A RELIGIÃO EM HOBBES

A RELIGIÃO EM HOBBES

3 de abril de 2025 Off Por Cognitio Juris

RELIGION IN HOBBES

LA RELIGIÓN EN HOBBES

Artigo submetido em 24 de março de 2025
Artigo aprovado em 31 de março de 2025
Artigo publicado em 03 de abril de 2025

Cognitio Juris
Volume 15 – Número 58 – 2025
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Ricardo Nascimento Fernandes[1]

RESUMO: O presente trabalho vem abordar como a religião é descrita por Hobbes em suas obras. O trabalho busca compreender o pensamento de Hobbes a partir de sua análise do problema religioso, embora seja o autor do Leviatã desqualificado como ateu, em alguns casos, em função das suas ideias político-religiosas. Antes mesmo de ser um conceito, o ateísmo era uma espécie de descrédito, o pior possível.  Na verdade, a acusação de ateu recaía sobre aqueles que propunham a exclusão de parte do dogma ou uma indiferença frente à religião. Hobbes propõe uma simplificação, ou melhor, uma assepsia da fé, numa tentativa de coibir os abusos perpetrados contra a Palavra e que ameaçam a ordem. O principal objetivo é demonstrar os principais aspectos que em Hobbes aborda a religião em suas obras. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros e artigos mais relevantes e atuais sobre o tema abordado. Conclui-se que para Hobbes, os indivíduos que usam instrumentalmente da religião para obter fins políticos compõem o reino das trevas que de acordo com o pensador, nada mais é do que a confederação de impostores que, para obterem o domínio sobre os homens neste mundo presente, tentam, por meio de escuras e errôneas doutrinas, extinguir neles a luz, quer da natureza, quer do Evangelho, e deste modo desprepará-los para a vinda do Reino de Deus.

Palavras-chave: Religião; Deus; Ateu; Doutrinas; Evangelho.

ABSTRACT: This paper aims to address how religion is described by Hobbes in his works. The paper seeks to understand Hobbes’ thinking based on his analysis of the religious problem, although the author of Leviathan is disqualified as an atheist, in some cases, due to his political-religious ideas. Even before it was a concept, atheism was a kind of discredit, the worst possible. In fact, the accusation of atheism fell on those who proposed the exclusion of part of the dogma or an indifference towards religion. Hobbes proposes a simplification, or rather, an asepsis of faith, in an attempt to curb the abuses perpetrated against the Word and that threaten order. The main objective is to demonstrate the main aspects that Hobbes addresses religion in his works. The methodology adopted will be a bibliographical analysis of literature, with emphasis on the most relevant and current books and articles on the topic addressed. It is concluded that for Hobbes, individuals who use religion instrumentally to achieve political ends make up the kingdom of darkness, which according to the thinker is nothing more than a confederation of impostors who, in order to obtain dominion over men in this present world, try, through dark and erroneous doctrines, to extinguish in them the light, whether of nature or of the Gospel, and thus unprepared them for the coming of the Kingdom of God.

Keywords: Religion; God; Atheist; Doctrines; Gospel.

RESUMEN: Este trabajo aborda cómo la religión es descrita por Hobbes en sus obras. La obra busca comprender el pensamiento de Hobbes a partir de su análisis del problema religioso, aunque el autor de Leviatán es descalificado como ateo, en algunos casos, debido a sus ideas político-religiosas. Incluso antes de ser un concepto, el ateísmo era una especie de descrédito, lo peor posible. De hecho, la acusación de ateísmo recayó sobre quienes proponían la exclusión de una parte del dogma o una indiferencia hacia la religión. Hobbes propone una simplificación, o más bien, una asepsia de la fe, en un intento de frenar los abusos perpetrados contra la Palabra y que amenazan el orden. El objetivo principal es demostrar los principales aspectos que Hobbes aborda respecto a la religión en sus obras. La metodología adoptada será un análisis bibliográfico de la literatura, con énfasis en los libros y artículos más relevantes y actuales sobre el tema abordado. Se concluye que para Hobbes, los individuos que utilizan la religión instrumentalmente para lograr fines políticos conforman el reino de las tinieblas que, según el pensador, no es más que la confederación de impostores que, para obtener el dominio sobre los hombres en este mundo presente, tratan, mediante doctrinas oscuras y erróneas, de extinguir en ellos la luz, sea de la naturaleza o del Evangelio, y así desprevenidos para la venida del Reino de Dios.

Palavras Clave: Religión; Dios; Ateo; Doctrinas; Evangelio.

1 INTRODUÇÃO

Hobbes está entre os que reconhecem a necessidade da religião, verificando que só no homem encontra-se sinais, ou frutos da religião, não há motivos para duvidar que a semente da religião se encontre também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras criaturas vivas.

É peculiar à natureza dos humanos interessar-se pela investigação das causas dos eventos que compartilha e assiste.  Em segundo lugar, também típico, diante toda e qualquer coisa que tenha sido o começo, pensar que ela teve, da mesma forma, uma causa, que determinou esse começo no instante em que o fez. Mais ainda: para os animais a única felicidade é gozo dos alimentos, repouso e prazeres habituais, pois não são capazes de nenhuma previsão ante o tempo, justamente por falta de observação e de memória da ordem, consequência e dependência das coisas que veem. Por seu turno, o homem, diz o filósofo, observa como um fato foi produzido por outro e recorda seus antecedentes e consequentes. E quando se vê na impossibilidade de descobrir as verdadeiras causas das coisas supõe causas para elas, quer as que lhe são sugeridas por sua própria fantasia, quer as que aceita da autoridade de outros homens.

