A LIBERDADE DE CÁTEDRA NO ENSINO JURÍDICO BRASILEIRO
30 de dezembro de 2024THE ACADEMIC FREEDOM IN BRAZILIAN LEGAL EDUCATION
Artigo submetido em 19 de dezembro de 2024
Artigo aprovado em 27 de dezembro de 2024
Artigo publicado em 30 de dezembro de 2024
Cognitio Juris Volume 14 – Número 57 – Dezembro de 2024 ISSN 2236-3009 |
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Autor(es): Leandro da Cunha Nakajo[1] |
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RESUMO: O movimento Escola Sem Partido surgiu em 2004, tendo como objetivo principal o combate do uso das escolas e universidades para fins de propaganda ideológica, política e partidária. Esse movimento levantou a discussão sobre a liberdade de cátedra nas instituições de ensino e o papel das instituições de ensino na formação do aluno. Desta forma, o presente trabalho tem por objetivo analisar o papel do docente nas instituições de ensino jurídico, buscando demonstrar que qualquer projeto de lei que tenha por finalidade censurar a liberdade do docente dentro da sala de aula será considerado inconstitucional.
Palavras-chave: Escola Sem Partido. Liberdade de Cátedra. Democracia.
ABSTRACT: The Escola Sem Partido movement emerged in 2004, with the main objective of combating the use of schools and universities for ideological, political and party propaganda purposes. This movement raised the discussion about the freedom of professorship in educational institutions and the role of educational institutions in student training. Therefore, the present work aims to analyze the role of the teacher in legal educational institutions, seeking to demonstrate that any bill that aims to censor the teacher’s freedom within the classroom will be considered unconstitutional.
Keywords: School Without Party. Academic Freedom. Democracy.
INTRODUÇÃO
Nos dias atuais muito tem sido discutido sobre o papel da escola e dos docentes e dos métodos educacionais.
Há uma pressão por parte da sociedade, principalmente depois do surgimento do movimento Escola Sem Partido, sobre como deve ser a postura do professor dentro de uma sala de aula e a metodologia ensinada nas instituições de ensino.
Para o movimento Escola Sem Partido, o docente deve adotar uma postura imparcial dentro da sala de aula, abstendo-se de promover suas convicções políticas, ideológicas, morais e religiosas.
No entanto, será que esse tipo de conduta não estaria violando a liberdade de cátedra garantida pela Constituição Federal de 1988?
Este trabalho tem como objetivo estudar a liberdade de cátedra do docente, analisando a sua importância para a construção da educação e para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.
Neste artigo será abordada as diretrizes constitucionais da educação brasileira, o papel da escola na formação do indivíduo como cidadão, a importância da liberdade de cátedra nas instituições de ensino jurídico e, por fim, a liberdade de cátedra e o Movimento Escola Sem Partido.
Nesse contexto, será feita uma reflexão sobre a manifestação de pensamento dentro das instituições de ensino e sobre a importância da autonomia do professor no âmbito do trabalho pedagógico para a formação dos alunos no desenvolvimento de um pensamento crítico, preparando-os para o exercício da cidadania.
- A EDUCAÇÃO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O Estado de Direito é uma expressão que surgiu na Alemanha, no início do século XIX, e tem como alicerce o princípio da legalidade, onde os indivíduos e o Estado estão submetidos à lei. No Estado de Direito vigora a ideia de que as pessoas podem fazer tudo aquilo que não é proibido em lei, enquanto que o Estado deve fazer somente aquilo que a lei determina.
Ensina Luís Roberto Barroso que,
“Estado de direito identifica um Estado de legalidade, no qual se observam a Constituição e as leis. Característica fundamental desse modelo é a submissão de todos às regras do jogo, governantes e governados, isto é, agentes públicos e cidadãos. Não se admite, assim, quer o arbítrio quer o privilégio. Exige-se, ademais, transparência do Poder Público, devendo as leis ser claras e o seu descumprimento gerar a devida responsabilização. As leis devem ser aplicadas de forma igualitária, com acesso à justiça para todos.”[2]
No entanto, importante ressaltar que o Estado constitucional não deve se limitar apenas a ser um Estado de Direito. O Estado constitucional deve ser um Estado Democrático de Direito.
