A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS TRANSPORTADORES AÉREOS E AS GARANTIAS DO CONSUMIDOR NAS VIAGENS INTERNACIONAIS NOS CASOS DE LESÃO À LUZ DO ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS
10 de dezembro de 2022THE CIVIL LIABILITY OF AIR CARRIERS AND CONSUMER GUARANTEES IN INTERNATIONAL TRAVEL IN CASES OF INJURY TO THE CONSUMER IN THE LIGHT OF THE COURT’S UNDERSTANDING
Artigo submetido em 20 de setembro de 2022
Artigo aprovado em 21 de novembro de 2022
Artigo publicado em 10 de dezembro de 2022
Cognitio Juris Ano XII – Número 44 – Dezembro de 2022 ISSN 2236-3009 |
RESUMO: O presente trabalho visa a analisar a responsabilidade civil dos transportadores aéreos internacionais e sua abordagem perante os tribunais nacionais. Em primeiro lugar, para melhor entendimento do tema, analisa-se o conceito de responsabilidade civil, as excludentes de responsabilidade, bem como a responsabilidade civil do transportador aéreo internacional com relação às normas aplicadas e o conflito entre tratado internacional e lei interna. Busca-se analisar em especial as regras trazidas pelas Convenções de Montreal e de Varsóvia e sua recepção pelo direito brasileiro, que trazem limites às responsabilidades dos transportadores em relação aos seus usuários, gerando antinomia com o Código de Defesa do Consumidor. Para tanto, utiliza-se o método científico dedutivo e as técnicas de investigação bibliográfica e documental a partir de revisão de literatura em doutrinas, legislações e jurisprudências. Métodos que levam à conclusão da jurisprudência adequada, priorizando a visão hermenêutica que traz a anterioridade das convenções internacionais.
Palavras-chave: Direito do consumidor; responsabilidade civil; transportador aéreo; conflitos de leis; convenção de Montreal.
ABSTRACT: The present work aims to analyze the civil liability of international air carriers and their approach before national courts. Firstly, for a better understanding of the subject, the concept of civil liability, the exclusions of liability, as well as the civil liability of the international air carrier in relation to the rules applied and the conflict between international treaty and domestic law are analyzed. It seeks to analyze in particular the rules brought by the Montreal and Warsaw Conventions and their reception by Brazilian law, which bring limits to the responsibilities of carriers in relation to their users, generating antinomy with the Consumer Protection Code. For this purpose, the deductive scientific method and the techniques of bibliographic and documentary investigation are used, based on a literature review in doctrines, legislation and jurisprudence. Methods that lead to the conclusion of adequate jurisprudence, prioritizing the hermeneutic vision that brings the precedence of international conventions.
Keywords: Consumer law; civil responsability; air carrier; conflicts of laws; Montreal Convention.
1. Introdução
No ano de 1914, pouco antes da primeira guerra mundial, aconteceu o primeiro voo comercial do mundo. O avião possuía apenas um passageiro e o voo que saiu de Saint Petersburg e foi a Tampa, na Flórida, Estados Unidos, durou cerca de 23 minutos. Desde então, a evolução na aviação não parou, supriu a demanda durante as guerras e diminuiu a distância entre os continentes para aqueles que tinham condições (MALAGOLI, 2020).
Atualmente, “voar” ficou mais acessível. A tecnologia e a globalização fizeram com que o deslocamento entre estados, países e até mesmo continentes pudesse ser feito em cerca de horas. A demanda aumenta cada vez mais devido ao conforto, eficácia e agilidade que os transportes aéreos oferecem para seus consumidores. Entretanto, a facilidade com que o deslocamento de passageiros ou coisas entrou no cotidiano da aviação trouxe também a probabilidade da ocorrência de danos. A ineficácia da resolução extrajudicial dos danos causados pelas companhias aéreas, a título de exemplo, o cancelamento dos voos e a perda de bagagens, leva ao ajuizamento de demandas para a restituição de tais danos. A partir disso, ao se deparar com as disposições abusivas e danos decorrentes desta atividade, há a escassez de amparo legal do Código de Defesa do Consumidor, Resoluções da Agência Nacional de Aviação Civil, Código Civil e Convenções Internacionais, as quais se destacam as Convenções de Montreal e Varsóvia, gerando um questionamento acerca de qual a jurisdição relativa à responsabilidade civil dos transportadores aéreos a luz do entendimento dos tribunais?
Quando se lida com voos comerciais, encontra-se amparo à luz do Código de Defesa do Consumidor (CDC). A empresa transportadora, ao ser contratada pelo consumidor, possui responsabilidade civil, uma vez que se obriga a transportá-lo de um ponto a outro, em segurança, junto a seus pertences (MORSELLO, 2006).
O transporte doméstico está regulamentado pelas disposições legislativas do país, no caso, pelo Código Brasileiro de Aeronáutica, entretanto, estes dispositivos legais tratam apenas do que tange ao transporte doméstico. Em se tratando de transporte internacional (externo), a lei brasileira não mais se aplica para julgamento das demandas (BRASIL, 1986).
No viés do CDC, que contém um grupo de normas voltadas à proteção e amparo do consumidor, quanto à responsabilidade dos transportadores aéreos, quando causam algum prejuízo ao patrimônio e/ou direitos do passageiro, ou seja, qualquer tipo de dano, não há limitação para indenização, gerando uma obrigação de ressarcimento integral do consumidor. Entretanto, há limitação para casos de voos domésticos, de forma contrária ao estipulado na Convenção de Montreal, a qual estabelece um teto máximo (indenização tarifada).