O principal objetivo é demonstrar os principais aspectos que em Hobbes aborda a religião em suas obras. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros e artigos mais relevantes e atuais sobre o tema abordado.

Vê-se justificado o pendor humano a criar elementos capazes de preencher certa an-siedade humana frente à possibilidade dos males, que rejeita, e dos bens, que anseia, criando, assim, uma preocupação com os tempos vindouros. Aqui radica a necessidade da religião. No entanto, ele é implacável com a Igreja, na qual distingue uma fonte permanente de subversão, porque esta se outorga o título supremo de única intérprete da salvação; muitas vezes tornando-a difícil e complicada. Hobbes insiste: a salvação é fácil. Neste sentido, a proposta hobbesiana é a de uma Igreja completamente atrelada ao Soberano, na qual a religião deve servir ao Estado e será estimada ou não de acordo com os serviços ou desserviços prestados a este último.

Apontar como ateu esse pensamento, céptico não por recusar a ideia de Deus, mas por tornar-se independente da instituição eclesiástica, é identificar a desqualificação ateísta com censura. Este trabalho procura, então, levantar algumas questões em torno do suposto ateísmo de Hobbes e como se dá sua virulenta crítica à Igreja.

2 CRÍTICA À RELIGIÃO POSITIVA

É comum entre alguns leitores reduzir o anticlericalismo hobbesiano a ateísmo e, assim, desacreditar o filósofo. Tal acusação se fundamenta no cunho político que Hobbes atribui ao uso da religião, submetendo-a ao Estado e desmistificando, a partir de uma leitura crítica, as interpretações da Bíblia (Finn, 2020).

Muitas páginas são consagradas na obra de Hobbes ao exame da religião e do seu objeto principal: Deus. Segundo este pensador, foi o próprio Deus, por meio da revelação sobrenatural, que implantou a religião. Neste momento, estabeleceu também para si mesmo um reino particular e não ditou apenas leis relativas ao comportamento para consigo próprio, mas, ainda, de uns para com os outros. Deste modo, “no reino de Deus a política e as leis civis fazem parte da religião, não tendo, portanto, lugar a distinção en- tre a dominação temporal e a espiritual” (Belo, 2023, p.75). Percebe-se aqui uma subordinação da religião ao direito e, como não há diferença entre o poder espiritual e o temporal, a regra, a partir dessa perspectiva, estabelece uma dependência da Igreja ao Estado. Observa-se, ainda, que a politização da religião e a escolha do soberano terreno como zelador da lei divina não reduzem a fé ao artifício do poder, pois existe uma “religião verdadeira”, a qual somente o soberano pode interpretar.

Mas qual o fundamento dessa “religião verdadeira”? “O medo dos poderes invisíveis, inventados pelo espírito ou imaginados a partir de relatos publicamente permitidos, chama-se religião; quando esses não são permitidos, chama-se superstição. Quando o poder imaginado é realmente como imaginamos, chama-se verdadeira religião” (Grace, 2023, p.40). Aqueles que pouca ou nenhuma investigação fazem das causas naturais das coisas, mas assumem o medo que deriva da própria ignorância daquilo que tem o poder de lhes ocasionar mal ou bem, tendem a supor, e a imaginar por si mesmos, várias espécies de poderes invisíveis, e a se encherem de admiração e respeito por suas próprias fantasias. A sua lógica é ambivalente: em épocas de desgraça tendem a invocá-las, e quando esperam o sucesso tendem a agradecer-lhes, transformando em seus deuses as criaturas de suas fantasias. Foi dessa maneira que aconteceu, devido à infinita variedade da fantasia, terem os homens criado no mundo inúmeras espécies de deuses. Esse medo das coisas invisíveis é a semente natural daquilo a que cada um em si mesmo chama religião, e naqueles que veneram e temem esse poder de maneira diferente da sua, superstição. Desta forma, o meio-termo entre esta última e a atitude medrosa frente aos “poderes invisíveis” consiste na subordinação da religião ao Estado, ou, dito de outra maneira, consiste na cria- ção de uma religião verdadeira prescrita pelo Estado e que nunca entra em confronto com ele, pois o representa.

Segundo Finn (2020, p.39), a teologia hobbe- siana conforta: ela reduz os princípios do Cristianismo à crença mínima em que “Jesus é o Cristo”, torna arbitrários os demais artigos de fé, suprime o Inferno e faz da “morte eterna” prometida aos maus apenas uma segunda e definitiva morte. Com efeito, esta não é a doutrina de um ateu ou de um amoral descrente de um Deus punitivo. Na verdade, estamos frente a um crente. Ele quer depurar a religião e buscar um denominador comum litúrgico que afaste as divergências doutrinárias nas “coisas indiferentes”, por isso mesmo reguláveis pelo soberano, passando a expressar, simplesmente, a obediência de cada fiel, seu apetite de paz. Enfim, trata-se de um cristão recomendando a procura de Deus como causa primeira (ideia, aliás, compatível com a lógica):

A curiosidade, ou o amor pelo conhecimento das causas, afasta o homem da contemplação do efeito para a busca da causa, e depois também da causa dessa causa, até que forçosamente deve chegar a esta idéia: que há uma causa da qual não há causa anterior, porque é eterna; que é aquilo a que os homens chamam Deus. De modo que é impossível proceder a qualquer investigação profunda das causas naturais, sem com isso nos inclinarmos para acreditar que existe um Deus eterno, embora não possamos ter em nosso espírito uma idéia dele que corresponda à sua natureza (Belo, 2023, p.68).