O Estado Democrático de Direito é uma modalidade de Estado constitucional, centrado na ideia de que a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo, tendo como objetivo promover e assegurar os direitos fundamentais.
Essa ideia de Estado Democrático de Direito é reforçada no artigo 1ª da Constituição Federal Brasileira, ao estabelecer que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.
Ademais, a Constituição Federal afirma que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e, por fim, o pluralismo político.
É importante destacar que em um Estado Democrático de Direito, a cidadania tem um papel fundamental, na medida em que a Constituição Federal vem afirmar que a pessoa, como membro do Estado, se encontra no gozo dos seus direitos para poder participar da vida política do país.
A cidadania traz a ideia da participação do povo na vida e nos problemas do Estado.
A esse respeito, Nina Ranieri aponta que:
“A cidadania é vínculo específico, também de natureza política e jurídica, que qualifica o indivíduo a participar da vida do Estado como detentor do direito de votar e ser votado, além de outros direitos.”[3]
Percebe-se, desse modo, que a cidadania integra a pessoa na vida do Estado, legitimando-o como sujeito político capaz de participar da vida do Estado para conquistar, preservar ou proteger os seus direitos.
Impende destacar que a Constituição Federal objetivou promover e assegurar os direitos fundamentais e concedeu às pessoas a aptidão para o exercício desses direitos.
Como normas de conteúdo declaratório, os direitos fundamentais, previstos no artigo 5º da Constituição Federal, assegurou aos cidadãos, por exemplo, o direito à vida (art. 5º, caput), o direito à liberdade de manifestação de pensamento (art. 5º, IV), o direito à informação (art. 5º, XIV).
Dentre os inúmeros direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, destaca-se o direito à liberdade de expressão, considerando que o Estado, em regra, não poderá interferir na liberdade de manifestação de pensamento.
A liberdade de expressão, consagrada constitucionalmente no art. 5º, IV, assegura que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Além disso, a Constituição Federal prevê no art. 5º, XIV, que é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.
Por fim, a Constituição Federal ainda assegura no seu art. 220 que “a livre manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo” não poderão sofrer qualquer tipo de restrição.
Sobre a liberdade de expressão, Luiz Guilherme Marinoni menciona que:
“Assim como a liberdade de expressão e manifestação do pensamento encontra um dos seus principais fundamentos (e objetivos) na dignidade da pessoa humana, naquilo que diz respeito à autonomia e ao livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo, ela também guarda relação, numa dimensão social e política, com as condições e a garantia da democracia e do pluralismo político, assegurando uma espécie de livre mercado das ideias, assumindo, neste sentido, a qualidade de um direito político e revelando ter também uma dimensão nitidamente transindividual,337 já que a liberdade de expressão e os seus respectivos limites operam essencialmente na esfera das relações de comunicação e da vida social.” [4]
Desta forma, conclui-se que o Estado Democrático de Direito somente é fortalecido com a participação dos cidadãos no debate de ideias que, por meio de efeitos jurídicos, tem o poder de irradiar para toda a coletividade.
Portanto, impor qualquer tipo de restrição ao direito fundamental da liberdade de expressão é cercear o direito do cidadão e enfraquecer o Estado Democrático de Direito.
Feitas essa breve explanação sobre o Estado Democrático de Direito e o direito fundamental da liberdade de expressão, passa-se, então ao capítulo seguinte que tem como escopo debruçar-se sobre o papel da escola na formação da pessoa como cidadã.
- O PAPEL DA ESCOLA NA FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO COMO CIDADÃO
Para abordar o papel da escola da formação do indivíduo, cabe aqui esclarecer que há uma vinculação da cidadania, da educação, do direito, da justiça e da democracia.
Como dito anteriormente, a base da democracia é a cidadania, pois é por meio dela que os cidadãos têm a aptidão para o exercício dos direitos fundamentais.