Sendo assim, nos casos que envolviam transportadores aéreos internacionais, as companhias de transporte aéreo eram amparadas pelas Convenções de Montreal e Varsóvia, resultando assim, a depender da compreensão de cada juízo, em um certo conflito jurisprudencial.
Até 2017, a tese de que o CDC prevalecia sobre a Convenção de Varsóvia era o entendimento predominante, confirmado inclusive por decisão do Superior Tribunal de Justiça (RONDÔNIA, 2015). Desde então, o assunto se tornou recorrente e os julgados vêm se alterando, seja em juízos de 1ª instância ou em Tribunais superiores, e a posição do STF se torna um dos principais fundamentos utilizados.
Desta forma, verifica-se a relevância do estudo do presente artigo para entendimento acerca de legitimidade, jurisdição e solução de conflitos, estudo este que se realiza a partir da metodologia teórica e documental com a consulta de artigos científicos, doutrinas e jurisprudências.
2. Divergência Normativa: norma interna e externa
Há divergência entre normas relativa à responsabilidade objetiva, objeto de defesa e tratamento do CDC e a responsabilidade (subjetiva) a ser defendida por meio da Convenção quando se atinge um certo valor tarifado. Esta divergência recai sobre uma antiga discussão jurídica, entre as teorias monista e dualista, que respectivamente defendem a aplicação das normas de Direito Internacional e aplicação das normas de Direito Positivo Interno como norteadoras a serem impostas pelos Tribunais (MAZZUOLI, 2020).
Desta forma, nasce a demanda de analisar a imposição da Convenção de Montreal diante do Código de Defesa do Consumidor acerca das indenizações que decorrem dos danos por falha ou violação nas diretrizes de prestação do serviço (MARQUES; BESSA, 2014).
No entanto, observa-se que, estabelecendo restrições às normas de amparo ao consumidor, em paralelo ao constante no art. 5º, XXXII, a Constituição Federal prevê no texto do art. 178, §1º, que “atendendo o princípio constitucional da reciprocidade os acordos pactuados pela União deverão ser cumpridos pela ordenação do transporte internacional” (BRASIL, 1988). Logo, não afirmar de fato que a tutela do consumidor deve ser limitada, além disso, consta que não estão excluídos os tratados e acordos internacionais.
A subordinação de normas internacionais dentro do sistema normativo pátrio, como as convenções, não pode influir nas normas internas. A denominada teoria monista tem como pretexto a harmonia das normas externas e internas. Esta teoria defende um único sistema jurídico, no qual o ramo internacional é aplicável às normas jurídicas dos Estados, sem necessidade de qualquer alteração ou renovação para sua vigência. Desta forma, o ramo interno fica responsável por regular os indivíduos do próprio estado. A partir disso, a ratificação de um tratado ou acordo internacional pelo Estado expressa um comprometimento jurídico internacionalmente adotado, que é composto de direitos e obrigações, as quais podem ser exigidas no âmbito do Direito Interno (MAZZUOLI, 2020).
Em relação ao conflito de normas, cite-se:
No direito brasileiro, em matéria de relação entre direito internacional e direito interno, ou conflito entre fontes, poderia ser, assim, sanado o anterior descompasso entre a doutrina, alinhada pela concepção do monismo Kelseniano, segundo a qual o tratado sempre prevalece sobre a lei interna, ainda que se trate da Constituição, e a desconcertante mudança de orientação da jurisprudência pátria, durante certo lapso de tempo, durante o qual se veio, por caminhos tortuosos, equiparar o tratado a lei interna. Surpreendentemente, uma vez equiparado à lei interna, ficaria sujeito o tratado a modificações, em razão de alterações posteriores do ordenamento nacional, o que configura aberração, por privar a norma de direito internacional positivo de seu sentido e alcance normativo internacionais, ao mesmo tempo que se poderia configurar o descumprimento de obrigações internacionais pelo estado brasileiro, na condição de parte contratante de obrigações, em relação aos demais signatários desse tratado (ACCIOLY; CASELLA; SILVA, 2010).
Desta forma, ao consultar os órgãos jurisdicionais é possível verificar que esta discordância continua até neste momento, sendo discussão costumeira nos Tribunais brasileiros. Como exemplo no seguinte acórdão:
APELAÇÃO CÍVEL. OBRIGAÇÃO TRANSPORTE INTERNACIONAL DE CARGA. ATRASO E/OU EXTRAVIO. APLICÁVEL CONVENÇÃO DE MONTREAL EM DETRIMENTO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRECEDENTE DO STF. RETENÇÃO DA CARGA PELA ADUANA. NÃO COMPROVAÇÃO. INDENIZAÇÃO DEVIDA SEGUNDO OS VALORES INDICADOS NA CONVENÇÃO DE MONTREAL.
1. Apelação interposta pela ré da r. sentença, proferida em ação de dar coisa certa, que julgou procedentes os pedidos da inicial para condená-la ao pagamento de danos materiais no valor de R$ 79.766,45. […] 9. Apelação da ré conhecida e parcialmente provida (BRASIL, 2020a).
