AUTONOMIA NEGOCIAL DOS EMPREGADOS HIPERSUFICIENTES

AUTONOMIA NEGOCIAL DOS EMPREGADOS HIPERSUFICIENTES

31 de dezembro de 2023 Off Por Cognitio Juris

AUTONOMY TO NEGOTIATE OF THE HYPERSUFFICIENT EMPLOYEES

Artigo submetido em 20 de dezembro de 2023
Artigo aprovado em 29 de dezembro de 2023
Artigo publicado em 31 de dezembro de 2023

Cognitio Juris
Volume 13 – Número 53 – Dezembro de 2023
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Giulia Martini Caruso [1]

Resumo: A reforma trabalhista de 2017 possibilitou a negociação individual entre o empregador e empregados tidos como hipersuficientes, permitindo inferir que estes últimos dispensariam a tutela sindical por ostentar a plena autonomia da vontade. Todavia, não se pode olvidar que o Direito do Trabalho parte da premissa da desigualdade de poder dentro das relações empregatícias, razão pela qual impede a renúncia de direitos trabalhistas e cria limitações para as negociações individuais.

Palavras-chave: Reforma trabalhista – Hipersuficientes – Autonomia negocial

Abstract: The 2017 labor reform enabled individual negotiation between the employer and employees considered hyper-sufficient, suggesting that the latter would waive union protection by exercising full autonomy of will. However, it is essential to remember that Labor Law is based on the premise of unequal power within employment relationships, which is why it prohibits the waiver of labor rights and imposes limitations on individual negotiations.

Keywords: Labor reform – Hypersufficient – Autonomy to negotiate

Sumário: 1 Introdução – 2 De Aristóteles e o conceito de Justiça – 3 Princípios do Direito do Trabalho – 4 Crise do Estado, necessidade de modernização e análise legislativa da Lei 13.467 de 2017 – 5 Flexibilização dos direitos trabalhistas e o empregado hipersuficiente – 6 Considerações finais – 7 Referências

  1. Introdução

No Direito do Trabalho existe a presunção de relação desigual entre as partes, tendo de um lado o empregador e do outro o empregado, que é trabalhador subordinado. O empregador possui o poder econômico da relação e tem o poder diretivo sobre seus empregados. O empregado, por sua vez, está em posição inferior, uma posição hipossuficiente em comparação ao seu empregador; obedecendo regras, ordens e comandos.

A dependência econômica e jurídica do empregado em relação a seu empregador implica na necessidade de uma proteção jurídica específica, a fim de equalizar a diferença de poder entre as partes. Em outras palavras, os princípios basilares do Direito do Trabalho foram formados tomando como base a hipossuficiência do empregado e a busca pela igualdade material das partes dentro da relação de emprego.

A reforma trabalhista de 2017 (i.e., Lei 13.467/2017), incluiu o parágrafo único ao artigo 444 da Consolidação das Leis do Trabalho (“CLT”)[2], no qual objetivou distinguir um grupo de empregados que seriam considerados menos vulneráveis na relação de emprego, e que costumam ser designados pela expressão “hipersuficientes”. Este artigo pretende uma análise deste grupo de empregados.

A intenção é primeiramente entender o processo legislativo que resultou na alteração do artigo 444 da CLT. Em seguida, analisar os princípios do Direito do Trabalho relacionados à mencionada alteração legislativa. Além disso, pretende-se examinar o conceito de justiça dentro dos ensinamentos de Aristóteles e, a partir daí, passar para a análise dos empregados hipersuficientes e sua classificação dentro do ordenamento jurídico.

  • De Aristóteles e o conceito de Justiça

Aristóteles nasceu em 384 a.C. no norte da Grécia Antiga, mudou-se para Atenas, onde ficou por mais de 20 anos, e se tornou discípulo de Platão. Após a morte de Platão, Aristóteles deixou Atenas e retornou apenas em 335 a.C., momento no qual, fundou o Liceu – estabelecimento de discussões e ensino.

Muitas obras de Aristóteles se perderam no tempo e na destruição da biblioteca de Alexandria, existindo discussão sobre o catálogo final de obras, mas incluem provavelmente mais de 150 itens, incluindo livros (de filosofia, conhecimento, física e biologia), bem como teses, cartas e poemas. Estima-se que hoje possuímos menos de um terço do material reconhecido como aristotélico.

