A PATOLOGIA DO INADIMPLEMENTO SOB A ÓTICA DA OBRIGAÇÃO COMO PROCESSO

A PATOLOGIA DO INADIMPLEMENTO SOB A ÓTICA DA OBRIGAÇÃO COMO PROCESSO

THE PATHOLOGY OF DEFAULT FROM THE PERSPECTIVE OF OBLIGATION AS A PROCESS

Artigo submetido em 30 de abril de 2024
Artigo aprovado em 09 de maio de 2024
Artigo publicado em 30 de junho de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 55 – Junho de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Sarah Santos Lavinas[1]

RESUMO: A partir da conceituação de obrigações complexas e obrigação enquanto processo, fundamentada na boa-fé, pretende-se dispor sobre a patologia do inadimplemento contratual, com foco no inadimplemento absoluto, destacando-se a modalidade do inadimplemento anterior ao termo.Aborda-se o fato de o ordenamento jurídico brasileiro não dispor de forma expressa sobre os requisitos e características do inadimplemento absoluto, enfatizando apenas o conceito de mora. A partir dessa reflexão, busca-se caracterizar o inadimplemento absoluto, diferenciá-lo da mora, mencionar suas subespécies e chegar ao ponto principal dos estudos desenvolvidos: a recepção do inadimplemento anterior ao termo pelo direito brasileiro, sua aplicação prática, limitações e relação com a mitigação do próprio prejuízo pelo credor.

Palavras-chave: Direito das Obrigações – Obrigações Complexas – Inadimplemento – Inadimplemento Anterior ao Termo – Princípio da Boa-fé Objetiva

ABSTRACT: Based on the conceptualization of complex obligations and obligation as a process, drew on good faith, the aim of this article is to address the pathology of contractual default, focusing on absolute default and the modality of Anticipatory Breach of Contract. It addresses the fact that the Brazilian legal system does not expressly provide for the requirements and characteristics of absolute default, emphasizing only the concept of partial default. Based on this reflection, we seek to characterize absolute default, differentiate it from partial default, mention its subspecies and reach the main point of the studies developed: the reception of Anticipatory Breach of Contract by Brazilian law, its practical application, limitations and relationship with the mitigation of the creditor’s own loss.

Keywords: Law of Obligations – Complex obligations – Default – Anticipatory Breach of Contract – Principle of objective good faith

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo promover um estudo acerca da patologia do inadimplemento inserido na perspectiva constitucional contemporânea do Direito das Obrigações. Para tanto, retoma-se a conceituação de obrigações complexas e obrigação como processo, fundamentada no princípio da boa-fé contratual.

Busca-se realizar a diferenciação das espécies de inadimplemento, focando-se na figura do inadimplemento absoluto, dada a ausência de disposições legais que indiquem os pressupostos para sua caracterização. Para além de sua conceituação, pretende-se indicar quais seriam os pressupostos para sua caracterização e a recepção pelo direito brasileiro do instituto do inadimplemento anterior ao termo.

            A partir de então, questiona-se: o instituto do inadimplemento antecipado foi recepcionado pelo direito brasileiro de forma ampla? Qual seria a finalidade com seu reconhecimento? O instituto da mitigação dos próprios danos pelo credor pode ser exigido em situações de inadimplemento antecipado ao termo?

            A explanação dessas questões pressupõe o estudo dos dispositivos previstos no Código Civil, bem como o entendimento da jurisprudência e doutrina atuais.

  • A Patologia do Inadimplemento no Direito das Obrigações inserida no contexto da Obrigação como um Processo

Antes de adentrar no campo de estudo do presente artigo, o inadimplemento, imprescindível realizar a seguinte consideração: no âmbito do Direito das Obrigações o caminho natural da relação estabelecida é seguir para o adimplemento e satisfação do credor. Sendo assim, o inadimplemento é um estado patológico que se desenvolve no Direito das Obrigações, sendo verdadeira exceção ao estado fisiológico ou normal[2]. O caminho natural de uma obrigação, motivo pelo qual são pactuadas, é para que sejam satisfatoriamente cumpridas. Porém, deve-se ter em vista que muitas vezes o caminho natural pode não ser seguido, dando espaço ao incumprimento ou inadimplemento.

Importante salientar que a relação obrigacional deve ser vista como um todo e não de forma pontual, com o simples cumprimento da prestação principal. Sendo assim, a relação obrigacional deve ser vista com toda sua complexidade, contendo uma série de deveres de prestação e de condutas que geram, conjuntamente, consequências jurídicas.

Segundo Karl Larenz[3], o vínculo obrigacional não pode ser visto sob uma perspectiva atomística, seccionando os elementos que o compõem, e estática, sendo mera soma das partes, uma vez que a soma das partes não corresponde à obrigação complexa em questão. Quando se visualiza a obrigação complexa, observa-se que todos os direitos, deveres, ônus, faculdades e condutas, considerados conjuntamente, formam um todo à parte e completamente distinto da soma de seus componentes, possuindo uma realidade e significado próprios. Esse todo possui um vínculo dinâmico e se movimenta em direção à finalidade pretendida com o estabelecimento do vínculo, sempre em direção ao adimplemento satisfatório, ou seja, a satisfação de todos os interesses envoltos na relação.

Enfatiza-se que considerar a obrigação como um processo leva-se a compreender a existência de obrigações anteriores à formação do vínculo, remetendo-se ao momento das tratativas, que devem seguir os preceitos da boa-fé contratual e seus direitos anexos, bem como posteriores à extinção do vínculo, conforme exporto por Judith Martins Costa[4], pois ainda após esgotado o interesse à prestação, podem remanescer deveres correlativos a interesses de proteção, podendo gerar a indenização a título de culpa post factum finitum.