Julgado que diverge de decisões de demais órgãos julgadores acerca do mesmo tema, a título de exemplo o conteúdo do seguinte acórdão:
CONSUMIDOR. TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL. CANCELAMENTO DE VOO- FORTUITO INTERNO. DANOS MORAIS CONFIGURADOS – VALOR DO QUANTUM ADEQUADO – PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. De acordo com a jurisprudência sedimentada no âmbito do STJ e do STF, nas relações de consumo envolvendo prestação de serviço de transporte aéreo internacional, deve-se aplicar a Convenção de Montreal, à luz do princípio da especialidade. Entretanto, nos mesmos precedentes que sedimentaram essa jurisprudência, os Tribunais superiores deixaram claro que o CDC deverá ser aplicado, excepcionalmente, aos casos em que a Convenção supracitada não dispuser, como quanto aos danos morais decorrentes das relações jurídicas entre empresa e passageiros. (BRASIL, 2020b).
Tais fundamentações não retiram a aplicação do Código Brasileiro de Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia, apenas analisa as normativas de forma a incidir a opção mais viável nos casos concretos.
3. Danos causados pelos transportadores aéreos
A reparação dos danos é o principal escopo tratado pela responsabilidade civil. Assim sendo, pode-se afirmar que existem duas modalidades de dano: o patrimonial ou material e o moral. Acerca da diferença entre ambos, é considerado material a modalidade de dano que atinge tão somente o patrimônio da vítima, moral, por sua vez, dano que fere o consumidor como ser humano distante da esfera patrimonial. A partir desta distinção é que pode ser ponderada a indenização decorrente dos prejuízos sofridos (GONÇALVES, 2012).
Pode-se conceituar a indenização como uma forma de compensação da vítima, tendo como intuito reduzir ou anular o dano resultante da falha na realização do serviço (MAGALHÃES, 2002).
Relativo ao transporte por meio aéreo, há uma grande possibilidade de ocorrência de eventos lesivos, os quais podem agredir a integridade pessoal dos passageiros, seja em acidentes, atrasos, cancelamentos de voo e/ou perda/deterioração da bagagem. Para regulamentar estes imprevistos, a legislação busca se tornar mais específica no controle da adimplência de suas normas, como exemplo a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), instituída como agência reguladora em âmbito federal do Brasil, com principal função a garantia de segurança e eficiência no serviço da aviação para todos os seus consumidores.
Em 13 de Dezembro de 2016, por meio da Resolução nº 400, foram estabelecidas premissas aplicáveis ao transporte dos passageiros, estipulando, no campo da responsabilidade civil, as tratativas gerais a serem seguidas em possíveis casos de atraso e cancelamento, além da assistência material a ser oferecida e as ações para reacomodação e reembolso dos lesados.
Sendo assim, ao ratificar o cumprimento da resolução desde o momento da ocorrência dos danos, o transportador aéreo diminui as possibilidades de uma eventual movimentação dos meios judiciais por parte do consumidor ao se sentir lesado. Fato este que, levando em conta a referida Resolução, possui contraprestação estipulada para os casos de descumprimento deste “dever de cumprir”, portanto, ocorrendo infrações por meio da companhia aérea, esta receberá multa que varia R$ 20.000,00 (vinte mil reais) e R$ 50.000,00, cinquenta mil reais (BRASIL, 2016).
4. Convenção de Varsóvia e Montreal
No ano de 1929, por meio do Decreto nº 20.704 (BRASIL, 1931), foi promulgada a Convenção de Varsóvia, que contou com a assinatura de vários países. Esta Convenção tem o propósito de completar as lacunas presentes na regulamentação internacional do transporte aéreo, além de findar a desordem que ocorre quando cada país vigora, a sua maneira, tratados específicos acerca desta mesma matéria. Com o passar do tempo a convenção foi submetida a sucessivas alterações com intuito de adequá-la e moldá-la ao mercado da aviação civil, até que em 2006, por meio do Decreto nº 5.910 (BRASIL, 2006), o Brasil recebeu a Convenção de Montreal de 1999, que passou a substituir a de Varsóvia. Estas convenções limitam o valor de indenizações, sob a justificativa de que geram um risco alto para as empresas transportadoras, que não seriam capazes de suportar o pagamento das indenizações de maneira integral, condição que inviabilizaria as empresas (VENOSA, 2017).
Cabe salientar que, a Convenção de Montreal atua como uma atualização da Convenção de Varsóvia, uma vez que, mantém grande parte de seu teor, porém, aborda de forma específica os danos morais, pois, firmada no ano de 1929, a Convenção de Varsóvia não estipulava critérios para esta forma de indenização, que não existia na época. Isto posto, ambas seguem sendo aplicadas na medida em que os países se incluem como signatários (BRASIL, 2020).
A responsabilidade civil do transportador aéreo, com o advento da Convenção de Varsóvia, passa a se limitar a $125.00 (cento e vinte e cinco) francos por passageiro no transporte de pessoas, bagagens e cargas este limite, então, é fixado no valor de $250 (duzentos e cinquenta) francos por quilograma para objetos despachados e $5.000 (cinco mil) francos (por passageiro) pelos objetos que os passageiros são permitidos a levar durante o percurso.
Esta unidade de medida, utilizada para fixar os valores indenizatórios, foi desaprovada e modificada com a Convenção de Montreal, que substitui o Franco pelo chamado Direito Especial de Saque, além de mudar significativamente os valores no teto indenizatório (MORSELLO, 2006). O Direito Especial de Saque é um instrumento monetário utilizado mundialmente, criado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que objetiva complementar as reservas oficiais nações membro do Fundo Monetário. Este instrumento serve como ajuda para que os países possam ter um acesso às reservas de maneira agilizada além da possibilidade de troca por diversas moedas (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2021).
