A JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE: UM OLHAR SOBRE A CONSTRUÇÃO DO DIREITO INDIVIDUAL, COLETIVO E SUA CONCRETIZAÇÃO NO BRASIL

A JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE: UM OLHAR SOBRE A CONSTRUÇÃO DO DIREITO INDIVIDUAL, COLETIVO E SUA CONCRETIZAÇÃO NO BRASIL

30 de junho de 2024 Off Por Cognitio Juris

THE JUDICIALIZATION OF ACCESS TO HEALTHCARE: A LOOK AT THE CONSTRUCTION OF INDIVIDUAL AND COLLECTIVE RIGHTS AND THEIR ACHIEVEMENT IN BRAZIL

Artigo submetido em 18 de junho de 2024
Artigo aprovado em 26 de junho de 2024
Artigo publicado em 30 de junho de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 55 – Junho de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Marcos Vinícios Souza Silva[1]
Jefferson Franco Silva [2]

RESUMO: O presente trabalho de conclusão de curso aborda a judicialização do acesso à saúde no Brasil, examinando a construção dos direitos individual e coletivo e sua concretização prática. A Constituição Federal de 1988 garante a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, criando um sistema de saúde pública universal e gratuito, o Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, as dificuldades enfrentadas pelo SUS em oferecer acesso integral e eficiente aos serviços de saúde têm levado um número crescente de cidadãos a recorrer ao Poder Judiciário para assegurar seus direitos. O estudo analisa a evolução histórica e legal do direito à saúde no Brasil, destacando os principais marcos legislativos e decisões judiciais que moldaram o cenário atual. Também evidencia os impactos do ativismo judicial na equiparação das garantias fundamentais constitucionais em face à saúde gratuita e de qualidade, discutindo os desafios e as contradições entre as demandas individuais e as necessidades coletivas. A metodologia empregada consiste em uma revisão bibliográfica, analisando literatura acadêmica, legislações, e casos judiciais relevantes. Os resultados mostram que, embora a judicialização tenha proporcionado acesso a tratamentos e medicamentos essenciais para muitos indivíduos, ela também tem gerado conflitos diretos com a regra geral, criando e sobrepondo hipóteses normativas que vão acrescentando novas linhas às normas constitucionais gerais sobre a saúde Conclui-se que é necessário um equilíbrio entre os direitos individuais e coletivos, promovendo políticas públicas mais eficientes e uma maior cooperação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Recomenda-se a implementação de medidas que garantam uma gestão mais racional e equitativa do acesso e integração ao SUS, assegurando que todos os cidadãos possam efetivamente exercer seu direito à saúde, conforme preconizado pela Constituição.

Palavras-chave: Ativismo Judicial, Acesso à Saúde, Judicialização, Direito Coletivo, Direito Individual.

ABSTRACT: This course conclusion work addresses the judicialization of access to health in Brazil, examining the construction of individual and collective rights and their practical implementation. The 1988 Federal Constitution guarantees health as a right for all and a duty of the State, creating a universal and free public health system, the Unified Health System (SUS). However, the difficulties faced by the SUS in offering comprehensive and efficient access to health services have led an increasing number of citizens to turn to the Judiciary to ensure their rights. The study analyzes the historical and legal evolution of the right to health in Brazil, highlighting the main legislative milestones and judicial decisions that shaped the current scenario. It also highlights the impacts of judicial activism in equalizing fundamental constitutional guarantees in the face of free and quality healthcare, discussing the challenges and contradictions between individual demands and collective needs. The methodology used consists of a bibliographical review, analyzing academic literature, legislation, and relevant court cases. The results show that, although judicialization has provided access to essential treatments and medicines for many individuals, it has also generated direct conflicts with the general rule, creating and superimposing normative hypotheses that add new lines to the general constitutional norms on health. It is necessary to strike a balance between individual and collective rights, promoting more efficient public policies and greater cooperation between the Executive, Legislative and Judiciary powers. It is recommended that measures be implemented to guarantee a more rational and equitable management of access and integration into the SUS, ensuring that all citizens can effectively exercise their right to health, as recommended by the Constitution)

KEYWORDS: Judicial Activism, Access to Health, Judicialization, Collective Law, Individual Law.

1 INTRODUÇÃO

Nos anos 1990, as primeiras ações judiciais foram ajuizadas contra a união, estados e municípios visando acessar aspectos específicos do direito à saúde. Este movimento foi iniciado pelo grupo de pessoas com HIV/Aids que buscavam acesso a medicamentos e procedimentos médicos, amparados pela legislação constitucional que estabelece como obrigação do Estado garantir assistência à saúde de maneira individual e coletiva, com observância aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).

Atualmente, a judicialização da saúde é fato amplamente discutido pelos agentes públicos devido à intervenção judicial no âmbito executivo, por diversas razões que permeiam de forma direta à tutela constitucional em face ao direito à saúde, enquanto direito fundamental.