A relação obrigacional complexa é também uma relação de cooperação, não no sentido de solidariedade entre as Partes, mas para que haja o adimplemento satisfatório é imprescindível que ambas as Partes contribuam de maneira colaborativa durante o percurso do vínculo estabelecido até a satisfação completa dos interesses. A cooperação decorre diretamente do princípio geral da boa-fé, sendo elemento nuclear das condutas praticadas, que devem se voltar a viabilizar o cumprimento das legítimas expectativas pactuadas[5].

Sob a ótica da complexidade da obrigação e dos direitos e deveres envolvidos, importante destacar que no decorrer da relação pactuada, pautada por critérios de cooperação, outros deveres anexos ou instrumentais também devem ser observados, para além dos deveres de prestação, sendo sua violação caracterizada como inadimplemento contratual, relativo ou absoluto, a depender do caso em comento.

Os deveres de prestação, por sua vez, subdividem-se em principais e secundários. Os deveres principais ou primários constituem o núcleo da relação obrigacional e os secundários estabelecem uma relação de acessoriedade aos deveres principais. Como exemplo desses últimos, cita-se o dever de o locatário de comunicar ao locador, de maneira imediata, o surgimento de dano cuja reparação seja da responsabilidade do locador.

Os deveres anexos, como a própria denominação induz, possuem relação de instrumentalidade com o dever principal, sendo seu cumprimento extremamente importante para garantir condutas probas das Partes envolvidas. Dizem espeito à maneira segundo a qual se deve prestar e não à prestação em si, uma vez decorrentes da boa-fé.  Como dito, o dever de colaboração é um exemplo de dever anexo decorrente da boa-fé. Muito embora se possa citar deveres como a cooperação, lealdade, informação como exemplos de deveres anexos, destaca-se que esses deveres não são exaustivos, uma vez que o conceito de deveres anexos parte da ideia geral da conduta proba, não cabendo limitação de seu rol. Importante apenas que seu fundamento seja sempre a boa-fé.

Pois bem. O intuito de realizar a breve contextualização do cenário atual regente do Direito das Obrigações é demonstrar que o inadimplemento deve ser considerado inserto no contexto de obrigação complexa e obrigação como um processo, cujo fim não é meramente o adimplemento da prestação principal em si, mas o adimplemento satisfatório, considerando os interesses envolvidos quando do estabelecimento do vínculo obrigacional, não limitados aos deveres primários e secundários de prestação, mas se estendendo aos direitos anexos, decorrentes da boa-fé contratual.

No tocante ao inadimplemento absoluto, sabe-se que seu efeito imediato é justamente a resolução da relação estabelecida, dentre outros que se tratará neste trabalho. Contudo, o Código Civil brasileiro não regulamenta quais seriam os requisitos para a configuração do inadimplemento e mesmo quais seriam suas circunstâncias. Passa-se, pois, além de abordar as espécies e subespécies do inadimplemento, a categorizar os requisitos e circunstâncias para sua configuração, com destaque à figura do inadimplemento antecipado ao termo.

  • Inadimplemento imputável e não imputável

 Quando se fala em inadimplemento é importante ter em vista que se trata de um gênero que se subdivide em inadimplemento relativo ou mora e inadimplemento absoluto ou definitivo.

A mora, ou inadimplemento relativo, ocorre quando a prestação, possível e imputável ao devedor, não é realizada no tempo, lugar e forma acordados. Ainda que a prestação não tenha sido cumprida conforme pactuado, a grande diferença da mora para o inadimplemento absoluto é que no inadimplemento relativo a prestação poderá ser cumprida, conservando a utilidade ao credor e à finalidade pretendida com a relação obrigacional em si.

Importante destacar, desde já, que a possibilidade de ser cumprida nada ter a ver com critérios meramente naturalistas ou fáticos, estando a ideia de “possibilidade” relacionada diretamente ao interesse do credor no cumprimento. Nos casos em que o interesse do credor subsiste, fala-se que se está diante de situação de mora, passível de ser purgada mediante o cumprimento acrescido das respectivas perdas e danos decorrentes de seu não cumprimento no tempo, lugar e forma, segundo os quais a prestação deveria ser adimplida.

Por outro lado, caso o interesse do credor em seguir com a relação obrigacional mesmo após o inadimplemento não exista mais, uma vez que a prestação já não lhe é mais útil, não podendo mais ser efetuada, está-se diante de uma situação de incumprimento definitivo ou absoluto e não mais de mora. Isso porque quando se avalia a situação em concreto, levando-se em consideração o fim econômico-social da prestação e fatores subjetivos, relacionados aos sujeitos, como a legítima expectativa do credor e o impacto do não cumprimento da obrigação pelo devedor, chega-se à conclusão de que a prestação não lhe é mais útil. Assim, o ponto crucial de diferenciação entre a mora e o inadimplemento absoluto, que apenas pode ser constatado no caso concreto, é a presença ou ausência de interesse do credor para seguir com a prestação, respectivamente.

Em ambos os casos, para que o inadimplemento reste configurado, a conduta que o causa, seja omissiva ou comissiva, deve, necessariamente, poder ser atribuída ao devedor. Sem conduta imputável não há que se falar em inadimplemento. Nos dizeres de Catarina Monteiro Pires, caso o ato que causa a falta do que foi prometido seja imputável ao próprio credor, a um terceiro ou não imputável a qualquer das partes, não haverá incumprimento definitivo.[6]

  • Incumprimento absoluto e suas subespécies: inadimplemento total e parcial

Falou-se sobre a distinção entre o inadimplemento relativo ou mora e o inadimplemento absoluto ou definitivo. Porém, para além dessas espécies de inadimplemento, ressalta-se que se pode incorrer em duas situações, uma vez que o incumprimento definitivo pode atingir a totalidade ou parte da prestação. Caso atinja a prestação em sua integralidade, resta configurado o inadimplemento total e caso a prestação seja divisível e o inadimplemento atinja apenas uma parcela do que deve ser adimplido, fala-se em inadimplemento parcial.