Cumpre destacar que a escola tem um papel fundamental na formação de um indivíduo, pois ela ajuda a prepara-los para o exercício da cidadania, oportunizando aos alunos terem acesso à instrução, a conviverem com a diversidade de pessoas de diferentes realidades, permitindo a construção e desconstrução de valores e crenças e a vivência de novas experiências.
Desta forma, as instituições de ensino acabam preparando o aluno para o exercício da cidadania em busca da construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, igualitária e democrática, conforme preconiza o art. 3º da Constituição Federal.
Importante destacar, ainda, que, nos termos do art. 205 da Constituição Federal, a educação, considerada como um direito fundamental no âmbito social, é um direito de todos e um dever do Estado e da família, e, “será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Gilmar Mendes registra que:
“Nesse ponto, é interessante ressaltar o papel desempenhado por uma educação de qualidade na completa eficácia dos direitos políticos dos cidadãos, principalmente no que se refere aos instrumentos de participação direta, como o referendo e o plebiscito. Isto porque as falhas na formação intelectual da população inibem sua participação no processo político e impedem o aprofundamento da democracia.”[5]
Percebe-se que a educação tem um papel fundamental na completa eficácia dos direitos políticos do cidadão, fazendo com que haja um fortalecimento do Estado Democrático de Direito. É essa foi a preocupação do legislador constituinte, ao determinar como dever do Estado e da família a consagração do direito à educação, previstos os artigos 205 a 214 do texto constitucional.
Impende destacar que a Constituição Federal, bem como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional asseguram que o ensino nas instituições de ensino será ministrado pautado nos princípios liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber. Ademais, o ordenamento jurídico assegurou que o ensino deverá ser baseado no pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, no respeito à liberdade e apreço à tolerância.
Pois bem. Como bem trouxe o texto constitucional e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, às escolas e instituições de ensino superior são assegurados o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.
Nota-se que às instituições de ensino em geral é assegurada a liberdade de cátedra, uma vez que é um espaço em que se fomenta os debates críticos sobre assuntos que permeiam a sociedade contemporânea.
Além da liberdade de cátedra, a liberdade de ensinar também está pautada na livre escolha dos pais quanto à escolha de certos conteúdos ensinados aos seus filhos, bem como à escolha da instituição de ensino.
Nos ensinamentos de André Ramos Tavares,
“Considere-se, ainda, que, no Brasil, o ensino é expressamente aberto à livre iniciativa privada (art. 209, caput, da CB). Trata-se de um “processo público aberto às mediações de entidades privadas”. Isso significa, pois, que os pais e mesmo os interessados podem escolher não frequentar estabelecimentos públicos de ensino, mas sim privados, dentro da dimensão individual do direito à educação.”[6]
Assim, se por um lado há uma prestação positiva do Estado, que é garantir a todos os cidadãos o direito à educação, assegurando a liberdade de cátedra, por outro lado, é direito dos pais a livre escolha da orientação educacional e ideológica que será ensinada aos seus filhos sem que haja a interferência do Estado.
No entanto, independentemente desse direito de escolha dos pais pela orientação educacional e ideológica que será ensinada aos filhos, é importante destacar que é um ambiente escolar que assegurará a liberdade de pensamento, a liberdade de aprender, de ensinar, de pesquisar, o pluralismo de ideias, fazendo com que os discentes desenvolvam o exercício livre e crítico da cidadania, inserindo-os dentro de um debate legítimo sobre os direitos fundamentais de toda uma coletividade.
Nos ensinamentos de André Ramos Tavares,
“(…) o Estado cumpre e respeita o direito à educação quando deixa de intervir de maneira imperial ditando orientações específicas sobre a educação, como “versões oficiais da História” impostas como únicas admissíveis e verdadeiras, ou com orientações políticas, econômicas ou filosóficas. Também cumpre a referida dimensão deste direito quando admite a pluralidade de conteúdos (não veta determinadas obras ou autores, por questões ideológicas, políticas ou morais).”[7]
Desta forma, a instituição de ensino é o lugar que deverá proporcionar aos docentes e discentes o exercício da liberdade de expressão de pensamento científico, nos termos do art. 5º, IX da Constituição Federal, considerando que a educação, como direito fundamental, tem como atribuição trabalhar na formação do indivíduo para o trabalho, para o exercício da cidadania, para uma formação crítica e científica.
