A PONDERAÇÃO EM DESENCANTO NO BRASIL: A TURVA REDAÇÃO DO ART. 489, § 2º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
14 de agosto de 2022WEIGHTING IN DISENCHANTMENT IN BRAZIL: THE BLURRED WRITING OF ART. 489, § 2 OF THE CIVIL PROCEDURE CODE
Cognitio Juris Ano XII – Número 42 – Edição Especial – Agosto de 2022 ISSN 2236-3009 |
Autores: Leonam Baesso da Silva Liziero[1] Valfredo de Andrade Aguiar Filho[2] Elias Marques de Medeiros Neto[3] Fernanda Mesquita Serva[4] |
RESUMO: Esse artigo tem como objetivo apresentar alguns argumentos que demonstram problemas na recepção teórica do conceito de ponderação no Direito brasileiro. O foco será a inserção deste conceito no Código de Processo Civil, especialmente no art. 489, §2º. Assim, será visto como a distinção entre regras e princípios não é mera questão teórica, ainda que do modo como é entendida no Brasil muitas vezes é errada em relação aos propósitos de sua formulação. Será discutida a controversa questão acerca da possibilidade de ponderação de regras apresentada por Humberto Ávila, o que à primeira vista seria inadequado no pensamento de Alexy. Por fim, apresenta-se a visão que alguns processualistas nacionais têm sobre este tema.
PALAVRAS-CHAVE: Ponderação; Regras e Princípios; Recepção teórica.
ABSTRACT: This article aims to present some arguments that demonstrate problems in the theoretical reception of the concept of balancing in Brazilian Law. The focus will be the insertion of this concept in the Civil Procedure Code, especially in art. 489, §2. Thus, it will be seen how the distinction between rules and principles is not a mere theoretical question, although the way it is understood in Brazil is often wrong in relation to the purposes of its formulation. The controversial question about the possibility of balancing of rules presented by Humberto Ávila will be discussed, which at first sight would be inappropriate in Alexy’s thinking. Finally, the view that some national proceduralists have on this topic is presented.
KEYWORDS: Balancing; Rules and Principles; Theoretical reception.
INTRODUÇÃO
A ponderação é um dos temas mais estudados e debatidos em matéria de Teoria do Direito no Brasil no âmbito da Teoria da Decisão Judicial. Como consequência da tradição e embate sobre novas percepções doutrinárias no Brasil após a Constituição de 1988, a atividade jurisdicional é central em parte das discussões envolvendo o neoconstitucionalismo. No Brasil, tal conceito, além de envolver o aspecto político de um movimento constitucionalista brasileiro, em defesa dos valores constitucionais e antiditatorial, também se confunde com uma suposta superação do positivismo jurídico por meio de um conjunto de teorias que se convencionou denominar de “pós-positivismo” em uma adaptação equivocada do termo usado por Friedrich Müller em sua nova metódica.
Com o fim da ditadura militar e a emergência de um novo momento de afirmação da então recente Constituição de 1988, a partir dos anos 1990 se observa a busca de novas concepções teóricas de modo a acompanhar criticamente o novo momento democrático. Além de uma errônea e simplista associação entre positivismo jurídico e a ditadura militar – muito professada em textos críticos no Brasil, a chegada das então novas ideias estrangeiras a partir da década de 1980, seja por meio de juristas brasileiros que voltavam de estudo no exterior, seja pela crescente tradução para o Português de obras em inglês e alemão (o que ajudou a popularizá-las em território nacional), irrigou o cenário brasileiro em busca de internalizar tais ideias que, aos seus próprios Países, podem parecer plenamente adequadas.
A abertura do pensamento jurídico brasileiro e de sua prática a sincretismos metodológicos a partir de aplicações de conceitos fragmentados de teorias estrangeiras em ideias esparsas gerou também certos sincretismos legislativos, como a própria emergência da Súmula Vinculante em 2006 e, mais recentemente, na tentativa de um roteiro decisório no Código de Processo Civil de 2015, em especial em seu art. 489.
O texto aqui desenvolvido demonstrará como a adaptação sincrética de um conceito da teoria da argumentação de Robert Alexy no Brasil pode acabar gerando um cenário com efeito oposto ao objetivo do jurista alemão: a redução (ainda que não eliminação) da discricionariedade judicial. Para tanto, o artigo iniciará com a demonstração dos usos do conceito de ponderação em escritos brasileiros de forma distorcida ao que explica Alexy e alguns de seus comentadores no Brasil. Em seguida, analisará a inclusão do conceito de ponderação no Código de Processo Civil de 2015 como incorporação legislativa da ponderação, em sua tendência maior em normatizar institutos de ordens jurídicas estrangeiras.
1 PONDERAÇÃO E A ABERTURA TEXTUAL NO BRASIL
No Brasil, a ponderação é referenciada em textos da literatura jurídica e em normas jurisprudenciais é normalmente aludida a Robert Alexy como uma parte fundamental de sua teoria da argumentação. Muito se menciona sobre ponderação em escritos no Brasil. Para uma breve noção, na base de buscas do Google Acadêmico com o termo “ponderação”, a partir de 2017 a 2021, apresenta certa de 17300 resultados excluído o item “incluir citações”. Ao restringir ainda mais a busca por “ponderação Robert Alexy”, apresentam-se ainda 5420 resultados excluído o item “incluir citações”. Estas breves constatações indicam grande relevo do tema e do autor em textos acadêmicos no Brasil.
Em termos simples, a ponderação se apresenta na teoria da argumentação de Alexy no terceiro momento da máxima (Grundsatz) da proporcionalidade, em que se analisa a proporcionalidade em sentido estrito. Enquanto as duas máximas parciais da máxima da proporcionalidade, a máxima parcial da adequação e a máxima parcial da necessidade, são relativas às possiblidades fáticas, a proporcionalidade em sentido estrito tem como objeto as possibilidades jurídicas (2014, p. 154).