A consequência para ambas as subespécies do inadimplemento absoluto, contudo, é a mesma: a resolução do contrato por incumprimento e a apuração e consequente indenização a título de perdas e danos. Ainda que o incumprimento atinja apenas parte da prestação, certo é que o credor não é obrigado a aceitar seu recebimento fracionado se dessa forma não se pactuou previamente, conforme disposto no artigo 314, do Código Civil brasileiro:

Art. 314. Ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou.

Dessa forma, o incumprimento definitivo, geralmente, conduz à resolução do contrato como um todo, ainda que se trate de incumprimento parcial, podendo ser atingida a prestação principal ou mesmo caracterizada a violação de deveres anexos e prestações secundárias, desde que o dever violado instrumentalize a prestação principal e estejam presentes os elementos caracterizadores do incumprimento definitivo.

Um exemplo que se pode mencionar de violação de dever anexo ou prestação secundária que instrumentaliza o dever principal, extraído da obra de Judith Martins Costa[7], é o caso do transporte de cavalo de corrida às vésperas do “Grande Prêmio” realizado sem a cautela necessária no transporte, uma vez que o animal é transportado em veículo aberto, sem proteção contra as intempéries da natureza e sem a devida alimentação no trajeto. A consequência é que o animal chega em seu destino exaurido e sem condições de competir o “Grande Prêmio”. Observa-se que o dever principal não deixou de ser cumprido, uma vez que o cavalo foi entregue em seu destino, contudo, o descumprimento de uma prestação secundária comprometeu a conclusão com êxito do transporte em si. Sendo assim, o adimplemento não foi satisfatório, motivo pelo qual resta caracterizado o inadimplemento absoluto.

  • Requisitos para a configuração do inadimplemento absoluto

O primeiro pressuposto para a caracterização do inadimplemento é que a obrigação, de fato, exista, seja válida e apta a produzir efeitos. Conforme preceitua o professor Giovanni Ettore Nanni[8], ainda que no regramento dispensado pelo Código Civil ao Direito das Obrigações não estejam presentes expressamente os elementos de sua existência, requisitos de validade e fatores de eficácia, emprega-se o disposto na Parte Geral no tocante ao negócio jurídico. O artigo 104, do Código Civil brasileiro, que menciona expressamente os elementos, requisitos e fatores para a constatação de um negócio jurídico, devem estender-se também ao mundo do Direito das Obrigações, no que tange à prestação, bem como o regime de invalidades, previsto no artigo 166, deste mesmo diploma.

Assim, para que a prestação seja, de fato, válida e produza seus efeitos jurídicos no mundo, é de suma importância que se perpasse previamente pelos três planos mencionados. Apenas após se passa a investigar o cenário de inadimplemento da prestação em questão.

O segundo pressuposto para a caracterização do inadimplemento absoluto que se destaca é atualidade no tempo da prestação, uma vez que o aspecto temporal fixado para o cumprimento da prestação corresponde ao que se conhece por “exato adimplemento”.

Caso não seja fixado expressamente pelas partes o momento para o adimplemento da prestação, subentende-se, nos termos do artigo 331, do Código Civil brasileiro, que ela é exigível de imediato, não podendo o devedor, por si só, postergar no tempo o cumprimento do que é devido sem incorrer em inexecução da obrigação.

Vale à pena mencionar que a atualidade no tempo quer dizer que a obrigação está vencida e pode ser exigível. Contudo, a exigibilidade é outro requisito, que significa justamente que a obrigação que se executa não está condicionada a termo, condição ou outras limitações[9], podendo, pois, ser exigível pelo credor.

A dívida atual significa que a obrigação está vencida, restando claro o inadimplemento, porém, sua exigibilidade implica a possibilidade de se seguir com a satisfação do crédito já vencido, o que significa dizer que não há qualquer óbice para executá-lo.

O terceiro pressuposto para o inadimplemento é a definitividade e a inutilidade da prestação. Primeiramente, cabe destacar que o inadimplemento requer a inobservância de requisitos de ordem subjetiva (a quem deve pagar), objetiva (o que e onde pagar) e temporal (quando pagar). Ao não observar um desses requisitos, o devedor incorre em incumprimento da obrigação, que não foi cumprida da maneira que se pactuou. No entanto, a lei não discrimina quais seriam os pressupostos para a configuração do inadimplemento absoluto, apenas da mora. Chega-se aos critérios para a configuração do inadimplemento absoluto por exclusão e, ainda, através do artigo 395, parágrafo único, do Código Civil brasileiro, chega-se à conclusão que se está diante do inadimplemento absoluto quando a prestação se tornar inútil ao credor, o qual, pressupõe-se, perde o interesse em sua satisfação, dando ensejo ao inadimplemento incurável, como pontuado pelo professor Giovanni Ettore Nanni[10].

No tocante à característica da definitividade, considerando que o inadimplemento absoluto gera como consequência imediata a inviabilidade de realização da prestação, reveste-se de caráter de definitividade, sendo a prestação não sendo mais passível de cumprimento, seja forçada ou voluntariamente, motivo pelo qual o caráter definitivo e incontestável do inadimplemento se torna evidente.

A utilidade, por sua vez, leva em consideração o interesse do credor. Prestação útil é a que conserva em si a finalidade para a qual foi pactuada. Consequentemente, é inútil a prestação que não está apta a atingir a finalidade almejada. Importante salientar que, muito embora a utilidade leve em conta a manutenção ou perda do interesse do credor, deve ser aferida de forma objetiva, com base em elementos concretos que levem à conclusão pela perda da utilidade. Afasta-se, pois, a possibilidade de alegação arbitrária de inutilidade da prestação pelo credor sem o respectivo ônus de demonstrar objetivamente os pressupostos que lhe guiaram a tal conclusão, cabendo-lhe provar que a prestação se tornou inútil. Deve-se sempre analisar as circunstâncias do fato e se a perda do interesse do credor corresponde à realidade fática.

