A ATUAÇÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NA DEFESA DOS DIREITOS SOCIOAMBIENTAIS NO BRASIL

A ATUAÇÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NA DEFESA DOS DIREITOS SOCIOAMBIENTAIS NO BRASIL

31 de dezembro de 2023 Off Por Cognitio Juris

THE PERFORMANCE OF THE INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS IN THE DEFENSE OF SOCIAL AND ENVIRONMENTAL RIGHTS IN BRAZIL

Artigo submetido em 23 de dezembro de 2023
Artigo aprovado em 29 de dezembro de 2023
Artigo publicado em 31 de dezembro de 2023

Cognitio Juris
Volume 13 – Número 53 – Dezembro de 2023
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Allan Ribeiro dos Santos [1]
Izaura Rodrigues Nascimento [2]
Verônica Maria Félix da Silva Brasil [3]

RESUMO: O presente trabalho, desenvolvido na área do Direito Internacional Público, aborda o tema da atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) na defesa dos direitos socioambientais no Brasil. A partir desta ideia central, no seio das competências jurisdicionais e consultivas da Corte, que lhe conferem a capacidade de julgar, revisar e emitir pareceres sobre a efetivação dos Direitos Humanos nos territórios de seus Estados-membros, pretende-se alcançar o objetivo de identificar as formas de atuação da Corte IDH na defesa e promoção dos direitos socioambientais no Brasil, demonstrando a evolução de sua jurisprudência desde o julgamento paradigmático do caso Nuestra Tierra Vs. Argentina. A conclusão alcançada a partir do estudo de casos concretos, sobretudo, o caso Comunidade Xucuru Vs. Brasil, sugere que a jurisprudência da Corte ainda não se encontra completamente consolidada, pois embora já se reconheçam os direitos socioambientais como direitos humanos, ainda há a necessidade de vinculação a um direito amplamente reconhecido, como o direito à propriedade, para a sua efetivação. Para o desenvolvimento deste estudo qualitativo, utilizou-se o tipo de pesquisa exploratória, baseada na revisão bibliográfica de doutrinas, julgados e artigos especializados, além da consulta à legislação em vigor.

Palavras-chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos. Direitos socioambientais. Opinião Consultiva nº 23/17.    

ABSTRACT: This work, developed in the area of ​​Public International Law, addresses the issue of the role of the Inter-American Court of Human Rights (IDH Court) in defending socio-environmental rights in Brazil. Based on this central idea, within the jurisdictional and consultative powers of the Court, which give it the ability to judge, review and issue opinions on the implementation of Human Rights in the territories of its Member States, the aim is to achieve the objective of identifying the ways in which the Inter-American Court acts in defending and promoting socio-environmental rights in Brazil, demonstrating the evolution of its jurisprudence since the paradigmatic judgment of the Nuestra Tierra v. Argentina case. The conclusion reached from the study of concrete cases, especially the case Comunidade Xucuru v. Brasil, suggests that the Court’s jurisprudence is not yet completely consolidated, as although socio-environmental rights are already recognized as human rights, there is still a need link to a widely recognized right, such as the right to property, for its implementation. To develop this qualitative study, the type of exploratory research was used, based on a bibliographical review of doctrines, judgments and specialized articles, in addition to consulting current legislation.Keywords: Inter-American Court of Human Rights. Socio-environmental rights. Advisory Opinion No. 23/17..1 INTRODUÇÃO

O presente artigo, desenvolvido na área do Direito Internacional Público, aborda o tema da atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) na Defesa dos direitos socioambientais no Brasil, a partir do estudo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), do Protocolo Adicional de São Salvador e da Opinião Consultiva nº 23/2017, que serviram de fundamentos para o julgamento paradigmático do caso Nuestra Tierra Vs. Argentina, ocasião em que, pela primeira vez na história, a Corte decidiu baseando-se no meio ambiente sadio como direito judicializável e, portanto, merecedor da tutela do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SIPDH).