Com as mudanças estabelecidas pela Convenção de Montreal, ficou fixado que os consumidores que sofrem algum tipo de lesão corporal ou então a morte, possuem o limite de indenização de $100.00 (cem mil) DES (Direito Especial de Saque). Para danos que decorrem de cancelamentos ou atrasos o limite ficou estabelecido em $4.150 (quatro mil cento e cinquenta) DES por passageiro e, para bagagens extraviadas, destruídas ou atrasadas a responsabilidade não pode exceder o montante de $1.000 (mil) DES por passageiro.
Com a predominância da Convenção de Montreal, que traz regras no transporte aéreo internacional, passa a ser aplicada a Convenção de Varsóvia apenas nos casos em que o Estado for signatário apenas desta. Além disso, ocorreram mudanças com relação a responsabilidade objetiva e subjetiva aplicada pela convenção. A Convenção de Varsóvia determina uma responsabilidade subjetiva, na qual o ônus da prova incide sobre a vítima, quando for comprovada a culpa grave ou o dolo do transportador, o Direito comum excluía o teto indenizatório e passava a fixar a indenização (GONÇALVES, 2012).
Em contrapartida, a Convenção de Montreal adota a chamada Teoria do Risco (BRASIL, 2006), que diz respeito à responsabilidade objetiva, entretanto a aborda como forma de exceção. O art. 21 menciona que os transportadores aéreos não limitam, nem excluem, a responsabilidade destes com relação aos danos mencionados no número 1 do art. 17, que não excedam 100.000 DES por passageiro. Desta forma, a responsabilidade subjetiva recairá sobre aquilo que ultrapassar este limite, podendo assim, conforme o art. 21, n°2, exonerar-se, se provado que o dano decorreu de negligência ou outra modalidade de omissão ou ação praticada pelo transportador, ou mesmo que o dano tenha sido causado unicamente por atitude de terceiro (BRASIL, 2006)
5. Responsabilidade do Transportador Aéreo
A relação jurídica existente entre a empresa de transporte e o passageiro se inicia na situação da celebração do contrato, e é a partir deste contrato, da modalidade de adesão, que se desencadeiam as obrigações contratuais. A grande responsabilidade, ou obrigação, dos transportadores aéreos é conduzir o passageiro do ponto de partida do trajeto ao destino de forma remunerada, oferecendo condições seguras e responsáveis.
Para que a obrigação de indenizar exista é necessário que ocorra algum evento danoso por parte da empresa transportadora, evento este que pode ser decorrente de ato ilícito ou omissão, gerando prejuízos ao passageiro suscetíveis de reparação.
O principal intuito da responsabilidade civil é a reparação dos danos, que ocorre quando há a lesão de um bem jurídico, podendo ser relativo ao patrimônio, integridade física/pessoal, saúde e honra. No que concerne ao dano patrimonial/material sua análise se faz desde os danos emergentes até o lucro cessante, que respectivamente tratam do que se perdeu em razão do ato ilícito ou da omissão do agente e da ausência do aumento patrimonial (GONÇALVES, 2012).
Outra distinção acerca das espécies de dano está nos danos materiais e morais (extrapatrimoniais). Moral abrange a lesão da vítima como ser humano, sem atingir seu patrimônio. A partir dessa distinção é que se pode analisar e aplicar a indenização pelo prejuízo sofrido (CAVALIERI FILHO, 2010).
Para que seja cabível a indenização, é necessária uma relação direta entre a ação/omissão do agente e o dano sofrido pela vítima, o que no âmbito do direito é chamado de nexo causal. Desta forma, a indenização entra como uma forma de compensação da vítima, buscando reduzir ou anular os impactos provocados pelo descumprimento da obrigação, seja total ou parcial. Esta compensação poderá ser realizada a partir de restituição ou de maneira pecuniária, sendo está o ressarcimento com dinheiro, equivalente ao valor do conserto ou então do valor total do bem, e aquela uma substituição por algum semelhante, como é comum nos casos em que há contratempos envolvendo bagagem (extravio, danos, perda).
Com a Resolução de N° 400 de 13 de dezembro de 2016, foram estabelecidas condições gerais a serem aplicadas ao transporte regular dos passageiros domésticos (internos) e internacionais. Esta resolução dispõe acercadas regras referentes ao contrato aéreo firmado entre transportador e passageiro, demonstrando os deveres de ambas as partes envolvidas, como deve ser executado o contrato e os possíveis danos que possam vir a ser causados por violações aos deveres estipulados ao prestador de serviços. Além disso, preceitua sobre todas as informações tocantes ao itinerário e serviço oferecido pela companhia aérea, dando instruções ao usuário de como proceder para melhor aproveitamento de sua viagem, seja ela doméstica ou internacional (BRASIL, 2016).
Quanto à responsabilidade civil, a Resolução dispõe, no texto de sua seção II, sobre os procedimentos a serem realizados nos casos de eventuais atrasos e cancelamentos, como são feitas as ações de reacomodação dos passageiros, assistência material e reembolso a serem oferecidos. No art. 21 fica estabelecido que:
Art. 21. O transportador deverá oferecer as alternativas de reacomodação, reembolso e execução do serviço por outra modalidade de transporte, devendo a escolha ser do passageiro, nos seguintes casos:
I – atraso de voo por mais de quatro horas em relação ao horário originalmente contratado;
II – cancelamento de voo ou interrupção do serviço;
III – preterição de passageiro; e
IV – perda de voo subsequente pelo passageiro, nos voos com conexão, inclusive nos casos de troca de aeroportos, quando a causa da perda for do transportador.
