CADEIA DE CUSTÓDIA E O PACOTE ANTICRIME: UMA ANÁLISE LEGAL, DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL

CADEIA DE CUSTÓDIA E O PACOTE ANTICRIME: UMA ANÁLISE LEGAL, DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL

CHAIN ​​OF CUSTODY AND THE ANTI-CRIME PACKAGE: A LEGAL, DOCTRINAL AND JURISPRUDENTIAL ANALYSIS

Artigo submetido em 31 de março de 2024
Artigo aprovado em 15 de abril de 2024
Artigo publicado em 30 de junho de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 55 – Junho de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Nelcy Renata Silva de Souza[1]
Ruan Patrick Teixeira da Costa[2]

Sumário: Considerações iniciais; 1. O instituto da cadeia de custódia; 1.1. Natureza jurídica; 1.2. As consequências da quebra da cadeia de custódia; 1.3. Aplicação do instituto da cadeia de custódia no judiciário brasileiro; Considerações finais; Referências.

Resumo: O presente trabalho busca fazer uma análise acerca de uma alteração legislativa no ordenamento jurídico brasileiro, mais precisamente o advento da Lei nº 13.964/2019, também chamado de pacote anticrime, o qual trouxe entre outras mudanças, a inclusão do instituto da cadeia de custódia junto ao Código de Processo Penal (CPP), o qual já vinha sendo objeto de discussão no meio jurídico, porém, só foi incluído na legislação brasileira no ano de 2019. A referida alteração normativa foi incluída no Capítulo 2 do Título VII do CPP, o qual trata sobre a produção de provas no âmbito processual penal e suas demais implicações. Durante a pesquisa foram utilizados artigos, textos jurídicos de autores especialistas na seara criminal e decisões judiciais que versam sobre o tema. Nas obras pesquisadas constam vários posicionamentos a respeito dessa mudança no âmbito processual penal e suas implicações em todas as etapas da investigação criminal.            

Palavras-chave: Lei nº 13.964/2019; pacote anticrime; cadeia de custódia; provas; Código de Processo Penal. 

Abstract: The present work seeks to analyze a legislative change in the Brazilian legal system, more precisely the advent of Law No. 13,964/2019, also called the anti-crime package, which brought, among other changes, the inclusion of the chain of custody institute along with to the Code of Criminal Procedure (CPP), which had already been the subject of discussion in the legal environment, however, it was only included in Brazilian legislation in 2019. The aforementioned normative change was included in Chapter 2 of Title VII of the CPP, the which deals with the production of evidence in the criminal procedural sphere and its other implications. During the research, articles, legal texts by authors specialized in the criminal field and judicial decisions that deal with the topic were used. The works researched contain several positions regarding this change in the criminal procedural sphere and its implications for all stages of criminal investigation.

Keywords: Law nº 13,964/2019; anti-crime package; chain of custody; evidences; Code of Criminal Procedure.

Considerações iniciais

A questão probatória é tema importante na seara processual brasileira, haja vista ser por meio do exercício da produção de provas que se tem a reprodução de fatos ocorridos no passado e que servirão de base para o decorrer de uma investigação, e isso precisa seguir os preceitos legais e constitucionais.  

A lei nº 13.964 de 2019, conhecida como pacote anticrime introduziu o instituto da cadeia de custódia, algo que já vinha sendo debatido no mundo jurídico nos últimos anos, sendo que alguns países já utilizam tal conceito em suas legislações, vale ressaltar o famoso caso do jogador de futebol americano OJ Simpson, acusado de matar a esposa, em que foram praticados sucessivos erros durante a fase de investigação, e, que foram determinantes para a absolvição do suspeito posteriormente.         

O tema abordado versará sobre a introdução da cadeia de custódia no ordenamento jurídico por meio da lei nº 13.964 de 2019, o conceito e suas particularidades no âmbito prático.     

O presente trabalho visa demonstrar a importância de incluir a cadeia de custódia na legislação brasileira e de como isso pode auxiliar o trabalho de todos os sujeitos envolvidos nas etapas do processo penal, em especial os peritos, profissionais de extrema importância, cujo trabalho é decisivo para o resultado da marcha processual.