A motivação para a escolha do tema surgiu da necessidade de um olhar mais crítico sobre a atuação da Corte em relação à proteção e promoção dos direitos socioambientais, também considerados direitos humanos desde o Protocolo Adicional de São Salvador, e sobre os seus recentes julgamentos, amparados na Opinião Consultiva nº 23/2017, que ampliou a competência contenciosa da Corte IDH para matérias além daquelas previstas na Carta de Costa Rica.

Desta forma, conhecendo-se as competências e funções da Corte IDH, definidas entre os artigos 61 e 65, do Pacto de São José da Costa Rica, para atuar como órgão jurisdicional e consultivo do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, e a ampliação destas competências conferidas pelo Protocolo Adicional de São Salvador, quando passou a admitir, em seu art. 11, o meio ambiente como integrante dos direitos econômicos, sociais e culturais (DESC), e, ainda, a Opinião Consultiva nº 23/2017, que deu caráter volátil às Cartas da Costa Rica e São Salvador ao considerá-las como instrumentos vivos e em constante evolução, busca-se, então, alcançar o objetivo principal deste trabalho, que é o de identificar as formas de atuação da Corte IDH na defesa dos direitos socioambientais no Brasil, demonstrando a evolução de sua jurisprudência desde o julgamento do caso Nuestra Tierra Vs. Argentina, em 2020.

Portanto, a questão que se impõe e buscará ser respondida nesta pesquisa é sobre qual seria o atual entendimento da Corte IDH em relação à Defesa e promoção dos direitos socioambientais no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Sistema Regional Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.

Ao longo desta abordagem foi utilizada uma estratégia metodológica de cunho qualitativo, baseando-se no método indutivo, para realizar uma pesquisa exploratória centrada na revisão jurisprudencial, documental e bibliográfica de doutrinas especializadas em Direito Internacional Público e Direitos Humanos, além de produções científicas que versam sobre a atuação da Corte IDH, sobretudo, quando relacionada à proteção e promoção dos direitos socioambientais no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) e, mais especificamente, no Brasil.

Por fim, visando facilitar a compreensão do leitor, as seções foram distribuídas da seguinte forma: uma introdução, com a exposição da delimitação do tema, justificativa, objetivo e metodologia; uma primeira seção, que apresenta as competências da Corte Interamericana de Direitos Humanos; a segunda seção, que aborda a atuação da Corte IDH na proteção dos direitos socioambientais, a partir do estudo da Opinião Consultiva nº 23/2017 e do caso Nuestra Tierra Vs. Argentina; a terceira seção, que adentra a temática da proteção dos direitos socioambientais no Brasil; e por fim, além das considerações finais, as referências que contribuíram para a elaboração da pesquisa.

2 A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS SOCIOAMBIENTAIS

2.1 As competências da Corte IDH

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) é um órgão que integra o sistema regional de proteção e promoção da dignidade humana, administrado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que engloba 35[4] Estados das Américas, incluindo o Brasil. Trata-se de um órgão com competência jurisdicional e consultiva, com sede em São José, na Costa Rica, regulado pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica), em seus art. 52 ao 73.

Sobre a composição da Corte, Portella (2012, p. 890) a descreve:

A Corte é composta por sete juízes, nacionais dos Estados-membros da OEA, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autoridade moral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos e que reúnam os requisitos legais necessários para o exercício das mais elevadas funções judiciais no Estado do qual sejam nacionais ou no Estado que os propuseram como candidatos. São eleitos pelo voto secreto da maioria absoluta dos Estados-Partes do Pacto para um mandato de seis anos, podendo ser reeleitos por uma vez para o período subsequente. Os juízes da Corte gozarão das mesmas prerrogativas dos agentes diplomáticos e não poderão exercer qualquer função que possa afetar sua independência ou imparcialidade.

Com essa composição, a atuação da Corte tem abrangido desde o julgamento de casos concretos levados aos seu conhecimento, por má interpretação ou afronta às disposições do Pacto de São José da Costa Rica, às consultas oriundas dos Estados-membros e outros órgãos sobre a interpretação da jurisprudência e das normas internacionais de direitos humanos no âmbito do próprio sistema regional ou fora dele. Também lhe compete realizar o controle de convencionalidade das leis, diante da inércia ou ineficiência dos Estados em realizá-lo por meio dos seus respectivos aparatos judiciários internos.