Importante destacar que quando se diz que o interesse deve ser aferido objetivamente não se exclui a análise de elementos subjetivos, no entanto, sua análise é realizada objetivamente. Inclusive, não apenas de elementos objetivos os pressupostos fáticos são compostos, na medida em que além de referidos elementos, que decorrem das disposições contratuais e da natureza da prestação, o elemento subjetivo centralizado na necessidade de o credor receber a prestação que atenda suas expectativas na relação travada, deve igualmente ser considerada pelo operador do direito. Assim, o operador do direito deve levar em consideração a legítima expectativa do credor, que para ser considerada legítima deve estar em harmonia com os dispositivos contratuais.

O quarto e último pressuposto para a configuração do inadimplemento absoluto que será tratado é a imputabilidade ao devedor. Imputar significa atribuir algo a alguém. Sendo assim, para que o inadimplemento absoluto reste configurado, o ato ou omissão que lhe deu causa deve, necessariamente, através do nexo de causalidade, ser atribuível de forma direta, ao devedor. Não há que se falar em inadimplemento absoluto, por exemplo, ao mencionarmos a situação de impossibilidade do objeto, culpa exclusiva da vítima, casos de força maior e/ou conduta do credor, por exemplo.

  • As obrigações negativas e o inadimplemento contratual

Ao se tratar de inadimplemento contratual no Direito das Obrigações, cabe salientar que dentre as subdivisões existentes das obrigações, encontra-se a divisão entre obrigações positivas e negativas. Positivas são aquelas que consistem em uma ação do devedor de fazer, dar ou restituir. Negativas, por sua vez, são as obrigações que implicam em um não fazer, em uma conduta de omissão perante determinada situação.

Parte considerável da doutrina defende inexistir mora nas obrigações negativas, para a qual uma vez realizada a conduta proibida o inadimplemento absoluto estaria, ao certo, configurado, sendo inviável se pensar em mora quando o objeto de estudo é justamente esse tipo de obrigação.

Muito embora não haja disposições legais sobre o assunto no Código Civil brasileiro, é imprescindível ter em vista que as obrigações negativas podem ter características diversas, ainda que dentro da mesma categoria. Assim, existe a obrigação negativa pontual, de ato único, que corresponde à prescrição de apenas um não fazer que, caso violado, gera imediatamente o dever de reparação de perdas e danos. Para além da obrigação negativa de ato único, existe também a obrigação negativa de ato contínuo, que se protrai no tempo, na medida em que a obrigação de não fazer deve ser cumprida não apenas uma vez, mas diversas e contínuas vezes.

Tendo em vista as subcategorias mencionadas das obrigações negativas, cabe também diferenciar a concepção da doutrina de descabimento de mora em referidas obrigações, considerando, obviamente, as peculiaridades de cada uma.

Ao se ter em mente a obrigação negativa de ato único, é incontestável que ao realizar a conduta para a qual lhe foi imposta a omissão, o devedor descumpre o pactuado e incorre em inadimplemento absoluto, se presentes todos os pressupostos anteriormente mencionados. Contudo, ao se ter em vista as obrigações negativas que se protraem no tempo, é possível imaginar um descumprimento pontual que não dá ensejo, de forma imediata, ao inadimplemento absoluto, justamente porque os outros pressupostos não são preenchidos, dentre eles, o próprio interesse do credor e a finalidade da relação pactuada podem não se dar por perdidos, quando da análise do caso concreto.

Na situação de descumprimento pontual de obrigação negativa de trato sucessivo, deve-se, portanto, analisar o caso concreto e verificar se ainda há possibilidade de purgação da mora, decorrente da conduta comissiva do devedor quando deveria se omitir, praticando um “não fazer”, pelo que deve ser analisado se faz sentido para o credor seguir na relação estabelecida, estando seu interesse mantido, bem como a utilidade da prestação. Caso a resposta seja positiva, está-se diante de um caso de mora e não de um inadimplemento absoluto.

Quis-se abrir, brevemente, essa discussão, justamente para reiterar que o inadimplemento absoluto deve ser sempre analisado levando em consideração seus pressupostos e não apenas meras deduções. Não fogem à regra as obrigações negativas, cujos pressupostos devem estar presentes, sendo que sua análise dependerá sempre do caso concreto em questão.

  • O instituto do Anticipatory Breach of Contract

Ao discorrer, brevemente, sobre os pressupostos para a configuração do inadimplemento absoluto, mencionou-se como segundo pressuposto a atualidade no tempo da prestação, relacionando o aspecto temporal fixado para o cumprimento da prestação ao “exato adimplemento”, ou seja, quando fixado um termo para cumprimento de determinada obrigação, normalmente, apenas após ultrapassado a obrigação estará vencida e poderá ser exigível.

Essa conclusão decorre do princípio da pontualidade, segundo o qual as obrigações sujeitas a termo devem ser cumpridas pontualmente. Apenas após a data fixada para seu cumprimento, pode-se falar em inadimplemento e caberá ao credor tomar as medidas possíveis.

No artigo 939, do Código Civil brasileiro, está disposto que o credor deve demandar o devedor apenas após vencida a dívida, sendo que caso o faça antes do termo previsto, além de ficar sujeito a aguardar o tempo que faltava para o vencimento da dívida, deverá descontar quaisquer juros incidentes e pagar custas em dobro, salvo nos casos nos quais a lei o permita fazê-lo, ou seja, demandar antecipadamente o devedor.

Ao analisar no mesmo diploma eventuais hipóteses autorizadas de demanda antecipada do devedor pelo credor, chega-se apenas ao artigo 333, que prevê o que segue:

Art. 333. Ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou marcado neste Código:

I – no caso de falência do devedor, ou de concurso de credores;

II – se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor;

III – se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las.

Parágrafo único. Nos casos deste artigo, se houver, no débito, solidariedade passiva, não se reputará vencido quanto aos outros devedores solventes.