Ainda em outra passagem, Hobbes identifica Deus e causa primária (Chevallier, 2022, p.74):

Primeiro, é manifesto que deve ser reconhecida sua existência; pois não podemos ter a intenção de honrar aquele que, em nosso en- tender, não existe. Depois, dizer, como alguns filósofos, que Deus é o mundo, ou a alma do mundo (isto é, uma parte deste mesmo mundo), é falar dele em termos desrespeitosos: porque, assim dizendo, eles nada lhe atribuem, e na verdade negam sua existência. Pois pela palavra Deus entendemos a causa do mundo; ora, dizendo então que o mundo é Deus, afirma-se que ele não tem causa, o que é o mesmo que dizer que Deus não existe. O mesmo se aplica ainda aos que sustentam que o mundo não foi criado mas é eterno – como não pode haver causa de uma coisa eterna, negando que o mundo tenha causa eles negam, também, que haja um Deus.

Quem, portanto, não quiser dar a Deus qualquer título além dos que a razão ordena, deve então utilizar aqueles que são negativos, como infinito, eterno, incompreensível etc., ou então superlativos, como boníssimo, altíssimo, poderosíssimo etc., ou ainda indefinidos, como bom, justo, forte, criador, rei e outros análogos. E os usará não por querer dizer o que Deus é – o que seria uma tentativa de circunscre- vê-lo dentro dos estreitos limites de nossa fantasia, mas para confessar nossa admiração e obediência, o que bem convém à humildade e a um espírito disposto a prestar toda a honra que possa a alguém. Pois a razão dita um nome apenas para signifi- car a natureza de Deus, que é o que existe ou, simplesmente, o que é; e um para sua relação conosco, que é Deus, compreendendo em sua significação rei, senhor e pai (Grace, 2023).

Admitindo apenas a possibilidade de uma significação reduzida à mínima nomenclatura, Thomas Hobbes parece filiar-se à tradição agostiniana da exposição da ideia de Deus. “Ego sum qui sum”, diz Javé a Moisés no livro do Êxodo. Esta, sem dúvida, para o bispo de Hipona, seria a melhor definição de Deus. Assim descrita, sua acepção equivale à realidade total e plena, à essentia no mais alto grau. E, com a devida exatidão, tal palavra deveria somente ser empregada para designá-lo. Sendo o Criador, só Deus tem propriamente essência; as suas criaturas, como mutáveis, encarnam parcialmente a essência do seu Autor, a exemplo da marca do oleiro deixada numa peça por ele fabricada. Agostinho não alimenta ne- nhuma ilusão a respeito da possibilidade do nosso conhecimento enquanto se aplique à natureza divina; o que a alma sabe de mais claro, após ter ensaiado apreender Deus, é como ela o ignora. Não existe definição de Deus, pois ele é o Ser mesmo superior a toda determinação: “Deum nihil aliud dicam esse, nisi idipsum esse” (Finn, 2020).

A fim de precisar seu pensamento sobre este ponto importante, Agostinho formula uma doutrina que permanecerá definitivamente como aquisição da filosofia cristã, Deus é o que é: “quae habet haec et est, et ea omnia unus est” (Grace, 2023). Sem embargo, a criatura possui um certo número de perfeições, mas ela não as tem de uma forma tal que não pudesse ser de outro modo. A criatura tem as perfeições, mas não é as perfeições. Todos os atributos do homem são distintos de sua substância e, por isso mesmo, distintos uns dos outros. Deus, ao contrário, enquanto ser absoluto, não é nem sábio, nem forte, nem justo; é antes de tudo a sabedoria, a força e a justiça o próprio Deus, porque esses atributos se confundem Nele com o seu próprio Ser.

Tanto Hobbes quanto Agostinho fundamentam suas teorias políticas na perspectiva da natureza humana. Ambos percebem-na com bastante pessimismo. Os dois pensadores destacam a interferência divina como um préstimo concedido à índole imperfeita dos humanos. Todos os dois escrevem em épocas de crise política e ambos expressaram uma preocupação dominante pela paz. Segundo um e outro, era obrigação do súdito obedecer aos que governavam, quer fossem tirânicos ou não. A política humana reflete, de alguma forma, a política celeste: assim, como Deus sabe o melhor para os seus filhos, o Soberano sabe o que é melhor para os seus súditos (Chevallier, 2022).

Todavia, seria uma temeridade ver uma simples continuidade entre Hobbes e Santo Agostinho quando se trata de nomear o sentimento humano sobre a divindade. Antes, percebe-se uma nova perspectiva a partir da impossibilidade do conhecimento de Deus já anunciada pelo prelado de Hipona. Hobbes, por sua vez, assume este prisma e continua: ele vê a impossibilidade de prender a teologia aos fantasmas, aos dogmas que, de maneira hipócrita, iludem e confundem. O conhecimento de Deus não é do domínio da ciência, da teoria, porque o pensamento cessa onde não há nada a adicionar ou a subtrair. Com efeito, a relação da causa com o efeito nos leva a admitir uma causa última para todo o movimento, um princípio motor e primordial; contudo, a determinação mais precisa da sua essência fica inimaginável, contraditória com o próprio pensamento, de modo que a verificação e o acabamento da ideia de Deus devem deixar-se à fé religiosa (Bueno, 2020).

