A NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DOS VESTÍGIOS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
30 de dezembro de 2024THE NEED TO OVERCOME THE VESTIGES OF THE ENEMY’S CRIMINAL LAW IN THE BRAZILIAN LEGAL SYSTEM
Artigo submetido em 21 de novembro de 2024
Artigo aprovado em 10 de dezembro de 2024
Artigo publicado em 30 de dezembro de 2024
Cognitio Juris Volume 14 – Número 57 – Dezembro de 2024 ISSN 2236-3009 |
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Autor(es): Gabriela Faria Mendes da Costa Martins[1] |
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Resumo: O presente artigo tem como objetivo contextualizar o Direito Penal do Inimigo, Movimento de Política Criminal desenvolvido por Gunther Jakobs, e traçar exemplos históricos de aplicação desse Movimento tanto na ordem global quanto no Brasil, demonstrando os vestígios remanescentes no ordenamento jurídico brasileiro. Com isso, a pesquisa pretende demonstrar porque o Direito Penal do Inimigo não encontra guarida em um Estado Democrático de Direito, devendo ser rechaçado para que se possa alcançar uma maior aproximação do Estado de Direito e um afastamento do estado de polícia. Propõe-se, enfim, a necessidade de eliminar os ranços que ainda persistem tanto como premissas quanto como resultados da atuação do Sistema de Justiça Criminal.
Palavras-chave: Direito Penal do Inimigo; Gunther Jakobs; crítica; Brasil; ordenamento jurídico brasileiro.
Abstract: This article aims to contextualize the Enemy’s Criminal Law, a Criminal Policy Movement developed by Gunther Jakobs, and outline historical examples of the application of this Movement both in the global order and in Brazil, demonstrating the remaining traces in the Brazilian legal system. With this, the research aims to demonstrate why the Enemy’s Criminal Law does not find a home in a Democratic State of Law, and must be rejected so that a greater approximation of the rule of law and a move away from the police state can be achieved. Finally, it is proposed the need to eliminate the stalemates that still persist both as premises and as results of the actions of the Criminal Justice System.
Keywords: Enemy Criminal Law; Gunther Jakobs; criticism; Brazil; Brazilian legal system.
Introdução
O presente trabalho possui como metodologia a revisão bibliográfica conexa ao tema e se inicia com uma breve contextualização do termo “Direito Penal do Inimigo”, cunhado por Gunther Jakobs em 1985. Percebe-se que, inicialmente, Jakobs assumia uma posição pretensamente descritiva ou crítica sobre o conceito. Mas, anos depois, passa a legitimá-lo, aduzindo a necessidade de distinguir o “cidadão” do “inimigo”. A principal premissa filosófica admitida por Jakobs é o contratualismo, em que o “cidadão” é encarado como aquele que adentra no Contrato Social, enquanto o “inimigo” opta por manter-se fora dele.
O trabalho também se debruça a analisar as principais distinções e características entre o Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo. Serão analisadas as diferenças entre os conceitos de “cidadão” e de “inimigo” para que se possa investigar o que cada um deles representa para a sociedade e para o sistema normativo positivado na perspectiva jakobsoniana e, sobretudo, como a teoria fundamenta a diferença de punição a ser aplicada sobre esses dois grupos.
A partir da leitura de Prittwitz, serão, ainda, mencionados e analisados os três grupos que poderiam ser classificados como “inimigo” na perspectiva de Jakobs, quais sejam, o inimigo por sua conduta, o inimigo por fazer do crime seu meio de vida e o inimigo por integrar organização criminosa.
Nesse seguimento, o trabalho passará a cotejar o Direito Penal do Inimigo com julgamentos, medidas e normas tanto no contexto global como no contexto brasileiro. No contexto global, serão elucidados os julgamentos dos oficiais nazistas e os Atos Patrióticos após o 11 de setembro. No âmbito interno, os resquícios remanescentes do Direito Penal do Inimigo, como a Lei de Crimes Hediondos, a Lei do Abate e os recentes crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Ao cabo, o trabalho atingirá seu objetivo principal, que consiste em analisar os motivos pelos quais o Direito Penal do Inimigo deve ser extinto, quer do discurso jurídico declarado quer do discurso oculto, dada a sua absoluta incompatibilidade com um Estado Democrático de Direito.