A ponderação (Abwägung) é formulada em suas bases em uma lei: “Quanto maior o grau de descumprimento ou de interferência em um princípio, maior deve ser a importância do cumprimento do outro princípio” (2014, p. 154) ou ainda, “As condições sob as quais um princípio tem precedência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio que tem precedência” (2008, p. 99). Este é um aspecto essencial na teoria dos princípios de Alexy.
Essa discussão sobre a ponderação busca reconstruir o argumento de legitimidade das decisões judiciais. Não demais, parte considerável dos exemplos do autor se baseiam em decisões do BVerfGE. Para isso, é importante trazer uma discussão mais refinada que Alexy traz no Posfácio de sua Teoria dos Direitos Fundamentais, publicado em 2002, de modo a revisitar e sistematizar alguns de seus conceitos. Um deles, importante para a compreensão da ponderação, refere-se à distinção entre ordem-moldura (Rahmenordnung) e ordem-fundamento (Grundordnung), de acordo com Böckenförd.
A ideia de ordem-moldura diz respeito aos critérios usados para determinação de seu conteúdo. A noção de moldura, enquanto estabelecimento de limites, aproxima-se da concepção liberal clássica de constitucionalismo, cujo propósito era a limitação de ações políticas dos governantes. Deste modo, com base em autores como Jestaedt e Hain, a moldura remete à uma redução liberal da Constituição, de modo a dar ênfase na atividade do Poder Legislativo.
Dentre as formas de ordem-moldura, Alexy opta por compreender a mais adequada a que amalgama o modelo procedimental e o modelo substancial, resultando em uma modelo substancial-procedimental. Segundo este modelo, aquilo que a Constituição proíbe ou obriga é a moldura, mas dentro deste âmbito estaria a discricionariedade dos legisladores. Portanto, esta discricionariedade seria estrutural, uma vez que este campo de possiblidade, entre aquilo que é obrigatório e o que é proibido, perfaz uma esfera na qual o legislador possui discricionariedade dentro do que for constitucionalmente possível.
Por sua vez, a ordem-fundamento, em seu sentido qualitativo, é mencionada por Alexy como a concepção de Constituição por meio de qual as questões fundamentais para certa sociedade são decididas. Deste modo, seria compatível com a ideia de ordem-moldura. Deste modo, conforme Alexy compreende que, consoante a Teoria dos Princípios, uma boa Constituição deve conciliar os dois aspectos (2008, p. 584): ser uma ordem-moldura e uma ordem-fundamento.
Como consequência desta conciliação, tem-se a noção de discricionariedade estrutural, dentro da qual a ponderação surgirá como conceituo do pensamento de Alexy. Esta discricionariedade estrutural, enquanto espaço de decisão constitucionalmente possível, manifesta-se em três tipos: discricionariedade para definir objetivos, a discricionariedade para escolher o meio e a discricionariedade de ponderação (ou para sopesar). Este terceiro tipo, que é o foco deste texto, surge em momento de incerteza sobre os efeitos negativos em graus diversos de escolhas que afetem finalidades e princípios distintas (2008, p. 587).
A discricionariedade para sopesar – ou seja, para equilibrar os diferentes pesos dos princípios – é uma decorrência da própria definição de princípio na teoria de Alexy: princípios são normas que determinam que algo seja na maior medida possível realizado em conformidade às possibilidades fáticas e jurídicas existentes (2008, p. 588).
Em conformidade com sua proposta teórica, a discricionariedade estrutural se refere à ausência de determinações ou proibições constitucionais.
2 PONDERAÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Uma das incorporações legislativas mais evidentes do sincretismo metodológico é o texto do artigo 489 do Código de Processo Civil, promulgado em 2015. Antes da análise do dispositivo apresento aqui a previsão do Projeto de Lei do Senado nº166/2010, que após aprovado nesta Casa, foi remetido à Câmara dos Deputados como Projeto de Lei nº8.046/2010. O Anteprojeto do Código de Processo Civil foi elaborado por uma Comissão de Juristas[5] instituída pelo Ato da Presidência nº 379/2009, presidida por Luiz Fux (na época ainda Ministro do STJ) e relatado por Teresa Arruda Alvim Wambier.
Na apresentação da publicação do Anteprojeto do CPC pelo Senado Federal, Fux evidência em toda sua dimensão de seu texto, entre menções de Shakespeare, Jhering e Kelsen, que a sociedade brasileira urgia por um Poder Judiciário menos moroso. A celeridade processual que inspirou as palavras da apresentação de Fux pode ser sintetizada em breve passagem, ao final de seu texto: “O Brasil clama por um processo mais ágil, capaz de dotar o país de um instrumento que possa enfrentar de forma célere, sensível e efetiva, as misérias e as aberrações que passam pela Ponte da Justiça” (ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2010, p. 10).
Esse tom também pode ser observado na Exposição de Motivos, bastante reveladora para a compreensão do “espírito” do que viria a ser o Código de Processo Civil de 2015. Logo no início da Exposição, nota-se a presença de um forte argumento que apresenta a obsolescência do Código de 1973 para os atuais tempos. Se sem um adequado sistema processual, o direito material passa a ser ilusório (uma vez que haveria carência da adequada realização) e não há harmonia com as garantias processuais e o Estado Democrático de Direito.
A partir dos anos 1990 foram introduzidas algumas alterações no texto do Código de 1973 com o intuito de atualizá-lo (como a inserção da antecipação de tutela e do regime de agravo), porém a custo da coesão do texto e que acarretava deficiências de funcionalidade e eficiência na prática forense judiciária (FUX; FUX, 2018, p. 25). Portanto, o novo texto legal teve como propósito a harmonia com a Constituição Federal de 1988 (ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2010, p. 25) e a atenuação da distinção do Direito Privado do Público[6], conforme a tendência de constitucionalização daquele[7].