Na verdade, Deus, enquanto ser supremo, não tem seus atributos. Ele é os próprios atributos. Assim sendo, torna-se impossível qualquer experiência acerca da natureza divina: há espaço apenas para os adjetivos. Desta forma, a filosofia hobbesiana estabelece uma crítica à Teologia e, a este respeito, seus escritos são eloquentes e demonstram outra perspectiva sobre o tema. Seguindo Belo (2023, p.90), quanto a esse recorte, é impossível que Hobbes originalmente fosse tão descrente de sua possibilidade quanto veio a ser depois. Mais tarde, o filósofo considerou qualquer conhecimento de Deus, além do conhecimento da existência de uma Primeira Causa, completamente impossível. Por essa razão, excluiu sistematicamente da filosofia não apenas a Teologia revelada, mas também a Teologia natural. Com o objetivo de ocultar a natureza perigosa deste cepticismo, e para manter uma aparência de que atacou apenas a teologia escolástica, e não a religião da própria Escritura, o autor do De Cive travou sua batalha contra a teologia natural em nome de uma estrita crença na Palavra sem, ao mesmo tempo, deixar de minar aquela crença por meio de sua crítica histórica e filosófica da autoridade da Bíblia: “[…] erramos quando não conhecemos as Escrituras”, diz Hobbes. Por meio desta desatenção, “o inimigo tem estado aqui na noite de nossa ignorância e espalhou as taras dos erros espirituais.” Primeiro, “abusando e apagando as luzes das Escrituras”. “Em segundo lugar, introduzindo a demonologia dos poetas gentios”. Ainda, “misturando com as Escrituras diversos vestígios da religião, e muito da vã e errônea filosofia dos gregos, especialmente de Aristóteles”. Por fim, misturando com estas, “as falsas ou incertas tradições e uma história nebulosa e incerta.” (Chevallier, 2022, p.358).

Para Hobbes, na antiga Grécia reinou, ao invés do amor pela sabedoria, um certo embuste com o aspecto respeitável da filosofia, interiormente cheio de impurezas. Tinham-se misturado ao Cristianismo alguns pensamentos de Platão, não tão nocivos, é verdade; mas, em seguida, juntaram-se-lhe tantas ideias falsas e insensatas de Aristóteles, que se perdeu a fé e se recebeu em troca a Teologia – sistema claudicante que tem um pé nas Sagradas Escrituras e outro na filosofia aristotélica. Uma religião de Estado afastaria definitivamente esse demônio, e nos retiraria do erro da hipocrisia teológica: “[…] erramos, dando atenção aos espíritos sedutores, e à demonologia daqueles que dizem mentiras hipocritamente […], com uma consciência endurecida, isto é, contrária ao seu próprio conhecimento.” (Belo, 2023, p.114).

As diferentes posturas de Hobbes frente ao tema da interpretação das Escrituras convergem para a sua crítica da teologia natural, embora ele o tenha feito, anteriormente, de forma matizada. A preocupação com a censura está também na abordagem de outros temas e leva o filósofo a momentos de maior avanço e de estratégico recuo. De acordo com os Elements, a força da lei natural é baseada no conhecimento natural de Deus; conforme as introduções posteriores, ela se baseia na revelação. Os Elements e o De Cive ainda defendem a doutrina da imortalidade da alma, enquanto o Leviatã substitui esta doutrina pela ressurreição do corpo em nome das Escrituras. Os Elements colocam em evidência as provas da existência de Deus mais enfaticamente, e com mais detalhes que o Leviatã; ao comparar-se a formulação destes dois trabalhos, pode-se suspeitar de que neste último o argumento não é seriamente levado em conta. O elo de conexão nesse caso, com observa Bueno (2020, p.91), está no De Cive, em cujas páginas Hobbes afirma: sem revelação o ateísmo é quase inevitável. Deste modo, percebe-se uma tendência do filósofo, à medida que progride sua crítica da religião, de substituir à teologia natural uma pretensa teologia revelada.

Ora, em consonância com o exposto até agora, percebe-se um pensador tentando reformular as bases da Religião, sem jamais reivindicar para a sua obra a ideia de uma autossuficiência dos humanos frente à Divindade. Muito pelo contrário, ele ataca todos que tentam lançar a humanidade na pior das ignorâncias: aquela que pensa saber mais do que na verdade sabe. A partir deste ponto, ele disfere contra a institucionalização destes erros dardos certeiros, o que lhe vale sérias e definitivas acusações. Entre elas, a pecha de ateu, na verdade, um descrédito de cunho político (Chevallier, 2022, p.40):

[…] o hobbista sucedeu ao maquiavélico – na galeria que mais tarde incluiria o niilista – num imaginário corrente que associa uma filosofia à perversão, mostrando a que vilanias leva a razão desassistida da autoridade religiosa, o pensamento sem a Igreja; designando-se como ateu um pensamento que é leigo não por rejeitar Deus, mas por libertar-se da instituição eclesiástica.