- Breve contextualização do termo “Direito Penal do Inimigo”: Gunther Jakobs.
O termo “Direito Penal do Inimigo”foi cunhado pela primeira vez em 1985, pelo autor alemão Gunther Jakobs, em um Congresso em Frankfurt. Nesse primeiro momento, Jakobs afirma que “o direito penal do inimigo só se mostra legitimável como um direito penal de emergência, vigendo em caráter excepcional e deve ser segregado do direito penal do cidadão para que não o contamine” (GRECO, 2005, p. 213).
Nota-se que, inicialmente, Jakobs assume uma posição ora meramente descritiva, ora denunciadora-crítica sobre a ideia em pauta. Mas, a partir de 1997, à medida em que os receios advindos do pós Segunda Guerra se diluem, Jakobs começa a relativizar as críticas ao conceito e passa a legitimá-lo.
Embora continue afirmando a necessidade de separação entre as duas perspectivas do direito penal – uma ao cidadão e outra ao inimigo – , Jakobs passa a descrever o Direito Penal do Inimigo a partir do contratualismo, elaborado e desenvolvido nas obras de Rousseau, Fichte, Hobbes e Kant (GRECO, 2005, p. 215).
O contratualismo consiste, em síntese, na ideia de que os indivíduos passaram de um estado de natureza para um estado civilizatório, de forma que a maior parte dos seres humanos abriram mão de uma parcela mínima de sua liberdade para ter a garantia de uma mínima segurança (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 282).
Ao firmar o contratualismo como premissa filosófica do Direito Penal do Inimigo (JUNQUEIRA; VANZOLINI, 2021, p. 147), Jakobs passa a delinear “pessoa” como aquele indivíduo que, compreendendo as condições do Contrato Social, aceita seus termos e adere ao contrato, orientando seu comportamento conforme a norma. O “cidadão” é compreendido, então, como aquele que confia na norma e, como consequência, aquele em que se pode depositar as expectativas sociais.
Há, contudo, determinados indivíduos que não se deixam coagir a viver em um estado de civilidade, ou seja, que, cientes dos termos do contrato social, decidem por não abrir mão de parcela de sua liberdade, permanecendo em um estado de natureza. Nessa toada, os “inimigos” são “não pessoas” ou “não cidadãos”, que devem ser neutralizados por representarem uma fonte de perigo aos “cidadãos”.
Desde já, é válido delinear a principal diferença que Jakobs delimita entre o “cidadão” e o “inimigo”. Admite-se que ambos podem praticar condutas delitivas. Mas, o “cidadão” rompe o Contrato de forma ocasional, enquanto o “inimigo”, que nunca adentrou no contrato ou preferiu dele retirar-se, vive fora do Contrato de forma perene.
- Direito Penal do Inimigo e Direito Penal do Cidadão.
Tecidas as considerações iniciais acerca da origem dos termos “cidadão” e “inimigo” e o que eles representam, é necessário desenvolver as implicações da diferenciação entre eles. Considerado o principal autor do Funcionalismo Sistêmico ou Radical, Jakobs expressa que a pena possui como finalidade precípua a prevenção geral positiva, ou seja, a necessidade de reafirmar as normas, com o fim último de garantir a manutenção das expectativas essenciais para a vida em sociedade (MELIÁ, 2013, p. 17).
Partindo dessa análise, é possível detrair que o cidadão, mesmo depois de praticar o crime, persiste como fonte de expectativas confiáveis. O inimigo, ao contrário, mesmo antes de praticar o crime, é fonte de perigo e de insegurança, que deve ser neutralizada e eliminada para manutenção da estabilidade social. O inimigo produz uma insegurança cognitiva à vigência da norma, de maneira que impede o desenvolvimento da personalidade dos demais cidadãos (sujeitos de direitos) e viola não apenas a norma, como a própria estrutura de Estado.
