ABORTO EM CASOS DE GRAVIDEZ RESULTANTE DE VIOLÊNCIA SEXUAL

ABORTO EM CASOS DE GRAVIDEZ RESULTANTE DE VIOLÊNCIA SEXUAL

ABORTION IN CASES OF PREGNANCY RESULTING FROM SEXUAL VIOLENCE

Artigo submetido em 20 de maio de 2024
Artigo aprovado em 29 de maio de 2024
Artigo publicado em 30 de junho de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 55 – Junho de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Vitoria Brito Gomes[1]
Israel Andrade Alves[2]

RESUMO: O presente artigo pretende analisar o tema do aborto em casos de gravidez resultante de violência sexual no Brasil. Investigou-se como o aborto é considerado crime no país, exceto em situações específicas como risco à vida da mulher, gravidez resultante de estupro e anencefalia fetal. Abordou-se como o direito reprodutivo das mulheres, assegurado por leis brasileiras e tratados internacionais, engloba a liberdade de decisão sobre a maternidade e o acesso a informações sobre saúde reprodutiva. Discutiu-se como a lacuna legal na legislação brasileira gera divergências entre profissionais de saúde e juristas, criando insegurança jurídica e dificultando o acesso ao procedimento. Demonstrou-se como a falta de uma regulamentação nacional resulta em regras distintas em cada estado, complicando ainda mais o acesso ao aborto legal. Explorou-se como a divergência judicial e o estigma social associados ao tema aumentam a incidência de abortos clandestinos, aumentando os riscos à saúde e à vida das mulheres. Examinou-se como profissionais de saúde também podem se recusar a realizar o procedimento por motivos éticos, aumentando os obstáculos ao acesso legal ao aborto. Analisou-se como essas questões contribuem significativamente para o sofrimento das vítimas de estupro e para a elevada taxa de mortalidade materna no país.

PALAVRAS-CHAVE: gravidez; estupro; aborto legal.

ABSTRACT: This article aims to analyze the topic of abortion in cases of pregnancy resulting from sexual violence in Brazil. It was investigated how abortion is considered a crime in the country, except in specific situations such as risk to the woman’s life, pregnancy resulting from rape and fetal anencephaly. It addressed how women’s reproductive rights, guaranteed by Brazilian laws and international treaties, encompass freedom of decision-making regarding motherhood and access to information on reproductive health. It was discussed how the legal gap in Brazilian legislation generates divergences between health professionals and jurists, creating legal uncertainty and making access to the procedure difficult. It was demonstrated how the lack of national regulation results in different rules in each state, further complicating access to legal abortion. It was explored how judicial divergence and social stigma associated with the issue increase the incidence of clandestine abortions, increasing the risks to women’s health and lives. It examined how healthcare professionals may also refuse to perform the procedure for ethical reasons, increasing obstacles to legal access to abortion. It was analyzed how these issues contribute significantly to the suffering of rape victims and to the high maternal mortality rate in the country.

KEYWORDS: pregnancy; rape; legal abortion.

INTRODUÇÃO

O debate sobre o aborto é complexo e multifacetado, envolvendo questões legais, éticas, sociais e de saúde pública. No Brasil, o aborto é considerado crime, exceto em casos específicos, como quando a gestação representa risco à vida da mulher, em casos de gravidez resultante de estupro e em gestações de fetos anencéfalos.

Preliminarmente, o presente artigo faz um breve histórico do aborto no Brasil, seguindo para análise do começo da vida para fins jurídicos e da legislação, a qual não especifica até quando o aborto é permitido nem como deve ser realizado, deixando essa regulamentação para normas administrativas.

Estuda-se os direitos reprodutivos das mulheres e adiante os atos administrativos do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Medicina, os quais regulamentam o procedimento por meio de portarias, o que tem gerado divergências entre profissionais de saúde e juristas sobre os prazos e métodos para a realização do aborto legal. Além disso, verifica-se que a falta de uma portaria do Ministério da Saúde faz com que cada estado brasileiro tenha regras diferentes para o procedimento, criando uma situação de insegurança jurídica e dificultando o acesso das mulheres ao aborto legal.

Discorre-se acerca da divergência de decisões judiciais e o estigma social em torno do aborto, uma vez que também dificultam o acesso das mulheres ao procedimento legal, levando algumas a recorrer a procedimentos clandestinos, o que aumenta os riscos à sua saúde e vida. Nessa linha, analisa-se que os profissionais da saúde também podem negar o procedimento por objeções éticas, criando barreiras adicionais para as mulheres que buscam realizar o aborto legal.

Por conseguinte, entende-se que as normas sobre o aborto legal no Brasil são complexas e variadas, aumentando o sofrimento das vítimas de estupro e agravando a mortalidade materna no país.