O próprio Hobbes posiciona-se como adversário dos ímpios (Ribeiro, 2021, p.255):

Sou inimigo tão ferrenho dos ateus que procurei com empenho alguma lei pela qual os pudesse condenar por injustiça, e quis muito encontrá-la. Porém, não encontrando nenhuma, indaguei então que nome Deus dá a homens a quem tanto detesta. Ora, assim fala Deus do ateu: Disse o néscio (fool) no seu coração: Não há Deus. E é por isso que coloco o seu pecado no mesmo gênero a que Deus o refere.

Numa outra passagem, mais precisamente na introdução à sua tradução de Tucídides, Hobbes defende aquele autor da acusação de ateísmo e nos fornece preciosos elementos para entender o tema (Bueno, 2020, p.225):

Em alguns lugares de sua história ele observou a ambiguidade dos oráculos; e não obstante confirma uma afirmação dele próprio, com respeito ao tempo em que esta guerra durou, pela predição do oráculo. Ele reprova Nícias por ser pontual em excesso na observância das cerimônias de sua religião, quando por ela arruinou a si mesmo e a seu exército e, na verdade, a soberania total e a liberdade de seu país. Contudo, ele o elogia em outro lugar por sua adoração aos deuses […] de forma que em seus escritos nosso autor parece não ser supersticioso, por um lado, e por outro, não ser ateu.

Ao que tudo indica, a imagem traçada por Hobbes de Tucídides aplica-se também a ele próprio, pois, se por um lado Hobbes admite a religião natural e, portanto, a existência de Deus; por outro ele não tolera a ambiguidade da religião positiva. Com efeito, o antídoto contra o ateísmo e a superstição consiste na obediência da religião às normas estabelecidas pelo Estado. Nesse tipo de religião, não há espaço para as interpretações livres, estimuladoras da desordem e das incertezas. A atitude pessoal de Hobbes no tocante à religião positiva sempre foi a mesma: a religião deve servir ao Soberano e será prezada ou não, de acordo com a sua utilidade e eficiência nas questões de Estado (Cuche, 2023).

3 TEOLOGIA E POLÍTICA

É oportuno, neste início, apresentar um resumo das concepções políticas de Hobbes: a monarquia absoluta hereditária é a melhor forma de Estado; a origem real e legítima da monarquia é a autoridade paterna; os pais voluntariamente delegaram ao monarca e a seus herdeiros o poder absoluto que a natureza lhes garantia sobre suas próprias famílias. A monarquia assim legitimada é, essencialmente, diferente de todo o poder usurpado; e o dever do monarca, pela lei natural, que tem o fundamento na ordem da natureza, na inteligência de Deus, que é a primeira causa de todas as coisas existentes, é cuidar não somente do bem-estar físico de seus súditos, mas, acima de tudo, de seu bem-estar moral. A prudência aconselha-o a acercar-se de um conselho aristocrático ou democrático, a fim de somar às vantagens de uma monarquia as destes outros regimes. Se, por qualquer motivo, a monarquia ab- soluta hereditária for impossível num Estado, será indispensável a direção monárquica efetiva dos negócios de Estado. Uma tendência democrática que não tenha sido sistematicamente superada está em conflito com esta convicção monarquista (Ribeiro, 2021).

As apresentações da filosofia política de Hobbes podem, com um pouco menos de justiça que o trabalho de Espinosa claramente intitulado deste modo, ser denominadas tratados teológicos-políticos. Exatamente como Espinosa fez mais tarde, Hobbes, com dupla intenção, torna-se um intérprete da Bíblia. Em primeiro lugar, a fim de usar a autoridade das Escrituras a favor de sua teoria política, em seguida, e com especial cuidado, com o objetivo de abalar a autoridade das próprias Escrituras. Só gradualmente o segundo intento torna-se mais claro e dominante. No De Cive, Hobbes dedica dois capítulos especiais à prova escritural de suas próprias teses sobre a lei natural e do poder absoluto dos reis. No Leviatã, não há nada que corresponda ao primeiro destes capítulos, e o conteúdo do segundo é esgotado em dois parágrafos, na parte em que trata do estado natural. Desta maneira, quando Hobbes assegura à motivação teológica da filosofia política um último refúgio na discussão do Estado natural, ele indica um nexo entre a Teologia e o Estado natural em particular. Essa conexão é revelada nos argumentos teológicos a favor da monarquia, que Hobbes men- ciona nas primeiras apresentações, e que se refere principalmente à monarquia patrimonial, ou seja, ao Estado natural. “À medida que o Estado natural torna-se cada vez menos importante para Hobbes, os argumentos teológicos na filosofia política tornam-se cada vez menos importantes.” (Aganben, 2021, p.86).

Ao que tudo indica, só duas perspectivas se ofereciam aos espíritos da época de Hobbes que haviam renunciado à autoridade do Cristianismo medieval. A primeira era a da religião natural oposta às religiões históricas e baseada na razão natural comum a todos os homens: conduzia ao deísmo (Ribeiro, 2021).

A segunda visava a uma religião civil que não fosse construção da razão, mas da autoridade; que exaltasse não a crença, mas a prática; que visasse não a uma verdade incontestável, mas à paz. Sem embargo, este segundo caminho foi o adotado pelo nosso filósofo (Chevallier, 2022).

