à época a respeito dos arcabouços teóricos que confirmavam a existência da elevação da temperatura média geral no mundo. Os Estados Unidos, sabidamente um dos maiores poluidores da atmosfera, dado seu elevado nível de industrialização, bem como sua proximidade e influência política sobre o Ártico despontavam como o principal causador dessas alterações, com responsabilidade qualificada pelo fato de o país negar-se adotar medidas que mitigassem sua influência deletéria sobre as alterações climáticas decorrentes, especialmente, do efeito estufa (Watt-Cloutier, 2005).

Como dito, essas alterações de temperatura repercutem mais gritante e imediatamente sobre alguns ecossistemas como o ártico, representando enorme prejuízo às populações que dependem em nível de subsistência da higidez dos atributos do meio ambiente – no caso, o povo Inuit.

Na petição, algumas linhas fundamentais de gravames são apresentadas, especialmente as referentes à colheita de subsistência, óbices ao transporte, segurança, saúde, educação e direitos culturais.

O esfacelamento das plataformas congeladas, com as consequências preditas, destacadamente os empecilhos de tráfego, comprometimento das caças de subsistência e consequente prejuízo da saúde e segurança alimentar das comunidades implicadas, soma-se a uma cadeia de eventos que prejudicam ou impossibilitam o pleno exercício de direitos essenciais à reprodução cultural e, portanto, à perenização do povo inuit enquanto tal.

Já se sabe há bastante tempo que os EUA, que fazem parte dos países mais industrializados, cuja população é de apenas um quinto da global e produzem bem mais do que a metade da poluição atmosférica no mundo, são os baluartes desse processo de degradação. Sua participação é da ordem de vinte por cento na emissão total de gases do efeito estufa (Esteves et. al., 2005). As implicações de seu comportamento internacional esquizofrênico abrangem um sem número de países e povos, não sendo diferente com os esquimós.

A intenção, nuclearmente da petição era:

  1. Quanto à atuação dos organismos de proteção de direitos humanos:
    1. realização de visitas para investigar e confirmar que todos os sessenta e dois Inuits que assinaram a petição estão sofrendo danos decorrentes das mudanças climáticas;
    1. realização de audiência para investigar as reclamações constantes na petição;
    1. preparar um relatório expondo os fatos e o direito aplicável, declarando que os Estados Unidos é internacionalmente responsável por violação dos direitos afirmados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e em outros instrumentos de Direito Internacional.
  2. Quanto aos Estados Unidos, que:
    1. adotassem medidas  obrigatórias  para  limitar  suas  emissões  de  gases  do  efeito  de estufa  e  cooperassem  com  os  esforços  de  comunidades  e  nações,  para  controlar  as alterações climáticas;
    1. Levassem  em  consideração  os  impactos  causados  pela  emissão  de  gases  do  efeitos estufa  pelo  governo  americano  e  seus  danos  no  modo  de  vida  do  povo  Inuit, aprovando ações governamentais para reduzir este problema;
    1. Estabelecessem e implementassem, em coordenação com a requerente e os afetados, um plano  para  proteger  a  cultura  Inuit  e  seus  recursos,  incluindo,  nomeadamente,  a terra, água, neve, gelo, e as espécies vegetais e animais utilizados ou ocupados por estes,  cujos  direitos  foram  violados,  abrangendo  outros  que    não  relacionados. Mitigar  qualquer  dano  causado  a  esses  recursos  pelos  EUA,  por  causa  da  emissão de gases do efeito estufa;
    1. Estabelecer  e  implementar,  em  coordenação  com  a  requerente  e  as  comunidades afetadas, plano para oferecer a assistência necessária para  que os Inuits possam se adaptar ao impactos das alterações climáticas que não podem ser evitados;
    1. Prover outras medidas que a Comissão considere adequada e justa.

O deslinde do caso foi um tanto quanto anticlimático, uma vez que extinto em 2006sem resolução de mérito, pois os EUA não se submetem à Jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Apesar disso, ainda houve alguma movimentação administrativa posterior, até idos de 2007, sem maiores repercussões processuais.

Apesar desse desfecho, remanesce o legado desse peticionamento paradigmático, sendo um marco acerca do questionamento dos impactos que as alterações nos climas podem ocasionar sobre a efetivação dos Direitos Humanos.

Sobre tal, é possível dizer, numa análise abstrativa, que, acaso fosse levada a cabo, a demanda dos Inuits enfrentaria dois problemas fundamentais, não necessariamente intransponíveis, de ordem: 1.técnica e 2. jurídica. Essas duas problemáticas, em verdade, são imbricadas, de forma a resumir a dificuldade da responsabilização de um sujeito de direito internacional em demandas climáticas.