Parágrafo único. As alternativas previstas no caput deste artigo deverão ser imediatamente oferecidas aos passageiros quando o transportador dispuser antecipadamente da informação de que o voo atrasará mais de 4 (quatro) horas em relação ao horário originalmente contratado (BRASIL, 2016).
Na ocorrência dos casos anteriormente citados, há a demanda de fornecimento assistência material, conforme o art. 26 e 27 da mencionada Resolução, que concede a assistência material oferecendo de maneira gratuita ao passageiro, a partir do tempo previsto para a decolagem da aeronave, a garantia de que suas necessidades serão atendidas. Em resumo, nos casos de atraso superior ao tempo de 1 (uma) hora, é dever da companhia oferecer auxílio e viabilidade de comunicação; quando este período for superior a 2 (duas) horas, o provimento de alimentação, dependendo do horário e tempo de aguardo; ao se passarem 4 (quatro) horas surge a alternativa de concessão de hospedagem, podendo ser cumulada à auxílio no transporte do passageiro de ida e volta ao aeroporto.
De maneira não onerosa, o passageiro pode fazer o uso de acomodações em voos para igual destino na primeira oportunidade de reencaixe em percurso disponível, inclusive sendo oferecidas por meio de voos de terceiro. Poderá também realizar a mudança de data, que deve ser feita de maneira gratuita, porém em voo da companhia inicialmente contratada, conforme disposto no art. 28.
No caso de o consumidor decidir pela desistência da viagem, recai a prerrogativa de receber o valor integral disponível no ato da aquisição da passagem, dentro de um prazo de 7 (sete) dias, que se conta do momento de solicitação. Tendo direito ao reembolso proporcional de deslocamentos realizados anteriormente ao ocorrido, referente ao trecho que não foi percorrido pelo passageiro, conforme art. 20 e 30.
A efetivação dessa resolução é dever da transportadora aérea, para que não haja necessidade de que o passageiro procure meios judiciais. Desta forma, em casos de violação do dever, a resolução estipula à companhia aérea uma punição pecuniária de no mínimo R $20.000,00 (vinte mil reais) e que pode chegar ao máximo de R $50.000,00 (cinquenta mil reais), conforme art. 43 (BRASIL, 2016).
Entretanto, cumpre salientar que no transporte aéreo doméstico, os contratos firmados para trânsito com saída e chegada dentro do Brasil, além da Resolução que dita regras internas acercada locomoção aéreo, incide o Código Brasileiro de Aeronáutica (BRASIL, 1986) e o Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002), que incluem a regulação do transporte nos limites de território dentro do Estado. Por outro lado, ao levar em consideração que no contrato de transporte aéreo se há uma relação consumerista, retorna a discussão doutrinária e jurisprudencial referente à incidência do CDC diante dos demais diplomas legais.
6. O olhar do Código de Defesa do Consumidor
A responsabilidade civil tem o intuito de reparar ou amenizar os danos causados ao patrimônio ou à moral da vítima que foram lesados, como já conceituado anteriormente.
Segundo Venosa (2017, p. 433), “quando uma pessoa, seja jurídica ou natural, possui o dever de arcar com as consequências de um negócio, fato ou ato danoso, é utilizado o termo: responsabilidade”. Assim dizendo, a ação humana que viola o direito de outro indivíduo, resulta em uma atribuição de indenizar, a responsabilidade civil tem por objetivo a reparação ou restituição deste dano e se encontra no ordenamento jurídico de forma detalhada e fundamentada.
Neste sentido, o Código Civil (2002) preceitua em seus art. 186 e 187:
Art. 186 Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar o direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187 Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes (BRASIL, 2002).
Isto posto, é possível verificar que a lesão pode ser decorrente de duas situações, pela responsabilidade contratual, iniciando no momento da violação de uma responsabilidade anteriormente exercida pela empresa através de um acordo mútuo, ou então pelo dever extracontratual, que advém de algum ato ilícito, como exposto por Cavalieri:
Se preexistir um vínculo obrigacional, e o dever de indenizar é consequência do inadimplemento, temos a responsabilidade contratual, também chamada de ilícito contratual ou relativo; se esse dever surge em virtude de lesão a direito subjetivo, sem que entre o ofensor e a vítima preexista qualquer relação jurídica que o possibilite, temos a responsabilidade extracontratual, também chamada de ilícito aquiliano ou absoluto (CAVALIERI FILHO, 2010).
É notável que o contrato aéreo se encaixa na obrigação contratual, que advinda do pacto entre as partes. A legislação brasileira, no mês de março de 1991, adotou o CDC, com o fim de regularizar as relações consumeristas e oferecer a devida proteção aos consumidores, pelo fato de possuírem certa vulnerabilidade. Todavia, a variedade de leis que versam sobre os vínculos de consumo, assim como as leis específicas que tratam sobre os transportadores aéreos (incluindo as convenções internacionais) faz com que haja posições opostas, gerando uma oscilação na jurisprudência relativa à imposição das normas.
Por ser uma lei de princípios base, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078) atinge toda e qualquer relação jurídica que possua relação com o consumo. Desta forma, qualquer conflito existente entre leis anteriores e o código pode gerar a perda de eficácia e torná-las nulas. Em seu art. 14, o CDC confere responsabilidade objetiva aos fornecedores do serviço que provoquem prejuízos ao consumidor, seja com ou sem culpa (BRASIL, 1990).
O princípio da reparação integral do dano foi adotado tanto pelo Código Civil, por meio do art. 944, quanto pelo CDC. No Código Civil, a reparação deve ser medida pela extensão dos danos, enquanto o Código do Consumidor intervém no sentido de que a reparação dos danos morais e patrimoniais é um direito basilar do consumidor, art. 6 (BRASIL, 2002).