Além disso, destaca-se a Emenda Constitucional nº 45/2004 que, além de incluir como direito individual a celeridade processual (art. 5º, LXXVIII), estabeleceu normativamente a súmula vinculante e avançou na interpenetração entre o sistema romano-germânico e a common law (FUX; FUX, 2008, p. 26). Semelhante observação está na “Nota do Coordenador” em uma obra coordenada por Fux que compara o Código de 1973 ao de 2015: “a novel legislação, diferentemente do Código de 1973, realiza uma fusão singular entre os institutos das famílias jurídicas do civil law e do common law” (FUX, NEVES, 2015, p. VII).
Expressamente na exposição de motivos há a menção da distinção entre regras e princípios substanciais, muito pela larga influência das recepções teóricas. Veja-se: “fez com que se incluíssem no Código, expressamente, princípios constitucionais, na sua versão processual. Por outro lado, muitas regras foram concebidas, dando concreção a princípios constitucionais” (ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2010, p. 25). Logo após, outra passagem em que a distinção entre regras e princípios se mostra relevante: “Está expressamente formulada a regra no sentido de que o fato de o juiz estar diante de matéria de ordem pública não dispensa a obediência ao princípio do contraditório” (ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2010, p. 26). E em seguida: “Prestigiando o princípio constitucional da publicidade das decisões, previu-se a regra inafastável de que à data de julgamento de todo recurso deve-se dar publicidade” (ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2010, p. 26).
Nessas passagens é possível verificar que o uso da palavra regra tem a função de apresentar uma previsão normativa que pormenoriza por meio de algum procedimento um princípio previsto no texto da Constituição, enquanto comando mais abstrato. Em um primeiro momento, pelo texto exposto na exposição de motivos, as regras processuais funcionariam como uma redução principiológica.
O texto da Exposição de Motivos pouco adiante, ao mencionar dentre as principais preocupações com o Novo Código estariam a estabilidade das decisões e segurança jurídica, de modo que as decisões dos tribunais superiores deveriam moldar[8] as demais: “talvez as alterações mais expressivas do sistema processual ligadas ao objetivo de harmonizá-lo com o espírito da Constituição Federal, sejam as que dizem respeito a regras que induzem à uniformidade e à estabilidade da jurisprudência” (ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2010, p. 27).
Em seguida, novamente invocando o argumento de princípio, o texto evidencia que a tendência à uniformização das decisões se relaciona com a segurança jurídica, exposta aqui como um princípio substancial: “o novo Código prestigia o princípio da segurança jurídica, obviamente de índole constitucional, pois que se hospeda nas dobras do Estado Democrático de Direito e visa a proteger e a preservar as justas expectativas das pessoas” (ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2010, p. 28).
E a partir de então o texto entra em uma seara teórica turva: “Se, por um lado, o princípio do livre convencimento motivado é garantia de julgamentos independentes e justos, e neste sentido mereceu ser prestigiado pelo novo Código, por outro, compreendido em seu mais estendido alcance, acaba por conduzir a distorções do princípio da legalidade e à própria idéia, antes mencionada, de Estado Democrático de Direito” (ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2010, p. 28). Evidencia-se aqui o reconhecimento do “livre convencimento” como um “princípio” que, embora consagrado no texto do Código, poderia colidir com o princípio da legalidade.
Em uma obra de 2013 que discutia aspectos do então Projeto de CPC, Fux evidencia na introdução que o “espírito” do Novo Código possuiu preocupação central com o jurisdicional, em um modelo publicista de processo. Desta forma, o processo moderno deve ter sua estrutura de modo a concretizazr valores que transcendem aos fins privados e constituir o núcleo da moralidade pública. Este modelo de Código busca, portanto, dar viabilidade à democracia deliberativa. Nas palavras de Fux, “não se trata de extrair o resultado democrático de um mero cálculo matemático das vontades expressadas, e sim de obtê-lo em um ambiente aberto à participação de qualquer interessado e no qual ideias tomam corpo pela persuasão racional” (FUX, FREIRE, 2013, p. 9-10). Justamente após estas palavras, Fux em nota de rodapé evidencia dois autores estrangeiros muito citados no Brasil neste aspecto. Sobre deliberação na esfera pública, indica a leitura de Direito e Democracia, vol. II, de Jürgen Habermas. Sobre a importância da teoria discursiva para o constitucionalismo indica Hauptelemente einer Theorie der Doppelnatur des Rechts, artigo de Robert Alexy, publicado em 2009[9].
No texto do Anteprojeto, a redação do atual § 2º do art. 489 não tinha equivalente. Todavia, o Anteprojeto previa expressamente “livre convencimento” e “ponderação” no art. 257, que trataria do emprego de provas[10]. Mesmo com as diversas vicissitudes no texto desde o Anteprojeto de 2010 até a aprovação promulgação do Novo CPC em 2015, a “ponderação” permanece como uma espécie de técnica que permitiria ao juiz, ao perceber uma “colisão de normas”, afastar uma delas desde que devidamente autorizada por razões jurídicas.
O art. 489, §§ 1º e 2º, consolida este sincretismo metodológico ao estabelecer parâmetros pelos quais o juiz deve fundamentar suas decisões. A obrigação de impor aos juízes a obrigação de analisar todos os argumentos das partes se deve à possível intenção de concretização da devida justificação[11], em conformidade com o art. 93, IX, da Constituição de 1988[12]. Evidencia-se a necessidade deste dispositivo em razão de decisões com fundamentos deficitários e que, embora de qualidade duvidosa, não deixaria de ter efeitos enquanto tais até que fossem reformadas.
O texto citado busca limitar o “arbítrio” nas decisões judiciais, de modo que obrigam alguma construção argumentativa racionalmente explicitada para justificar decisões tomadas[13]. Há benefícios e malefícios nesta previsão. Incialmente os dispositivos trazem alguma limitação á discricionariedade, ao determinar quase a obviedade de justificativa das sentenças. Todavia, ao determinar que os juízes devem realizar “ponderação” no caso de “colisão de normas”, o §2º abre margem para quaisquer tipos de argumentações baseadas em princípios quando houver o intento de afastar alguma norma.