Nesse sentido, a educação se torna libertadora, pois estimula e fomenta os discentes para um debate social e político, abrindo caminhos para que eles possam compreender e dar efetividade para seus direitos.
No entanto, apesar da Constituição Federal garantir uma série de liberdades acima mencionadas, o legislador constituinte teve uma preocupação com a mercantilização do ensino. Para tanto, o texto constitucional prevê, em seu art. 209, que, apesar do ensino ser livre à iniciativa privada, as instituições de ensino, principalmente as de ensino universitário, deverão cumprir as normas gerais da educação nacional e serão fiscalizadas pelo Poder Público.
A esse respeito, destaca Alexandre de Moraes que:
“Em defesa da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF) e ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III, CF)”, bem como em face da “proibição de censura em atividades culturais e liberdade de expressão”, além do “dever estatal na promoção de políticas públicas de combate à desigualdade e à discriminação de minorias”, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional Lei municipal que estabelecia proibição de conteúdo pedagógico, salientando que “ao aderir à imposição do silêncio, da censura e, de modo mais abrangente, do obscurantismo como estratégias discursivas dominantes, de modo a enfraquecer ainda mais a fronteira entre heteronormatividade e homofobia, a Lei municipal impugnada contrariou um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, relacionado à promoção do bem de todos (art. 3º, IV, CF), e, por consequência, o princípio segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput, CF)”, concluindo que o Município, “ao proibir a divulgação de material com referência a ideologia de gênero nas escolas municipais, não cumpre com o dever estatal de promover políticas de inclusão e de igualdade, contribuindo para a manutenção da discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero”.”[8]
Sendo estas as linhas gerais sobre a importância das instituições de ensino na formação de um aluno, passa-se, então, à análise da liberdade de cátedra do docente nas instituições de ensino jurídico do Brasil.
- A IMPORTÂNCIA DA LIBERDADE DE CÁTEDRA NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO JURÍDICO
Como vimos no capítulo anterior, a educação é um direito fundamental, pois é por meio dela que se formam cidadãos capazes de exercer um senso crítico e exigir e fazer valer os seus direitos. E as Instituições de Ensino Jurídico no Brasil têm um papel fundamental na formação e no desenvolvimento destes cidadãos.
Como premissa, tem-se que o ensino superior tem como finalidade estimular um pensamento reflexivo, o desenvolvimento de um espírito científico nos alunos, incentivando-os por meio de trabalho de pesquisa e investigação científica.
Mas nem sempre foi assim. A história recente do Brasil mostrou que entre os anos de 1964 e 1985 o regime militar impôs inúmeras restrições à liberdade de expressão e ao exercício dos direitos fundamentais.
Neste período, a liberdade de pensamento e o espírito da autonomia investigativa foram tolhidos nas instituições de ensino em geral, principalmente nas Universidades, uma vez que havia um receio que nos bancos acadêmicos fossem difundidas ideologias contrárias à ordem constitucional vigente no país.
Segundo Eduardo Bittar,
“Certamente, seria exagerado dizer que a história da pesquisa no Brasil se estagna por completo nessa fase, mas não seria exagerado dizer que se amesquinham as formas de controle sobre o exercício dos saberes. Os vetos ao pensar crítico, as perseguições a estudantes, resistentes e educadores é uma marca tétrica da opressão ao pensamento em nossa história. Não seria muito menos exagerado dizer que se cartorializam e profissionalizam as instituições de ensino com vistas à redução da consciência crítico-reflexiva, em prol de um modelo utilitário de educação que se implanta como meio de manter as massas à distância do poder.”[9]
Neste período, as ciências humanas, dentre elas inclui-se as ciências jurídicas, foram as que mais afetadas pelo regime militar, considerando que diversos professores foram aposentados compulsoriamente, houve um enorme controle ideológico nas instituições de ensino, deixou-se de haver concessão de incentivos às pesquisas consideradas pelo governo como subversivas, havia uma censura de publicações de produções científicas. Nota-se que nos anos de “chumbo” houve um cerceamento da liberdade de pensamento nos cursos de ciências humanas do país.