Hobbes admite que os homens estejam sujeitos à lei duma religião positiva: Judaísmo, Islamismo, Cristianismo. Aqui nos deparamos com um fato também positivo. O Estado construído teoricamente no Leviatã é um Estado cristão, quer dizer, composto por cristãos. Sua lei religiosa, isto é, o conjunto de mandamentos que exprimem a vontade do seu Deus, acha-se nas Escrituras. Da sua interpretação dependem, portanto, as obrigações estatais. Mas quem interpreta a Palavra? No estado natural, é forçoso admitir que cada cristão tem direito de proceder a esta leitura segundo as suas razões individuais. Então, reivindicam-se tantas leis cristãs quanto o número dos que se pretendem cristãos. Esse direito de entendimento pessoal, que é apenas um aspecto do direito geral do homem sobre todas as coisas, deve ser transferido, com tudo o mais, no momento do pacto coletivo (Cuche, 2023).

Essa transferência é feita ao homem artificial que, organizado numa sociedade forjada pelo acordo geral, escolhe o seu Soberano. Neste sentido, o chefe supremo torna-se o comandante não só do Estado, mas também da Igreja. Mas o que é tal Igreja? Ela é entendida como uma assembleia, uma congregação dos fiéis. Com efeito, é uma reunião de homens que professam a fé cristã unidos na pessoa do Soberano, sob cuja ordem devem congregar-se (Chevallier, 2022, p.339):

Segue-se, necessariamente, que uma cidade de cristãos e uma Igreja são exatamente a mesma coisa, com os mesmos homens […]. A matéria de uma cidade e de uma Igreja é a mesma, a saber, constitui-se dos mesmos cristãos. E a forma, que consiste num poder com o direito de reuni-los, também é a mesma – pois é evidente que cada súdito está obrigado a comparecer, lá onde for convocado por sua cidade. Assim, aquilo que chamamos uma cidade, porque se compõe de homens, chama-se Igreja, quando se compõe de cristãos.

O conteúdo e a preocupação do Estado e da Igreja são os mesmos: os cristãos. Não há, na verdade, a Igreja e o Estado, uma soberania espiritual e um governo secular. A primeira e o segundo são a mesma coisa, uma só “pessoa” (Bueno, 2020, p.339), cuja vontade está atrelada ao seu comandante único, quer dizer, ao Soberano. Cada cidade é uma Igreja, o reino de Deus é um domínio civil. Deste modo, cria-se uma estratégia bastante eficaz para salvaguardar o poder central: nenhuma autoridade, que se autointitule espiritual, tem respaldo para impor-se como rival do poder soberano. Nenhum Sumo Pontífice, nenhum mandamento da consciência individual, nem mesmo qualquer debate que possa abrir uma fissura no corpo cristão. Nenhum súdito pode considerar proibida, como cristão e sob pena de morte eterna, uma ação que lhe ordene a lei civil, sob pena de morte natural. Ninguém está mais obrigado a “duobus dominis servire”.

Hobbes redefine a religião e a Igreja, diluindo-as no campo do político. A primeira reduz-se a um conjunto de leis estabelecidas pelo Estado, baseadas, é certo, nas Escrituras, mas que visam em primeiro lugar à ordem e à segurança do reino. O lugar do sagrado perde-se numa legislação que busca neutralizar qualquer foco de rebeldia. Trata-se de uma religião oficial que é econômica, prática, ordenadora e, acima de tudo, reguladora dos medos dos fiéis. Não há espaço para o temor do desconhecido, do além-túmulo, a religião que se apresenta agora configura-se como um culto do presente. Ela precisa estar sempre alerta com relação à segurança e à estabilidade do reino, que não é mais de Deus, porém um domínio artificial criado por um acordo. Deus é reduzido, dentro dela, a uma causa lógica para atender às inquietações íntimas da razão humana acerca do infinito. Quanto à Igreja, esta é redimensionada em vista de seu novo papel: cumprir as orientações do Soberano sobre a matéria religiosa. Isto lhe diminui a influência antiga, transforma-a em veículo político, subordinado ao Estado (Macedo, 2022).

Um estudioso de Hobbes (Aganben, 2021, p.79) chama atenção para um ponto deveras importante para se entender a teoria da religião do nosso filósofo: se vasculharmos as Escrituras, encontraremos na boca do apóstolo uma orientação aparentemente oposta àquela defendida por Hobbes: Mais vale obedecer a Deus que aos homens. Essa sentença embaraça aquele pensador, que dela se afasta, tanto quanto possível, graças a uma engenhosa distinção entre os artigos necessários à salvação e os outros. Na primeira categoria estão incluídas apenas a fé em Cristo e a obediência às leis. Eis o que restringe singularmente a possibilidade de ordenar o Soberano cristão, aos súditos cristãos, qualquer coisa que lhes possa arriscar a salvação eterna. Sem dúvi- da, nas consequências que deduz da fé em Cristo, pode o soberano enganar-se. Mas quem terá qualidade para julgar melhor do que ele, chefe da Igreja? Que súdito, na sua consciência individual, que Papa, ou mesmo que apóstolo? Não pode haver contradição entre as leis de Deus e as de um Estado cristão. Por conseguinte (salvo o caso, a que Hobbes faz prudente reserva, de uma revelação sobrenatural, recebida em sentido contrário), nenhum súdito cristão pode ter base para deixar de obedecer às leis do seu Estado (também cristão), no que se refere aos atos exteriores e à profissão de fé.