Utilizou-se a metodologia baseada em pesquisa bibliográfica, pois foi empregada para fundamentar teoricamente as análises e argumentações apresentadas no trabalho, utilizando fontes como leis, livros, artigos científicos e dissertações para embasar os conteúdos abordados. Essa abordagem permitiu a revisão extensa da literatura existente sobre o tema, contribuindo para uma análise sólida e fundamentada. Além disso, a metodologia de pesquisa bibliográfica foi escolhida devido à relevância e complexidade do tema, permitindo uma abordagem ampla e aprofundada sobre o assunto.

1 DO ABORTO

Primordialmente, conforme o dicionário Aurelio “aborto é a retirada do feto antes do tempo normal, através de uma interrupção voluntária ou provocada”. Ademais, para Fernado Capez:     

Considera-se aborto a interrupção da gravidez, com a consequente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intrauterina, a qual se dá no início da gravidez. Seguindo o parâmetro delimitado pela Medicina, o início da gravidez se dá com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, momento no qual se dá o desenvolvimento do ser gerado no útero materno até culminar no seu nascimento. Este é o entendimento que predomina na doutrina, ou seja, a proteção penal do aborto inicia-se com a fecundação (Capez, 2024, p.75).

Ao pensar na palavra aborto pensa-se na interrupção da gravidez. Essa interrupção nem sempre foi considerada crime, vez que antigamente, na época da Lei das XII Tábuas e das Leis Republicanas não havia a criminalização do aborto, pois a mulher tinha autonomia sobre seu próprio corpo em relação ao procedimento abortivo, além disso, o aborto era um procedimento comum entre os povos hebreus e gregos.

No entanto, com a chegada do Cristianismo, a pratica do aborto começou a ser repugnada pela sociedade. Adiante, os imperadores Adriano, Constantino e Teodósio reformaram as leis, considerando o procedimento abortivo como homicídio, pois passou a ser considerado uma lesão ao direito do marido, já que a mulher era propriedade do homem e os filhos sua prole.

Acerca disso, aduz Fernando Capez:

Na Idade Média o teólogo Santo Agostinho, com base na doutrina de Aristóteles, considerava que o aborto seria crime apenas quando o feto tivesse recebido alma, o que se julgava ocorrer quarenta ou oitenta dias após a concepção, segundo se tratasse de varão ou mulher. São Basílio, no entanto, não admitia qualquer distinção considerando o aborto sempre criminoso. É certo que, em se tratando de aborto, a Igreja sempre influenciou com os seus ensinamentos na criminalização do mesmo, fato este que perdura até os dias atuais (Capez, 2024, p.75).

Dessa forma, com a influência da religião sobre o procedimento abortivo, este é atualmente um dos crimes trazidos pelo Código Penal brasileiro.

1.1 COMEÇO DA VIDA PARA FINS JURÍDICOS

Para fins jurídicos, o começo da vida ainda é uma discussão, havendo divergência de entendimentos doutrinários, pois há três teorias relevantes. A teoria da Concepção, a qual defende que a vida começa quando há a fecundação do óvulo pelo espermatozoide; Teoria da Nidação, a qual defende que a vida começa quando o óvulo fecundado se aloja no útero da mulher; e a teoria da Atividade Neural, a qual defende que a vida começa quando há atividade neural, o que ocorre por volta da décima segunda semana.

No que tange a teoria da Concepção, os defensores dessa visão argumentam que o zigoto (célula formada na fecundação), contém toda a informação genética do ser humano em formação, portanto, nessa fase inicial, o corpo consiste em uma única célula que se divide em várias até se desenvolver em um ser humano adulto (Costa; Giolo, 2015).

Nota-se, que o respaldo jurídico dos defensores concepcionalistas é buscado no Código Civil (CC), na Constituição Federal (CF) e Tratados Internacionais. Nesse sentido, a CF em seu art. 5º, o qual trata de direitos fundamentais, trás em seu rol, o direito a vida. Ademais, o art. 2º do CC dispõe que “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

Já a Nidação é o processo pelo qual o embrião se fixa no útero, dando início ao desenvolvimento dos anexos necessários, mas para que essa Teoria seja compreendida, é essencial que se saíba o processo reprodutivo humano. Para tanto, a fecundação (união do gameta masculino com o feminino) ocorre na trompa de falópio, que conecta os ovários ao útero. Após o processo de fecundação, o óvulo fertilizado não pode permanecer na trompa de falópio, pois isso pode resultar emu ma gravidez ectopica, especialmente túbaria, que é perigosa para a mãe. Ademais, o óvulo fertilizado precisa se implanter no útero, onde encontrará as condições adequadas para se desenvolver. Portanto, para os defensores dessa Teoria, a vida do embrião só pode ser reconhecida após essa etapa de desenvolvimento (Costa; Giolo, 2015).

É nesse sentido que para os doutrinadores que defendem essa tese juridicamente, ela está ligada ao tema do aborto, o qual é a interrupção da gestação com a morte do feto, e gestação tem início com a implementação do óvulo fertilizado na parede do útero materno. “Portanto, a partir das definições apresentadas é licito concluir que o Código Penal adota a teoria da nidação visto que, ao reconhecer o aborto como uma eliminação de vida intrauterina, a eliminação de vida extrauterina seria totalmente atípico” (Costa; Giolo, 2015, p. 307).