Essa situação somente começou a melhorar a partir dos anos de 1980, com o processo da redemocratização do país, onde houve a reconstrução do espaço de discussão e dispersão de conhecimento dentro das universidades.
Indiscutivelmente que o ensino superior em direito tem um papel fundamental na consolidação da democracia instaurada na nova ordem jurídica de 1988.
As instituições de ensino jurídico contribuem para estimular o pensamento crítico dos alunos em questões políticas, sociais, econômicas e culturais.
Nota-se que as instituições de ensino jurídico contribuem para a formação de um pensamento crítico essencial para o exercício da cidadania, contribuindo para o desenvolvimento de inúmeros projetos de extensão e pesquisa voltados para a efetivação dos direitos previstos no ordenamento jurídico brasileiro.
No entanto, isso somente é possível em razão da liberdade de cátedra dos docentes, pois eles identificam e fomentam o debate crítico dos problemas sociais existentes na sociedade.
É através da liberdade de cátedra que o docente irá estimular o desenvolvimento do raciocínio jurídico, ou seja, é fundamental para a construção do conhecimento jurídico.
Para tanto, é fundamental que o docente tenha uma postura ativa, dialética e ética, permitindo que a sala de aula seja um espaço onde a liberdade de expressão possa ser exercida na sua plenitude, pois a formação crítica do discente é fundamental para o exercício da cidadania.
Aliado a tudo isso, o docente deve ter a liberdade na metodologia de ensino que será utilizada em sala de aula, bem como na liberdade na escolha dos textos e obras.
No entanto, cumpre fazer aqui uma ressalva que essa liberdade não é plena e irrestrita, pois o conteúdo ministrado em sala de aula deve ser pertinente com a proposta do curso, bem como deve permitir o acesso dos alunos ao pluralismo de ideais em um determinado campo de conhecimento.
É importante deixar claro que a liberdade de cátedra não concede o direito ao docente de fazer uma doutrinação ideológica ou militância política.
Isso não quer dizer que o docente não possa fazer críticas a uma determinada questão, mas deve fundamentá-las, explicar as suas razões e indicar os possíveis caminhos que poderão ser trilhados naquela determinada situação.
Desta forma, não deve o docente proibir determinadas obras, conteúdos ou autores por razões ideológicas, políticas e morais, considerando que a liberdade de ensinar deve ser ampla na sua técnica e no seu conteúdo.
Além disso, o docente deve respeitar o posicionamento dos alunos, ou seja, deve abster-se de fazer um patrulhamento ideológico na sala de aula, pois do contrário restará configurada o desrespeito a autonomia e a dignidade do aluno.
Portanto, deve ser assegurada a liberdade de cátedra do docente, uma vez que a liberdade de ensinar está intrinsecamente relacionada com os direitos fundamentais.
A manifestação de pensamento, a liberdade de expressão, a liberdade científica e a liberdade de comunicação não devem sofrer qualquer tipo de censura, pois o Estado Democrático de Direito somente é fortalecido por meio da educação do exercício da cidadania, da formação humanística e pelo fomento do debate crítico nas instituições de ensino jurídico do país.
- A LIBERDADE DE CÁTEDRA E O MOVIMENTO ESCOLA SEM PARTIDO
O Movimento Escola Sem Partido surgiu em 2004, que tem como programa uma proposta de lei, seja no âmbito federal, estadual e municipal, cujo objetivo principal é o combate do uso das escolas e universidades para fins de propaganda ideológica, política e partidária[10].
Segundo o programa defendido pelo movimento, o docente deverá adotar uma postura imparcial dentro da sala de aula, abstendo-se de promover suas convicções políticas, ideológicas, morais e religiosas.