Disso decorre, ainda, o modo como o cidadão e o inimigo devem ser tratados. Enquanto o primeiro deve ser punido nos exatos limites do contrato social, o segundo deve ser excluído e neutralizado, pois, diante de sua periculosidade, não há como aplicar-lhe as mesmas sanções aplicadas aos cidadãos. Aos inimigos, aplica-se um tratamento diferenciado, denominado por Jakobs de “medidas de contenção”. Nesse sentido, Jakobs (2012, p. 46) aduz que:
“O cidadão participa do contrato social e se romper suas regras será processado e punido no limite do contrato. O inimigo se coloca fora do contrato e atenta contra sua existência. Não terá direito às regras e limites do contrato. Será vencido e não punido.”
Assim, é possível delinear algumas diferenças cruciais que Jakobs traça entre o inimigo e o cidadão no que tange à punição.
Enquanto o cidadão é tido como uma fonte de expectativas confiáveis, recebendo o status de “pessoa”, com direitos e garantias preservados como sujeito de direitos, o inimigo passa a ser compreendido como uma fonte de perigo, pelo que perde o status de “pessoa”, assim como os direitos e garantias (total ou parcialmente)e torna-se objeto de coação.
Como consequência, o cidadão que comete um ilícito penal somente deve ser punido a partir da exteriorização da conduta, devendo ser sempre considerada sua culpabilidade. Ao revés, o inimigo deve ser punido antes da exteriorização da conduta, devendo-se antecipar a tutela penal para alcançar os atos preparatórios. Isso porque, o que deve ser levado em conta no caso do inimigo não é sua culpabilidade, mas sua periculosidade (JAKOBS, 2012, p. 46).
Nesse contexto, o cidadão deve ser sancionado com uma pena, que consubstancia uma punição retrospectiva – com referência apenas passado – e proporcional ao mal do ato cometido. O inimigo, por sua vez, deve receber não uma pena, mas uma medida de segurança, que representa uma punição prospectiva – com referência também ao passado, mas principalmente ao futuro – e se materializa em medidas intensas e desproporcionais (JAKOBS, 2012, p. 62).
Assim, enquanto a pena possui para o cidadão a função de comunicar a norma, reforçando-a para a vida em sociedade, a medida de segurança representa a necessidade de combater e neutralizar o inimigo. Enquanto o cidadão deve compensar o dano, o inimigo deve ser excluído do contexto social.
Em síntese, é possível elencar cinco principais características do Direito Penal do Inimigo em detrimento do Direito Penal do Cidadão na obra de Jakobs: (i) a antecipação da punição, com a necessidade de maior repressão aos crimes de perigo em detrimento dos crimes de dano, bem como a criminalização de atos preparatórios; (ii) sanções prospectivas, ou seja, dirigidas ao futuro, diante da periculosidade do inimigo; (iii) penas desproporcionalmente altas; (iv) flexibilização das garantias penais e processuais; (v) escolha de grupos com características determinadas como inimigos.
- Quem pode ser considerado o “inimigo” para Jakobs?
Embora Jakobs não se debruçe em sistematizar as principais características que um indivíduo ou um grupo deve apresentar para ser visto como uma fonte de perigo e rotulado como “inimigo”, o autor alemão Prittwitz (1993), ao interpretar a obra de Jakobs, elabora que o inimigo poderia ser, na perspectiva jakobsoniana, identificado de três formas.
O “inimigo pela conduta” seria aquele que se aproveita do sistema globalizado para atentar contra bens jurídicos da coletividade e praticar crimes considerados especialmente graves, como terrorismo, atentados à ordem econômica, criminalidade organizada (tráfico de drogas e de pessoas), delitos sexuais. Seria aquele classificado, então, pela gravidade dos crimes praticados.
No Brasil, desde o início da chamada “guerra às drogas” no final da década de 1980, a figura do “traficante de drogas” passou a ser diretamente atrelada, no âmbito social e midiático, à figura do inimigo social, de modo que o crime de tráfico de entorpecentes passou a ser considerado de alta gravidade e, não à toa, um dos delitos mais criminalizados do país, correspondendo atualmente ao segundo delito que mais leva pessoas ao cárcere.