O fator de ordem técnica relaciona-se aos conhecimentos de engenharia, meteorologia, geografia e demais ciências que estabelecem a ligação entre a degradação dos climas e a atuação de determinado país nesse sentido. Isso porque, muito embora haja a confirmação científica dos efeitos danosos da poluição industrial sobre a homeostase climatológica, ainda são bastante difíceis alguns minudenciamentos essenciais às linhas da responsabilização, exemplificativamente: a. a proporção exata entre a influência da degradação industrial e as mudanças naturais de temperatura[8]; b. o nível de implicação da degradação de cada país sobre as mudanças climáticas, destacadamente as de temperatura.

Quanto ao item “b”, é preciso dizer que algumas medições, a exemplo da geral sobre a poluição referente à produção de gases estufa, não dá conta de estabelecer a ordem precisa de suas implicações, tampouco o resultado específico sobre determinada região e ecossistema. É dizer, ainda que se diga que os EUA emitem 20% (vinte por cento) de todos os gases de efeito estufa do mundo, a degradação atmosférica não se resume a esse tipo de poluição e não há certeza acerca dos níveis efetivos de degradação, uma vez que fatores outros podem potencializar ou arrefecer as implicações de um mesmo nível de contaminação. Além disso, não é certo que os mesmos poluentes terão, na exatas proporção de sua emissão, os mesmos efeitos sobre todos os ecossistemas afetados – tratar-se-ia de uma presunção juridicamente razoável.

Essa presunção, aliás, parece ser um dos mecanismos essenciais para o mínimo de efetividade dos modelos de responsabilização internacional em conflitos climáticos, sustentado hermeneuticamente pelo princípio da responsabilidade comum mas diferenciada.

A extinção sem resolução de mérito pela Comissão, entretanto, mesmo em 2006, poderia ter sido contornada, uma vez que a Comissão possui uma série de atribuições independentes daquelas previstas para a Corte do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos que lhe permitiriam uma atuação mais resolutiva ou ao menos não tão restritiva. O art. 18 do Estatuto da Comissão IDH[9] confere-lhe, dentre outras, a possibilidade de formular recomendações aos Estados para o cumprimento de direitos humanos, preparar estudos ou relatórios e fazer observações in loco, quando haja autorização ou convite do governo respectivo.

Todas essas medidas, muito embora não vinculantes, possuem reconhecido efeito admoestatório, persuasivo e reconhecida implicação nas relações internacionais. A esse respeito, a petição já descrita possuía elementos suficientes que evidenciavam um fumus boni iuris apto a convocar a atuação verificatória. O art. 20, b, do mesmo diploma permite à Comissão requerer informações de Estados membros da OEA ainda que não membros da Convenção, bem como formular-lhe recomendações. Plenamente cabível a atuação no caso, portanto, uma vez que a negativa estadunidense dizia respeito especificamente à submissão à jurisdição da Corte, sem qualquer prejuízo às citadas prerrogativas da CIDH.

4.     OS CONFLITOS CLIMÁTICOS: MODELO(S), IMPASSES E PERSPECTIVAS

As mudanças climáticas como produto direto ou indireto da ação humana avultam na atualidade como fato científico. Não é mais essa a questão da ordem do dia. A medida dessas mudanças e a delimitação causal específica é que surgem agora como os grandes desafios da técnica científica e do Direito.

A Res. 45/53 da Assembleia Geral da ONU assenta a luta contra as alterações climáticas como de interesse comum de toda a humanidade. A consequência imediata do interesse é a responsabilidade, portanto, esta é global, de todos os Estados. A responsabilidade comum, porém, deve ser diferenciada, especialmente porque foram os outros “Estados desenvolvidos” os maiores degradadores históricos do meio ambiente, com a preponderante influência sobre a crise climática planetária.

Esse princípio é peculiar e representa uma preciosa construção à proteção dos direitos humanos ao meio ambiente, rompendo com a tradição da simetria e reciprocidade obrigacional no plano dos Tratados Internacionais. Foi reafirmado em outros diplomas que seguem um modelo distinto de ajuste internacional, a exemplo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, nascedouro do conhecido Protocolo de Kyoto, este não consignado pelos EUA.

Nos termos do Projeto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas Sobre Responsabilidade Internacional dos Estados[10], os atos ilícitos acarretarão a responsabilidade do respectivo ente. O ilícito em questão é caracterizado pela atribuição do mesmo pela ordem jurídica internacional e por constituir violação de uma obrigação internacional do Estado.

Neste momento, o fato de os Estados Unidos da América não terem assumido um compromisso internacional referente à adequação a limites razoáveis de poluição torna difícil, a partir da interpretação direta do Projeto citado, o delineamento da responsabilidade desse país. Diga-se, muito embora a sistemática do Direito Internacional para a definição da responsabilidade de Estados possua contornos próprios, não foge à lógica geral civilista, em que os elementos centrais – conduta, dano e nexo causal – precisam estar caracterizados para a perfectibilização da pretensão reparatória.