O problema foi bastante combatido por Lenio Streck que, em coluna da época na mídia eletrônica Conjur, rogava à então Presidenta Dilma Rousseff para que vetasse o dispositivo normativo. Segundo Streck, o erro na redação do § 2º poderia acarretar terríveis consequências devido à sua má redação que, de fato, ao prescrever a aplicação de certos conceitos teóricos, faz confusões indevidas.
Veja-se a redação final promulgada em 2015 e que ainda consta no art. 489 do CPC: “§ 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão”.
O grande problema da redação deste parágrafo é o uso de termos que determinam que o juiz deve ponderar em caso de colisão de normas. De acordo com Streck – e o que é possível verificar prima facie – que tais palavras remetem à alguma adaptação da teoria de Robert Alexy.
A redação, mesmo com a intenção de incorporar tais conceitos teóricos, gera confuso devido às imprecisões. O parágrafo menciona “colisão entre normas”. O problema é que, embora haja pretensão de institucionalizar a distinção teórica entre regras e princípios, ao mencionar “normas”, deixa imprecisa a redação uma vez que, segundo Alexy – e alguns outros autores contemporâneos – consideram normas como gênero e regras e princípios como espécie.
Entre as distinções possíveis na teoria de Alexy entre regras e princípios é justamente a antinomia entre tais espécies. A antinomia das regras é o conflito e a dos princípios é a colisão. Fala-se, corretamente, em conflito de regras (Regelkonflikt) e colisão de princípios (Prinzipienkollision).
3 POR QUE REGRAS ENTRAM EM CONFLITO E PRINCÍPIOS COLIDEM?
O conflito é solucionado se for introduzido, em uma pelo menos uma das regras conflituosas, uma cláusula de exceção que possa eliminar o conflito. Caso não haja solução (com a existência de uma cláusula de exceção), uma das regras precisa ser considerada inválida. A despeito de sua fundamentação, duas regras que tenham consequências jurídicas contraditórias entre si ou devem ter alguma cláusula de exceção ou ao menos uma delas deve ser considerada como inválida (ALEXY, 2008, p 92).
Alexy exemplifica com a decisão do Tribunal Constitucional Alemão que considerou inválida uma norma de direito estadual de Baden, com base no art. 31 da Lei Fundamental da Alemanha, que proibiria que a norma estadual valesse como uma exceção à noma federal (ALEXY, 2008, p. 93). Mas é possível exemplificar em algumas passagens no Direito brasileiro como se opera o conflito entre normas.
Um conflito evidente de duas regras claras tratando sobre o mesmo assunto está no conflito entre o art. 41 da Constituição de 1988, após a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19 e o art. 21 da Lei 8.112/1990. O primeiro dispositivo diz que o servidor público adquire estabilidade após três anos de exercício efetivo; o segundo, que o prazo é de dois anos. As duas regras são claras e entram em conflito em razão do tempo previsto. Ainda que o citado art. 21 da Lei 8.112/1990 não tenha sido expressamente revogado, não pode mais ser considerado válido no ordenamento brasileiro, uma vez que o dispositivo constitucional, além de ser mais recente, é hierarquicamente superior.
Outro exemplo é o aparente conflito entre o art. 54 e o art. 56 da Constituição Federal. A primeira regra é a de que Deputados e Senadores não podem ocupar cargo ou função que sejam demissíveis em pessoas jurídicas de direito público (como a União, Estados e Municípios) – art. 54, I, “a” e II, “b”. O art. 55 ainda prevê como sanção a perda do cargo para os parlamentares que infringirem as regras previstas no art. 54. Porém, esta regra tem exceção e está prevista no art. 56, I: Os parlamentares não perderão os mandatos se forem investidos em cargos de Ministro de Estado, Governador de Território, Secretário de Estado, do Distrito Federal, de Território, de Prefeitura de Capital ou chefe de missão diplomática temporária (que são cargos de demissão ad nutum, por serem de livre nomeação e exoneração). Neste caso, o conflito entre regras é resolvido em razão da exceção previstas: parlamentares federais perdem o cargo se assumirem cargos demissíveis ad nutum nos casos previstos no art. 54, I, “a” (regra), menos se forem os cargos previstos no art. 56, I (exceção à regra).
Por sua vez a resolução antinômica de princípios, por meio de colisão, opera-se de modo diverso, fora do campo da validade. Princípios estão no plano dos pesos, em que devem ser consideradas as especificidades de cada caso para posteriormente identificar dentre os princípios colidentes o que deve prevalecer (ALEXY, 2008, p. 94).
Na colisão de dois princípios, um deles deve ceder naquele caso específico ao outro. Todavia, o princípio ali preterido não é considerado inválido, tampouco funciona como exceção. Em condições determinadas um princípio deve prevalecer sobre o outro. Em outras, o princípio antes não aplicado poderá ter precedência.
A relação conflituosa entre princípios não pode ser resolvida com a absolutização de um princípio, como se houvesse certa hierarquia entre eles. A resolução deve ser feita por meio de um sopesamento/ponderação entre os interesses opostos para definir qual destes interesses tem o maior peso no caso concreto, ainda que no plano abstrato tenham o mesmo peso (ALEXY, 2008, p. 95).
Fundamental para compreender a solução da colisão de princípios é o conceito de precedência relacionada (ANDRÉA, 2013, p. 44). São as condições que levam o intérprete a optar pela precedência de determinado princípio em detrimento de outro em casos concretos. Assim, deve-se fixar previamente condições pelas quais um princípio pode ser invocado como precedente sobre outro.
Em um enunciado de preferência, como por exemplo, em condições C o princípio P1 tem precedência sobre o princípio P2, deve ser seguida determinada regra segundo a qual a consequência de P1 deve ter seu suporte fático. Tal regra é o que Alexy, com base em decisões do Tribunal Constitucional Alemão, infere como “lei de colisão” (Kollisionsgesetz): “As condições sob as quais um princípio tem precedência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio que tem precedência” (ALEXY, 2008, p.100).
De um modo menos simples, é possível destrinchar deste modo a lei de colisão proposta por Alexy:
Se nas condições C o princípio P1 tem precedência sobre o princípio P2: (P1 P P2) C
e se disso resulta a consequência jurídica R
vale uma regra que tem C como suporte fático e R como consequência jurídica.