A segunda classificação possível para o inimigo diz respeito ao “inimigo por fazer do crime seu modo de vida”, representado pelo criminoso habitual e profissional. Trata-se de um inimigo por ser aquele que viola constantemente o ordenamento jurídico, o que de alguma maneira explica porque a figura do “criminoso serial” é tão temida socialmente e porque a condição de reincidente é valorada de forma tão negativa em nosso ordenamento jurídico. O reincidente, além de ter sua pena aumentada na segunda fase da dosimetria da pena, encontra maiores óbices e até impedimentos na concessão de direitos e benefícios, como na progressão de regime de pena.
A terceira e última classificação seria o “inimigo por aderir a uma organização criminosa”. É aquele que abandona as regras do Estado para aderir às regras da organização, ou seja, que rompe com as normas de contenção e, portanto, com as expectativas sociais. Atualmente, o maior exemplo de inimigo ligado à organização criminosa são os membros das denominadas “facções criminosas”, como o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o Comando Vermelho, que germinaram, principalmente, pelo colapso do sistema prisional brasileiro no final do século XX.
- Exemplos históricos de aplicação do Direito Penal do Inimigo.
Em recente artigo intitulado “O direito penal do inimigo: uma perspectiva histórico-literária acerca dos julgamentos aos nazistas e do ato patriótico”, João Paulo Vani (2020, p. 63) apresentou dois momentos históricos recentes, de amplitude global, em que o Direito Penal do inimigo pôde ser vislumbrado de forma bastante evidente.
O primeiro deles diz respeito ao Julgamento de Eichmann, oficial do Partido Nazista, em Jerusalém, no ano de 1961, e ao Julgamento de Auschwitz, em Frankfurt, de 1963 a 1965, em que foram julgados 22 ex-guardas de Auschwitz (VANI, 2020, p. 63). O que foi valorado nesses julgamentos não foi o desvalor das condutas dos oficiais nazistas – e aqui não há como negar o quanto tais condutas são repugnantes e atrozes em uma perspectiva humanista – mas, o que importou no julgamento foi, sobretudo, o estigma de “inimigo” que esses oficiais representavam para a nação alemã.
O julgamento, portanto, não se pautou na culpabilidade desses indivíduos, mas na noção de que esses indivíduos deveriam ser excluídos e vencidos para que o povo judeu fosse reconhecido como vítimas do Holocausto e para que a Alemanha voltasse a ter um fôlego que se pretendecesse democrático.
O segundo evento histórico que evidenciou de forma emblemática a adoção do Direito Penal do Inimigo foi a Promulgação do Ato Patriótico a partir do atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, que tinha o escopo de “unir e fortalecer a América, fornecendo instrumentos apropriados requeridos para interceptar e obstruir o terrorismo” VANI, 2020, p. 65). Nesse contexto da Guerra ao Terror, o Congresso Americano aprovou dez medidas, que visavam, principalmente, proteger os Estados Unidos de ataques terroristas, de operações de inteligência externa e espionagem e de ataques cibernéticos e de crimes de alta tecnologia. Essas dez medidas pautaram-se em inúmeras restrições de direitos civis e na ampliação do poder estatal.
Nota-se que, nas duas ocasiões, os inimigos do Estado foram colocados como indivíduos que, por serem vistos como um “perigo latente” à nação e à sociedade, deveriam ter sua empreitada criminosa interrompida a qualquer custo. Portanto, ao contrário dos cidadãos, que apenas delinquem pontualmente e não apresentam uma insegurança cognitiva à vigência da norma, esses indivíduos, tidos como “não pessoas” não fazem jus aos ritos do processo democrático, ainda que não haja qualquer respaldo dessa diferenciação em ordenamento jurídico democrático (VANI, 2020, p. 63).
- Vestígios do Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico brasileiro.
Não foi somente no eixo tido como central (Europa e Estado Unidos) que o Direito Penal do Inimigo foi implementado com tamanha notabilidade e envergadura. O Brasil, no desejo de combater a criminalidade e dar segurança à sociedade, abandonou o princípio da ultima ratio e trouxe para dentro do ordenamento jurídico traços do Direito Penal do Inimigo. Se um dia esse movimento de Política Criminal foi incorporado explicitamente, na tentativa de irromper uma “guerra às drogas” no país, atualmente, remanescem vestígios desse movimento em nosso ordenamento jurídico (SILVA; HORITA, 2017).