Estas competências são delimitadas pelo Pacto de São José da Costa Rica, em seus art. 61 ao 65, e abordaremos os principais aspectos de cada uma delas nas subseções seguintes.

2.1.1 A competência jurisdicional da Corte

Em linha gerais, o acesso de petições que versam sobre violações de direitos humanos junto à Corte IDH será sempre franqueado pela CIDH, após esgotados os processos da Seção 4 (art. 48 ao 50), da CADH, ou seja, após verificada a veracidade dos fatos através do pedido de informações feito ao Estado-parte sobre o caso e, diante da impossibilidade de uma solução amistosa para o problema, cabe à CIDH elaborar um relatório com recomendações que serão remetidas aos denunciados, para adoção de providências no prazo de três meses. Somente na hipótese de descumprimento destas recomendações, a CIDH decidirá, pela maioria absoluta de seus membros, pela publicação do relatório e encaminhamento à Corte IDH.

Uma vez denunciado perante à Corte IDH, o Estado que tiver reconhecido à sua competência contenciosa obrigatória poderá ser condenado mediante sentença judicial fundamentada, definitiva e inapelável, nos termos do art. 67, da CADH, cabendo, assim, apenas pedido de esclarecimentos.

A competência da Corte IDH foi reconhecida pelo Estado brasileiro por meio do Decreto nº 4.463, de 8 de novembro de 2002, restringindo-se aos fatos ocorridos apenas após a declaração de reconhecimento formal junto à Secretaria da OEA, em 10 de dezembro de 1998, destacando-se, ainda, a reserva de reciprocidade, ou seja, desde que a outra parte envolvida em uma eventual lide também esteja submetida à jurisdição da Corte.

O Brasil já foi réu em alguns processos perante à Corte IDH, geralmente, respondendo por violações aos direitos de 1ª dimensão, relacionados à liberdade, e 2ª dimensão, por atos discriminatórios. Podemos citar como importantes casos em que o Brasil foi parte, os seguintes: Damião Ximenes Lopes Vs. Brasil, Nogueira de Carvalho Vs. Brasil, Escher e outros Vs. Brasil, Garibaldi Vs. Brasil, Júlia Gomes Lund e outros Vs. Brasil e Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs. Brasil, todos disponíveis para consulta integral na página da Corte[5].

Sobre este último caso, maiores esclarecimentos serão feitos no item 2.3, que versa sobre a atuação da Corte IDH na proteção dos direitos socioambientais no Brasil.

2.1.2 A competência consultiva

Acerca da competência consultiva da Corte IDH, com previsão no art. 64 da CADH, é possível afirmar que se manifesta através de pareceres públicos solicitados pelos Estados-membros da Organização ou outros órgãos, constantes no capítulo X da Carta da Organização dos Estados Americanos, referindo-se a dúvidas quanto à interpretação da Convenção Americana ou outros tratados internacionais sobre a proteção de direitos humanos fora do sistema regional. A Corte também poderá se manifestar, a pedido exclusivo de um Estado-membro, sobre a compatibilidade de suas leis domésticas com o ordenamento internacional de proteção de direitos humanos.

O procedimento para a solicitação de consultas está previsto no Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em seu art. 73, e consiste no recebimento do pedido de parecer consultivo pelo Secretário, que o distribui aos Estados-membros, à CIDH, ao Conselho Permanente, ao Secretário Geral e aos órgãos da OEA, além de outros eventuais interessados, para que se manifestem em prazo a ser fixado e a Corte decida, em razão da conveniência, pela necessidade ou não de audiência para debate oral.

Um ponto a ser destacado, conforme previsão do art. 75.3 do aludido Regulamento, é que “todo Juiz que tiver participado da emissão de um parecer consultivo tem direito a acrescer-lhe seu voto concordante ou dissidente, o qual deverá ser fundamentado”.

Até o ano desta pesquisa, a Corte IDH já publicou um total de 30 Opiniões Consultivas (OC), com destaque para a OC nº 23/2017, encomendada pela Colômbia, por sua contribuição para que o meio ambiente se tornasse, enfim, um direito judicializável perante à Corte, tal como os demais direitos humanos.