A Constituição Federal de 1988, nos termos de seu artigo 6º, propugna que a saúde como um direito social fundamental, essencial para garantir o direito à vida. Por oportuno, o seu artigo 196 reforça ser a saúde é um direito de todos, bem como dever do Estado, o qual deverá ser assegurado através de políticas públicas sociais e ou econômicas que visam à redução de enfermidades, propiciem acesso universal e de forma igualitária aos instrumentos inerentes aos serviços de saúde para promoção, proteção e recuperação da saúde.

Além disso, é preciso ressaltar o direito à saúde é complemento para adequada proteção dos direitos à vida e à integridade física e corporal. O referido direito ainda está intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1º, inciso III, da carta constitucional.

A judicialização da saúde no Brasil tornou-se um fenômeno significativo, especialmente quando se trata da solicitação de medicamentos e tratamentos não disponibilizados de maneira adequada pelo SUS.

Embora o SUS seja reconhecido por oferecer uma ampla cobertura de serviços de saúde, incluindo tratamentos considerados essenciais e de alto custo, muitos pacientes enfrentam dificuldades para acessar medicamentos específicos, principalmente os de última geração ou de uso contínuo e prolongado.

Por esse motivo a judicialização do acesso à saúde, frequentemente, está ligada à percepção de que os recursos destinados à saúde não são utilizados de maneira eficiente e equitativa. Muitos casos judiciais surgem quando pacientes não conseguem obter acesso aos tratamentos prescritos por médicos, seja devido à falta de estoque dos medicamentos nos hospitais e unidades de saúde, atrasos na entrega de medicamentos especializados, ou restrições orçamentárias que limitam a disponibilidade de certos tratamentos.

Também a judicialização reflete as desigualdades regionais e socioeconômicas no acesso à saúde no Brasil. Enquanto alguns pacientes conseguem garantir seus direitos por meio de decisões judiciais que obrigam o Estado a fornecer os tratamentos necessários, outros enfrentam barreiras burocráticas impeditivas para acesso aos mesmos recursos.

A complexidade do sistema de saúde brasileiro, aliada à diversidade de demandas e necessidades da população, contribui para a judicialização como um mecanismo de busca por justiça social e garantia dos direitos à saúde. Este fenômeno coloca em evidência a necessidade de políticas públicas mais eficazes e transparentes, capazes de assegurar um acesso equitativo e sustentável aos recursos de saúde para todos os brasileiros.

Para isso, explicar-se-á no desenvolvimento desse estudo a ascensão do direito individual à saúde, suas bases e os reflexos no direito coletivo no sistema jurídico brasileiro, a fim de compreender os fatores de intensificação da judicialização da saúde, frente à omissão do estado para com a política pública de saúde.

2 DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O direito à saúde representa um pilar essencial para garantir o bem-estar e a justiça social aos cidadãos brasileiros. É fundamental que os municípios e estados se unam para mitigar os riscos de doenças e infecções. Os artigos de 196 a 198 da Constituição de 1988 são fundamentais nesse contexto, uma vez que:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III – participação da comunidade. (BRASIL, 1988)

Da mesma forma, argumenta-se que o bem-estar e a justiça social devem ser priorizados, ressaltando que a saúde é um direito fundamental de cada cidadão, assim como a segurança, a educação, o trabalho e outros direitos essenciais:

O direito à saúde foi inserido na Constituição Federal de 1988 no título destinado à ordem social, que tem como objetivo o bem-estar e a justiça social. Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988, no seu Art. 6º, estabelece como direitos sociais fundamentais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância (MOURA, 2013).

Assim, a saúde é consagrada como um direito fundamental pela lei, abrangendo tanto a proteção quanto a recuperação. Isso engloba a promoção, prevenção e tratamento da saúde, impondo ao Estado o compromisso de tornar os tratamentos acessíveis à população, visando não apenas a cura das doenças, mas também uma significativa melhoria na qualidade de vida dos cidadãos (MOURA, 2013).

2.1 A CONQUISTA DO DIREITO À SAÚDE INDIVIDUAL E COLETIVO

O direito à saúde está consagrado como um dos direitos fundamentais e sociais dos brasileiros na Constituição Federal de 1988, conforme estipulado no artigo 6º, que impõe ao Estado a obrigação de protegê-lo (BRASIL, 1988).

Este dispositivo constitucional enumera uma série de direitos sociais, dentre os quais podemos destacar educação, alimentação, trabalho, lazer, moradia, saúde, transporte,  segurança, proteção à maternidade e à infância, previdência, além de assistência aos desamparados, fundamentando-se nos princípios fundamentais da Carta Magna (BRASIL, 1988).