  1. O instituto da cadeia de custódia

Conforme já relatado, a cadeia de custódia foi um tema no ordenamento jurídico brasileiro por meio da lei nº 13.964 de 2019 (pacote anticrime), a qual trouxe, ainda que tardiamente, a disposição de um assunto de extrema importância para todos que militam na seara penal (delegados, peritos, advogados, promotores, juízes), trazendo credibilidade à fase de colheita de provas, garantindo-se a aplicação do devido processo legal.

De acordo com Machado (2017, p. 9), do ponto de vista histórico o tema em destaque ganhou maior relevância na seara jurídica nos anos 1990, mais precisamente nos Estados Unidos, em razão de um famoso ex-jogador de futebol americano chamado O.J. Simpson e que na época trabalhava como ator estava sendo acusado de matar sua ex-esposa e o amigo dela, no entanto, foi absolvido ao final do processo.

Por mais que o conjunto probatório existente demonstrasse o envolvimento do acusado, a defesa conseguiu demonstrar para os julgadores que houve a falta de preservação do local do crime e os procedimentos de coleta de vestígios se mostraram incorretos, evidenciando-se a quebra da cadeia de custódia, não restando alterativa que não fosse a sentença absolutória.  

Para Manosso (2023, p. 15), antes da regulamentação legal (que só ocorreu em 2019), o instituto era regulamentado pela portaria n.° 82, de 16 de julho de 2014, da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) e compreendia duas fases: uma interna e outra externa.

No que diz respeito à fase externa compreende-se: a preservação do local de crime; busca do vestígio; reconhecimento do vestígio; fixação do vestígio; coleta do vestígio; acondicionamento do vestígio; transporte do vestígio; recebimento do vestígio[3].

Por sua vez, a fase interna englobaria: recepção e conferência do vestígio; classificação, guarda e/ou distribuição do vestígio; análise pericial propriamente dita; guarda e devolução do vestígio de prova. guarda de vestígios para contraperícia; registro da cadeia de custódia[4].

O caso famoso citado, assim como os antecedentes da regulamentação legal  demonstram que uma das etapas mais importantes da cadeia de custódia é a preservação de local de crime, algo extremamente difícil, mas vital para uma boa investigação. Sobre o assunto, os primeiros que se deparam com uma cena de crime, profissionais da segurança pública e da saúde, precisam ter cuidado com o assédio de curiosos para que a cena de crime não seja contaminada, e assim, não prejudicar o bom andamento de toda a investigação, o que será visto no decorrer do presente trabalho.

  1. Natureza jurídica

Nos ternos do que dispõe o artigo 158-A do Código de Processo Penal (CPP), cadeia de custódia é: “o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte”.  

Para Scramin (2022, p. 26) o artigo em questão conceitua o tema, bem como apresenta o ponto de início para a preservação do local de crime ou em outros procedimentos policiais, ou periciais, nos quais seja detectada a existência de um vestígio e estabelece a responsabilidade inicial pela preservação dos vestígios.

Tem como principal intuito promover a rastreabilidade, integridade e idoneidade dos vestígios, de forma a garantir a autenticidade e confiabilidade da prova material, trata-se, portanto, da adoção de regramentos que permitam acompanhar a trajetória dos vestígios deixados pela infração penal, em todas as etapas, do início ao fim, sob pena da autoridade pública incorrer em alguma irregularidade[5].

Para Souza e Vasconcellos (2020, p. 32) ela é a fórmula garantidora da fidedignidade dos vestígios de prova coletados e examinados, garantindo autenticidade, rastreabilidade e confiabilidade ao material probatório, e que esse conjunto de procedimentos técnicos deve ser observado por todos os profissionais que tenham sob sua responsabilidade o manejo e a conservação de elementos probatórios, desde a fase de investigação até a instrução processual.

O tema também encontra guarida em outros dispositivos, a saber: Art. 6º, CPP – isolamento de local de crime, Art. 7º, CPP – reconstituição de crimes e o Art. 11º – necessidade de a prova acompanhar todo o inquérito, haja vista a importância de preservar qualquer vestígio coletado durante a investigação de um delito.

Em que pese seja uma inovação na legislação, a doutrina brasileira já se dedica há anos sobre o tema, a exemplo do jurista Prado (2014, p. 80), nos seguintes termos: “a cadeia de custódia representa um dispositivo que busca assegurar a integridade dos elementos probatórios”. Tal posicionamento é de extrema importância para a credibilidade do andamento processual e ao final, uma sentença penal, seja absolutória ou condenatória, mas que o conjunto probatório tenha sido totalmente preservado.