Sendo assim, confirma-se que a responsabilidade adotada pelo CDC é a objetiva, porém, se resume aos casos que envolvem voos internos, concedendo ao consumidor certa liberdade para exigir do transportador aéreo a reexecução efetiva dos serviços, restituição do valor/abatimento do valor e ainda ajuizar ação de indenização por eventuais danos materiais e morais sofridos em decorrência da má qualidade da prestação daquele serviço, dentro de território nacional.
6.1 Excludentes de responsabilidade
Apesar da visível proteção aos consumidores no ordenamento jurídico, para que a equidade seja alcançada existem as excludentes de responsabilidade que podem vir a eximir a companhia aérea da obrigação. Para que isso seja possível não basta a companhia apenas se eximir da culpa, mas há a indispensabilidade de comprovar que o evento que gerou o dano ocorreu por força maior, culpa exclusiva da vítima ou caso fortuito, que se comprovados podem colocar fim na possibilidade de pretensão indenizatória.
Segundo Stoco (2011, p. 11): “o caso fortuito, é quando se considera impossível em razão de sua imprevisibilidade”, pode ser visto, por exemplo, quando ocorrem nevascas, tempestades, enchentes e situações semelhantes, relacionadas às forças naturais. Assim sendo, não poderiam ser evitados, tornando incoerente a responsabilização de alguém nas situações que resultam em danos a outras pessoas.
O Código Civil, no parágrafo único do art. 738, disciplina a excludente de responsabilidade por culpa exclusiva da vítima, que ocorre quando o agente estabelece sua contribuição para a ocorrência do evento danoso. Da mesma maneira, o art. 14, §3, II, do CDC, dispõe que se há a prova de culpa restrita da vítima ou então de terceiro, o agente que forneceu o serviço não será responsabilizado. Já sob a visão da Convenção de Montreal, segundo seu art. 20, se comprovado que o solicitante da indenização ocasionou o prejuízo por erro, negligência ou omissão, se tornará eximido da obrigação parcial ou totalmente (BRASIL, 2002).
No mesmo sentido, traz excludentes tocantes aos atrasos no transporte de passageiros, carga ou bagagem, ao demonstrar isento da responsabilidade de indenização, o transportador que puder provar que exauriu todas as possíveis medidas para evitar a ocorrência do fato (Art. 19).
No entanto, este dispositivo afronta a responsabilidade objetiva conferida ao transportador, que faz menção à teoria do risco, a qual independe de culpa e não permite a exoneração do fornecedor diante da obrigação (CAVALIERI FILHO, 2010). Assim sendo, estaria contrariando também o disposto no art. 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal, que afirma que a responsabilidade atribuída ao transportador é sempre objetiva.
7. Limitação Tarifária e Divergência Doutrinária e Jurisprudencial
O CDC proíbe a limitação tarifária, considerada pela doutrina uma espécie de cláusula de não indenizar. A partir do art. 39, I, está titulada esta prática, vista como abusiva pela doutrina, que tem como objetivo restringir ou anular a responsabilidade do agente causador do dano, dispondo que:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)
I – Condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos (BRASIL, 1990).
Porém, a divergência doutrinária prolonga-se na aplicação desta limitação tarifária nas relações consumeristas relacionadas ao transporte aéreo, uma vez que esta restrição está presente nas Convenções internacionais que versam sobre a matéria.
Cumpre esclarecer que o Código de Defesa do Consumidor regula as prestações de serviço, portanto, tem competência sobre os contratos voltados ao transporte aéreo, sendo assim, torna nula a adoção de cláusula limitadora de responsabilidade, seja ela para o transporte de carga ou de pessoas. Mas, devido à discordância existente, há a teoria de que o Código Brasileiro de Aeronáutica é lei especial e o Código do Consumidor é uma norma geral, que atua como reguladora dos vínculos de consumo. Contudo, a Convenção de Varsóvia, por se tratar de tratado internacional, prevalece sobre a normativa nacional (CAVALIERI FILHO, 2010).
Além da doutrina, esta divergência continua também nos tribunais, no que toca à Convenção de Varsóvia, o STF em seus julgados RE 80.004 e RE 172.720 – RJ, afirma que os tratados internacionais promulgados pelo Brasil não prevalecem sobre o nosso próprio ordenamento, não sendo hierarquicamente soberanos em relação às normas internas. Dessa forma, não haveria sentido admitir as normas limitadoras de responsabilidade previstas no texto da Convenção, afastando o CDC, restando demonstrado pelo julgado que:
(…) o fato de a Convenção de Varsóvia revelar, como regra, a indenização tarifada por danos materiais não exclui a relativa aos danos morais. Configurados esses pelo sentimento de desconforto, de constrangimento, aborrecimento e humilhação decorrentes do extravio de mala, cumpre observar a Carta Política da República – incisos V e X do artigo 5º, no que sobrepõe a tratados e convenções ratificados pelo Brasil (BRASIL, 2001).
Esta oscilação de posicionamentos e entendimentos jurisprudenciais e doutrinários faz com que a supremacia das normas citadas entre em questionamento. Ambas as normativas seguem sendo objeto de fundamentação, pelo fato de que se mantêm em vigor. No entanto, o campo da responsabilidade do transportador que faz menção à relação de consumo ainda gera divergências, a título de exemplo, Cavalieri Filho demonstra que: “os cultores do Direito Aeronáutico defendem o princípio de que, no conflito entre a lei interna e o tratado, prevalece o tratado, pelo que o Código de Defesa do Consumidor em nada poderia alterar a Convenção de Varsóvia” (CAVALIERI FILHO, 2010).