Com essas considerações é possível inferir que a redação do CPC não foi precisa ao adaptar a teoria de Alexy, mesmo reconhecendo certa distinção entre princípios e regras? Veja-se: se regras entram em conflito e princípios colidem, a redação do §2º do art. 489 que diz “colisão entre normas” generaliza então a colisão (enquanto modo de resolução de interesses opostos em pesos) para as regras também?
4 REGRAS PODEM SER PONDERADAS? O PENSAMENTO DE HUMBERTO ÁVILA SOBRE A DISTINÇÃO NORMATIVA
Talvez seja possível compreender a redação do dispositivo pela proposta que Humberto Ávila apresentou duas décadas atrás (1999, p. 151-179). Ávila, após reflexões sobre a distinção entre princípios e regras tanto de Dworkin quanto de Alexy, apresenta críticas ao modo como esta cisão é explanada por este último. Enquanto Alexy menciona pertencerem os princípios à dimensão de peso, Ávila apresenta alguns argumentos pelos quais esta dimensão talvez não seja exclusiva dos princípios (ÁVILA, 2005, p. 42 e ss).
À dimensão de peso deve, conforme o raciocínio de Ávila, pertencer não os princípios, mas sim as razões e as finalidades referidas pelos princípios (1999, p. 162). O peso é atribuído pela decisão que invoca os princípios; não seriam características dos princípios em si. A dimensão de peso não faria parte, portanto, da essência dos princípios de modo a justificar como um elemento que os pudesse diferenciar em relação às regras e sim o juízo de valor atribuído pelo aplicador no caso concreto (ÁVILA, 2005, p. 44).
Portanto, se a dimensão de peso não está necessariamente vinculada aos princípios, talvez a característica de colisão não lhes seja exclusiva. A dedução direta não exclusividade da dimensão de peso dos princípios é que a resolução do choque normativo também não se resolve exclusivamente por colisão.
A ponderação (Abwägung) não é, portanto, o modo privativo de princípio; regras também poderiam ser ponderadas. Ávila apresenta algumas hipóteses para contra-argumentar Alexy (e indiretamente, até Dworkin) que recaem em atribuição de peso em regras claras em razão de finalidades que estejam em jogo no caso concreto.
Outro modo de ponderação em relação as regras, segundo Ávila, são as hipóteses nas quais a exceção pelo descumprimento da regra não está prevista no ordenamento jurídico, mas o não-cumprimento é justificável. Neste caso, o aplicar deveria sopesar circunstâncias e argumentos pelos quais a regra foi descumprida, de modo que a exceção pode ser constituída pelo processo de valoração das razões. O aplicador do Direito, neste caso, pode CRIAR exceções se os motivos de descumprimento da regra superarem valorativamente as razões que fundamentam a própria regra (ÁVILA, 2005, p. 46). A regra não aplicada tem nestes casos a função de participar da construção argumentativa da decisão, de modo a concorrer para o entendimento do significado da regra aplicada (ÁVILA, 2005, p. 48).
Ávila apresenta alguns outros motivos em sua Teoria dos Princípios que justificam seu entendimento de que a ponderação não é exclusiva de princípios, extensível também às regras. Qualquer norma (como gênero) tem um caráter provisório que pode ser ultrapassada no caso concreto pelo aplicador mediante razões relevantes. Portanto, a diferença está no tipo de ponderação.
Após propor critérios de distinção que exigem mais de uma inclusão entre regras e princípios que necessariamente uma conceituação exclusivista, Ávila apresenta uma definição de regra enquanto normas que sejam mediatamente finalísticas, uma vez que possuem maior determinação com o comportamento devido e são menos dependentes da relação com outras normas (ÁVILA, 2005, p. 70). São descritivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência. Sua aplicação é dependente da avaliação de correspondência entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos, conforme a finalidade que lhe justifica ou mesmo nos princípios que lhes dão suporte valorativo (ÁVILA, 2005, p. 70). Possuem, portanto, eficácia prelimarmente decisiva, uma vez que oferecem uma solução provisória para algum choque normativo e função definitória, já que delimitam o comportamentos a serem adotados para concretizar as finalidades determinadas pelos princípios (ÁVILA, 2005, p. 82-83).
Princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e que possuem pretensão de complementariedade e de parcialidade. Para sua aplicação é preciso uma avaliação da correlação entre o estado de coisas e os efeitos derivados de uma conduta necessária à sua promoção. São, portanto, normas que estabelecem um fim a ser alcançado, ainda que sem necessariamente seja um ponto final (ÁVILA, 2005, p. 70-71).
Ainda assim, de modo teoricamente bem defensável, Ávila não cai na armadilha neoconstitucionalista muito propagada de que violações de princípios seriam mais graves do que violações de regras. Em mesma hierarquia, em caso de choque entre regras e princípios, devem as regras prevalecerem, uma vez que possuem função decisiva. Por serem imediatas, o conteúdo das regras é mais inteligível do que dos princípios (ÁVILA, 2005, p. 84).
Princípios e regras possuem, conforme a teoria de Ávila, funcionalidade diferente. Princípios são normas com pretensão de complementariedade, tem o caráter prima facie fraco e superabilidade fraca, uma vez que, nas razões geradas pelos princípios tem uma dificuldade argumentativa menor de ser superadas em confronto com razões contrárias (ÁVILA, 2005, p. 85). Regras, por sua vez, são normas que tem a finalidade de solucionar conflitos de bens e interesses e, em razão disso, possuem caráter prima facie forte e superabilidade mais rígida, já que suas razões são mais difíceis de serem superadas argumentativamente em conflito com razões contrárias (ÁVILA, 2005, p. 84).
Na perspectiva da Teoria dos Princípios de Ávila, talvez a redação do §2º do art. 489 não pareça tão absurda. Se normas colidem, independentemente de serem regras ou princípios, a ponderação não obedecerá à lei de colisão proposta por Alexy.