Sobre o tema, Scramin (2022, p. 24) aduz que as disposições legais inseridas no CPP sobre a cadeia de custódia são obrigatórias para todo agente público que mantiver contato com qualquer vestígio a ser utilizado para a produção da prova pericial, em independente da fase da persecução penal.

No mesmo sentido, Badaró (2020, p. 506) versa sobre a cadeia de custódia, muito antes de sua introdução no ordenamento jurídico brasileiro, conforme pode ser observado abaixo:

O procedimento de documentação da cadeia de custódia tem por finalidade assegurar a autenticidade e a integridade da fonte de prova. A autenticidade significa que a fonte de prova é genuína e autêntica quanto à sua origem. A partir de um conjunto de dados individualizadores, garante-se que a coisa objeto de perícia ou simplesmente apresentada em juízo é a mesma que foi colhida, guardada e examinada. Por outro lado, a integridade á a condição da fonte de prova que se apresenta integra ou inteira, não tendo sido adulterada, sofrendo diminuição ou alteração de suas características, que se mantêm as mesmas desde a sua colheita.

Marinho (2011, p. 11) vai mais além, pois o encadeamento de procedimentos não se restringe aos peritos, mas a todos os que fazem parte da seara processual penal, conforme pode ser visto a seguir:

Nesse sentido, importante destacar que o respeito à cadeia de custódia não é atividade exclusiva da perícia; muito pelo contrário, incumbe a todas as agências do sistema de justiça criminal. Abrange todos os “atores responsáveis pela sua preservação, integridade, idoneidade e valoração”, o que se inicia na fase de investigação preliminar, porém se estende até o processo criminal      

Constatada a existência de vestígios por parte das autoridades públicas será indispensável a realização do corpo de delito, nos termos do que prevê o artigo 158, do CPP. Com o advento da Lei nº 13.964/2019 houve o acréscimo do artigo 158-B, por  meio do qual o legislador brasileiro estabelece dez etapas necessárias para o rastreamento de evidências, conforme disposição abaixo:

Art. 158-B. A cadeia de custódia compreende o rastreamento do vestígio nas seguintes etapas:     

I – reconhecimento: ato de distinguir um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial; 

II – isolamento: ato de evitar que se altere o estado das coisas, devendo isolar e preservar o ambiente imediato, mediato e relacionado aos vestígios e local de crime;   

III – fixação: descrição detalhada do vestígio conforme se encontra no local de crime ou no corpo de delito, e a sua posição na área de exames, podendo ser ilustrada por fotografias, filmagens ou croqui, sendo indispensável a sua descrição no laudo pericial produzido pelo perito responsável pelo atendimento;     

IV – coleta: ato de recolher o vestígio que será submetido à análise pericial, respeitando suas características e natureza;    

V – acondicionamento: procedimento por meio do qual cada vestígio coletado é embalado de forma individualizada, de acordo com suas características físicas, químicas e biológicas, para posterior análise, com anotação da data, hora e nome de quem realizou a coleta e o acondicionamento;     

VI – transporte: ato de transferir o vestígio de um local para o outro, utilizando as condições adequadas (embalagens, veículos, temperatura, entre outras), de modo a garantir a manutenção de suas características originais, bem como o controle de sua posse;     

VII – recebimento: ato formal de transferência da posse do vestígio, que deve ser documentado com, no mínimo, informações referentes ao número de procedimento e unidade de polícia judiciária relacionada, local de origem, nome de quem transportou o vestígio, código de rastreamento, natureza do exame, tipo do vestígio, protocolo, assinatura e identificação de quem o recebeu;    

VIII – processamento: exame pericial em si, manipulação do vestígio de acordo com a metodologia adequada às suas características biológicas, físicas e químicas, a fim de se obter o resultado desejado, que deverá ser formalizado em laudo produzido por perito;      

IX – armazenamento: procedimento referente à guarda, em condições adequadas, do material a ser processado, guardado para realização de contraperícia, descartado ou transportado, com vinculação ao número do laudo correspondente;     

X – descarte: procedimento referente à liberação do vestígio, respeitando a legislação vigente e, quando pertinente, mediante autorização judicial. 