Segundo Maria do Carmo Bettencourt de Faria[3]

“Aristóteles se dedica ao estudo de seus predecessores, sendo a melhor fonte doxográfica sobre os pré-socráticos; recupera o tema da natureza dedicando-se à física, ao estudo dos animais, ao estudo da alma, ao estudo do céu. Volta-se para a metafísica e o estudo do ser, discutindo não só as teses platônicas, mas expondo os fundamentos de seu próprio pensamento; escreve sobre política e ética; sobre os usos da linguagem na retórica e na poética; é também criador da lógica, à qual dedica uma série de estudos sobre a dialética e a analítica, os argumentos sofistas e a interpretação”.

Entre as obras conhecidas encontra-se “Ética a Nicômaco”, na qual Aristóteles examina as condições humanas, amizade, virtudes, bem como justiça.

Em “Ética a Nicômaco” resta claro que a justiça é um conceito moral e a essência do Estado e que nenhuma política pode perdurar por um longo período se não estiver fundada no correto esquema de justiça. Assim, para ele, a justiça é a virtude em ação, e significa que cada membro da comunidade deve cumprir com a sua obrigação moral em face dos demais membros.

O grande filósofo grego conclui que a justiça, assim como as demais virtudes, é uma disposição e não mera capacidade. Em outras palavras não é uma questão de escolha de fazer a justiça ou não, mas uma disposição da alma. Ademais, entende que uma ação justa só será realmente justa se vier da disposição da alma e não de mera imitação ou acidente.

A justiça requerer a interpretação de princípios universais (naturais e legais) em situações particulares. A título de esclarecimento, para Aristóteles seriam naturais os princípios que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de os aceitarmos ou não; já os princípios legais seriam os positivados e, portanto, que variam de lugar a lugar.

Aristóteles divide a justiça em corretiva e distributiva. A justiça corretiva destina-se aos objetos, devendo ser medido o benefício ou dano que cada parte pode suportar de modo impessoal, sem considerar os méritos; vale dizer, a justiça corretiva pertence a correção ou retificação de alguma injustiça (i.e., compensação), ou seja, há um valor objetivo ao bem em discussão.

Por outro lado, a justiça distributiva pretende a divisão de bens e honras da comunidade, dentro da ideia base de que cada pessoa receba o proveito adequado a seus méritos. Dentro da visão aristotélica a justiça distributiva é necessariamente baseada na proporcionalidade, que seria justa somente quando o racional correto fosse encontrado:

“Se, então, o injusto é iníquo (ou seja, desigual), o justo é igual, como todos acham que ele é, mesmo sem uma argumentação mais desenvolvida. E já que o igual é o meio termo, o justo será um meio termo. Ora: a igualdade pressupõe no mínimo dois elementos: o justo, então, deve ser um meio termo, igual e relativo (por exemplo, justo para certas pessoas), e na qualidade de meio termo ele deve estar entre determinados extremos (respectivamente “maior” e “menor”) […] se as pessoas não forem iguais, elas não terão uma participação igual nas coisas […] de fato, todas as pessoas concordam em que o que é justo em termos de distribuição deve sê-lo de acordo com o mérito em certo sentido”[4].

Percebe-se, portanto, que, de acordo com Aristóteles, a Justiça se aproxima do conceito moderno de isonomia, ou seja, tratar os iguais igualmente e os desiguais de forma desigual na proporção de suas diferenças, sempre com o objetivo final de chegar ao meio-termo.

A justiça corretiva indicada por Aristóteles encontra similaridade com as responsabilidades civil e penal, especialmente diante do fato que em diversos ordenamentos jurídicos ocidentais, o direito contratual possui como base a igualdade do tratamento das partes.

A justiça distributiva influenciou o Princípio Geral da Igualdade das Relações Jurídicas e a Justa Repartição de Bens.

Em suma, é manifesto que as noções de justiça aristotélica ainda estão presentes nos variados ramos das ciências jurídicas e sociais, constituindo a trama necessária para a solução de disputas.