Por esta razão, Lopes (2020, p. 42) defende que as OC atuam de forma preventiva ao alertarem os Estados sobre a incompatibilidade de suas normas domésticas com o ordenamento internacional de direitos humanos, considerado um verdadeiro corpus juris.

2.1.3 O controle de convencionalidade

Embora o artigo 64.2, da CADH, que versa sobre a competência consultiva da Corte IDH, permita que ela emita pareceres sobre a compatibilidade de normas internas de um determinado Estado-membro e o ordenamento jurídico internacional de defesa e proteção dos direitos humanos, a pedido do próprio Estado-membro, é possível, ainda, que a Corte proceda a esse juízo de compatibilidade de normas, por ocasião de seus julgamentos, procedimento que a doutrina denominou controle internacional de convencionalidade.

Sobre esta forma de controle, Ramos (2011, p. 211) apresenta o seguinte conceito:

O controle de convencionalidade internacional é a atividade de fiscalização dos atos e condutas dos Estados em confronto com seus compromissos internacionais. Em geral o controle de convencionalidade é atribuído a órgãos compostos por julgadores independentes, criados por tratados internacionais, o que evita que os próprios Estados sejam, ao mesmo tempo, fiscais e fiscalizados. Entre os órgãos de maior prestígio estão os tribunais internacionais de direitos humanos (Corte Europeia, Interamericana e Africana), a Corte Internacional de Justiça, os Tribunais de Direito da Integração (Tribunal de Justiça da União Europeia e o Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul), entre outros.

Impende ressaltar que este instituto não se confunde com o controle de convencionalidade nacional, de competência do Poder Judiciário de cada Estado-membro, segundo a jurisprudência da própria Corte, que começou a ser construída em 2006, a partir do julgamento do caso Almonacid Arellano Vs. Chile[6]. Em relação a este controle interno, importa que a sua decisão não vincula a Corte Interamericana, que deverá realizá-lo na hipótese de inércia do Estado ou discordância em relação ao entendimento de seus respectivos tribunais domésticos, sempre orientado pelos princípios pro homine e da primazia dos tratados internacionais.

Um exemplo de discordância e controle realizado pela Corte IDH pode ser verificado no julgamento do caso Gomes Lund Vs. Brasil[7], em que não foi aceito o juízo de compatibilidade realizado pelo STF, entre a Lei de Anistia Brasileira (Lei nº 6.683/79) e a CADH, culminando com a condenação brasileira perante à Corte em 2010.

2.2 A atuação da Corte IDH na proteção dos direitos socioambientais

O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIPDH) e seus dois principais órgãos, a CIDH e a Corte IDH, foram criados em um contexto de pós-guerra, inspirados pelo movimento de globalização dos direitos humanos promovido pela Organização das Nações Unidas, a partir de 1948.

Entre os instrumentos legais que lhe dão suporte e definem os direitos a serem tutelados pelo sistema, o Pacto São José da Costa Rica (CADH), de 1969, assume um importante papel ao eleger como objetivos centrais da proteção e promoção dos direitos humanos, os direitos individuais e políticos do homem.

Portela (2012, p. 877) ensina que além do Pacto de São José definir como pessoa todos os seres humanos e nortear os trabalhos da Corte Interamericana, também estabelece obrigações positivas a serem assumidas pelos Estados, no sentido de proporcionar a devida garantia a uma vida digna aos indivíduos, sem qualquer discriminação, prevenindo, investigando e punindo todas as violações aos direitos humanos que, por ventura, sejam observadas sob suas respectivas jurisdições.

Portanto, nota-se que os direitos tutelados pela CADH estão relacionados à liberdade e à igualdade dos indivíduos, considerados direitos de 1ª e 2ª dimensões, respectivamente. A única menção aos direitos de 3ª dimensão encontra-se no art. 26, quando a Carta impõe aos Estados o dever de desenvolver progressivamente os direitos econômicos, sociais e culturais em seus territórios.