A entrada em vigor da Lei de Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/1990), em 1990, foi responsável por deflagrar a guinada punitiva dos anos que se seguiram, pois acarretou o aumento de penas de vários tipos penais, restringiu os casos de liberdade no curso do processo e, enfim, vedou a progressão de regime aos acusados e sentenciados por crimes hediondos e equiparados, previsão que só foi declarada inconstitucional pelo STF após mais de quinze anos (SEMER, 2029, p. 55-56). Nada obstante a rigidez da Lei a crimes hediondos e equiparados, dados empíricos demonstram que a coação trouxe nenhum ou quase nenhum efeito. Ainda assim, a Lei permanece vigente, restringindo direitos daqueles que se enquadram como inimigo “por sua conduta”.
A Lei do Abate (Lei n. 9.614/1988) introduziu no art. 303, § 2º, do Código Brasileiro de Aeronáutica, segundo o qual “esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada”. A Lei prevê, portanto, a possibilidade de se abater uma aeronave considerada hostil.
Contrariamente ao projeto da Lei que tramitava na Câmara dos Deputados, desde logo o Deputado Fernando Gabeira denunciou a medida, alertando que recairia no extermínio de indesejáveis. Averigue-se um breve trecho do voto:
“(…) Com o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos declararam que a nova guerra seria contra a droga e determinaram que o papel do Brasil seria interceptar os aviões que saíssem da América Latina em direção àquele país. (…) Neste momento, o Congresso brasileiro, pressionado pelos Estados Unidos, está prestes a votar uma proposição bélica, retrógrada, que vai nos jogar no período da Guerra Fria. Só que agora os adversários não são mais os comunistas; são os traficantes de drogas e os contrabandistas. Sabemos, pela nossa história, que os adversários inicialmente são o traficante de drogas e o contrabandista, mas, amanhã, podem ser outros, como os não-cooperativos. E os aviões serão derrubados.”[2] (grifos nossos).
Desde aquele momento inicial, alertava-se, como se vê, pelo potencial autoritário da medida, que, visando atingir os inimigos, aqui traduzidos como “traficantes de drogas e contrabandistas”, valeu-se de uma medida administrativa-penal para autorizar implicitamente a pena de morte, que somente é admitida pela Constituição Federal em caso de guerra declarada. Como já previa o Deputado Gabeira, em 2009, pilotos da Força Aérea Brasileira (FAB) dispararam tiros de advertência contra um monomotor que transportava 176 kg de cocaína, em Rondônia, na fronteira entre o Brasil e a Bolívia.
A entrada em vigor da Lei do Crime Organizado (Lei nº 12.850/2013) define o conceito de organização criminosa e prevê um mar de restrições a direitos e garantias da pessoa acusada, como a flexibilização das hipóteses e das condições para a quebra de sigilos e para a obtenção de outros meios de prova. A Lei ressalta, assim, diversas semelhanças com a teoria do Direito Penal do Inimigo, percebendo quem é acusado de compor uma organização criminosa como o clássico exemplo do inimigo.
O regime disciplinar diferenciado (RDD) introduzido na Lei de Execução Penal (LEP) em 2003, disciplina a imposição de castigo ao preso que pratica crime doloso ou falta grave. Damásio de Jesus, ao tratar do RDD, aponta a semelhança com a teoria de Jakobs, afirmando que “(…) o regime disciplinar diferenciado, previsto nos arts. 52 e ss. da Lei de Execução Penal, projeta-se nitidamente à eliminação de perigos” (DAMÁSIO DE JESUS, 2004, p. 7).
Enfim, recentemente, em 2021, foi incluído o Capítulo XII ao final do Código Penal brasileiro, que prevê os “Crimes contra o Estado Democrático de Direito”. Não se pretende entrar no debate sobre as lamentáveis atitudes dos indivíduos que bloquearam as rodovias no pós-eleição de 2022 ou daqueles que invadiram a sede do governo no dia 8 de janeiro de 2023. O modo como esses indivíduos optaram por se manifestar ou se tais condutas deveriam ou não estar tipificadas como crimes não será desenvolvido neste trabalho. O que se pretende aqui, é analisar de forma técnica e racional as medidas desproporcionais e arbitrárias que têm sido empregadas a esses indivíduos.