Contextualizando esta discordância, está presente o instituto jurídico da antinomia, que se caracteriza pela existência de duas (ou mais) normas conflitantes, estas normas podem causar incerteza na aplicação diante de cada caso concreto. Ademais, possíveis contradições parciais ou totais, levariam o legislador a uma imprecisão em sua fundamentação. A antinomia se configura a partir de três condições: incompatibilidade, indecidibilidade e necessidade de decisão entre as normas discutidas (FERRAZ JÚNIOR, 2018).
Acerca da indecidibilidade, a imposição do CDC apresenta diferentes posições na seara do transporte aéreo internacional. O Código de Defesa do Consumidor não teria competência de aplicação ao transporte, por se encaixar como lei genérica que aborda relações de consumo de maneira geral, apesar de assumir sua importância (STOCO, 2011).
A Constituição Federal, segundo o art. 178, comprova o posicionamento do autor quando determina que atendendo o princípio da reciprocidade, quanto a ordenação internacional do transporte, deverá a lei dispor sobre transportes aquáticos, terrestres e aéreos. Reciprocidade esta, referente ao tratado firmado e promulgado entre 119 países e a União Europeia, que acarreta consequências ao país que descumprir acordos de ordem internacional.
À frente do Direito Internacional, em tese, a não incidência da Convenção de Montreal, iria contra o princípio jurídico Pacta Sunt Servanda, o qual demonstra a força obrigatória dos contratos. Este princípio está presente também na Convenção de Viena, a partir de seu art. 26 que dispõe: qualquer tratado em vigor obriga as partes signatárias e deve ser cumprido de boa fé. Sendo assim, cabe ao País signatário cumprir o estabelecido na Convenção, devido a sua qualidade ou característica de obrigação, que por meio da aplicação contribui para a uniformização das inconformidades relacionados a esta temática.
No tocante a este posicionamento, além da imposição do princípio da especialidade, as regras estabelecidas na Convenção de Montreal não geram desamparo ao consumidor diante de sua vulnerabilidade, apenas harmonizam suas garantias perante o transporte aéreo internacional. Além disso, determinam que o respeito à Convenção decorre dos princípios Pacta Sunt Servanda e da boa-fé do Estado consoante à ordem internacional, tornando a negativa de aplicação motivo suficiente para suscitar a responsabilidade internacional do Estado (SALIBA; SOUZA, 2017).
O art. 29 da Convenção de Montreal estabelece que:
no transporte de passageiros, de bagagem e de carga, toda ação de indenização de danos, seja com fundamento na presente Convenção, em um contrato ou em um ato ilícito, seja em qualquer outra causa, somente poderá iniciar-se sujeita a condições e limites de responsabilidade como os previstos na presente Convenção, sem que isso afete a questão de que pessoas podem iniciar as ações e quais são seus respectivos direitos. Em nenhuma das referidas ações se outorgar uma indenização punitiva, exemplar ou de qualquer natureza que não seja compensatória (BRASIL, 2006).
Portanto, a divisão de posicionamentos é encontrada nos tribunais. Como no caso do julgamento do RE 80.004/75 da Suprema Corte (BRASIL, 1977), que firma seu entendimento voltado na visão de que a Convenção, mesmo tendo aplicação do Direito Interno Brasileiro, não se sobrepondo às leis do país. Neste sentido, ocorre a primazia da corrente Monista que defende a predominância do Direito Interno. Entretanto, a decisão não põe fim à antinomia, pois, com o advento do CDC, a prevalência das normas do ordenamento jurídico pátrio entra novamente em questão.
O Ministro Gilmar Mendes, com sua relatoria no julgamento do Recurso Extraordinário n° 636.331/RJ, demonstra o entendimento de que os limites indenizatórios determinados na Convenção de Varsóvia deverão ser aplicados sobrepondo a indenização integral disposta no Código de Defesa do Consumidor. Em suas palavras “a principal controvérsia está em definir se o direito do passageiro à indenização poderia ter limitação por meio de legislação internacional especial, devidamente incorporada à ordem jurídica brasileira” (BRASIL, 2017).
Como justificativa para o voto, Gilmar Mendes relaciona três aspectos para consideração, objetivando a solução da controvérsia: o conflito existente entre o princípio constitucional que fixa a defesa do consumidor e a disposição do art. 178 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), o vencimento da antinomia demonstrado na regra do art. 14 da lei 8.078 (BRASIL, 1990) e as regras do art. 22 da Convenção de Varsóvia (BRASIL, 1931) e da Convenção de Montreal (BRASIL, 2006) para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional; por fim, o alcance que teriam as normas internacionais diante à natureza jurídica do contrato e do dano causado (BRASIL, 2017).
Há também, como opção de solução da antinomia, o chamado critério cronológico, porém este critério acaba sobreposto pelo critério da especialidade. Em tese, ao seguir a base cronológica, vê-se que as modificações da Convenção são posteriores à Lei 8.070 (BRASIL, 1990), sendo a última modificação promulgada em 2006 no Brasil. Porém, ao analisar pelo ponto de vista da especialidade, o Código de Defesa do Consumidor trata as relações de consumo de forma geral, ao passo que o Tratado dá enfoque ao contrato de transporte, como modalidade especial de contrato.