Acerca desta singela menção aos direitos coletivos na CADH, Magalhães (2020, p. 203) observa que a preocupação com os direitos de 2ª e 3ª dimensões não pertencia àquela época, só alcançando a pauta de discussões a partir do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1988 (Protocolo de São Salvador), que trouxe novo entendimento acerca dos direitos humanos ao reconhecê-lo como um “todo indissolúvel”, abrangendo, então, este complexo formado pelos direitos civis, políticos e sociais. Quanto ao direito ao meio ambiente sadio, também constante do Protocolo Adicional, em seu art. 11, o autor destaca que somente com a Declaração de Estocolmo, em 1972, este passou a ocupar a agenda internacional e, mais tarde, por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em 1992, veio a tornar-se verdadeiramente uma prioridade.

Ainda sobre a questão ambiental, somente em 2017, ao ser demandada pela Colômbia sobre questão relacionada às obrigações dos Estados em relação ao meio ambiente no marco da proteção e garantia dos direitos à vida e à integridade pessoal, no exercício de sua competência consultiva, a Corte IDH publicou a Opinião Consultiva (OC) nº 23/2017, firmando o seu entendimento sobre a inclusão do ambiente sadio no complexo de direitos econômicos, sociais e culturais (DESC).

A dúvida suscitada pelo Estado colombiano junto à Corte consta no parágrafo 1º, da OC nº 23/2017, a seguir transcrito:

“[…] de que forma deve ser interpretado o Pacto de San José quando existe o risco de que a construção e o uso das novas grandes obras de infraestrutura afetem de forma grave o meio ambiente marinho na Região das Grandes Caraíbas e, em consequência, o habitat humano essencial para o pleno desfrute e exercício dos direitos dos habitantes da costa e/ou ilhas de um Estado parte do Pacto, à luz das normas ambientais consagradas em tratados e no direito internacional consuetudinário aplicável entre os Estados respectivos.”

Ainda a respeito da OC nº 23/2017, Lopes (2020, p. 43) destaca alguns aspectos importantes, a começar pelos critérios de interpretação a serem utilizados na leitura das normas de proteção aos direitos humanos, elencados nos parágrafos 40 ao 45, e que nos remetem aos critérios da Convenção de Viena[8], em seus art. 31 e 32. Também se utilizaram os critérios do art. 29, da CADH, para sustentar o entendimento que os tratados de direitos humanos devem ser considerados verdadeiros “instrumentos vivos, cuja interpretação deve acompanhar a evolução do tempo e as condições de vida atuais”.

A partir deste pressuposto, tornou-se possível concluir, nos parágrafos 56 e 57 da referida OC, que o direito ao meio ambiente sadio, previsto no art. 11, do Protocolo Adicional de São Salvador, possui íntima relação com os direitos humanos e, portanto, deve integrar o complexo indissolúvel de direitos econômicos, sociais e culturais (DESC), protegidos pelo SIPDH.

Com efeito, o primeiro processo a ser julgado pela Corte IDH com fundamento na OC nº 23/2017 foi o caso Nuestra Tierra[9] Vs. Argentina, sentenciado em 2020, em que restou reconhecida a existência de um vínculo ancestral dos povos tradicionais com o meio ambiente natural que habitam, cabendo ao Estado-membro adotar medidas positivas para lhes garantir uma vida digna. Entretanto, mesmo antes do julgamento deste caso, cabe destacar que a Corte já dava sinais de consolidação de seu entendimento acerca do direito dos povos indígenas à terra e aos recursos naturais nela disponíveis.

A diferença do julgamento do caso Nuestra Tierra Vs. Argentina para os que lhe precederam é que, na ocasião, a Corte não se restringiu apenas ao direito coletivo à propriedade das terras, por parte das comunidades indígenas membros da Associação Lahka Hohnat, mas também, aos direitos de circulação e residência, a um meio ambiente sadio, a uma alimentação adequada, à água e à identidade cultural.