O dispositivo acima transcrito apenas traz situações fáticas taxativas que permitem a cobrança antecipada pelo credor diante da iminência de ver reduzida sua possibilidade de recebimento do que lhe cabe por direito caso o prazo previsto fosse observado. Porém, para além de referidas situações de licitude da cobrança antecipada, o Código Civil brasileiro nada menciona sobre situações mais abrangentes nas quais o credor ao se deparar com a configuração inequívoca do inadimplemento antecipado pudesse se valer de mecanismos para ter a reparação que lhe cabe.

Dessa forma, diante da ausência de previsão expressa no Código Civil brasileiro da figura do inadimplemento antecipado, coube à doutrina e jurisprudência desenvolver referido conceito, hipóteses de aplicação e pressupostos.

O inadimplemento antecipado ou inadimplemento anterior à época para o cumprimento tem suas origens e desenvolvimento inicial na doutrina do Common Law, tendo sido ventilado pela primeira vez no caso Hochster vs. De La Tour. No caso em questão, o autor da ação era um courrier que foi contratado em abril de 1852 para acompanhar o réu em um tour pela Europa, a partir do dia 1 de julho. Contudo, em 11 de maio recebeu uma carta do empregador informando que os serviços não seriam mais necessários, motivo pelo qual o courrier não deveria mais prestar-lhe serviços no período avençado. O autor, inconformado com a atitude do empregador, recorreu aos tribunais ingleses, que consagraram o entendimento que quando uma das partes de forma clara emite sua vontade de não seguir com o Contrato, ainda que antes do termo fixado, a outra Parte pode dar por finda a relação pactuada e pleitear a indenização que lhe é cabível. O instituto recebeu a denominação de “Anticipatory Breach of Contract ou Anticipatory Non Performance”.

            Conforme preceitua Judith Martins Costa[11], o grande aprendizado da decisão foi justamente que ao se deparar com uma situação de manifestação incontestável de não cumprimento do acordado por uma das Partes, a outra pode, de forma imediata e sem aguardar o termo avençado, pleitear as perdas e danos ou executar a cláusula penal expressa, se for o caso, liberando-se o credor antes mesmo do termo, buscando antecipadamente o ressarcimento devido decorrente do inadimplemento.

  • Recepção pelo Direito brasileiro e requisitos do Anticipatory Breach of Contract

No Direito brasileiro, Serpa Lopes e Fortunato Azulay, na década de 1970, foram os primeiros a publicar pesquisas sobre a doutrina do Anticipatory Breach of Contract e suas possibilidade de aplicação no Direito pátrio. No entanto, a aceitação do instituto foi mais ampla apenas quando aprofundados os estudos sobre a boa-fé objetiva como fonte autônoma de direitos e obrigações, inclusive de deveres anexos, já na década de 1990. Sendo assim, a figura do inadimplemento antecipado adentrou na doutrina brasileira através da interpretação do princípio da boa-fé objetiva, com a qual era incompatível obstar o credor de tomar as medidas cabíveis se diante do inadimplemento configurado, ainda que antecipado.

            Judith Martins Costa[12] menciona três requisitos que, ao seu ver, seriam imprescindíveis para a caracterização do incumprimento antecipado, quais sejam: (a) a violação do contrato deve ser grave, podendo se enquadrar como uma “justa causa” à resolução; (b) deve haver plena certeza de que o cumprimento não se dará até o vencimento; (c) o devedor deve agir culposamente, ao declarar que não vai cumprir ou ao se omitir quanto à execução do contrato, sendo que seu comportamento deve revelar, justamente, a indisposição para a prática dos atos de execução.

            Concorda-se em parte com a autora. De fato, é imprescindível que a violação do contrato seja grave, justamente porque a alegação do incumprimento antecipado deve ser justificada pela violação de uma obrigação de extrema importância à finalidade pretendida pelas Partes, conforme mencionado anteriormente ao abordar sobre os pressupostos caracterizadores do inadimplemento absoluto, tendo seu reconhecimento, no caso do antecipado, o intuito de se evitar consequências mais graves ainda.

A imputabilidade, por sua vez, é imprescindível para que o inadimplemento seja caracterizado, independentemente de ser ou não antecipado, motivo pelo qual a culpa do devedor, como critério de aplicação da imputabilidade, deve ser identificada, bem como o devedor deve declarar que não irá cumprir ou do seu comportamento pode-se chegar a esta conclusão.  

Aliás, faz-se uma breve interrupção da análise em questão para frisar que todos os pressupostos do inadimplemento absoluto devem sempre se fazer presentes para que reste configurado, ainda que se esteja diante de situação de incumprimento antecipado do compromisso.  

Retomando a análise dos pressupostos mencionados pela autora, quando é referenciada a plena certeza de não haver o cumprimento pelo devedor até o vencimento da prestação, discorda-se do caráter de certeza atribuído ao não cumprimento. Isso porque na ordem dos acontecimentos é factível analisar comportamentos, imputabilidade e gravidade do feito, trabalhando, pois, com alto grau de previsibilidade. No entanto, impossível cravar a certeza quando se está analisando conduta alheia, motivo pelo qual substitui-se a mencionada certeza pelo alto grau de probabilidade, considerando a conduta do devedor.

  • O instituto do Anticipatory Breach of Contract na Convenção das Nações Unidas para Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG)

            Ao contrário do que ocorreu no Código Civil brasileiro, que não recepcionou expressamente o instituto do inadimplemento antecipado, a Convenção de Viena (CISG), promulgada através do Decreto nº 8.327, de 2014, realizou sua incorporação em seu texto legal, no artigo 72, conforme abaixo transcrito:

Artigo 72

(1) Se antes da data do adimplemento tornar-se evidente que uma das partes incorrerá em violação essencial do contrato, poderá a outra parte declarar a rescisão deste.

(2) Se dispuser do tempo necessário, a parte que pretender declarar a rescisão do contrato deverá comunicá-la à outra parte com antecedência razoável, para que esta possa oferecer garantias suficientes de que cumprirá suas obrigações.