De fato, Robert Alexy e Humberto Ávila, ainda que de modo diverso, influenciaram bastante os escritos sobre ponderação e choques normativos em processualistas brasileiros, em especial sobre o § 2º, art. 489 do Código de Processo Civil, conforme se demonstrará a seguir. Mas, em especial, é importante entender o pensamento acerca de regras e princípios – e, consequentemente, acerca de NORMAS – dos envolvidos diretamente na elaboração do texto do CPC.
5 A VISÃO DO ART. 489, §2º NO BRASIL POR PROCESSUALISTAS
No mercado editorial nacional são inúmeros os manuais de processo civil, obras coletivas e códigos comentados que buscam descrever as prescrições do CPC. Além disso, é possível em pesquisas encontrar inúmeros artigos publicados em periódicos que abordam alguma questão controversa do processo civil brasileiro.
Uma vez que são muitos os que escrevem sobre decisão judicial, limitei-me aqui em primeiro momento a pesquisar em autores diretamente relacionados com a elaboração do Novo CPC, em especial, aos integrantes da Comissão de Juristas presidida por Luiz Fux, ou demais processualistas que são mais referenciados em textos nos últimos anos.
Em seu Curso de Direito Processual Civil, José Miguel Garcia Medina, um dos integrantes da Comissão do Novo CPC, não deixa clara sua posição. Referencia Alexy como base para a ponderação, ainda que este reconheça alguma irracionalidade nesta atividade que possa ameaçar direitos fundamentais (MEDINA, 2020, p. 32). Ainda que pareça que Medina tem alguma inclinação em favor da concepção de Dworkin, que não admitiria decisões com base em policies, que ponderassem valores jurídicos, não evidencia que Dworkin daria um caminho mais seguro. Meramente afirma a imprescindibilidade que a decisão deva ter uma fundamentação adequada (MEDINA, 2020, p. 32).
Também membro da Comissão de Juristas, Humberto Theodoro Júnior não comenta especificamente o dispositivo em seu Novo Código de Processo Civil Anotado (2016, p. 1220). Em seu Curso de Processo Civil, Theodoro Júnior, apesar de se referir brevemente ao art. 489, §2º, disserta sobre ponderação em outro momento desta sua obra. Ainda que a sentença, diz ele, não seja uma fonte primária do direito, “a submissão do juiz à lei não lhe veda uma certa atividade criativa na definição da ‘vontade concreta da lei’, com que se dará a composição dos litígios” (2017, p. 140). Esta atividade criativa seria devido às indefinições da norma legislada aos possíveis casos concretos. O juiz “tem, por isso, de completar a norma legislada, atualizando-a e compatibilizando-a com as características novas do contexto em que o fato se concretizou” (THEODORO JUNIOR, 2017, p. 141). Ainda que em sua interpretação o juiz possa levar em conta valores, a atividade deve ser a de aplicação da lei, lei esta que o “juiz pode aperfeiçoar ou otimizar pela interpretação, mas não pode ignorar ou desprezar” (THEODORO JUNIOR, 2017, p. 141).
O critério de ponderação, disserta Theodoro Júnior, não assegura ao juiz a liberdade de agir fora da lei, embora conduza a uma atividade de complementação na produção do Direito (2017, p. 218). E em seguida, faz uma referência ao O problema da consciência histórica de Gadamer que menciona uma ponderação justa de conjunto nas sentenças judiciais para não haver arbitrariedades. Em seguida, também traz uma breve alusão ao Força de Lei de Derrida, de que embora o juiz não possa ser uma “máquina de calcular”, não pode agir irresponsavelmente a improvisar sem referência a nenhuma regra além de sua interpretação (THEODORO JUNIOR, 2017, p. 219).
Theodoro Júnior em um artigo também alude à atividade jurisdicional: “a fundamentação da sentença, portanto, não pode se confundir com a simples fundamentação escolhida pelo juiz para justificar seu convencimento livre e individualmente formado diante da lide” (2019, p. 51). Ainda que reconheça o contestável conceito de livre convencimento do juiz (“o convencimento do juiz, formado através da avaliação da prova dos autos, é livre”) (2019, 51), o convencimento não deve ser arbitrário, uma vez que seria submetido à dedução de veracidade das provas levantadas (“mas não é arbitrário, visto que terá de consistir na definição da verdade dos fatos apurados em juízo”) (2019, p. 51). Portanto, o limite dos juízes talvez sejam as diretrizes do Estado Democrático de Direito, uma vez que sua atividade não se resume a meramente para preencher lacunas da ordem jurídica, mas também para exercer uma atividade criativa para harmonizar a própria ordem na solução de casos concretos. E cita, após esta afirmação, um artigo sobre Dworkin e as teorias da argumentação.
Outro membro da Comissão, Elipídio Donizetti, em seu Novo Código de Processo Civil Comentado, menciona somente que “critério de aplicação e escolha de uma ou de outra norma é um critério fático. A aplicação ou o afastamento de regras e princípios (espécies de normas) serão realizados de acordo com as especificidades do caso concreto” (2017, p. 620).
No Novo Código de Processo Civil Anotado e Comparado, coorganizado por Paulo Cezar Pinheiro Carneiro – também membro da Comissão – o comentário ao dispositivo é suscinto: “Ainda no que tange à fundamentação, o § 2.º prevê que o juiz deve justificar a ponderação realizada, quando estiver diante de conflito normativo” (CARNEIRO; PINHO, 2015, p. 319).
Nos comentários ao §2º do art. 489 feitos por Leonardo Carneiro da Cunha no CPC Comentado organizado por Teresa Wambier, Fredie Didier, Eduardo Talamini e Bruno Dantas, baseia-se na distinção entre regras e princípios. Cunha menciona que o conflito entre regras normalmente se resolve por um dos três critérios de resolução de antinomias – hierarquia, cronologia ou especialidade. Mas além destes critérios, em sua interpretação do dispositivo, menciona que “as regras podem ser passíveis de ponderação para serem aplicadas ou afastadas, construindo-se, neste último caso, exceções à sua aplicação” (CUNHA Apud WAMBIER, 2015, p. 1179). Deste modo, a explicação considera que o afastamento de uma regra é sinônimo à sua exceção, o que me parece incorreto no aspecto teórico.