Nota-se que o próprio conceito de proporcionalidade indicado por Aristóteles é repetido no Princípio da Isonomia que baseou o Direito do Trabalho, conforme abordamos no próximo tópico.

  • Princípios do Direito do Trabalho

O conceito de proporcionalidade, visto na ética aristotélica, perdurou no tempo e ainda é usado nos ordenamentos jurídicos modernos. Como bem registra PAULO NADER

“os filósofos que antecederam Aristóteles não chegaram a abordar o tema de justiça dentro de uma perspectiva jurídica, mas como valor relacionado à generalidade das relações interindividuais ou coletivas. Em sua Ética a Nicômaco, o Estagirita formulou a teorização da justiça e eqüidade, considerando-as sob o prisma da lei e do Direito. Tão bem elaborado o seu estudo que se pode afirmar, sem receio de erro, que muito pouco se acrescentou, até nossos dias, àquele pensamento original”[5]

No Brasil, a Constituição assevera, no artigo 5º, caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Esta disposição é interpretada como se referindo à igualdade formal entre indivíduos, devendo ser garantido o tratamento igualitário entre eles.

Existe também a interpretação da igualdade material, por meio da qual, o ordenamento jurídico, quando diante de indivíduos com disparidade, permite e garante, o tratamento diferenciado, com o intuito de amenizar ou eliminar a desigualdade identificada.

A clássica máxima da igualdade de tratar os desiguais na medida de sua desigualdade, para que seja viável a efetiva equiparação entre indivíduos, está bem delineada em “Ética a Nicômaco” de Aristóteles:

“Quanto a este último, um dos termos se torna grande demais e o outro muito pequeno, como efetivamente acontece na prática, pois o homem que age injustamente fica com uma parte muito grande daquilo que é bom, e o que é injustamente tratado fica com uma parte muito pequena”

Walter Claudius Rothenburg[6] afirma que as normas jurídicas devem favorecer de modo diferenciado aqueles que estejam em situações de indevida desvantagem social ou impor um gravame maior aos que estejam em uma situação de extrema vantagem social, entendendo a igualdade como a promoção de distinções justificáveis quando se está diante de uma situação diferenciada.

No âmbito das relações empregatícias, diante da desigualdade inerente existente, “a preocupação central parece ser a de proteger uma das partes com o objetivo de, mediante essa proteção, alcançar-se uma igualdade substancial e verdadeira entre as partes”[7]

Daí decorre o princípio da proteção, que sustenta toda a construção do ordenamento jurídico trabalhista. Américo Plá Rodriguez assim aduz:

“O princípio da proteção se refere ao critério fundamental que orienta o Direito do Trabalho, pois este, ao invés de inspirar-se num propósito de igualdade [formal], responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes: o trabalhador.”[8]

Diante da percepção de que o empregado é hipossuficiente em relação a seu empregador, o Direito do Trabalho entende ser necessária uma maior proteção jurídica, retirando-lhe grande parte de sua autonomia negocial.

Na mesma toada de proteção ao empregado, tem-se que alguns direitos trabalhistas são irrenunciáveis. Desta forma, evita-se que o empregado seja suscetível a pressão, coação ou exigência patronal de flexibilização das proteções legalmente estabelecidas.

As normas trabalhistas, diante da mesma lógica, são consideradas como imperativas, e nas lições de Mauricio Godinho Delgado, “prevalece a restrição à autonomia da vontade no contrato trabalhista, em contraponto à diretriz civil de soberania das partes no ajuste das condições contratuais”[9].

Percebe-se, assim, que no Direito do Trabalho, na sua essência, demanda a existência de limites negociais e convencionais entre os indivíduos, salvo, quando se trata de temas (i) não regulamentados por lei ou convenção coletiva ou (ii) cuja negociação feita pelas partes concede ou amplia vantagens, direitos ou garantias do trabalhador.

Importante ressaltar que os Sindicatos da categoria possuem maior autonomia negocial que os empregados diante da presunção de igualdade entre as partes, ou seja, de equivalência entre os contratantes, seja diante da natureza jurídica similar, seja diante da negociação equilibrada entre as partes, decorrente da existência de instrumentos eficazes de atuação e pressão para ambas as partes.