Grifo nosso

Por outro lado, a referida inovação legal, também traz mais responsabilidades para todos os que atuam na seara criminal, não apenas os profissionais da área policial (delegados, investigadores) e pericial (médicos, papiloscopistas, peritos contábeis), mas todos aqueles que militam no âmbito criminal como juízes, promotores e advogados, o fato de uma lei exigir que se cumpram determinados protocolos faz com que a ausência de qualquer deles possa resultar em uma possível nulidade de toda a prova produzida, conforme se depreende da leitura do artigo 158-C, do Código de Processo Penal, podendo, inclusive, ser considerada como fraude processual a infração:

Art. 158-C. A coleta dos vestígios deverá ser realizada preferencialmente por perito oficial, que dará o encaminhamento necessário para a central de custódia, mesmo quando for necessária a realização de exames complementares.

§ 1º Todos vestígios coletados no decurso do inquérito ou processo devem ser tratados como descrito nesta Lei, ficando órgão central de perícia oficial de natureza criminal responsável por detalhar a forma do seu cumprimento.

§ 2º É proibida a entrada em locais isolados bem como a remoção de quaisquer vestígios de locais de crime antes da liberação por parte do perito responsável, sendo tipificada como fraude processual a sua realização.

Seguir os procedimentos elencados na legislação sobre a cadeia de custódia traz credibilidade para a fase inicial de uma investigação criminal, qual seja, a colheita de provas, e, embora os profissionais já fizessem uso de rígidos protocolos de segurança para manter a integridade das evidências em um processo criminal, a positivação de um novo procedimento ajuda a melhorar o trabalho desses profissionais.

Sobre o assunto, Scramin (2022, p. 11) aduz que o instituto visa garantir às partes uma decisão judicial justa e eficiente, e para isso é necessário preservar a confiabilidade da prova, garantindo-se sua autenticidade, em outras palavras, aquilo que for apresentado em juízo deve ser exatamente o que foi coletado inicialmente. Em consequência, sua quebra, faz com que a confiabilidade da prova seja diminuída e possa ser passível de ser descartada.

  1. As consequências da quebra da cadeia de custódia

Apesar da importância do tema em estudo ele é passível de críticas, assim como outros institutos da seara jurídica. Até o presente momento o legislador brasileiro não dispôs sobre eventuais consequências sobre a quebra da cadeia de custódia, ficando a cargo do Estado-juiz regulamentar tal questão.

De acordo com as ideias de Souza e Vasconcellos (2020, p. 35) a manutenção da cadeia de custódia é de suma importância, pois é ela quem garante ao réu que a prova trazida pela acusação é a mesma que foi obtida na investigação, em observância aos procedimentos legais e sem alterações (“desconfiança”), e se assim não for feito, haverá violação ao devido processo legal e ao contraditório, princípios constitucionais e basilares em Estado Democrático de Direito.           

Para Manosso (2023, p. 10) não se pode esquecer da importância dos estudos sobre o tema em apreço, o cuidado com o manuseio de provas e evidências, preservar o local de um crime, tudo isso contribui para o desenvolvimento da ciência processual penal, pois, por meio dela, objetiva-se a autenticação das evidências coletadas, garantindo a correspondência ao caso investigado, de modo a evitar qualquer questionamento sobre possível adulteração da fonte da prova, bem como injustiças quanto à imputação criminal de um delito a alguém.  

Em outra importante contribuição com a temática, Manosso (2023, p. 10)  aduz que embora o pacote anticrime tenha regulamentado no Código de Processo Penal sobre preservação e manuseio de provas, por outro lado não houve previsão legal sobre a consequência de sua violação, ficando a cargo do Poder Judiciário fazer o juízo de legalidade, ou seja, se em determinada investigação ou processo criminal houve ou não a quebra da cadeia de custódia.

Sobre o assunto, Scramin (2022, pp. 35 e 36) aduz que a manutenção da cadeia de custódia cabe ao Estado e sua quebra gera consequências à persecução penal, uma vez que a cisão da rastreabilidade da prova causará a perda de credibilidade do material probatório, o que poderá ocasionar na sua imprestabilidade, em virtude da existência de suspeita insanável quanto à lisura, higidez, fiabilidade e integridade do conjunto probatório que não foi corretamente custodiado.