Por sua vez, Cunha menciona que “o conflito entre princípios resolve-se, geralmente, por ponderação” (CUNHA Apud WAMBIER, 2015, p. 1179), de modo que as palavras colisão e conflito são usadas de modo indiscriminado, o que também me parece um impropriedade, seja pela própria teoria de Alexy, seja por recepções teóricas no Brasil. Todavia, a explicação de Cunha tem bases bem enraizadas no pensamento de Alexy ao comentar que nas decisões judiciais, deve-se justificar o porquê do uso de determinado princípio, a capacidade de ponderação, os critérios para definição de peso, procedimento e método que comprovem o grau de promoção e restrição dos princípios (CUNHA Apud WAMBIER, 2015, p. 1179).
A alusão expressa a Alexy e Ávila aparecem no Curso de Processo Civil, de Fredie Didier Jr., Paula Braga e Rafael Oliveira. Ao dissertarem sobre o §2 do art. 489, buscam conceituar regras e princípios conforme Alexy para, em seguida, contraporem com as concepções de Ávila (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2016, p. 333). Todavia, os comentários são mais descritivos que assertivos e não parecem assumir alguma posição: há mormente uma sinalização genérica a favor da justificação das decisões, “qualquer que seja a técnica de superar o conflito normativo” (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2016, p. 333).
Alexandre Câmara, em seu O Novo processo Civil Brasileiro, apresenta uma digressão um pouco mais longa e crítica sobre o §2º do art. 489, em especial no uso do termo “ponderação” não elogiável em um texto normativo vinculado à uma corrente de pensamento jurídico, de modo para não causar a impressão de imposição de determinado pensamento (ainda que Câmara não deixe evidente qual seria esse pensamento, é possível inferir que seja o amálgama sincrético de teorias críticas o positivismo que são chamadas no Brasil de pós-positivismo) (2019, p. 411).
Mesmo assim, continua Câmara, é possível dar ao dispositivo a devida interpretação de acordo aos ditames constitucionais; em caso de colisões de princípios, seria dever do juiz dar o devido esclarecimento sobre a justificativa para não aplicar determinado princípio e aplicar o outro. Assim, o julgador deve argumentar de que modo a decisão é motivada, “mesmo que se esteja diante de um caso de conflito entre normas (conflito entre regras ou colisão de princípios), tendo sido adotado o critério correto para sua solução, com a consequente prolação de uma decisão correta para o caso concreto” (2019, p. 411).
No Código de Processo Civil comentado por Marioni, Arenhart e Mitidiero, o art. 489, §2º parece receber alguma influência das ideias de Ávila, ao mencionarem a existência de postulados normativos que estruturam a aplicação racional de princípios e regras. Desta forma, para estes autores, o dispositivo tem como finalidade prescrever a identificação das normas que devem ser aplicadas, bem como identificação do postulado que estrutura a própria aplicação (2017, p. 593).
Sem essa correta identificação, a decisão sobre a solução do choque normativo recai em arbitrariedade. É preciso, portanto, que se reconheça uma estrutura na aplicação de princípios e regras para que possa ser mais racional e controlável possível. Deste modo, é preciso verificar as finalidades que estejam em jogo (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 593). Neste momento, aludem implicitamente à função finalística dos princípios defendida por Ávila (2005, p. 70). Continuam, ao mencionar que é preciso se verificar incompatibilidades entre as regras para se verificar as exceções e de que modo estas podem contribuir para a solução do caso concreto (MARINONI; ARENHART, MITIDIERO, 2017, p. 593). Novamente a explicação parece ser influenciada pelas ideias de Ávila, uma vez que as exceções contribuiriam para a formulação das razões que justificariam também a ponderação em regras (ÁVILA, 2005, p. 48).
No CPC Anotado, organizado por José Rogério Cruz e Tucci e outros professores, há um breve comentário sobre o § 2º do art. 489, escrito por Maria Lucia Lins Conceição. A autora, ainda que mencione o título de “colisão entre normas” em seu comentário, no teor utiliza “conflito entre princípios”. De modo indiscriminado, após exemplificar com dois casos do Supremo (ADI nº 4815 e ADI nº 4893), meramente comenta que “em situações dessa natureza, caberá ao juiz proceder ao sopesamento dos princípios colidentes, e, por meio da fundamentação racional da decisão judicial, demonstrar os motivos que o levaram a mitigar a existência de um em relação ao outro” (TUCCI; FERREIRA FILHO; APRIGLIANO; DOTTI; MARTINS, 2019, p. 814).
Os comentários de Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery sobre o §2º do art. 489 ressaltam a existência de alguma atecnia legística na redação do dispositivo: “A nosso ver, existe uma impropriedade na menção à técnica de ponderação neste dispositivo, que dá margem à interpretação de que toda e qualquer antinomia pode ser resolvida por esse meio” (NERY JUNIOR; NERY, 2018, p. 1164). Porém, diferentemente do que foi aqui apontado, a justificativa dada pelos autores vai em outro sentido: “Tal técnica foi desenvolvida e sustentada para a solução dos conflitos entre direitos fundamentais e entre princípios constitucionais, que não se resolvem pelas regras da hermenêutica jurídica clássica – as quais ainda são aplicáveis às normas em geral” (NERY JUNIOR; NERY, 2018, p. 1164). Diferentemente da alusão feita à distinção entre princípios e regras, os comentários brevemente se resumem a cindir o que talvez para os autores seja matéria constitucional das demais, como se a ponderação fosse restrita à primeira. Ainda que não me pareçam tão claros nesta justificativa, verifica-se talvez uma tentativa de defesa de restringir o uso da ponderação apenas para casos constitucionais, conforme o final do comentário dos autores: “dispositivo deve, portanto, ser interpretado no sentido de que se refere às normas relacionadas a direitos fundamentais e princípios constitucionais” (NERY JUNIOR; NERY, 2018, p. 1164).