Entre os principais pontos resolutivos da sentença, restou decidido em apertada votação, que o Estado deveria ser considerado responsável pela violação dos direitos socioambientais acima citados e, por unamidade, que deveria outorgar um título de propriedade comum para as comunidades indígenas locais, devendo, ainda, providenciar a remoção da população não indígena para um local digno. Ademais, também restou decidido a criação de um fundo de desenvolvimento comunitário para recuperação da identidade cultural dos povos tradicionais integrantes da Associação Lahka Hohnat.

          Não obstante todos os efeitos positivos decorrentes deste julgamento inovador e a sua contribuição para a consolidação dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA), enquanto bens jurídicos a serem tutelados pelo SIPDH, o que se verifica em relação à jurisprudência da Corte é que ela tem sido muito mais enfática somente quando o objeto da lide possui relação com o direito coletivo à propriedade dos povos tradicionais, em razão da relação ancestral que estes mantém com as terras que habitam.

          Atualmente, alguns processos ainda tramitam junto à Corte e merecem acompanhamento, por tratarem de matérias relacionadas aos DESCA. São eles[10]:  Pueblos Indígenas U’wa y sus miembros Vs. Colombia, Pueblos Indígenas Tagaeri y Taromenane Vs. Ecuador, Comunidad Indígena Maya Q’eqchi Agua Caliente Vs. Guatemala, Comunidad Garífuna de San Juan y sus miembros Vs. Honduras, Comunidad de La Oroya Vs. Perú e Comunidades Quilombolas de Alcântara Vs. Brasil.

          Este último caso será objeto de análise na seção seguinte, que trata da atuação da Corte IDH na proteção dos direitos socioambientais no Brasil.

2.3 A proteção dos direitos socioambientais no Brasil

Como já mencionado anteriormente, mesmo antes do julgamento do caso Nuestra Tierra Vs. Argentina, em 2020, já predominava na Corte IDH o entendimento de que os direitos coletivos também deveriam ser protegidos pelo SIPDH, sobretudo, aqueles relacionados com os direitos dos povos tradicionais sobre as terras que ocupam, a exemplo do processo brasileiro julgado em 2018, Comunidade Indígena Xucuru Vs. Brasil[11].

No entanto, como é possível observar a partir da análise das considerações da Corte, nos parágrafos 115 e seguintes da referida sentença, à época, o julgamento dos direitos dos povos tradicionais tinham como fundamento o art. 21, da CADH, e não se fazia qualquer menção ao art. 26, que versa sobre a proteção dos DESCA, in verbis:

Artigo 26 – Desenvolvimento progressivo

Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.

É cediço que o dispositivo citado necessita ser interpretado em conjunto com o art. 11, do Protocolo de São Salvador, que versa sobre o direito ao meio ambiente sadio, mas o que merece destaque é a evolução da jurisprudência da Corte, que passou a considerar em suas sentenças a questão ambiental como integrante indissolúvel dos direitos humanos.

Neste sentido, a OC nº 23/2017 e o caso Nuestra Tierra Vs. Argentina só fizeram consolidar um entendimento que já vinha se construindo anos antes, em favor dos povos tradicionais, como é possível confirmar diante da semelhança entre os pontos resolutivos do caso Comunidade Indígena Xucuru Vs. Brasil.

Atualmente, encontra-se pendente de julgamento junto à Corte IDH o caso Comunidades Quilombolas de Alcântara Vs. Brasil[12], e há, ainda, duas petições que merecem o acompanhamento junto à CIDH, por tratarem de temas semelhantes, com fundamento no art. 26, da CADH, e que eventualmente também poderão ser submetidas ao Tribunal. O primeiro caso, Comunidade Quilombola da Ilha de Marambaia Vs. Brasil[13], foi objeto de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a União no ano de 2015, por envolver área sobre a administração da Marinha do Brasil. No entanto, sendo peticionado em 2009 junto à CIDH, teve a sua admissibilidade reconhecida por meio do Relatório nº 81/22, sendo incluído no Relatório Anual à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos. O segundo caso, Comunidade Quilombola Saco das Almas Vs. Brasil[14], foi apresentado em 2010 e teve sua admissibilidade reconhecida por meio do Relatório nº 240/21.