Mauricio Godinho Delgado reconhece que:

“[…] os instrumentos colocados à disposição do sujeito coletivo dos trabalhadores (garantias de emprego, prerrogativas de atuação sindical, possibilidade de mobilização e pressão sobre a sociedade civil e Estado, greve etc.) reduziriam, no plano jus coletivo, a disparidade lancinante que separa o trabalhador, como indivíduo, do empresário. Isso possibilitaria ao Direito Coletivo conferir tratamento jurídico mais equilibrado às partes nele envolvidas. Nessa linha, perderia sentido no Direito Coletivo do Trabalho, a acentuada diretriz protecionista e intervencionista que tanto caracteriza o Direito Individual do Trabalho “[10]

Em conclusão, o Direito Coletivo do Trabalho possui uma liberdade contratual diferenciada da existente no Direito Individual do Trabalho, no tocante às negociações de direitos trabalhistas, como resta evidente pelo teor do artigo 611-A da CLT[11].

Tal conclusão coaduna-se com recente decisão proferida pelo STF (RE 590415/SC), onde o Ministro Luís Roberto Barroso reconheceu que:

“[…] o direito coletivo do trabalho, em virtude de suas particularidades, é regido por princípios próprios, entre os quais se destaca o princípio da equivalência dos contratantes coletivos, que impõe o tratamento semelhante a ambos os sujeitos coletivos – empregador e categoria de empregados.”[12]

Entretanto, não obstante o entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado sobre o tema, a reforma trabalhista acrescentou o parágrafo único ao artigo 444 da CLT, equiparando, no tocante à autonomia negocial, o empregado considerado hipersuficiente à entidade sindical.

Antes de adentrarmos nas minúcias da aprovação da Reforma Trabalhista que originou o referido dispositivo legal, faz-se mister pontuar a crise do Estado e suas dificuldades como moderador das diversas áreas da sociedade, diante das constantes mudanças e alterações sociais.

  • Crise do Estado, necessidade de modernização e análise da Lei 13.467 de 2017.

Georges Abboud”[13] entende que a sociedade pós-moderna é caracterizada pela fragmentariedade e pelo aumento vertiginoso de complexidade e apresenta diversos desafios à regulação estatal, destacando que os modelos tradicionais têm se mostrado incapazes de lidar com as questões atuais. O referido autor argumenta que a sociedade das organizações de outrora está sendo a cada dia sendo substituída por outra mais fragmentada, onde o “jurisdicionado é, ao mesmo tempo, trabalhador, consumidor, destinatário, das informações produzidas pela imprensa e beneficiário dos diversos serviços sociais providos pelo Estado”: a sociedade das redes.

A nova situação social cria uma complexidade crescente, criando diferentes níveis de comando, diluindo a compreensão do centro de comando.

Destaca, ainda, Georges Abboud que neste paradigma procedural, as atividades do Estado se reestruturam, cabendo a intervenção de maneira seletiva e direcionada ao estímulo de processos de inovação e estabilização de expectativas de longo prazo. Entretanto, o Estado continuamente se recusa a admitir seus limites, pois presume que deve conhecer de forma específica todos os assuntos, impondo, consequentemente ao Judiciário a “necessidade de lidar com o indecidível sem os mecanismos necessários para a geração de conhecimento”, asseverando que as mudanças sociais são mais rápidas que o processo legislativo, de forma que uma vez aprovada a lei pode já estar ultrapassada.

Esse paradigma resta ainda mais evidente quando analisamos as questões trabalhistas. Ora, a sociedade, e suas particularidades, que fundamentou a Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943 é muito difere da atual, neste primeiro quarto do século XXI. Cita-se aqui a dificuldade do Legislativo em regular a situação dos motoristas e entregadores de aplicativos, em conjunto com a falta de expertise do Judiciário em compreender as novas tecnologias e regimes de trabalho.

O Legislativo objetivou nos últimos anos, em especial com a reforma trabalhista de 2017 (Lei 13.467/2017), modernizar a legislação a fim de abarcar a crescente necessidade da lei se adaptar às mudanças sociais.