Influenciado por esse movimento, diversos projetos de lei surgiram no âmbito estadual e municipal na tentativa de instituir uma neutralidade política e ideológica dentro das instituições de ensino, restringindo, desta forma, as liberdades consagradas na Constituição Federal, tais como a liberdade de aprender, de ensinar, de pesquisar, bem como o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, considerados como princípios basilares da educação.
No entanto, essa questão foi apreciada ao Supremo Tribunal Federal, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidades (ADI) nº 5.537, ADI nº 5.580 e ADI 6.038, que analisou a constitucionalidade da Lei Estadual AL nº 7.800/16 que tinha por objeto instituir a instituição do programa Escola Livre no sistema educacional do estado de Alagoas.
Ao apreciar a questão, a Suprema Corte julgou a lei inconstitucional, considerando que a educação deve se inspirar nos princípios da liberdade, tendo como objetivo o pleno desenvolvimento do aluno, preparando-o para o exercício da cidadania.
O Supremo Tribunal Federal ainda destacou que o ensino deve ser ministrado com base no pluralismo de ideias e de concepções ideológicas, no respeito à liberdade de aprender e ensinar e no apreço à tolerância.
Quanto à neutralidade, a Suprema Corte firmou o entendimento de que:
“A imposição da neutralidade – se fosse verdadeiramente possível – impediria a afirmação de diferentes ideias e concepções políticas ou ideológicas sobre um mesmo fenômeno em sala de aula. A exigência de neutralidade política e ideológica implica, ademais, a não tolerância de diferentes visões de mundo, ideologias e perspectivas políticas em sala.”
(BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 5.537. Ministro Relator: Luís Roberto Barroso. Brasília, DF, 21 de agosto de 2020.)
É importante destacar que a neutralidade na educação é incompatível com os princípios constitucionais do pluralismo de ideias e concepções ideológicas, visto que somente há o pluralismo de ideias se houver a diversidade de pensamentos e a troca de saberes.
Ademais, a liberdade de cátedra do docente não pode ser entendida como uma imposição unilateral de ideias e de saberes dentro de uma sala de aula.
A sala de aula deve ser palco de um debate e não de uma narração, sendo que o professor deve fomentar o debate crítico, a troca de saberes, pois a formação crítica é fundamental para a formação do raciocínio, da participação, da reflexão, da crítica, do exercício da cidadania.
Nesse sentido, Paulo Freire ensina que
“Por que não discutir com os alunos a realidade concreta que se deve associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? “Porque”, dirá um educador reaccionariamente pragmático, “a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos.”[11]
Os docentes devem fomentar a discussão no âmbito do ensino, associando a realidade dos alunos aos conteúdos ministrados, trazendo reflexões sobre a realidade do cotidiano para a construção dos saberes.
A comunicação pedagógica se realiza efetivamente no diálogo. O diálogo se faz na diferença e na diversidade. Há que existir, portanto, na prática docente, espaço para a palavra do professor e do aluno, para o exercício da argumentação e da crítica.
Ademais, não podemos nos esquecer que o processo de argumentação e da crítica nas instituições de ensino contribui para a formação do aluno e do professor.
Nesse sentido, Terezinha Azerêdo Rios ensina que
“Se o olhar crítico significa um olhar abrangente, ao voltar-se para o aluno, o professor terá a exigência de ver-se a si mesmo no processo. E de buscar o seu desenvolvimento junto com o do aluno. A prática competente contribuirá para a formação da cidadania não apenas do aluno, mas do próprio professor, uma vez que o que se diz a respeito da pessoa que se deseja formar é exatamente o mesmo que se deve exigir para a pessoa formadora, para o docente.”[12]
Portanto, não devemos admitir que legislações sejam promulgadas com o objetivo de cercear as ideias dos docentes e dos alunos, pois isso seria colocar um obstáculo da liberdade de aprender.
Desta forma, não permitir o debate nas instituições de ensino para propiciar construção da pluralidade das ideias seria interferir no processo de construção de conhecimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enfocamos, neste artigo, que para a consolidação de um Estado Democrático de Direito é necessário o respeito aos direitos fundamentais.