Outrossim, alguns doutrinadores adotam a Teoria da Atividade Neural, a qual defende que a vida começa quando há atividade neural, pois o cérebro é o que define a vida humana, tornando-se impossível se falar em vida quando não há desenvolvimento do sistema nervoso central. A Teoria supramencionada tem como fundamento legal a lei n.º 9.434/1997, a qual dispõe sobre a remoção de órgãos e tecidos para fins de transplantes e terapias. Ademais, há divergência entre os próprios defensores dessa Teoria quanto ao momento que se inicia a atividade neural. Nesse sentido para Luís Roberto Barroso:

Se a vida humana se extingue, para a legislação vigente, quando o sistema nervoso para de funcionar, o início da vida teria lugar apenas quando este se formasse, ou, pelo menos, começasse a se formar. E isso ocorre por volta do 14º dia após a fecundação, com a formação da chamada placa neural (Barroso apud Costa; Giolo, 2015, p. 309).

No Brasil usa-se as Teorias da Fecundação e da Nidação no que tange ao crime de aborto, no entanto já há decisão favoravél com base na Teoria da Atividade Neural. Uma vez que, a Ministra Rosa Weber votou a favor da descriminalização do aborto no que pese as primeiras doze semanas de gestação com fulcro na Teoria da Atividade Neural, sendo ela a relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, a qual começou a ser julgada no dia 22 de setembro de 2023, todavia, o julgamento foi suspenso a pedido do Ministro Luís Roberto Barroso, sem data definida para retomá-lo.

1.2 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

A criminalização do aborto nem sempre foi como nos dias de hoje, já que os códigos precisam “evoluir” de acordo com a necessidade da sociedade. Dessa forma, há de se começar pelo primeiro Código Criminal brasileiro, ainda nos tempos de Império, mais precisamente na década de 1830, o ano em que foi instituído no país.

O Código Penal (CP) de 1830 não criminalizava o aborto quando este era praticado pela própria gestante, mas criminalizava quando o ato era praticado por terceiro. Ademais, o CP de 1890 trouxe como sujeito ativo do crime não só o terceiro que o praticasse, mas também a gestante. E por fim, no Código Penal de 1940, o atual CP brasileiro, tipificou-se como sujeito ativo do aborto provocado tanto o realizado por terceiro com ou sem o consentimento da grávida,  quanto o praticado pela própria gestante (Capez, 2024).

Para Souza e Silva:

O direito penal ao criminalizar o aborto, objetiva proteger o bem jurídico da vida humana em formação, no qual o sujeito ativo pode ser a gestante (crime próprio), ou quaisquer pessoas (crime comum), tratando-se de crime doloso, não admitindo a conduta culposa, que se consuma com a morte do feto ou embrião, buscando incriminar a conduta de “provocar aborto”, de forma a atentar contra a vida do ser em formação (Souza; Silva, 2021, p. 6).

No que tange à retirada provocada do feto, é considerada crime pela legislação brasileira, uma vez que é defendido pela legislação em questão o direito à vida, estando portanto, o aborto tipificado no Título I, Capítulo I, da parte especial do Código Penal, dos Crimes Contra a Vida.

O Código Penal, em seu art. 128, traz duas excludentes de ilicitude:

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I – Se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II – Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (Brasil, 1940, cap. I, art.128).

Portanto, se a vida da gestante estiver em risco ou se a gravidez for resultante de estupro, poderá ser realizado o aborto sem que haja penalidade, a depender da vontade da vítima e se esta for incapaz deverá ter a concordância do seu representante legal.

Embora o CP mencione apenas duas excludentes de ilicitude para a realização do aborto, o Supremo Tribunal Federal (STF) incluiu os casos de fetos anencefalos, o qual para a Agência Senado cientificamente significa:

Em linguagem científica, define-se anencefalia como uma malformação decorrente do não fechamento do neuroporo anterior do tubo neural do embrião, o que implica na ausência ou formação defeituosa dos hemisférios cerebrais. Esta malformação ocorre no 26° dia de gestação, momento no qual ocorre o fechamento do tubo neural: o período crítico varia do 21º ao 26º dia (Brasil, 2010).

Sabe-se que a anencefalia é uma má formação cerebral do embrião, a qual fará com que o feto ainda no ventre, ou pouco depois de nascer venha a falecer, não tendo possibilidade de viver fora do útero da mãe. Diante d  isso,  em 2012 o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54 que o aborto poderá ocorrer sem que haja ilicitude em casos de fetos anencéfalos, com a tese de que é crime impossivel.

No Brasil há três exceções no que tange ao crime de aborto, estando duas delas elencadas no art. 128 do CP, e a terceira na ADPF nº 54 do STF. Outrossim, as exceções elencadas pelo art. 128 do CP, as quais são chamadas tanto pelo Código quanto pelos doutrinadores de aborto necessário ou terapêutico e aborto sentimental, humanitário ou ético; sendo o primeiro realizado quando a gestante corre risco de vida e não existe outra forma de salvá-la, e o segundo relacionado a casos de violência sexual que resultam em gravidez; devem ser praticados por médicos.