Os doutrinadores e profissionais do direito ainda discutem se a reforma foi benéfica ou não aos trabalhadores, e muitas críticas se concentram na falta de consulta prévia aos especialistas da área e a ausência de consideração das novas formas de organização do trabalho. O Poder Legislativo, ao não reconhecer os seus limites técnicos, criou uma legislação incapaz de englobar a realidade fática de muitos trabalhadores.

Vale mencionar que a tramitação e a aprovação da Lei 13.467/2017 ocorreu em um curto período, o que prejudicou a realização de um debate aprofundado com a sociedade, bem como a revisão adequada do texto jurídico por especialistas na área.

Desde o momento da apresentação do Projeto de Lei 6.787 em dezembro de 2016 até a aprovação deste na Câmara dos Deputados, foram apresentadas 883 propostas de emenda[14]. No Senado Federal recebeu ainda mais propostas de emenda até a aprovação final do Projeto de Lei em julho de 2017. Em suma, o trâmite legislativo durou aproximadamente cinco meses, com mais de mil propostas de emendas ao Projeto de Lei.

A rapidez do trâmite legislativo e a falta de discussão sobre o Projeto de Lei ficam evidentes no texto final aprovado, que resultaram em discussões no Supremo Tribunal Federal (“STF”) quanto a constitucionalidade de diversas disposições.  

Assim, o Legislativo repassou para o Judiciário a responsabilidade de gerenciar e atualizar, por meio de interpretações e aplicações analógicas ou não, situações altamente complexas.

Além das dificuldades evidentes na implementação da reforma trabalhista, há que se mencionar a criação de novos conceitos que desafiam os princípios que fundamentaram o Direito do Trabalho até 2017, dentre eles os da proteção, da irrenunciabilidade e da   inafastabilidade das normas trabalhistas.

A categoria de empregado hipersuficiente está dentro deste cenário de novos conceitos. Importante ressaltar que um empregado hipersuficiente teria autonomia para acordar diretamente com o empregador determinados temas, que, até este momento, eram restritos aos Sindicatos de trabalhadores.

De acordo com a reforma trabalhista, um empregado será considerado hipersuficiente se (i) for portador de diploma de nível superior e (ii) perceber salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS).

Dito isso, passa-se a análise dos mencionados princípios basilares do Direito do Trabalho, com o intuito de examinar o alcance das disposições do art.444, parágrafo único, da CLT, que remete a esse grupo de empregados.

  • Flexibilização dos direitos trabalhistas e o empregado hipersuficiente

Com base no artigo 444, parágrafo único, da CLT, o empregado hipersuficiente terá liberdade para negociar diretamente com seu empregador, dentro dos temas listados no artigo 611-A da CLT. A negociação efetivada por este empregado terá a mesma eficácia legal que os instrumentos coletivos, sendo certo que referida previsão legal demanda diversas considerações críticas.

Em primeiro lugar, verifica-se que não é possível equiparar a autonomia negocial do Sindicato da categoria com um indivíduo particular, mesmo que esteja no rol dos hipersuficientes.  Em segundo lugar, nota-se que os critérios escolhidos para a configuração do empregado hipersuficiente são demasiadamente genéricos e não fundamentados.

Explica-se.

O Sindicato possui à disposição, como mencionado, diversos instrumentos que possibilitam evitar ou criar pressões em face da empresa/empregador. Todavia, estes instrumentos não estão disponíveis ao trabalhador individualmente considerado.

Desta forma, não há garantias de que o empregado hipersuficiente teria condições de evitar/barrar excessos do lado do empregador em eventual negociação, o que implica, necessariamente, a conclusão de que a igualdade entre as partes não existe na realidade prática. Em verdade, a condição de empregado hipersuficiente não afasta a condição de subordinado juridicamente ao empregador, sendo irrelevante o seu grau de instrução ou faixa salarial.

Destarte, a segunda crítica vem como consequência da primeira, pois comprovado que os critérios fixados na CLT não são capazes de justificar a autonomia negocial pretendida.

Ora, “diploma de nível superior” é um critério impreciso, pois ele não guarda qualquer relação direta com o conhecimento ou desconhecimento de direitos e de deveres trabalhistas ou de eventuais limitações quanto ao nível de compreensão destes direitos.