Como dito, o nexo causal desponta sendo o primeiro grande desafio, técnico e jurídico, nessa discussão. Acaso superado, pela ótica do instrumento referido, um segundo obstáculo, este sim aparentemente intransponível, vem a ser a caracterização do descumprimento de obrigação internacionalmente assumida. Portanto, o delineamento da responsabilidade dos EUA por danos climáticos e, em perspectiva, pelas efeitos deletérios ao povo Inuit, deve partir de sustentáculo normativo e interpretativo distinto.

Para esse fim, é preciso definir juridicamente que os danos perpetrados contra os ecossistemas planetários e, por conseguinte, aos climas, constitui ofensa inexorável a direitos humanos, dado que sua realização é intrinsecamente dependente da existência dessa plataforma. Afinal, não há que se falar em direitos humanos em um mundo ambientalmente colapsado; em verdade, provavelmente nem em humanidade falar-se-ia, porquanto sua própria existência estaria gravemente comprometida.

Instrumentos como a OC nº 23/17[11] assentaram que existe relação entre o comportamento estatal com implicações ambientais e a proteção dos direitos à vida e à integridade pessoal humana. Num primeiro movimento, a opinião consultiva referenciada pauta-se numa provocação de matiz claramente antropocêntrico, na medida em que o Estado colombiano procurava saber de que forma o Pacto de São José da Costa Rica deveria ser interpretado em face de riscos à integridade de populações humanas implicadas negativamente pela efetivação de obras de infraestrutura de grande porte com efeitos nocivos ao ecossistema em que inseridas.

Esse pano de fundo, porém, deu azo a um dos instrumentos mais celebrados da última década no sistema interamericano de proteção a direitos humanos. Isso porque a Corte teceu comentários para além do objeto restrito inicialmente propalado pela Colômbia, produzindo considerações profundas sobre meio ambiente, cultura e jurisdição. É possível dizer que a Corte produziu, em alguma medida, um marco biocultural, ainda que não integralmente, da atuação do sistema interamericano (Loureiro et. al., 2017).

Direitos das populações tradicionais, especialmente os de natureza cultural atrelados ao equilíbrio ecológico e  aspectos de extraterritorialidade tiveram implicações sobre a interpretação acerca das possibilidades de peticionamento de Estados afetados por atuação ambiental predatória de outros sujeitos de direito internacional[12]. É possível que a sorte da petição dos Inuits, nos dias correntes, fosse completamente diferente, dada a nítida viragem de postura do SIDH.

Decerto que ainda não se pode falar abertamente em um sistema de “direitos da natureza”, dentro de uma perspectiva ecocêntrica, advindo exclusivamente da OC-23, mas a repercussão sobre o regime de responsabilidade internacional por ofensas ambientais é notória (Martins e Ribeiro, 2022).

Bem antes disso, ao menos desde o Train Smelter Case, de 1941, vige na ordem internacional a premissa segundo o qual todo e qualquer Estado deve proteger os demais Estados de danos ocasionados por comportamentos postos a cabo em seu território. As discussões sobre responsabilidade climática já possuíam um aporte técnico e jurisprudencial desde essa época, uma vez que a poluição é ato praticado nas balizas da outrora soberania dos entes estatais, seja sob o aspecto geográfico ou de autogoverno.

O processo evolutivo da posição das cortes internacionais e dos mecanismos de resolução de litígio interestatal acerca da responsabilidade por danos ambientais, no contexto da proteção dos direitos humanos, não é objeto específico deste breve estudo. Porém, é perceptível a evolução valorativa e o refinamento dos argumentos ao longo dos mais de 75 (setenta e cinco) anos entre o Train Smelter Case e a produção da OC-23/2017 da CoIDH. Nem por isso os conflitos climáticos são algo de fleumático na contemporaneidade.

Existe uma nítida resistência por parte dos Estados na assunção do encargo de diminuir factualmente seus níveis de degradação ambiental, incluída a atmosférica. Em uma análise panorâmica, não é arrojado afirmar que nos dias atuais processos judiciais internacionais envolvendo conflitos climáticos são bem mais palatáveis que num passado não tão remoto. Os casos não são numerosos e ainda precisaremos de algum tempo até a definição concreta da efetividade desse modelo.

A despeito disso, sem anular a via judicial, é possível a conjugação de esforços nas tratativas internacionais a fim de perfectibilizar instrumentos modernos de ajuste interestatal, aptos a flexibilizar obrigações, sem aplicação de pechas acusatórias, bem como a incentivar comportamentos positivos em prol da melhoria e alcance do equilíbrio ecológico mundial, a exemplo das convenções-quadro (ou convenções guarda-chuvas), que já têm se mostrado poderoso recurso na estimulação da adoção, sobretudo pelos países mais industrializados, de medidas compensatórias e mitigantes dos danos derivados da poluição ambiental. Os caminhos resolutivos não são rígidos, o que se faz essencial uma vez que as variáveis envolvidas na equação ambiental também não o são.