Adicionalmente, o artigo 196 da Constituição Federal preconiza ser a saúde um direito de todos e também dever do Estado, sendo garantida por meio de políticas públicas de cunho sociais e econômicas em prol da redução do risco de enfermidades e outros agravos à saúde, inclusive assegurando o acesso universal e igualitário aos meios disponibilizados para proteção, promoção e recuperação da saúde da população (BRASIL, 1998).

Diante dessa lacuna, os cidadãos frequentemente recorrem ao judiciário, individual ou coletivamente, buscando assegurar a implementação desse preceito constitucional pelo Estado.

Torna-se imperioso ponderar que a inclusão do direito à saúde na Constituição não encerrou sua trajetória, porquanto, embora os avanços até então alcançados tenham sido significativos, ainda não são suficientes para universalizar esse direito, haja vista que, enquanto persistirem desigualdades sociais, injustiças e problemas epidemiológicos, o direito à saúde continua em processo de desenvolvimento (OLIVEIRA et al., 2015).

Apesar da garantia constitucional de acesso à justiça para proteção de direitos lesados, a intervenção do judiciário pode impactar decisões políticas coletivas, muitas vezes sem a estrutura adequada para lidar com a complexidade e o ritmo do sistema político. Esse fato originado no setor da saúde, inclusive com certa evidência atualmente, tem sido denominado de judicialização da saúde (OLIVEIRA et al., 2015).

Portanto, o conceito de judicialização da saúde refere-se à crescente influência do poder judiciário em áreas tradicionalmente atribuídas ao executivo e legislativo, como a formulação de políticas públicas. Tal fato tem sido adotado como estratégia por indivíduos e grupos para garantir seus direitos, seja por meio de ações individuais ou coletivas perante o Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública (OLIVEIRA et al., 2015).

Inicialmente observado nos anos 1990, quando o acesso a medicamentos como os antirretrovirais era o principal motivo de litígios judiciais, a judicialização da saúde levou o poder público a implementar políticas de distribuição gratuita de medicamentos como resposta à demanda crescente (BRITO, 2011; OLIVEIRA et al., 2015).

Essa dinâmica demonstra como o judiciário tem se tornado um importante fórum para a efetivação de direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que gera desafios para a harmonia entre os poderes e para a própria capacidade de implementação de políticas públicas no Brasil.

2.1.1 Princípios basilares

Os princípios são elementos norteadores, ou, em outros termos, o ponto inicial de análise das diversas situações afetas ao mundo jurídico. Doutrinadores os denominam como mandamentos de definição auxiliadores na aplicação de regras jurídicas, otimizandos os limites de possibilidade para a regular efetividade do direito material (KUCHENBECKER, 2023).

Conquanto sejam normas basilares, constituem o fundamento do ordenamento jurídico, bem como permitem uma gama de aplicabilidade com distintos graus para escorreita adequação às circunstâncias fáticas e de direito envolvidas (KUCHENBECKER, 2023).

2.1.1.1 Princípio da reserva do possível

A teoria da reserva do possível teve origem na Alemanha a partir de um caso decidido pelo Tribunal Constitucional alemão em que indeferiu o pleito de alguns candidatos em cursar Medicina em razão de limitação de vagas (KUCHENBECKER, 2023).

Embora houvesse legislação federal alemã resguardando o direito de escolha de formação profissional, a Corte Constitucional compreendeu que atender o pleito promoveria assimetria na destinação de recursos públicos ao beneficiar um pequeno grupo em detrimento de parte maior da coletividade (KUCHENBECKER, 2023).

Assim, a justiça alemã utilizou-se da teoria da reserva do possível para negar o pedido, bem como asseverou pela necessidade de se destinar recursos orçamentários para políticas públicas que contemplassem maior número de cidadãos (KUCHENBECKER, 2023).

Esse princípio se refere às limitações práticas que o Estado enfrenta em termos de suas capacidades econômicas e financeiras, direcionando a interpretação dos direitos conforme a viabilidade real de sua implementação (KUCHENBECKER, 2023).

A existência de um direito não garante automaticamente a concessão de pleito respectivo, porquanto o Estado opera dentro de restrições orçamentárias. Dessa forma, o dever estatal de fornecer determinados serviços pode ser inviabilizado pela situação econômica enfrentada (KUCHENBECKER, 2023).

Flavio Martins discorre sobre o tema, afirmando que todos os direitos têm um custo, mas os direitos sociais, que requerem políticas públicas contínuas, têm um impacto orçamentário mais imediatista e acentuado. Em razão disso, surgiu a tese da “reserva do possível”, que se refere aos limites inerentes a fatos, arcabouço jurídico e reservas orçamentárias que impedem a execução imediata dos direitos sociais (apud KUCHENBECKER, 2023).