Assim, embora a intenção de exclusão das pessoas de pouca ou nenhuma escolaridade possa ser justificada, o critério de escolaridade adotado é insuficiente para a flexibilização do princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas. Além disso, o critério econômico adotado, desconsidera o fato de que a subordinação jurídica e a hipossuficiência na relação empregatícia independem do nível salarial do empregado.

Em outras palavras, não é crível a conclusão de que um empregado estaria no mesmo nível de igualdade negocial que o seu empregador, somente considerando o valor do salário ajustado e o grau de escolaridade.

A conclusão de que nem todos os empregados estariam no mesmo nível de igualdade para fins de negociação, ou seja, que nem todos os empregados precisariam do mesmo nível de proteção concedido pela CLT, é inescapável.

Assim, embora não seja possível afastar o fato de que determinados empregados do alto escalão tenham capacidade, e força negocial, para flexibilizar aspectos pontuais de seus contratos, isto não pode justificar a concessão de um tratamento jurídico abrangente fundamentado em critérios arbitrários.

Neste diapasão, a reforma trabalhista criou uma previsão legal que não leva em consideração a proporcionalidade necessária para atingir o fim justo, ou seja, dentro da visão aristotélica não foi obtido o racional correto para atingir-se o meio termo e, portanto, a efetiva justiça.

Entende-se que a flexibilização trazida pela reforma trabalhista era necessária e, em muitos casos, uma evolução em face de uma legislação, cuja espinha dorsal data de 1943, que teve poucas alterações. Entretanto, impossível não criticar os critérios adotados pelo legislador para objetivar a possibilidade de negociação individual entre o empregado e o empregador.

Novamente percebe-se aqui a tentativa do Legislativo de parametrizar e regulamentar o “irregulamentável”, não aceitando a sua incapacidade técnica.

  • 6.  Considerações finais

A reforma trabalhista de 2017, no que respeita à possibilidade de negociação individual entre o empregado e o empregador, trouxe uma resposta ao protecionismo considerado exacerbado em muitas situações, em que não se reconhecia a possibilidade de flexibilização, mediante a aplicação das normas trabalhistas sem atentar-se à necessidade de tratamento diferenciado aos diferentes.

Assim, foi acrescentado o parágrafo único ao artigo 444 da CLT, assegurando a possibilidade de liberdade negocial para determinados empregados, entendidos como hipersuficientes, desde que atingidos os critérios estabelecidos de escolaridade e nível salarial.

Argumenta-se que é inviável o argumento de que a alteração mencionada seria justificada pela existência de diferença no “grau” de hipossuficiência entre determinados empregados, pois não há como escapar da conclusão de que existe, inegavelmente, hipossuficiência na relação empregatícia. Assim, não se mostra razoável a equiparação de um empregado hipersuficiente a uma entidade sindical.

Considerando que o artigo 611-A da CLT (limites da negociação individual) inclui temas sensíveis, como o enquadramento do grau de insalubridade e a prorrogação de jornada em ambientes insalubres, a concessão de autonomia negocial aos empregados hipersuficientes, portanto, deveria demandar uma cautela, e discussão, maior do que a que lhe foi concedida nos 5 (cinco) meses de tramitação legislativa.

Assim, como discutido alhures, os critérios adotados pelo legislador são falhos e não possuem fundamentos fáticos (ou legais), razão pela qual, ainda se verifica alguma recusa da Justiça do Trabalho em aplicar o referido dispositivo legal por ntende-lo inconstitucional, criando insegurança jurídica.

Conclui-se, portanto, que a alteração em questão viola a visão aristotélica de justiça, bem como princípios basilares do Direito do Trabalho.

Sugere-se a busca de uma outra solução, com análise legislativa prolongada e contribuição de especialistas na área, bem como abrindo espaço para discussões públicas, a fim de se obter uma regra que cumpra o seu papel, mas sem retirar a conquistada flexibilização.

Washington de Barros Monteiro bem aduziu que quando se trata “de interpretar leis sociais, preciso será temperar o espírito do jurista, adicionando-lhe certa dose de espírito social, sob pena de sacrificar-se a verdade à lógica”.