Para tanto, o aborto necessário ou terapêuco como já mencionado anteriormente consiste na autorização da interrupção gestacional apenas em situações em que há risco iminente de vida para a gestante e nenhum outro meio de salvá-la. Além disso, é fundamental que o perigo seja de vida, não sendo suficiente se for apenas um perigo à saúde, mesmo que grave. Além do mais, o aborto só é considerado necessário se for o único modo de salvar a vida da gestante; caso contrário, o médico pode ser responsabilizado por crime. Portanto, a necessidade não se configura quando o aborto é realizado para preservar a saúde da gestante ou evitar desonra de cunho pessoal ou familiar (Bitencourt, 2023).

Já nos casos de interrupção da gestação em decorrência de violência sexual que resultam em gravidez, elencada no inciso II do art. 128 do CP, também denominado aborto humanitário, ético ou sentimental, o qual é autorizado legalmente no Brasil, consiste no direito da grávida vítima de estupro de realizar o procedimento abortivo nas unidades de saúde, não sendo necessário a apresentação de autorização judicial, tampouco boletim de ocorrência, sendo necessário apenas o consentimento da gestante, e se essa for incapaz, precisará da anuência do seu representante legal.

É válido mencionar que a respeito da terceira exceção do crime de aborto, esta, por sua vez, é trazida na ADPF nº 54 do STF, a qual foi decidida no ano de 2012, considerada como crime impossível, o aborto de fetos anencéfalos. Nesse sentido para Bitencourt:

[…] Na hipótese de gestação de feto anencéfalo não há vida viável em formação. Em outros termos, falta o suporte fático-jurídico, qual seja, a potencial vida humana a ser protegida, esvaziando-se o conteúdo material que fundamentaria a existência da norma protetiva. Por outro lado, relativamente à gestante, a gravidez anencefálica é potencialmente perigosa, apresentando sérios e graves riscos à vida e à saúde da gestante, além dos graves efeitos psicológicos, com consequências depressivas, angustiantes etc (Bitencourt, 2023, p. 713).

É notório que é inviavel a vida em fetos anencéfalos, uma vez que possuem malformação cerebral, portanto, não havendo vida, não há o que se falar em crime contra a vida, diante disso, nesses casos não existe crime.

Em siníntese, no Brasil o procedimento abortivo é considerado crime contra vida, no entanto, existe três exceções, as quais são o aborto necessário ou terapêutico, o aborto humanitário, ético ou sentimental e o aborto em casos de fetos anencéfalos. Mas para que essas exceções viessem a existir, um dos principais fatores foi o direito reprodutivo das mulheres, um dos direitos adquirido durante o passar do tempo.

1.3 DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES

Os direitos reprodutivos englobam um conjunto de direitos envolvendo planejamento familiar, ou seja, estão ligados à tomada de decisão das pessoas quanto a ter filhos ou não e quantidade, obtendo acesso à informação sobre saúde sexual e reprodutiva, além do direito a cuidados durante a gestação e parto. Esses direitos visam garantir escolhas informadas e autônomas para as pessoas em questões relacionadas à reprodução.  

Mas nem sempre houve o direito supramencionado, pois havia uma tamanha desigualdade de gênero, onde a mulher era submissa ao homem, não tendo direito de escolha, tampouco escolha quanto a reprodução. Portanto, a mulher começou a ganhar voz depois de inúmeros movimentos, como por exemplo o movimento do sufrágio feminino no final do século XIX e os movimentos subsequentes.

Notoriamente, os direitos reprodutivos das mulheres estão protegidos pelo direito brasileiro em várias esferas, dentre elas a constitucional, a qual Piovesan e Pirotta aduz:

Dos princípios fundamentais da Constituição brasileira de 1988, destacam-se relevantes dispositivos pertinentes à questão dos direitos reprodutivos. Nesse sentido, o art. 1º consagra, dentre os fundamentos da República Federativa Brasileira, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Já o art. 3º enuncia como um de seus objetivos fundamentais promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Tais princípios relacionam-se com os direitos reprodutivos, visto que esses constituem verdadeiro exercício de cidadania e de dignidade da pessoa humana, opondo-se a quaisquer formas de preconceitos ou discriminações (Piovesan; Pirotta 2018, p. 488).

Além disso, os direitos ora mencionados também estão protegidos por alguns incisos do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira, o qual estabelece o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade como direitos fundamentais dos indivíduos. Para tanto, o referido artigo é uma cláusula pétrea, ou seja, não pode ser modificado ou excluído,  mesmo através de emendas constitucionais.

               O Brasil é signatário de vários tratados e convenções internacionais que tratam dos direitos reprodutivos das mulheres, dentre eles, a Conferência Internacional sobre População e desenvolvimento (CIPD) de 1994, do qual foi adotado princípios que incluem o acesso à informação sobre saúde sexual e reprodutiva, planejamento familiar, além do direito a cuidados durante a gestação e parto.