(3) Os requisitos do parágrafo anterior não serão aplicáveis quando a outra parte houver declarado que não cumprirá suas obrigações

A CISG versa sobre regras aplicáveis à compra e venda de mercadorias no âmbito do comércio internacional. Pela intepretação do disposto acima mencionado, identifica-se duas situações nas quais se permite a extinção antecipada do vínculo contratual pela CISG, sendo: (a) a primeira situação seria aquela em que há fortes evidências que demonstrem de forma inequívoca a inexecução do Contrato acrescida do fato da inexecução ser relacionada à violação de deveres essenciais do contrato; (b) a segunda situação seria aquela na qual há a declaração da parte devedora que não irá adimplir com sua obrigação, repudiando o avençado. A declaração deve ser revestida de caráter de seriedade, apresentando notável grau de certeza, definitividade e ausência de vícios.

Salvo na situação na qual o devedor declara que não cumprirá o avençado, o credor deverá notificá-lo acerca da resolução antecipada do contrato, muito embora, vale ressaltar, a notificação opere de pleno direito e não tenha qualquer intuito de constitui-lo em mora, uma vez que se está no campo do inadimplemento absoluto.

  • O instituto do Anticipatory Breach of Contract nos Princípios do Unidroit

Os princípios do Unidroit consistem em regras internacionais que possuem como objetivo instituir normativas acerca de relações contratuais internacionais, promovendo certa uniformidade e previsibilidade aos aplicadores do direito, uma vez que harmoniza e consolida as regras de direito privado incidentes em relações desta natureza.

O instituto do Anticipatory Breach of Contracttambém é contemplado pelos princípios do Unidroit, em seu artigo 7.3.3., que preconiza que se antes mesmo à data da execução do contrato é identificado o inadimplemento essencial da parte devedora, ao credor caberá resolver o Contrato.

Resta claro, segundo previsto nos Princípios do Unidroit, que para que o inadimplemento seja identificado previamente à data da execução do Contrato, é necessário que o descumprimento seja considerado essencial, na mesma linha do disposto na CISG, segundo a qual os deveres violados devem ser essenciais ao objeto do Contrato para embasar a resolução de maneira antecipada.

  • Efeitos do inadimplemento absoluto e o dever de mitigação de danos

Quando se está na seara do inadimplemento parcial, incumbe ao credor a execução direta da obrigação que foi inadimplida, buscando o meio de solução de controvérsias eleito no contrato, caso de trate de relação contratual firmada por documento escrito, ou se valer do meio devido para a finalidade pretendida, caso se trate de relação obrigacional não contratual ou mesmo decorrente de contrato não escrito, para constranger o devedor a efetuar a prestação conforme o pactuado.

No entanto, na esfera do inadimplemento absoluto, de uma forma geral, o efeito geral e imediato dele decorrente é o dever de reparação do prejuízo causado, ou seja, a obrigação original se converte no dever de indenizar a parte lesada, que recorre à esfera apropriada com o intuito de ser ressarcida das perdas e danos comprovadamente causados e não mais de ver adimplida a prestação que, nesse caso, não lhe é mais útil.

Quando se fala em inadimplemento antecipado ao termo, tanto os pressupostos para sua caracterização quanto os efeitos dele decorrentes são, geralmente, os mesmos: a resolução do contrato e a indenização por perdas e danos. Ocorre que na seara do inadimplemento antecipado o devedor tem, a princípio, a prerrogativa de aguardar ou não o termo da obrigação. Sendo assim, a maior parte da doutrina enxerga a alegação do Anticipatory Breach como uma faculdade do credor, a exemplo de Joana Farrajota[13], que menciona que a alegação do instituto pelo devedor é uma faculdade para se colocar fim ao contrato e que requer o mesmo requisito da gravidade do exigido pela actual breach. Levanta-se a reflexão se, de fato, a alegação do instituto do Anticipatory Breach sempre seria uma faculdade ou, a depender da situação, fundamentado no dever de mitigação das próprias perdas, seria um poder-dever do credor.

Acredita-se que, via de regra, o instituto do dever de mitigação das próprias perdas deva incidir e ser analisado em momento posterior ao termo fixado no Contrato, justamente porque não é razoável impor ao credor, que é a parte lesada pelo inadimplemento, o ônus adicional de tomar as providências contra suas consequências de forma antecipada. Sendo assim, não haveria que se falar em um dever-poder do credor de alegar o incumprimento antecipado, mas, de fato, em uma faculdade, na linha sustentada pela autora mencionada. Trata-se de faculdade colocada à disposição do credor para lhe minorar as consequências danosas e se desvincular da obrigação que não mais será cumprida.

Contudo, há determinadas situações que devem ser analisadas com cautela, principalmente considerando as circunstâncias estabelecidas. Ao tratar do tema, Joana Farrajota, muito embora acredite que o manuseio do instituto do Anticipatory Breach seja uma faculdade do credor, aponta determinados casos nos quais resta evidente que o credor poderia ter evitado danos maiores diante da declaração expressa do devedor no sentido de não cumprir com o pactuado. A autora menciona o caso inglês emblemático White and Carter (Councils) Ltd v. McGregor (1962). No caso em comento, os autores da ação forneciam caixotes de lixo cujos custos eram suportados pela publicidade afixada neles. Os réus realizaram a contratação da afixação de publicidade em referidos caixotes pelo período de três anos, sendo que no mesmo dia os réus comunicaram os autores informando-lhes a perda de seu interesse no contrato. Ainda assim, os autores produziram e afixaram a publicidade nos caixotes para, apenas mais tarde vir a reclamar uma indenização alegando o não cumprimento do contrato pelos réus. Observa-se que diante da recusa expressa dos réus em seguir com a contratação, os autores nada fizeram para minimizar danos decorrentes do incumprimento do contrato. Ao contrário, seguiram com as atividades, desconsiderando a situação fática do inadimplemento declarado, pleiteando em juízo indenização pelos materiais produzidos.