7.  Referências

ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-Moderno. 1ª ed., São Paulo: Thomson Reuters, 2021.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 19. ed. São Paulo: LTr, 2020.

DELGADO, Mauricio Godinho. Direito coletivo do trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2017.

DISSENHA, Leila Andressa. Arbitragem e conflitos trabalhistas: receios e expectativas pós reforma. Revista Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, v. 6, n. 61, jul.-ago. 2017. Disponível em: [http://www.mflip.com.br/ temp_site/edicao-364c32263dd3f0df5095b65321f3cd79.pdf]. Acesso em: 26.06.2023.

ENGLE, Eric. “The General Principle of proportionality and Aristotle” in Liesbeth Huppes-Cluysenaer & Nuno M. M. S. Coelho, orgs. Aristotle and The Philosophy of Law: Theory, Practice and Justice. Nova York: Springer, 2013. pg. 265

FARIA, Maria do Carmo Bettencourt de. Direito e ética. Aristóteles, Hobbes, Kant. São Paulo: Paulus, 2007.

HAMEDI, Afifeh. The Concept of Justice In Greek Philosophy (Plato and Aristotle). Disponível em: [https://www.richtmann.org/journal/index.php/mjss/article/view/5193] acesso em 22.06.2023

IBGE. As micro e pequenas empresas comerciais e de serviços no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2003. Disponível em: [https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv1898.pdf]. Acesso em: 26.06.2023.

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MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, Parte Geral. São Paulo, Saraiva, 1958.

NADER, Paulo. Filosofia do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 5ª ed., 1996.

PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2015.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o princípio da isonomia. Revista Novos Estudos Jurídicos – NEJ, v. 13, n. 2, jul.-dez. 2008. SENADO FEDERAL. Atividade legislativa do Projeto de Lei da Câmara n. 38, de 2017. Disponível em: [https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129049]. Acesso em: 18.06.2023.


[1] Possui graduação em Direito e pós-graduação lato sensu em Direito e Processo do Trabalho, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é advogada no Lefosse Advogados. (giumc@mac.com) (CV Lattes).

[2] Artigo 444 da CLT: “As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes. Parágrafo único. A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.”

[3]    FARIA, Maria do Carmo Bettencourt de. Direito e ética. Aristóteles, Hobbes, Kant. São Paulo: Paulus, 2007. 154 p.

[4]    Aristóteles. “Ética a Nicômacos”. Tradução por Mário da Gama Kury. 1. ed. São Paulo: Editora Madamu, 2021. Pg. 138 e seguintes

[5]    NADER, Paulo. Filosofia do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 5ª ed., 1996, p. 110.

[6] ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o princípio da isonomia. Revista Novos Estudos Jurídicos – NEJ, v. 13, n. 2, jul.-dez. 2008, p. 81-82

[7] PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2015. p. 83.

[8] Idem, ibidem.

[9] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 19. ed. São Paulo: LTr, 2020. p. 196.

[10] DELGADO, Mauricio Godinho. Direito coletivo do trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2017. p. 64.

[11] Artigo 611-A: “A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: I – pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais; II – banco de horas anual; III – intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas; IV – adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE), de que trata a Lei no 13.189, de 19 de novembro de 2015; V – plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança; VI – regulamento empresarial; VII – representante dos trabalhadores no local de trabalho; VIII – teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente; IX – remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual; X – modalidade de registro de jornada de trabalho; XI – troca do dia de feriado; XII – enquadramento do grau de insalubridade; XIII – prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho; XIV – prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo; XV – participação nos lucros ou resultados da empresa.”

[12] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 590415/SC. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Data de julgamento: 30.04.2015. Data de publicação: 29.05.2015. Disponível em: [http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2629027]. Acesso am: 18.06.2022, p. 23.

[13]   ABBOUD, Georges. “Direito Constitucional Pós-Moderno“. 1ª ed., São Paulo: Thomson Reuters, 2021. pg. 527.

[14] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Emendas apresentadas ao PL n. 6.787/2016. Disponível em: [https:// www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_emendas?idProposicao=2122076&subst=0]. Acesso em: 18.06.2022.