CONCLUSÃO
Esse artigo teve como objetivo a demonstração de como o art. 489, § 2º, é uma prescrição normativa que estabeleceu um sincretismo metodológico de conceitos da teoria da argumentação de Alexy mal adaptados e mal localizados no Direito brasileiro. De fato, as ideias de Alexy acerca de ponderação são recebidas na prática forense muitas vezes como se fosse um passe para a ampla discricionariedade, o que é errado e é uma distorção de suas ideias.
Foram apresentadas também o modo como a ideia de ponderação é tratada por alguns processualistas brasileiros e como sua presença enquanto parte do dispositivo normativo do § 2º, do art. 49 do CPC foi mal elaborada e pode gerar justamente um efeito reverso aos propósitos pelos quais em tese foi ali inserido.
De fato, discussões sobre ponderação estão entre os temas mais relevantes em Teoria do Direito no Brasil nos últimos 20 anos, em especial, nos estudos acerca de Teoria da Decisão. Pelo novo comento do Constitucionalismo brasileiro, com a promulgação da Constituição de 1988, o Poder Judiciário se consolida como um agente de transformação social – o que normalmente é uma característica atribuída ao neoconstitucionalismo. Assim, a partir da chegada ao Brasil de algumas ideias desenvolvidas a partir da segunda metade do Século XX e que começam a se popularizar na academia jurídica brasileira, logo teriam sua correspondência na prática forense e na busca da adaptação de instrumentos processuais de modo a legitimar o uso (muitas vezes incorreto) de tais teorias pelos profissionais do Direito.
Desse modo, o sincretismo metodológico pelo qual a aplicação de fragmentos de teorias importadas no meio acadêmico também acabou consolidando mudanças na estrutura processual brasileira, como a criação da Súmula Vinculante (Emenda Constitucional nº 45) e o Código de Processo Civil (que possui diversos dispositivos de recepção teórica, como o aqui estudado art. 489, §2º).
REFERÊNCIAS
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[1] Doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ, com Pós-Doutorados em Direito pela UFRJ e pela UFPE. Professor do Centro de Educação e Pesquisa Almeida & Aguiar.
[2] Doutor em Direito pela UNESA. Mestre em Direito pela UFRN. Professor da UFMT e do Centro de Educação e Pesquisa Almeida & Aguiar.
[3] Pós-Doutorado em Direito pela Universidade de Lisboa, pela Universidade de Coimbra e pela Universidade de Salamanca. Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP. Professor Titular da Universidade de Marília.
[4] Doutora em Educação pela UNESP. Mestre em Direito pela Universidade de Marília. Pró-Reitora de Pós-Graduação e Professora da Universidade de Marília.
[5] A Comissão teve a seguinte formação: Presidente: Luiz Fux, Relatora-Geral: Teresa Arruda Alvim Wambier; Demais membros: Adroaldo Furtado Fabrício, Benedito Cerezzo Pereira Filho, Bruno Dantas, Elpídio Donizetti Nunes, Humberto Theodoro Junior, Jansen Fialho de Almeida, José Miguel Garcia Medina, José Roberto dos Santos Bedaque, Marcus Vinicius Furtado Coelho, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro.
[6] “As fronteiras entre o público e o privado desaparecem progressivamente e, assim sendo, a interpretação da ordem jurídica deixa de ser prisioneira de procedimentos restritos ao direito privado do estado liberal clássico” (BARRETTO; MOTA, 2011, p. 160).
[7] Nesse sentindo, Medina: “O levar a sério a Constituição impõe que sejam revistas e, em alguns casos, abandonadas estruturas jurídicas. No que interessa ao presente trabalho, o levar a sério a Constituição impõe que as bases do direito processual sejam revistas, ou, no mínimo, revisitadas”. (MEDINA, 2020, p. 17).
[8] Por isso é que esses princípios foram expressamente formulados. Veja-se, por exemplo, o que diz o novo Código, no Livro IV: “A jurisprudência do STF e dos Tribunais Superiores deve nortear as decisões de todos os Tribunais e Juízos singulares do país, de modo a concretizar plenamente os princípios da legalidade e da isonomia” (ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2010, p. 26.)
[9] Conferir em ALEXY, Robert. Hauptelemente Einer Theorie Der Doppelnatur Des Rechts. ARSP: Archiv Für Rechts- Und Sozialphilosophie, vol. 95, no. 2, p. 151–66, 2009.
[10] “Art. 257. As partes têm direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar fatos em que se funda a ação ou a defesa e influir eficazmente na livre convicção do juiz. Parágrafo único. A inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito será apreciada pelo juiz à luz da ponderação dos princípios e dos direitos fundamentais envolvidos” (ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 2010, p.86).
[11] “O julgador deve analisar todos os pontos controversos à luz das alegações das partes, desincumbindo-se do dever de motivar sua decisão apenas quando racionalidade da fundamentação for idônea a afastar todos aqueles argumentos deduzidos nos autos teoricamente capazes de respaldar a consequência jurídica invocada” (FUX, 2017, p. 34).
[12] Nesse sentido também, FUX em 2012 defendeu em 2012 em decisão de sua relatoria: “A motivação das decisões judiciais, dever imposto pelo art. 93, IX, da Constituição, resta satisfeita quando os fundamentos do julgado repelem, por incompatibilidade lógica, os argumentos que a parte alega não terem sido apreciados”. (STF, RMS 27967, DJ: 14/02/2012).
[13] Neste sentido, Alexandre Bahia e Diogo Bacha e Silva: “A garantia de motivação das decisões deve servir como uma accountability hermenêutica dos atos do poder jurisdicional, no sentido de permitir o controle das partes acerca efetiva construção coparticipativa da decisão. Ou seja, é a motivação das decisões jurisdicionais que permite às partes que se vejam como destinatárias e coautoras do provimento judicial”. (BAHIA, SILVA, 2016, p. 74).