A decisão para o presente caso, muito embora acirrada, não foi acertada, pois enquadrou na regra geral do instituto do Anticipatory Breach como uma faculdade e, consequentemente, entendeu pela indenização integral dos autores. Os votos vencidos, contudo, defenderam, justamente, que nessa situação a mitigação dos danos deveria incidir. Posteriormente, dado o incômodo da decisão, a doutrina e jurisprudência, de certa maneira, tentaram corrigir referido entendimento com base no princípio da culpa do lesado, não devendo o credor ser indenizado pelos danos que provocou após o conhecimento do não cumprimento, pois deveria ter agido de maneira a minimizar esses prejuízos.

No direito norte-americano, a liberdade do credor entre manter ou extinguir a relação contratual no caso de incumprimento antecipado declarado expressamente é mais limitada do que no direito inglês, impondo ao credor, nessa situação, reconhecer e aceitar o incumprimento antecipado pelo devedor, deixando de tomar medidas que prejudiquem ainda mais o devedor caso não o aceitasse.  

  • A previsão do Anticipatory Breach of Contract em cláusula resolutiva expressa

É possível que por livre vontade das Partes o instituto do Anticipatory Breach of Contractvenha previsto como uma hipótese de resolução imediata do contrato de forma expressa, mediante sua disposição em cláusula resolutiva expressa.

Conforme previsto no artigo 474, do Código Civil brasileiro, a cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito e apenas a tácita depende de interpelação judicial. Sendo assim, caso prevista expressamente como hipótese de resolução do Contrato, o credor pode manuseá-la ao seu favor sem necessidade de recorrer ao Judiciário para tanto, dando a relação rescindida de forma imediata quando presentes os pressupostos do incumprimento antecipado.

Nesse caso, a princípio, não se abre espaço para a discussão da relevância do dever violado, uma vez que a previsão da hipótese enquanto incumprimento contratual decorreu da liberalidade de ambas as Partes.

Conforme preceitua Cristiano Zanetti[14], a parte lesada pelo inadimplemento antecipado pode operar a cláusula de forma imediata, sem necessidade de aguardar qualquer decurso de prazo, tendo o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendido pela legalidade da cláusula e, consequentemente, da resolução de contratos que a contenham.

  • A exceção do contrato não cumprido como instrumento conservativo-cautelar que não se confunde com o inadimplemento antecipado

Faz-se relevante diferenciar o instituto da exceptio non adimplenti contractus do Anticipatory Breach of Contract, que, muito embora possam causar certa confusão, são institutos completamente distintos em sua fundamentação e efeitos, devendo ser devidamente diferenciados pelo operador do direito.

Primeiramente, cabe mencionar que a o instituto da exceção do contrato não cumprido consta positivado no Código Civil brasileiro, ao contrário do Anticipatory Breach of Contract, nos artigos 476 e 477, abaixo transcritos:

Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.

Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.

Muito embora pela leitura dos dispositivos infira-se que apenas nos casos de diminuição do patrimônio de uma das Partes, posterior à conclusão do contrato, a outra poderá recusar a efetivar a prestação que lhe cabe até que quem esteja obrigado a prestar primeiro satisfaça o que lhe incumbe ou dê garantia o suficiente para satisfazê-la, a doutrina vem propondo uma leitura ampliativa ao instituto.

Segundo entendimento doutrinário, a exceção do contrato não cumprido pode ser operacionalizada sempre que o comportamento do outro contratante colocar em risco a satisfação do resultado que se almeja com o negócio jurídico[15]. Um exemplo clássico é a contratação de empreitada na qual o empreiteiro deverá iniciar a execução dos serviços em data posterior ao sinal, ou seja, ao primeiro pagamento, que não é realizado no prazo avençado. Nesse caso, o empreiteiro pode alegar a exceptio non adimpleti contractus para suspender o início da obra até que o primeiro pagamento seja efetuado, uma vez que para prosseguir com a empreitada nas próximas etapas é imprescindível receber pontualmente os valores acordados.

Dessa forma, observa-se que o instituto da exceptio non adimpleti contractus tem função conservativo cautelar, isto é, quem lança mão de seu uso, em um primeiro momento, deseja coibir a outra parte, que deveria prestar primeiro e não o fez, a adimplir com o pactuado. Este instituto sempre é aplicado, pois, em caso de inadimplemento relativo ou mora.

O instituto do Anticipatory Breach of Contract, por sua vez, é operacionalizado quando presentes os pressupostos do inadimplemento absoluto, ainda que de forma antecipada. Apenas abre-se mão desse instituto de forma residual e quando a prestação, de fato, não for mais útil ao credor, frustrando o interesse na obrigação.

Por fim, impera-se o princípio da materialidade para se verificar qual instituto é o mais adequado caso a caso. Imprescindível analisar sempre a situação concreta para verificar se é resta configurada a mora ou o inadimplemento anterior ao termo.

  • Vantagens no reconhecimento do instituto do Anticipatory Breach of Contract

Como se abordou ao longo do presente trabalho, no direito brasileiro, o instituto do Anticipatory Breach of Contract, salvo o Decreto nº 8.327, de 2014, que recepcionou as disposições da CISG referente à aplicação do instituto para casos de comercio internacional de mercadorias, não foi recepcionado de forma expressa e ampla pela legislação brasileira, muito embora encontre respaldo na doutrina majoritária e jurisprudência.

Ainda que sejam diversas as possibilidades de fundamentações para sua recepção, certo é que o inadimplemento antecipado está em consonância com os melhores entendimentos acerca da realidade do direito das obrigações, que sofreu inúmeras mudanças em sua concepção ao longo dos anos, passando-se a entender a obrigação não como algo estático e pontual, mas como um processo, regido pela boa-fé contratual, da qual decorre o dever de colaboração entre as Partes.