          Nesse sentido, Conforme Simões:

A proteção dos direitos reprodutivos das mulheres, incluindo o direito ao aborto em casos de estupro, é fundamental para a igualdade de gênero e para a promoção da justiça social. Negar às mulheres vítimas de estupro o direito de interromper a gestação implica uma forma de punição adicional, perpetuando o trauma e a violência sofridos. Garantir a autonomia da mulher e seus direitos reprodutivos é um passo importante para combater a opressão de gênero e promover a igualdade e a dignidade das mulheres em nossa sociedade (Simões, 2023, p. 19).

          É de suma importância que a mulher tenha o direito de reprodução garantido, pois essa necessita de autonômia tanto pela igualdade de gênero, quanto para a promoção de justiça social. Ademais, para que tal garantia seja validade também na esfera penal, como no Brasil o CP é uma norma penal em branco se tratando dos crimes de aborto, o Ministério da Saúde (MS) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) por meio de atos administrativos são quem devem implementar normas de acordo aos princípios pelo o qual o Brasil se comprometeu a seguir.

2 DOS ATOS ADMINISTRATIVOS RELACIONADOS AO PROCEDIMENTO DO ABORTO LEGAL DECORRENTE ESTUPRO

Embora o Código Penal (CP) brasileiro disponha sobre casos em que o aborto pode ser realizado no país, ele nada fala sobre até quando esse procedimento pode ser realizado, tampouco como devem ser os trâmites para a sua realização, uma vez que trata-se de uma norma penal em branco, ou seja, trata-se de um preceito genérico, deixando a tipificação do crime incompleta, portanto nesses casos é necessário que haja uma complementação da norma em quetão.

É função do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Medicina regulamentar o procedimento abortivo nos casos previstos em lei por meio de portarias, uma vez que o CP estabelece como requisito que o procedimento seja realizado por médico. Ademais, é importante salientar que neste caso, ser uma norma penal em branco é algo benéfico,  uma vez que é mais fácil modificar uma portaria do que o CP.

Por tratar-se de uma norma penal em branco, o Ministério da Saúde (MS) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) por meio de portarias regulamentam o procedimento a ser seguido pelos profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e pela vítima de estupro. Vale ressaltar que até 2005, para a realização do aborto legal a mulher vítima de violência sexual deveria apresentar ao hospital o boletim de ocorrência, pois era um requisito trazido pela norma técnica do MS de 1999. Por conseguinte, por meio da portaria nº 1.508/2005 o boletim de ocorrência passou a não ser mais um requisito, pois ofende a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), da qual o Brasil é signatário.

Ademais, em 2020 o MS publicou a Portaria nº 2.282/2020 modificando as orientações para o atendimento do procedimento abortivo em razão da Lei 13.931/2019, tornando obrigatória a comunicação da autoridade policial nos casos de violência sexual. Além da informação obrigatória, a portaria também estabelecia que os profissionais de saúde tinham como dever guardar parte do feto para que fosse realizado DNA e posteriormente ser utilizado como prova contra o suposto agressor (Giugliani et al., 2021).

Nesse sentido Giugliani et al., aduz:

O risco real das medidas descritas é de confundir o papel dos profissionais e serviços de saúde com o papel dos serviços de segurança pública, e inverter a prioridade do atendimento, colocando a questão criminal acima da atenção em saúde. Além disso, desconsidera a possibilidade de as mulheres optarem por não fazer a denúncia e não tornar a violência sofrida uma questão policial/judicial. Destaca-se que, de acordo com o artigo 5º da Constituição Federal, no âmbito da sua liberdade e autonomia individuais, cabe somente à mulher a decisão de realizar ou não a denúncia. Diferentemente de crianças e adolescentes, mulheres adultas não são tuteladas pelo Estado e devem, portanto, ter seu direito de escolha respeitado (Giugliani et al., 2021, p.44).

É cediço que a Portaria nº 2.282/2020 era contrária à autonomia e direito reprodutivo da mulher capaz que não possui o desejo de passar por um processo judicial. Em vista disso, a Portaria nº 2.282/2020 foi revogada com a publicação da Portaria nº 2.561/2020, a qual retirou alguns quesitos que continham na anterior, como por exemplo: ver e ouvir o coração do feto por meio de ultrassonografia. Todavia, a obrigatoriedade do profissional de saúde de informar à autoridade policial de um possível caso de estupro permaneceu. No entanto, não se tratando de mulher incapaz, as informações não devem conter dados que identifiquem a vítima e o profissional.

Diante do passo a passo trazido pelo MS, Giugliani et al., relata:

Os termos a serem preenchidos para a realização do aborto legal de gestações decorrentes de estupro seguem os mesmos, com pequenas modificações: Termo de Relato Circunstanciado; Parecer Técnico; Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez; Termo de Responsabilidade assinado pela mulher ou, se for incapaz, também por seu representante legal; e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Esses documentos já são suficientes para a legalidade do processo, de forma que se a notificação compulsória à autoridade policial utilizasse dados de identificação, na prática, se tornaria mais uma barreira de acesso ao gerar medo e ansiedade nas mulheres (Giugliani et al., 2021, p. 46).