A Constituição Federal de 1988 assegurou uma série de direitos fundamentais aos cidadãos, como, o direito à vida (art. 5º, caput), o direito à liberdade de manifestação de pensamento (art. 5º, IV), o direito à informação (art. 5º, XIV).
E as instituições de ensino tem um papel fundamental no fortalecimento da democracia no nosso país, considerando que a escola oportuniza os alunos o acesso à instrução, a conviverem com pessoas de realidade diferentes, permite a construção e desconstrução de valores e crenças, além de preparar o indivíduo para o exercício da cidadania.
Mas isso somente é possível em razão da liberdade de cátedra nas instituições de ensino por meio da manifestação de pensamento, do pluralismo de ideias que se contrapõe com o diferente, no respeito à liberdade e o apreço à tolerância.
Os docentes devem fomentar em sala de aula debates críticos sobre os assuntos que estão presentes no cotidiano das pessoas relacionando-os com os conteúdos ministrados, trazendo reflexões sobre a realidade da sociedade para a construção dos saberes.
É de suma importância a liberdade de manifestação de pensamento e o pluralismo de ideia dentro do ambiente acadêmico no processo de formação e amadurecimento do aluno e do professor, pois entendimento diverso seria promover o extermínio da democracia.
Pensarmos na possibilidade de qualquer projeto de lei que vise o cerceamento da manifestação de pensamento nas instituições de ensino, seria o mesmo que pensarmos em fecharmos as universidades, silenciar o aluno e amordaçar o professor.
Portanto, as instituições de ensino são espaços onde deve-se garantir a livre manifestação de pensamento e o pluralismo de ideias, tendo como objetivo preparar o aluno para o pleno desenvolvimento, para o exercício da cidadania.
Somente assim teremos um Estado Democrático de Direito cada vez mais fortalecido.
REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS
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BRASIL/MEC. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: 20 de dezembro de 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em 19.06.2024.
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[1] Mestrando em Direito Civil Comparado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: leandronakajo@gmail.com
[2] BARROSO, Luís R. Curso de direito constitucional contemporâneo. São Paulo: SRV Editora LTDA, 2024. E-book. ISBN 9788553621132. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553621132/. Acesso em: 26 jun. 2024. p. 180
[3] RANIERI, Nina. Teoria do Estado: Do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito. São Paulo: Grupo Almedina, 2023. E-book. ISBN 9786556278032. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786556278032/. Acesso em: 23 jun. 2024. p. 158.
[4] SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz G.; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: SRV Editora LTDA, 2024. E-book. ISBN 9788553621163. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553621163/. Acesso em: 23 jun. 2024. p. 232.
[5] BRANCO, Paulo Gustavo G.; MENDES, Gilmar. Curso de direito constitucional. (Série IDP). São Paulo: SRV Editora LTDA, 2024. E-book. ISBN 9786553629417. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553629417/. Acesso em: 23 jun. 2024. p. 369.
[6] TAVARES, Andre R. Curso de direito constitucional. São Paulo: SRV Editora LTDA, 2024. E-book. ISBN 9788553621248. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553621248/. Acesso em: 23 jun. 2024. p. 335.
[7] TAVARES, Andre R. Curso de direito constitucional. São Paulo: SRV Editora LTDA, 2024. E-book. ISBN 9788553621248. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553621248/. Acesso em: 23 jun. 2024. p. 335.
[8] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559774944. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559774944/. Acesso em: 23 jun. 2024. p. 977.
[9] BITTAR, Eduardo. Metodologia da pesquisa jurídica. São Paulo: SRV Editora LTDA, 2024. E-book. ISBN 9788553622320. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553622320/. Acesso em: 24 jun. 2024. p. 58.
[10] https://escolasempartido.org/
[11] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 1ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2021. p. 30.
[12] RIOS, Terezinha A. Compreender e ensinar: por uma docência da melhor qualidade. São Paulo: Cortez, 2021. E-book. ISBN 9786555551419. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555551419/. Acesso em: 26 jun. 2024. p. 125.