De acordo com o STJ (2023) a partir do momento em que se definiu juridicamente o que seria a cadeia de custódia, que se deu por meio do Pacote Anticrime, instituiu-se a regulamentação sobre a guarda dos vestígios do delito, e, caso  não haja o recolhimento correto dos vestígios logo após o crime, a sua preservação durante as fases policial e judicial e o seu acondicionamento até a decisão final no processo, a chamada quebra da cadeia de custódia pode comprometer a apuração da verdade.

Em importante contribuição para o assunto, Manosso (2023, p. 40) adverte  que a quebra da cadeia de custódia das provas tem por consequência a decretação de sua nulidade, haja vista que não se trata de um meio de obtenção de provas, mas de documentação de todo o procedimento da prova, desde o seu reconhecimento como vestígio até o seu descarte.

Para Souza e Vasconcellos (2020, pp. 46 e 47) embora a questão da cisão sobre a preservação do material probatório ainda não encontre regulamentação legal, mais precisamente no CPP, deverão os tribunais brasileiros assentarem posicionamento no sentido da inutilidade do material em situações de evidente comprometimento de sua confiabilidade.

Somente é possível falar em cadeia de custódia íntegra quando as fontes de prova são preservadas, com o intuito de proporcionar à defesa acesso amplo a todo o material obtido, e se houver qualquer tipo de filtragem das provas ou o extravio de parte delas, a cadeia de custódia estará quebrada, pois ficará inviabilizado o rastreamento de eventuais ilicitudes, bem como o pleno exercício do contraditório, conforme previsto pelo texto constitucional[6].

  1. Aplicação do instituto da cadeia de custódia no judiciário brasileiro

A respeito do assunto, o Poder Judiciário brasileiro já proferiu decisões a respeito do instituto da colaboração premiada, haja vista, ser o detentor da competência de dizer o direito, avaliar se o armazenamento e guarda de materiais probatórios se deu dentro da legalidade, bem como constitucionalidade, visto que as investigações policiais e o processo penal precisam seguir o que está disposto na Constituição Federal.

Sobre o assunto, já decidiu o Egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ), no qual, seguem alguns trechos do acórdão:

a cadeia de custódia tem como objetivo garantir a todos os acusados o devido processo legal e os recursos a ele inerentes, como a ampla defesa, o contraditório e, principalmente, o direito à prova lícita. O instituto abrange todo o caminho que deve ser percorrido pela prova até sua análise pelo magistrado, sendo certo que qualquer interferência durante o trâmite processual pode resultar na sua imprestabilidade

(RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 77.836 – PA (2016/0286544-4) RELATOR : MINISTRO RIBEIRO DANTAS. Brasília (DF), 05 de fevereiro de 2019) Grifo nosso.

No caso em apreço o Tribunal da Cidadania entendeu que a cadeia de custódia possui sua razão de ser dentro da legislação brasileira, que a sua inclusão no CPP no ano de 2019 teve como objetivo basilar garantir às partes o respeito aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, assim como o direito ao uso de provas lícitas dentro de um processo ou investigação criminal, e, caso isso não ocorra isso levará à imprestabilidade do material probatório existente.      

De outro modo, mas não menos importante o Supremo Tribunal Federal (STF) no ano de 2007 já entendia que as provas ilícitas, originárias ou derivadas delas,   não podem ser utilizadas dentro de uma investigação ou processo, conforme pode ser visto nos trechos que se seguem:

[…] IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR – PROVA ILÍCITA – INIDONEIDADE JURÍDICA – RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. BUSCA E APREENSÃO EM APOSENTOS OCUPADOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO QUARTOS DE HOTEL) – SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO, DESDE QUE OCUPADO, AO CONCEITO DE “CASA” – CONSEQÜENTE NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL. – (…) A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em consequência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do “male captum, bene retentum”. […] A exclusão da prova originariamente ilícita – ou daquela afetada pelo vício da ilicitude por derivação – representa um dos meios mais expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do “due process of law” e a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede processual penal.

(Informativo n. 583, Habeas Corpus nº 90.376/RJ. Rel. Min. Celso de Mello, Brasília, DF, 17 mar. 2007) Grifo nosso.