Sendo assim, o relator votou concluindo a prevalência da Convenção de Varsóvia (BRASIL, 1931) e demais acordos internacionais em relação ao Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990), para todos os casos que configuram conflito normativo entre os diplomas. Este tema de repercussão geral concedeu provimento ao Recurso, resultando na redução do valor da condenação pelos danos materiais, com limite que segue o patamar já estabelecido na Convenção de Varsóvia, em seu art. 22 (BRASIL, 2006), seguindo as alterações advindas nos acordos internacionais posteriores. Tendo, portanto, como conclusão o que dispõe o art. 178 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), sobrepondo os tratados e normas internacionais ao Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990) no que tange à responsabilidade das empresas de transporte aéreos de passageiros (BRASIL, 2017).
Diversas decisões judiciais dos últimos anos acerca do tema podem ser encontradas, como por exemplo a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, do ano de 2016, que teve como Relator Des. Samuel Meira Brasil JR., e concluiu pela inaplicabilidade da Convenção. Samuel fundamenta sua decisão no sentido de que a indenização deverá se basear no Código de Defesa do Consumidor e que em cada caso concreto seria viável uma análise específica, sendo assim, afasta as regras previstas nas Convenções Internacionais (BRASIL, 2016).
Em 2018, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por meio da Apelação Civil n° 70079109526, de 30 de novembro, afastou a aplicação da Convenção de Montreal quando o Relator Pedro Luiz Pozza justificou que os danos resultantes de destruição, perda, avaria ou atraso na bagagem do passageiro são tipicamente culposos, caracterizando competência do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 2018).
A partir disso, pode-se verificar que os Tribunais estão defendendo a prevalência da adoção da Convenção e de suas regras. Mas este posicionamento não é unânime, ocasionando conflito com o instituto da Repercussão Geral. Este instituto reserva ao STF o julgamento dos temas discutidos nos recursos extraordinários que tratam de matérias relevantes à economia, política, aspecto social ou jurídico e que de alguma forma extrapolam os interesses subjetivos da causa. Essa falta de posição democrática para todos os julgados faz com que ainda haja antinomia entre as normas, resultando em desamparo e vulnerabilidade ao consumidor.
8. Conclusão
A divergência entre normas tem seu enfoque na limitação indenizatória nos casos de danos causados ao usuário destes serviços. A partir disso, relevantes doutrinadores permanecem com seu posicionamento voltado ao CDC por se tratar de norma constitucional, reforçando assim, a superioridade hierárquica diante das demais normas do ordenamento jurídico. Porém, o fato de que há uma vantagem na aplicação do Código do Consumidor não afasta o advento da ratificação e aceitação da Convenção pelo país, que ocorreu de maneira livre e espontânea. Para fins de solução de antinomias no âmbito do transporte aéreo, não seria a melhor escolha utilizar os critérios tradicionais, como o da especialidade e o critério cronológico, pelo fato de que o CDC tem origem constitucional e em sua teoria abrange normas de interesse social e ordem pública. Por isso, não há de se falar de seu afastamento em qualquer relação de consumo, inclusive nos contratos de transporte internacional.
Seguindo a Constituição Federal, há um acordo assinado abrangendo os demais Estados que também deve ser levado em consideração. Ademais, há de se atentar que o transporte aéreo se tornou o meio de transporte mais seguro e cada dia mais contribui de forma significativa como potência mundial em relação à economia. Desta forma, seguindo a evolução do transporte aéreo, interessa a possibilidade de tornar a responsabilidade civil igualitária para as partes que são atingidas, por meio de uma reforma das cláusulas que abordam o tema.
A criação da Convenção de Varsóvia ocorreu em um cenário de grande vulnerabilidade da aviação civil. Atualmente essa não é mais uma realidade, já que a vulnerabilidade passou a ser dos consumidores deste transporte, que regularmente sentem os efeitos do não cumprimento eficaz do serviço proposto pela companhia aérea. Com isso, desenvolve-se a necessidade de adequar a legislação ao dia a dia deste setor, com o objetivo de garantir ao consumidor a proteção que se encontra instituída constitucionalmente.
Outrossim, as Convenções de Montreal e Varsóvia possuem lacunas que se preenchem pela legislação nacional, a partir de uma harmonia entre as convenções, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil que regula incidentes sobre todos os contratos de transporte e abrange os princípios base do ordenamento jurídico do país.
Após analisar diferentes posições adotadas pelos tribunais e doutrinas, verifica-se, portanto, que, mesmo com intensas modificações e aperfeiçoamentos na Convenção de Varsóvia, o Código do Consumidor continua limitando a evolução de sua aplicação. Este código visa proteger a vulnerabilidade e trazer segurança à parte, que na relação de consumo é considerada a parte mais frágil.
Retornando ao questionamento inicial, qual a jurisdição relativa à responsabilidade civil dos transportadores aéreos à luz do entendimento dos tribunais? conclui-se que, o diálogo entre as regras demonstra que não se aplica uma norma jurídica de forma isolada em detrimento de outra, e sim há uma harmonia e complementação de seus conteúdos no momento de aplicação aos casos concretos. Entretanto, seguindo a hermenêutica constitucional, em sua maioria, dá-se a preferência aos dispositivos das Convenções Internacionais.
Referências
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[1] Mestre pela PUCPR. Professor de Direito Processual Civil de Graduação de Pós-graduação da PUCPR – Campus Toledo. Membro do IBDP. Advogado.
[2] Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestre e bacharel pela mesma instituição. Professora universitária. Advogada.
[3] Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – Campus Toledo.