Contudo, para que o aborto seja realizado conforme as premissas da regulamentação do Ministério da Saúde, a vítima deve assinar todos os termos elencados pela referida Portaria.

De acordo com Souza e Silva (2021), a Portaria nº 2.561/2020, mesmo com o aprimoramento de suas formalidades, continuava a gerar discussões entre os críticos, uma vez que ela persistia ilegal em diversos aspectos. Diante do exposto, a Portaria nº 2.561/2020 foi revogada pela primeira mulher a chefiar o Ministério da Saúde, a ministra Nísia Verônica Trindade Lima, pela portaria GM/MS nº 13, de 13 de janeiro de 2023, a qual revoga diversas outras portarias e anexos que contrariam os direitos reprodutivos. Por conseguinte, até o presente momento não há portaria  vigente do Ministério da Saúde regulamentando o procedimento abortivo.

Em decorrência da falta de portaria que regulamente o aborto, cada Estado brasileiro realiza o procedimento de forma diferente. Como por exemplo, o Estado do Goiás sancionou a Lei 22.537/2024, a qual institui campanha de conscientização contra o aborto para as mulheres no Estado de Goiás, impondo em seu art. 3º, VI, que a gestante ouça os batimentos cardíacos do feto. Já no Estado do Tocantins, há o Serviço de atendimento as vítimas de violência sexual (SAVIS), tendo como referência o Hospital e Maternidade Dona Regina, sendo suficiente a palavra da mulher, não fazendo-se obrigatório a apresentação de Boletim de Ocorrência, exame do IML ou mesmo autorização judicial.

          Desse modo, é notório que existe uma lacuna na implementação da política de saúde da mulher, especificamente entre leis, normas, manuais e cartilhas, incluindo a falta de recursos, barreiras de acesso, cultura, estigma, e desconhecimento das normas tanto por profissionais da saúde quanto pela vítima.

2.1 DO TEMPO GESTACIONAL PARA REALIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO ABORTIVO

No que tange ao prazo para que seja realizado o procedimento abortivo no Brasil, há uma lacuna no art. 128 do Código Penal, pois o artigo ao mencionar as hipóteses de excludentes de ilicitude do crime de aborto não mencionou qual seria o prazo legal para a sua realização.

É importante ressaltar que existem dois métodos procedimentais utlizados no aborto, o cirúrgico e o medicamentoso. No primeiro, é recomendado a aspiração por vácuo em idades gestacionais < a 14 semanas, já em idades gestacionais ≥ a 14 semanas recomenda-se a dilatação e evacuação. Enquanto no segundo, em idades gestacionais < a 12 semanas recomenda-se o uso de 200 mg de mifepristona administrados por via oral, seguido de 800 mg de misoprostol administrados por via vaginal, sublingual ou buccal; enquanto em idades gestacionais ≥ a 12 semanas sugere-se o uso de 200 mg de mifepristona administrados por via oral, seguido de doses repetidas de 400 mg de misoprostol administrados a cada três horas por via vaginal, sublingual ou bucal um a dois dias mais tarde; < a 14 semanas (aborto retido) recomenda-se o uso de uma combinação de mifepristona e misoprostol, em vez de apenas misoprostol; ≥ a 14 e ≤ a 28 semanas (Morte fetal intra-uterina) sugere-se o uso de uma combinação de mifepristona e misoprostol, em vez de apenas misoprostol (OMS, 2022).

Em relação ao aborto, no âmbito da saúde e da lei, frequentemente se emprega o termo como equivalente ao conceito de interrupção da gestação, referindo-se ao procedimento de encerrar a gravidez até a 22ª semana, com o feto pesando menos de 500 gramas (Giugliani et al., 2021).

Todavia, há uma divergência de entendimentos quanto ao tempo gestacional para realização do aborto, uma vez que para os profissionais da área da saúde o aborto pode ser realizado até a  22ª semana, enquanto para o âmbito jurídico há casos que essa interrupção é concedida mesmo após a 22ª semana de gestação.

Em nota divulgada dia 28 de fevereiro de 2024, conforme o G1, o Ministério da Saúde destacou que a viabilidade é um conceito que está em constante evolução e que sua interpretação pode variar de acordo com as características individuais e regionais, tornando inadequada a definição de um prazo específico inicial e/ou final para garantir o direito ao aborto legal, anulando a cartilha “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento” de 2022. No entanto, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, no dia 29 de fevereiro de 2024, suspendeu a nota técnica que derrubava a orientação que fixava prazo para o aborto legal.

Ademais, o Conselho Federal de Medicina publicou  no dia 03 de abril de 2024 a Resolução CFM Nº 2.378/2024, com o seguinte artigo:

Art. 1º É vedado ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas (CFM, 2024, p.2). 