Mesmo mais de seis meses após os acontecimentos de janeiro, das quase 1.500 pessoas presas em flagrante, algumas delas seguem presas preventivamente, em flagrante violação ao art. 312 do Código de Processo Penal. Quando o Estado opta por manter um indivíduo preso por sua ideologia ou tão somente pela gravidade abstrata do fato assume o risco de recair em arbítrios inadmissíveis em um Estado Democrático de Direito. Se a norma processual penal consubstancia um limite e um freio ao poder punitivo, isso se refere a todo e qualquer indivíduo, sendo injustificável que se flexibilize uma garantia como álibi para perseguir e punir o “inimigo” do Estado. A utilização das condutas tipificadas no Capítulo XII do CP como mecanismo de neutralização de um grupo é extremamente convergente à teoria do Direito Penal do Inimigo, devendo ser rechaçada. “É assim que se faz em uma democracia: investiga-se, acusa-se e pune-se, nesta ordem, sem arbítrio, sem sigilos, sem presos políticos.”[3]
Considerações finais
A partir do desenvolvimento, possível alcançar as considerações de que o Direito Penal do Inimigo é uma ameaça e uma absoluta violação ao Direito Penal concebido em um Estado Democrático de Direito, em que o que se pretende é conter o poder punitivo, e não incrementá-lo em face de uma minoria.
A incompatibilidade do Direito Penal do Inimigo com um Estado Democrático de Direito decorrência desde a premissa de que determinados indivíduos não fazem jus ao status de pessoa, tornando-se “não pessoas” ou “inimigos”. Assumir a possibilidade de suprimir ou extinguir direitos e garantias fundamentais desses sujeitos é inadmissível em Estados democráticos.
Além disso, a distinção cidadão versus inimigo rompe com a universalidade dos direitos humanos, segundo a qual todos os indivíduos devem ser considerados formal e materialmente iguais. O Estado de Direito é afrontado no exato momento em que Jakobs teoriza a possibilidade de despersonalização do indivíduo, negando-lhe todos os princípios teoricamente inafastáveis. É intolerável que o inimigo seja classificado como tal e deixe de ser um sujeito de direito para ser um objeto sem garantias penais e processuais.
Para além disso, a seleção de inimigos incrementa o potencial discriminatório do Direito Penal, pois se as agências de criminalização já selecionam naturalmente seus alvos (ZAFFARONI et al., 2017, p. 43), reconhecer formalmente a distinção entre um indivíduo e outro acaba por chancelar a seletividade fundada em preconceitos sociais, raciais, étnicos, de gêneros, etc.
Assim, se não há como conceber a convivência entre um direito penal garantista e outro arbitrário, a proposta de Jakobs implica assumir que o segundo necessariamente vai sobrepor-se sobre o primeiro. Zaffaroni (2014) explica que a teoria, ao propor tal bifurcação, ou seja, a garantia de um Estado de direito aos cidadãos e de um estado de polícia ou de exceção aos “inimigos”, reconhece automaticamente que o estado de exceção acaba por se tornar um estado de permanência contra indivíduos indesejáveis (ZAFFARONI, 2019, p. 152-153).
Por isso, para que seja possível atingir o máximo Estado de Direito, é preciso superar os ranços da ideologia do Direito Penal do Inimigo que ainda assolam o ordenamento e o Sistema de Justiça Criminal brasileiro. A teoria do Direito Penal do Inimigo deve ser absolutamente rechaçada pela cultura jurídica, devendo-se ler o conceito de forma crítica. Como consequência, as normas de direito material e processual com resquícios de Direito Penal do Inimigo devem ser declaradas inválidas, como já proclamava Ferrajoli (2002).
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[1] Advogada Criminalista. Mestranda em Direito Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pesquisadora no Grupo de Estudos em Sistema Penal Redutor. Coordenadora-adjunta do IBCCrim.
[2] Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91038/lei-do-abate. Acesso em 29.06.2023.
[3] Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/o-abuso-das-prisoes-pos-8-de-janeiro/. Acesso em 29.06.2023.