Por meio do presente julgado, entendeu a Suprema Corte Brasileira que qualquer prova obtida pelo poder público que não tenha sido revestida de legalidade ou mesmo esteja dentro dos parâmetros constitucionais (algo basilar dentro de um ambiente democrático) deve ser repelida, visto que a qualquer acusado, na verdade a qualquer pessoa que figure como parte na seara processual penal deve ser garantido o devido processo legal, mais precisamente o uso de material probatório de origem lícita, assim como fornecer a paridade de armas entre todos os que tenham interesse em determinada demanda.             

Em julgamento da 6ª Turma do STJ, foi concedido Habeas Corpus e o réu absolvido da acusação de tráfico de drogas, conforme trechos que se seguem:

[…] Assim, à míngua de outras provas capazes de dar sustentação à acusação, deve a pretensão ser julgada improcedente, por insuficiência probatória, e o réu ser absolvido.

porque a substância apreendida pela polícia foi entregue à perícia em embalagem inadequada e sem lacre. Para o colegiado, como a origem e outras condições da prova não foram confirmadas em juízo, ela não poderia ser utilizada como fundamento para a condenação.

9. O fato de a substância haver chegado para perícia em um saco de supermercado, fechado por nó e desprovido de lacre, fragiliza, na verdade, a própria pretensão acusatória, porquanto não permite identificar, com precisão, se a substância apreendida no local dos fatos foi a mesma apresentada para fins de realização de exame pericial e, por conseguinte, a mesma usada pelo Juiz sentenciante para lastrear o seu decreto condenatório. Não se garantiu a inviolabilidade e a idoneidade dos vestígios coletados (art. 158-D, § 1º, do CPP) […]

(HABEAS CORPUS Nº 653.515 – RJ (2021/0083108-7) RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ. Brasília/DF. Julgado em 23/11/2021). Grifo nosso.

O ministro e Relator do referido HC, Rogerio Schietti Cruz, cujo voto prevaleceu no julgamento, considerou que o fato de a substância ter chegado à perícia sem lacre e sem o acondicionamento adequado tornou frágil a acusação de tráfico, pois não permitiu identificar se era a mesma que foi apreendida na fase inquisitorial. Contudo, também alerta que a situação seria diferente se o réu tivesse admitido a posse das drogas ou se houvesse outras provas para apoiar a condenação.

Em outro julgado do Tribunal da cidadania foi decidido que a irregularidade na guarda de provas em processo do tribunal do júri deve ser apontada antes da pronúncia, ou seja, segundo o referido órgão colegiado, operou-se a preclusão quando a nulidade supostamente ocorrida durante a instrução do processo de competência do tribunal do júri é apontada após a sentença de pronúncia, nos termos do dispõe a artigo 571, inciso I, do CPP[7], conforme trechos que se seguem:

[..] observou que a arma do crime e alguns projéteis apreendidos desapareceram, além de ter havido mistura de evidências do homicídio cometido em Contagem com vestígios relativos à investigação da morte de um promotor.

Apesar do desaparecimento dos objetos, o magistrado esclareceu que seria inviável declarar a nulidade da perícia, como pretendido pela defesa, pois esta não fez tal pedido no momento oportuno. “A preclusão apontada pelo órgão ministerial efetivamente obsta a declaração de nulidade efetivada pela corte de origem

Recurso especial interposto pelo Ministério Público de Minas Gerais provido, a fim de cassar o acórdão exarado no julgamento da Apelação Criminal n. 1.0079.02.018891-2/017, determinando o retorno dos autos à Corte de origem, a fim de que prossiga no julgamento dos apelos, afastada a tese de nulidade da perícia oficial, ora rechaçada

(RECURSO ESPECIAL Nº 1825022 – MG (2019/0197162-9) RELATOR : MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR. Brasília/DF. Julgado em 22/02/2022) Grifo nosso.

Entendeu o STJ que apesar do desaparecimento dos objetos, seria inviável declarar a nulidade da perícia, como pretendido pela defesa, pois o pedido não foi feito no momento oportuno, ou seja, antes da sentença de pronúncia. Por meio do referido entendimento, nem sempre o judiciário proferirá decisões tonando nulas as provas de um processo tão somente pela eventual quebra da cadeia de custódia, a partir do momento em que observa não ter havido para as partes ou mesmo para o regular andamento do processo, haja vista a existência de prazos, momentos oportunos para alegar a existência de algum prejuízo ou mesmo irregularidades no processo.   