            Ainda que o Código Penal brasileiro não impunha limite de idade gestacional para que seja realizado o aborto legal, o CFM com o poder de constituir norma administrativa, vedou a realização da interrupção da gravidez por médicos em casos de violência sexual com idade gestacional acima de 22 semanas por assistolia fetal, a qual consiste em um método injetável de cloreto de potássio para interromper os batimentos cardíacos do feto, o qual é recomendado pela Organização Mundial da Saúde em casos de aborto legal acima da 22ª semana. Tonando mais dificultoso o procedimento enfrentado pelas grávidas vítimas de estupro.

          Todavia, o Ministro Alexandre de Moraes suspendeu a Resolução CFM Nº 2.378/2024, no dia 17 de maio de 2024, por considerar abuso de poder do CFM ao regulamentar a resolução supracitada, pois impõe tanto ao médico quanto à gestante vítima de violência sexual, uma limitação de direitos não estabelecida por lei.

3 DIFICULDADES ENFRENTADAS PELAS GRÁVIDAS VÍTIMAS DE ESTUPRO EM RAZÃO DAS NORMAS ADMINISTRATIVAS PARA REALIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO ABORTIVO

No Brasil, o aborto é um dos crimes contra a vida, todavia, como uma de suas exceções está o procedimento abortivo em casos de gravidez em decorrência de estupro. Nesses casos, o Código Penal não trata do procedimento em si, por isso, como já mencionado, a normas que o regulam são administrativas, e com base nelas, o aborto humanitário, ético ou sentimental dispensa autorização judicial, todavia, com tantos impecílios impostos pelas unidades de saúde, muitas vezes para que esse direito seja usufrido, é necessário uma ação judicial.

É cediço que uma das dificuldades enfrentadas pelas vítimas de violência sexual ao entrarem com uma ação judicial para a realização do procedimento abortivo é a divergência de decisões relacionadas ao tema.

Nesse sentido para Simões:

É importante ressaltar que ainda existem divergências jurisprudenciais sobre o tema. Alguns tribunais estaduais e juízes individuais têm tomado decisões que restringem o acesso ao aborto em casos de estupro, alegando interpretações mais conservadoras ou aplicando requisitos mais rigorosos do que os previstos pela legislação. Essa heterogeneidade na aplicação da lei cria uma situação de insegurança jurídica e dificulta o exercício pleno do direito ao aborto em casos de estupro (Simões, 2023, p.14).

Destarte, o tema aborto, mesmo nos casos previstos em lei, é alvo de preconceito, tornando o seu acesso tão dificultoso, sem certezas de como a vítima deve prosseguir, que acaba trazendo um outro problema para a sociedade: a mortalidade materna – uma vez que que exauridas de tanto sofrimento, as vítimas acabam fazendo abortos clandestinos, por isso “Não é por acaso que os dados de mortalidade materna mostram taxas elevadas e imutabilidade desde o ano 2000, parte disso se deve à criminalização do aborto e à falta de garantia de acesso ao aborto legal” (Giugliani et al., 2021, p.124).

É válido ressaltar que para realização do aborto legal não é obrigatório entrar com ação judicial, mas em decorrência de tamanha divergência ou em caso de menores que tenham divergência de consentimento entre seus representantes legais, tem-se buscado uma decisão judicial. Outra situação é quando os profissionais da saúde usam de sua objeção ética para negar a realização do procedimento e indicam outro hospital, até que a vítima exausta entra com ação judicial ou recorre ao aborto clandestino.

A falta de familiaridade com a legislação, convicções pessoais ou objeções éticas podem levar médicos e outros profissionais a negar a realização do procedimento, mesmo quando respaldado pela lei. Essa oposição gera barreiras extras para as mulheres, que se veem obrigadas a buscar outras opções e lidar com estereótipos e discriminação para fazer valer seu direito legal (Simões, 2023).

          Percebe-se a existência de vários casos midiáticos que comprovam essa divergência dos profissionais da saúde e também a parcialidade do judiciário, como por exemplo o caso que ocorreu em Santa Catarina, no qual a juíza impediu uma menina de 11 anos, vítima de estupro, de realizar o aborto legal, comparando o procedimento a um homicídio. Esse caso levanta questões éticas e legais complexas, pois o estupro é um crime grave e a gravidez resultante desse ato é uma situação extremamente delicada, especialmente quando se trata de uma criança. A decisão da juíza de impedir o aborto, baseando-se em suas convicções pessoais ou interpretação da lei, gerou controvérsias, especialmente considerando a idade e a saúde física e emocional da menina.

A comparação do aborto com um homicídio é um argumento comum em debates sobre o tema, mas muitas pessoas discordam dessa analogia, argumentando que a mulher deve ter o direito de decidir sobre seu próprio corpo, especialmente em casos de estupro.