Do exposto, percebe-se que o papel eclesiástico na condução das consciências diminui bastante de importância, dando lugar a uma orientação maior, ligada ao poder soberano. Aquele lugar é apenas coadjuvante. Pastor supremo do seu povo, detentor do direito de nomear os pastores subordinados, pode o Soberano batizar, administrar os sacramentos etc. Não o faz, todavia. E, se não pronuncia a excomunhão, é ele que dá força executiva à sentença dos seus párocos. Soberano e seu rebanho devem estar em sintonia, quando as questões falam da fé. Contudo, o comando supremo continua nas mãos do primeiro (Chevallier, 2022).

4 DEPURAÇÃO DA FÉ

De antemão, deve-se observar que o espaço dedicado à crítica da religião e da Igreja amplia-se, consideravelmente, desde os Elements até o Leviatã. Três capítulos nos Elements correspondem a quatro no De Cive e a dezessete no Leviatã. Este alargamento quantitativo é acompanhado por um aprofundamento da crítica (Aganben, 2021).

Hobbes estabelece como um dos pilares de seu julgamento da Igreja o problema da salvação. Em alguns homens, a generosidade é o suficiente para que os pactos sejam cumpridos e seja garantida a paz. No entanto, a maior parte só respeita o outro e a palavra empenhada, por medo das consequências que podem aparecer nesta existência ou na “outra vida”: eis, portanto, o campo da religião. Neste sentido, a escuderia da fé, isto é, a Igreja, assume o papel de arauto dos resultados possíveis no além. Dito de outra forma, a Igreja passa a ser a intérprete da salvação (Cuche, 2023).

A fé vem pelo ouvido, diz Hobbes. Ora, a fonte primeira para a construção de uma teoria acerca da salvação é, sem questionamento, a Escritura, cuja voz oficial é o clero (seu herme- neuta, por excelência). O autor do Leviatã condena os que, juntando as palavras das Sagradas Escrituras, de um modo diverso daquele conforme a razão, fazem tudo para iludir os cristãos (Macedo, 2022). A crítica hobbesiana atinge o abuso da retórica, que, em uma interpretação distorcida, faz passar o falso pelo verdadeiro, o impuro pelo imaculado e manipula em proveito próprio o sagrado. Ela coloca em questão o poder da fala eclesial: os eclesiásticos são comparados às fadas, ou seja, às fábulas narradas por velhas na Inglaterra referente aos fantasmas e espíritos. O clero também tem o poder do encanto. Ele transforma o vão em alimento para o espírito dos ignorantes, sua vara de condão é a palavra e a sua fórmula para seduzir está calcada no medo: “assim como as fadas só têm existência na fantasia de gente ignorante, que se alimenta das tradições contadas pelas velhas ou pelos antigos poetas, também o poder espiritual do Papa (fora dos limites de seu próprio domínio civil) consiste apenas no medo, em que se encontra o povo seduzido, de ser excomungado, por ouvir os falsos milagres, as falsas tradições e as falsas interpretações das Escrituras.

O clero deflagra a sedução em série, é subversivo e poderoso. A organização dos eclesiásticos e sua eficaz influência sobre os homens devem-se, em particular, ao manejo seguro e certeiro do discurso. A palavra assume suas maiores proporções sedutoras quando articulada pelo clero. Por conseguinte, é necessário considerar a Igreja, quando distanciada do Estado, uma verdadeira ameaça: o clero desobediente é responsável pela desordem política, e pela infelicidade, no plano pessoal. É quase impossível ele não almejar o poder, de modo que subverter a ordem é, para o clérigo, quase uma profissão. Ele corrompe a obediência civil, fortalecendo, na religião, o papel do medo: desta forma, o clero cria um Estado no Estado, muitas vezes mais poderoso que o legítimo. Isso acontece, porque, invocando o nome de Deus, ele pode alardear os castigos eternos. Considerar a Igreja como legítima representante de Deus na terra é um grande abuso da exegese: “O maior e principal abuso das Escrituras e em relação ao qual todos os outros são, ou consequentes ou subservientes, é distorcê-las a fim de provar que o reino de Deus, tantas vezes mencionado nas Escrituras, é a atual Igreja […]” (Macedo, 2022, p.158).

Hobbes sugere, assim, uma simplificação, ou melhor, uma assepsia da fé, numa tentativa de coibir os abusos perpetrados contra a Palavra e que ameaçam a ordem. Ele ataca o eixo central das ilusões pregadas pela Igreja atual, isto é, o problema da salvação. Hobbes propõe diminuir os critérios para alcançá-la: “O único (unum necessarium) artigo de fé que as Escrituras tornam sim- plesmente necessário para a salvação é este, que Jesus é o Cristo” (Cuche, 2023, p.235). Todos os critérios exigidos para salvar-se estão resumidos neste único. Elimina-se, com isso, a figura intermediária do sacerdote e, consequentemente, da Igreja gananciosa. Acaba-se o medo dos tormentos eternos, o Purgatório, as indulgências, ou seja, todas as mentiras que escravizam e atormentam a vida dos cidadãos e do Estado. Assim acontece, porque a relação que se estabelece entre criatura e Criador é desprovida de quaisquer subterfúgios ou complicações teológicas, eles servem muito mais para confundir do que para explicar os caminhos da fé.