3. CONCLUSÃO

Ante o exposto, conclui-se que a atuação da Corte IDH na defesa e proteção dos direitos socioambientais no âmbito da OEA ainda está em fase de consolidação da jurisprudência, haja vista, o pouco tempo decorrente desde a publicação da OC nº 23/2017 e, também, do julgamento do caso Nuestra Tierra Vs. Argentina, primeiro a ser decidido com fundamento no art. 26, da CADH, combinado com o art. 11, do Protocolo Adicional de São Salvador, cujo o entendimento levou em consideração o meio ambiente sadio como integrante dos DESCA e, portanto, merecedor da tutela do SIPDH.

Ademais, a jurisprudência que inicia a sua construção no caso acima, ao considerar o meio ambiente como bem jurídico judicializável, em desacordo com os mandamentos do Protocolo Adicional, em seu art. 19.6, contraditoriamente consagra as normas internacionais de direitos humanos como verdadeiros “instrumentos vivos” e em constante evolução.

Também é possível inferir no argumento de que a jurisprudência da Corte ainda necessita ser consolidada, o fato de que as decisões em matérias ambientais do Tribunal sempre têm sido associadas somente ao direito dos povos tradicionais à propriedade, não se atribuindo aos direitos socioambientais a devida autonomia.

Se por um lado, a Corte IDH, enquanto intérprete última de suas próprias normas, têm como pacífico o entendimento do direito à propriedade coletiva por parte das comunidades indígenas, em razão de sua relação ancestral e espiritual com a terra que habitam, por outro lado, os demais direitos do complexo indissolúvel DESCA ainda necessitam de maior afirmação.

A partir desta compreensão, urge a necessidade de adequação dos ordenamentos estatais, inclusive, constitucionais, não apenas em razão das demandas contenciosas que se apresentam perante à Corte, mas também, pelo reconhecimento da personalidade jurídica do meio ambiente, conforme recomenda a OC nº 23/2017, no parágrafo 62, destacando Bolívia e Equador, que fazem referência à Mãe Terra e Pacha Mama, respectivamente, como sujeitos de direito em suas Lei Maiores. 

Por fim, em relação às formas de atuação da Corte IDH na defesa e proteção dos direitos socioambientais, observa-se que o Tribunal tem agido no exercício de suas competências consultiva, com a OC nº 23/2017, e contenciosa, no julgamento inovador do caso Nuestra Tierra Vs. Argentina, podendo, ainda, exercer o controle de convencionalidade ao se deparar com uma lei ou ato que esteja em desacordo com a CADH, tudo para garantir um meio ambiente digno para as presentes e futuras gerações no âmbito da OEA.

REFERÊNCIAS

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[1] Graduado em Psicologia, pela Universidade Estácio de Sá, e em Direito, pela Universidade do Estado do Amazonas. Especialista em Neuropsicopedagogia e Direito Militar, pela Universidade Cândido Mendes, e em Direito Civil e Empresarial e Relações Internacionais e Geopolítica na Pan-Amazônia, pela Universidade do Estado do Amazonas. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental (PPGDA) da Universidade do Estado do Amazonas. Lattes:  https://lattes.cnpq.br/5763740730000761.

[2] Bacharel em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá em 2013. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas/AM em 2021. Especialista em Direito Militar pela Universidade Cândido Mendes/MG em 2020. Especialista em Direito Civil e Empresarial pela Universidade do Estado do Amazonas/AM em 2023. allanribeiro202@hotmail.com.

[3] Advogada. Professora. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental (PPGDA) da universidade do Estado do Amazonas. veronica.mfsjesus@gmail.com.

[4] Disponível em: https://www.oas.org/pt/estados_membros/default.asp

[5] Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/pc/demandas.asp

[6] Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_por.doc

[7] Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.doc

[8] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm

[9] Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_400_esp.pdf

[10] Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/casos_en_tramite.cfm?lang=pt  

[11] Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf   

[12] Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/tramite/comunidades_quilombolas_de_alcantara.pdf  

[13] Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/2022/br%20p-1450-09%20comunidade%20quilombola%20adm%20por_final%20web.pdf

[14] Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/2021/brad1204-10port.pdf