Outro caso midiático, agora com objeção de consciência do profissional da sáude, mencionado por Giugliani et al. em seu livro sobre violência sexual e direito ao aborto aborto legal no brasil: fatos e reflexões, o seguinte caso:

No dia 8 de agosto de 2020, uma menina negra de 10 anos, acompanbada de uma familiar, foi até o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), em Vitória, Espírito Santo, com fortes dores abdominais. Os exames revelaram que a menina estava grávida de 22 semanas, após ter sido violentada por um tio, fato que já ocorria havia cerca de quatro anos. Tratava-se, portanto, de uma violência crônica (fisica, sexual e emocional). Mesmo com a previsão legal para a interrupção da gravidez – por risco de vida da gestante e pelo estupro – a criança não pôde realizar o aborto legal naquele bospital. O serviço alegou que a idade gestacional estaria muito avançada e que o serviço não teria capacidade técnica para realizar o procedimento. O caso foi judicializado e a decisão do juiz Antônio Moreira Fernandes foi favorável à interrupção da gravidez. O juiz citou como legítima e legal a interrupção de gestação acima de 22 semanas nos casos de estupro, risco de morte materna e anencefalia fetal. Outro fator apontado na decisão judicial foi a vontade da menina; ainda que criança, seu desejo de não prosseguir com a gravidez foi declarado como soberano[…] (Giuglianiet al., 2021, p.85).

          Além de ser violentada fisicamente, a mulher vítima de estupro, tem seu caráter julgado pela sociedade pelo modo que fala, que se veste e que se porta, não obstante, passa pela replicação da dor física e emocional ao tentar usufruir de seu direito ao procedimento obortivo quando esse é negado pela unidade de saúde, ou pelo judiciário, a depender do caso.

          Em suma, as normas administrativas no que tange ao procedimento abortivo tem sido divergida entre os Estados brasileiros desde a revogação da portaria 2.561/2020 do MS pela portaria GM/MS nº 13, de 13 de janeiro de 2023, desse modo tem Estados que pedem que a vítima ouça os batimentos cardíacos do feto, outros que vejam o feto, e alguns que seguem a risco a lei e só precisam do consentimento da gestante, portanto, a depender do Estado que grávida vítima de violência sexual more, ela passará por mais violências psicologicas que outras.

CONCLUSÃO

O aborto é definido como a retirada do feto antes do tempo normal, podendo ser voluntária ou provocada. A legislação brasileira considera o aborto um crime, exceto em três casos específicos: quando a gestação coloca em risco a vida da mulher, em casos de gravidez resultante de estupro, e em casos de fetos anencéfalos.

O Código Penal brasileiro não especifica até quando o aborto é permitido nem como deve ser realizado, sendo uma norma penal genérica. Por isso, o Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina regulamentam o procedimento por meio de portarias. Outrossim, antes de 2005, as mulheres vítimas de violência sexual precisavam apresentar boletim de ocorrência para aborto legal, mas essa exigência foi revogada. Ademais, a falta de uma portaria do Ministério da Saúde atualmente faz com que cada estado brasileiro tenha regras diferentes para o procedimento.

Quanto ao prazo, o Código Penal não menciona um limite, gerando divergências entre profissionais de saúde e juristas. Dessa forma, o Conselho Federal de Medicina proibiu a assistolia fetal em casos de violência sexual com mais de 22 semanas de gestação, mesmo o Brasil sendo seguinatário da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), a qual consiste no direito reprodutivo das mulheres, que envolve a liberdade de decisão sobre ter filhos, acesso a informações sobre saúde reprodutiva e cuidados durante a gestação e parto, devendo ser protegido pela legislação brasileira e por tratados internacionais.

Por conseguinte, em casos de gravidez por estupro, onde não é necessário autorização judicial, o Código Penal não detalha o procedimento, deixando essa regulamentação para normas administrativas. Por isso há divergência de decisões judiciais e o estigma social, que dificultam o acesso ao aborto legal, levando algumas mulheres a recorrer a procedimentos clandestinos, aumentando a mortalidade materna. Todavia, os profissionais da saúde também podem negar o procedimento por objeções éticas, criando barreiras adicionais.

Por todo o exposto, salienta-se que o tema do aborto no Brasil é complexo e cercado de controvérsias legais, éticas e sociais. Contudo, embora a legislação permita o aborto em casos específicos, como em gestações resultantes de estupro, a falta de detalhamento no Código Penal e a variação na interpretação das normas têm gerado obstáculos significativos para as mulheres que buscam esse direito. Desse modo, a diversidade de regras entre os estados brasileiros e as objeções éticas de alguns profissionais da saúde tornam o acesso ao aborto legal ainda mais difícil. Portanto, é crucial que haja uma maior clareza e uniformidade na regulamentação do aborto, garantindo o respeito aos direitos reprodutivos das mulheres e a sua saúde.

REFERÊNCIAS

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[1] Graduanda em Direito pela Faculdade Serra do Carmo – FASEC. Email: vitoriabg.vbg@gmail.com.

[2] Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins e Escola Superior da Magistratura Tocantinense. Pós-graduado em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Prática Criminal no curso de Direito na Faculdade Serra do Carmo – FASEC. Delegado de Polícia Civil do Estado do Tocantins. Email:  prof.israelalves@fasec.edu.br