De acordo com matéria extraída do site do STJ (2023) nem sempre a quebra da cadeia de custódia gerará nulidade obrigatória da prova colhida, visto que eventuais irregularidades devem ser observadas pelo juízo ao lado dos demais elementos produzidos na instrução criminal, e dessa forma decidirá se a prova questionada ainda pode ser considerada confiável. Só após a devida confrontação é que o magistrado, caso não encontre sustentação e entender que houve alguma cisão, pode retirar o material probante dos autos ou declará-lo nulo de pleno direito. 

Considerações finais

A mudança trazida pela Lei nº 13.964/2019, também conhecido como “pacote anticrime”, mais precisamente no que diz respeito à inclusão do instituto da cadeia de custódia ao Código de Processo Penal, veio para dar mais credibilidade
à fase de investigação dos crimes, pois trouxe mais responsabilidades para todos os atores sociais que participam da fase inquisitorial do processo penal, desde policiais, bombeiros e médicos até os juízes responsáveis pelas futuras decisões.

O descumprimento de qualquer das etapas existentes na cadeia de custódia poderá implicar na nulidade de toda uma investigação, por isso a importância da preservação dos locais de crime, bem como a identificação de todos aqueles que tiverem acesso aos elementos de prova, tudo nos termos da legislação processual penal vigente.

Em razão da ausência de regulamentação legal sobre a quebra da cadeia de custódia, mais precisamente no CPP, deverão os tribunais brasileiros se posicionarem no sentido de analisar sobre a inutilidade do material em situações de evidente comprometimento de sua confiabilidade e se isso comprometerá futuros julgamentos, haja vista que as decisões não têm sido dadas de maneira uniforme, conforme analisado no presente trabalho.   

Somente poderá existir lisura e respeito ao devido processo legal se as fontes de prova forem preservadas e todas as autoridades e atores processuais que a ela tiverem acesso respeitarem a sua integridade, tudo isso com o intuito de proporcionar às partes o acesso amplo a todo o material obtido, sob pena de se incorrer em irregularidades, as quais poderão ocasionar na inutilidade do todo o material colhido, em razão da quebra da cadeia de custódia.  

Por fim, sabe-se que toda alteração legislativa no país nunca irá agradar a todos, sendo passível de elogios e críticas, no entanto se fazia necessária a positivação de novas regras sobre perícia técnica e científica, como forma de findar uma série de dúvidas e inseguranças sobre o manuseio e guarda de material probatório, desde a fase investigativa até a sentença proferida por algum representante do Poder Judiciário.      

REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 31 mar. 2024.

BRASIL. Decreto-Lei Nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Brasília, DF. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em 16 fev. 2021.

BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Publicado em 24/12/2019. In: Planalto. Poder Legislativo. Brasília / DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13964.htm#art14. Acesso em 16 fev. 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 77.836 – PA (2016/0286544-4) RELATOR : MINISTRO RIBEIRO DANTAS. Brasília (DF), 05 de fevereiro de 2019). Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1788420&num_registro=201602865444&data=20190212&formato=PDF. Acesso em 18 mar. 2024.

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[1] Mestranda em Direito Ambiental pelo PPGDA da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Residente Jurídica da Defensoria Pública do Estado do Amazonas. Especialista em Direito da Seguridade Social – Previdenciário e prática Previdenciária pela Faculdade Legale. Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Advogada. Bacharela em Direito pela UFPA. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8258-1376  LATTES: http://lattes.cnpq.br/0036764451569275

[2] Mestre em Direito Ambiental pelo PPGDA da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Analista Jurídico da Defensoria Pública do Estado do Amazonas. Professor de cursos de graduação. Especialista em Direito Penal, Investigação Forense e Perícia Criminal pela Uniasselvi. Bacharel em direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1891-3639. Lattes:  http://lattes.cnpq.br/5918316459107517

[3] Manosso (2023, p. 15).

[4] Idem.

[5] Scramin (2022, p. 26)

[6] Souza e Vasconcellos (2020, pp. 46 e 47).

[7] Art. 571.  As nulidades deverão ser arguidas:

I – as da instrução criminal dos processos da competência do júri, nos prazos a que se refere o art. 406;

Art. 406.  O juiz, ao receber a denúncia ou a queixa, ordenará a citação do acusado para responder a acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias. Grifo nosso.