REFERÊNCIAS

Collignon, Béatrice. Les Inuit, ce qu’ils savent du territoire. Paris: L´Harmattan, 1996, 254 fls.

Esteves, G. R. T. et al. Estimativa dos Efeitos da Poluição Atmosférica sobre a saúde Humana: Algumas Possibilidades Metodológicas e Teóricas para a Cidade de São Paulo. InterfacEHS, v. 1, n. 3, 2007.

Freeman, Milton M.R; Egede, Ingmar; Bogoslovskayas, Lyudmila; Krupnik, Igor I; Caulfield, Richard; Stevenson, Marc G. Inuit, Whaling, And Sustainability Walnut Creek, California: Altamira Press, A Division of Sage Publications, 1998. 208 fls.

Gavin, M.; McCarter, J.; Mead, A.; Berkes, F.; Stepp, JR; Peterson, D.; Tang, R. Definindo abordagens bioculturais para a conservação. Tendências Eco. Evolução 2015 , 30 , 140–145.

Laugrand, F; Oosten, J. Hunters, Predators and Prey: Inuit Perceptions of Animals. New York: Berghahn Books, 2015.

LOUREIRO, Sílvia Maria da Silveira; MORAES, G. G. B. L. ; AGUIR, A. L. M. ; RIBEIRO, C. F. T. . Observações Escritas à Opinião Consultiva Solicitada pelo Estado da Colômbia, em 14 de Março de 2016, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobre o impacto de grandes projetos no meio ambiente marinho, especificamente na Região do Grande Caribe (OC-23). 2017.

Martins, Joana D’arc e Ribeiro, Maria de Fátima. Corte Interamericana De Direitos Humanos E Opinião Consultiva 23/2017: Do Greening Ao Reconhecimento Dos Direitos Autônomos Da Natureza. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis, SC. Jan./Abr. 2022, fls. 151-174.

NIEZEN, R. Recognizing Indigenism: Canadian Unity and the International Movement of Indigenous Peoples. Comparative Studies. In: Society and History, 42:1, p. 119-148, jan, 2000.

Watt-Cloutier, Sheila. Petition To The Inter American Commission On Human Rights Seeking Relief From Violations Resulting From Global Warming Caused By Acts And Omissions Of The United States. December 7, 2005 (Petição Inuit). Yndestad, H., 2006. The influence of the nodal cycle on Arctic climate. ICES Journal of Marine Science 63: 401-420.


[1] Analista jurídico no MPAM. Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela UniBras. Bacharel em Direito pela UEA.

[2] IPCC, “Climate change 2014: Synthesis Report”, Summary for Policy Makers, disponível em:< https://www.ipcc.ch/pdf/assessment-report/ar5/syr/AR5_SYR_FINAL_SPM.pdf>. Acesso em 10 de abril de 2023.

[3] Trata-se do grupamento indígena prevalecente da Região setentrional da América do Norte.

[4] É possível ter contato com várias dessas descrições no corpo da Petição tratada neste estudo. Há relatos literais de como os pais repassam ensinamentos aos filhos oralmente, numa prática de transmissão cultural.

[5] O termo “esquimó” tem origem mais comumente aceita como significando “trançador de raquetes de neve” e não há um consenso quanto ao seu caráter ofensivo, sendo mais comum a sua rejeição em apenas algumas localidades do Canadá, de modo que manteremos o eventual uso da palavra. 

[6] tradução do termo “Inupiaq”

[7] A Ética dos Esquimós, de Luciana Whitaker, disponível em : <https://www.redebrasilatual.com.br/revistas/a-etica-dos-esquimos/ >. Acesso em 30 de março de 2023.

[8] Dentro do microssistema da CQNUMC, essas mudanças são alcunhadas de “variabilidade climática”.

[9] Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/t.Estatuto.CIDH.htm> Acesso em 30 de março de 2023. 

[10] Disponível em:<https://iusgentium.ufsc.br/wp-content/uploads/2015/09/Projeto-da-CDI-sobre-Responsabilidade-Internacional-dos-Estados.pdf>. Acesso em 25 de abril de 2023.

[11] Inteiro teor disponível em: <https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/sci/dados-da-atuacao/corte-idh/OpiniaoConsultiva23versofinal.pdf>. Acesso em 27 de abril de 2023.

[12] Muito embora hoje os Inuits ainda enfrentassem o mesmo empecilho da ausência de submissão dos EUA à jurisdição da CoIDH, decerto que houve um salto de entendimento do SIDH a respeito dos aspectos e contornos do exercício da jurisdição ambiental, agora lida sob a ótica dos direitos humanos.