Nessa esteira, reconhecer a figura do inadimplemento antecipado é imprescindível para dar azo a decisões justas, proteger os interesses das partes envolvidas e minimizar prejuízos evitáveis. Como preceitua Cristiano de Sousa Zanetti[16],o reconhecimento e manuseio do inadimplemento antecipado é uma providência que tende a minorar a extensão dos prejuízos envolvidos, uma vez que permite ao contratante inocente buscar alternativas para a satisfação de seus interesses e, consequentemente, a diminuição do montante de ressarcimento integral devido em razão da inobservância do estipulado.

Importante não descuidar da análise objetiva dos pressupostos do inadimplemento absoluto para a identificação do inadimplemento antecipado, uma vez que a única característica que não está presente é justamente a atualidade da prestação, tendo em vista que se trata de incumprimento anterior ao termo.

CONCLUSÃO

A partir do presente trabalho, buscou-se estabelecer a distinção entre inadimplemento absoluto e relativo, com foco no estudo do inadimplemento absoluto, tendo em vista sua abordagem suscinta no Código Civil brasileiro, que não chega a caracterizá-lo e definir os pressupostos de sua caracterização.

Sendo assim, partindo da ideia contemporânea de obrigação como processo e obrigações complexas, regidas pelo princípio da boa-fé e seus direitos anexos, buscou-se traçar os elementos fundamentais para que o inadimplemento reste caracterizado, lembrando que sua análise deve sempre levar em consideração a situação concreta delineada e suas peculiaridades.

Após, chegando-se ao ponto central do presente trabalho: o estudo do Anticipatory Breach of Contract. Buscou-se elucidar que, enquanto modalidade do inadimplemento absoluto, fora o pressuposto da atualidade da prestação, os demais pressupostos caracterizadores do inadimplemento absoluto devem se fazer presentes para que o inadimplemento anterior ao termo reste configurado, sob pena de dar azo à arbitrariedade do credor em sua alegação.

Nesse ponto, importante notar que os pressupostos são sempre verificados objetivamente, ainda que sejam analisadas características subjetivas, referentes à legítima expectativa do credor e seu interesse no vínculo estabelecido, e objetivas, relacionadas à utilidade da prestação e gravidade do dever violado.

Assim, muito embora não tenha sido previsto de forma ampla e expressa pela legislação brasileira e vários aspectos que lhe circundam, como a possibilidade ou não de aplicação do instituto da mitigação dos próprios danos pelo credor na seara do inadimplemento antecipado, fato é que o Anticipatory Breach of Contract é instituto existente, consolidado e com características próprias.

Conclui-se, pois, que o Anticipatory Breach of Contractfoi recepcionado pela doutrina e jurisprudência brasileira e é instituto fundamental ao Direito Civil-Constitucional contemporâneo no sentido de auxiliar na execução de relações obrigacionais justas e equilibradas, seguindo os ditames da boa-fé objetiva e seus deveres anexos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas conseqüências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980.

CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil: direito das obrigações: introdução: sistemas e direito europeu: dogmática geral. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2012, v. 6.

FARRAJOTA, Joana. Anticipatory breach no direito português? In: FREITAS, José Lebre de.

DUARTE, Rui Pinto; CRISTAS, Assunção; NEVES, Vítor Pereira das; ALMEIDA, Marta Tavares de (Coord.). Estudos em homenagem ao professor doutor Carlos Ferreira de Almeida. Coimbra: Almedina, 2011, v. 2.

LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Tradução de Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, v. 1.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

MARTINS-COSTA, Judith. A recepção do incumprimento antecipado no direito brasileiro: configuração e limites. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 885, jul. 2009.

MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: volume 5, tomo 1: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

PIRES, Catarina Monteiro. Contratos: I: perturbações na execução. Coimbra: Almedina, 2019.

SCHEIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento: adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras. In: Revista Trimestral de Direito Civil 32:12/13.

SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1976, p. 5-13, 71-121; ou SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. ZANETTI, Cristiano de Sousa. Inadimplemento antecipado da obrigação contratual. In: CELLI JUNIOR, Umberto; BASSO, Maristela; AMARAL JÚNIOR, Alberto do (Coord.). Arbitragem e comércio internacional: estudos em homenagem a Luiz Olavo Baptista. São Paulo: Quartier Latin, 2013.


[1] Mestranda em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

[2] ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 3.

[3] LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Tradução de Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, v. 1, p. 37-45.

[4] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 233.

[5] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 234.

[6] PIRES, Catarina Monteiro. Contratos: I: perturbações na execução. Coimbra: Almedina, 2019, p. 73.

[7] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: volume 5, tomo 2: do inadimplemento das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 108-116, 216-245.

[8]NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 58.

[9] NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 73.

[10] NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 92.

[11] MARTINS-COSTA, Judith. A recepção do incumprimento antecipado no direito brasileiro: configuração e limites. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 885, p. 30-48, jul. 2009.

[12] MARTINS-COSTA, Judith. A recepção do incumprimento antecipado no direito brasileiro: configuração e limites. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 885, p. 30-48, jul. 2009.

[13][13] FARRAJOTA, Joana. Anticipatory breach no direito português? In: FREITAS, José Lebre de; DUARTE, Rui Pinto; CRISTAS, Assunção; NEVES, Vítor Pereira das; ALMEIDA, Marta Tavares de (Coord.). Estudos em homenagem ao professor doutor Carlos Ferreira de Almeida. Coimbra: Almedina, 2011, v. 2, p. 300.

[14] Sousa. Inadimplemento antecipado da obrigação contratual. In: CELLI JUNIOR, Umberto; BASSO, Maristela; AMARAL JÚNIOR, Alberto do (Coord.). Arbitragem e comércio internacional: estudos em homenagem a Luiz Olavo Baptista. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 325.

[15] SCHEIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento: adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras. In: Revista Trimestral de Direito Civil 32:12/13.

[16] Sousa. Inadimplemento antecipado da obrigação contratual. In: CELLI JUNIOR, Umberto; BASSO, Maristela; AMARAL JÚNIOR, Alberto do (Coord.). Arbitragem e comércio internacional: estudos em homenagem a Luiz Olavo Baptista. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 329.