A simplicidade é a chave para combater o engodo, quanto mais complexo os preceitos, mais fácil a manipulação das Escrituras. Obedecendo à velha regra platônica (a verdade é una e a mentira, múltipla), Hobbes resume tudo a duas virtudes e reduz o vocabulário teológico corrente, a fim de liberá-lo dos abusos, e submetê-lo ao controle político. “Tudo que é necessário à salvação está contido em duas virtudes, fé em Cristo e obediência às leis” (Aganben, 2021, p.525). Todo o que desejar verdadeiramente cumprir as ordens de Deus, ou se arrepender com sinceridade de suas transgressões, ou amar a Deus com todo o seu coração, e ao próximo como a si mesmo, tem o requisito para pleitear a entrada no reino de Deus, pois, se Ele exigisse uma ino- cência perfeita, não haveria carne que se salvasse. A partir destes princípios, a teologia hobbesiana desautoriza doutrinas como a da Graça e da Predestinação, e reduz o medo da “vida futura” – alvo principal da religião de Hobbes. Os critérios para a salvação e as virtudes cristãs são reduzidos ao mínimo. O homem deve, por um esforço próprio, assumir o Cristo como seu “norte” e seguir-lhe as pegadas. O trabalho pessoal e a fé substituem uma complicada série de requisitos, impostos antes pela Igreja do seu tempo. A expectativa da redenção, cuja chegada é envolta em mistérios e digna apenas de eleitos obscuros, é balizada, agora, por meio de parâmetros simples e acessíveis a qualquer entendimento.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cultura e religião são construções humanas que se conectam e se sustentam em mútuo processo de retroalimentação. A religião expressa a sociedade como explicação e controle da realidade. Na religião identificam-se as características de um determinado grupo, daí ela constitui uma informação da cultura. Acredito que a religião, assim como outras dimensões da cultura, teve forte influência sobre a constituição identitária de Hobbes repercutindo em sua visão de mundo e na produção de sua teoria sobre o Estado. Investiguei em que medida a teoria do Estado hobbesiano presente na obra Leviatã sofreu influência religiosa e verifiquei que a religião é mais constitutiva dos seres humanos do que a própria racionalidade. Por isso, a relevância de contextualizar os eventos históricos e analisar os elementos simbólicos que atuaram na vida e na obra de Hobbes para compreender os pensamentos e mentalidades que influenciaram a subjetividade de nosso autor.

No momento histórico em que Hobbes vivia, a religião cristã tinha um papel central na sociedade europeia ocidental. O poder da religião estava presente em toda a organização social e fundamentava a existência do Estado Absolutista como sendo aquele com uma capacidade exclusiva e indivisível de dar e de revogar a lei civil. Essa lógica soberana absoluta garantiu à Igreja Católica o monopólio sobre a organização e controle social.

O poder do Leviatã bíblico é comparável ao poder de Deus. Uma criatura que não sente medo. A imagem do Leviatã bíblico tem importante papel na teoria hobbesiana, na medida em que ela serve de reforço no controle da ordem social. O monstro, se obedecido, não representa ameaça.

Concluí que a religião conferiu a essa teoria a ideia de que o poder divino imperava sobre o processo de organização humana neste mundo. E que, por isso, o medo que impulsionou o ser humano à transferência de poder ao Estado não é apenas o medo racional da morte violenta, mas também o medo que ficou incutido pela cultura e imaginário da época que fizeram parte da constituição identitária de Hobbes e que repercutiram na sua visão de mundo e na produção de sua teoria, abolindo, desse modo, a produção de uma verdade absoluta, sendo o conhecimento filosófico apenas uma versão parcial da realidade experimentada. A hipótese é de que Hobbes defendeu uma laicização parcial do Estado no Leviatã, porque ele conhecia o poder do sagrado na organização e controle social, por isso deve ter apropriado desse poder para conseguir maior adesão da população à sua teoria. A intenção de Hobbes não era apenas separar Igreja de Estado, e sim, apropriar-se da simbologia da religião e de sua força legitimadora.

REFERÊNCIAS

AGANBEN, Giorgio. O reino e a glória. ed.3. Editora Boitempo. São Paulo, 2021.

BELO, Ângela Alves. Culturas e religiões: uma leitura fenomenológica. ed.7. Editora Edsc. São Paulo, 2023.

BUENO, Marcelo Martins. Medo e liberdade no pensamento de Thomas Hobbes. São Paulo: Mackenzie. Revista Primus Vitam, nº 1 – 2º semestre de 2020.

CHEVALLIER, J. J. As Grandes Obras Políticas. ed.14. Editora Agir. Rio de Janeiro, 2022.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. ed.7. Editora EDUSC. Bauru, 2023.

GRACE, D. Santo Agostinho e Thomas Hobbes. Pensadores Políticos Comparados. ed.12. Editora UNB. Brasília, 2023.

FINN, Stephen J. Compreender Hobbes. ed.3. Editora Vozes. Petrópolis, 2020.

HOBBES, T. Do Cidadão (De Cive). Ed.1. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1992.

HOBBES, T. O Leviatã. ed.1. Editora Victor Civita. São Paulo, 1974.

MACEDO, José Rivair. Religiosidade e messianismo na Idade Média. ed.8. Editora Moderna. São Paulo, 2022.

RIBEIRO, R. J. Ao Leitor sem Medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. ed.11. Editora Brasiliense. São Paulo, 2021.

STRAUSS, L. O Estado e a Religião. O Pensamento Político Clássico. ed.15. Editora Queiroz. São Paulo, 2020.


[1] Militar da Reserva, Professor Doutorando em Filosofia do Direito, Advogado Especialista em Direito Processual Civil, Direito Administrativo, Direito da Pessoa com Deficiência e Concurso Público, Escritor e Palestrante. E-mail: ricardonfernandes@hotmail.com