2.1.1.1 Princípio da igualdade

O princípio da igualdade foi inserto no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o que preconiza a isonomia de todos diante da lei, inclusive com ênfase ao vedar a criação de diferenças de quaisquer aspectos, garantindo não só aos brasileiros, mas também aos estrangeiros que estejam dentro no território brasileiro a inviolabilidade do direito à saúde (BRASIL, 1988; KUCHENBECKER, 2023).

Este princípio nos leva a considerar também o princípio da equidade, que visa proporcionar a todos iguais oportunidades de acesso. Atualmente, devido à crescente judicialização na área da saúde, observa-se que nem todos têm acesso às mesmas oportunidades, especialmente quando se trata de tratamentos fora da lista do SUS, tratamentos experimentais ou de alto custo. A via judicial tende a ser utilizada por aqueles com mais recursos e conhecimento, exacerbando as desigualdades existentes (KUCHENBECKER, 2023).

Mesmo quando concedido judicialmente, o direito à saúde não garante sua efetiva realização, especialmente para a população carente que muitas vezes não tem conhecimento ou capacidade de buscar seus direitos. Além disso, as decisões judiciais podem impactar os investimentos na saúde pública, desviando recursos de outras áreas essenciais (KUCHENBECKER, 2023).

Ainda nessa vertente, convém ressaltar que o gasto de recursos públicos para custeio de tratamentos caros tem sido visto com certa preocupação no Brasil, uma vez que pode promover conflitos entre o poder judiciário e os poderes políticos, especialmente no contexto dos direitos individuais versus os direitos sociais (TORRES, 2008, p. 223).

A tese de repercussão geral 579, fixada no RE 581488, ilustra as disparidades no acesso ao sistema judiciário em questões de saúde, como evidenciado na melhoria das condições de internação pelo SUS mediante pagamento adicional. Casos como este dificilmente são iniciados por pacientes sem recursos ou sem conhecimento das possibilidades legais (KUCHENBECKER, 2023).

Com a decisão, o Supremo Tribunal Federal (STF) reiterou a constitucionalidade da regra que proíbe internações em acomodações superiores no âmbito do SUS, a menos que o paciente arque com as diferenças de custo, pois isso visa garantir um sistema de saúde público que seja universal e igualitário para todos os cidadãos, conforme o artigo 196 da Constituição Federal de 1988, mormente pelo fato de que um sistema de saúde pública igualitário não pode permitir diferentes níveis de atendimento com base na capacidade econômica do paciente (KUCHENBECKER, 2023).

2.1.1.1 Princípio do mínimo existencial

O princípio do Mínimo Existencial, diferentemente de outros princípios constitucionais, não está explicitamente previsto na Constituição brasileira, em virtude disso, sua fundamentação deve ser buscada na conjunção das ideias referentes aos princípios da igualdade, de liberdade, da livre iniciativa, bem como no devido processo legal (TORRES, 2008, p. 357; KUCHENBECKER, 2023).

 Esse princípio abrange tanto a atuação negativa do Estado, que se abstém de interferir nas liberdades individuais, quanto à atuação positiva, na qual o Estado deve prover prestações essenciais das quais não pode se omitir (KUCHENBECKER, 2023).

Ainda, torna-se premente ponderar, em prol de evitar confusão conceitual, que o princípio em comento é distinto daquele denominado de mínimo vital, pois este está atrelado apenas ao direito à vida física, enquanto que aquele – mínimo existencial – abarca todas as prestações materiais necessárias para garantir vida digna e saudável (KUCHENBECKER, 2023).

A efetivação do mínimo existencial pelo Estado deve estar alinhada com os direitos sociais descritos na Constituição, respeitando as limitações orçamentárias e jurídicas, à luz do princípio da reserva do possível (KUCHENBECKER, 2023).

Ricardo Lobo Torres destaca a complexidade na relação entre os mínimos sociais, que abrangem liberdades e direitos fundamentais, e o máximo social, relacionado à justiça e aos direitos sociais. É crucial ponderar esses princípios para alcançar um equilíbrio justo e razoável entre a reserva do possível e a proteção do mínimo existencial, garantindo assim que direitos fundamentais como o direito à saúde sejam efetivamente respeitados e realizados (2008, p. 412).

Portanto, o Mínimo Existencial não deve ser reduzido a concessões mínimas que o Estado pode oferecer devido a suas limitações financeiras, nem ser uma promessa vazia de maximização de direitos que não são viáveis na prática (KUCHENBECKER, 2023).

3 A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL: PODER JUDICIÁRIO E A EFETIVIDADE DO DIREITO INDIVIDUAIS E COLETIVOS

A Judicialização em si propõe vários aspectos positivos e vários negativos, tanto para os direitos sociais quanto aos direitos individuais, em justificativa a isso, Neto (2015) explica que “A judicialização em si não é boa nem ruim. Pode ser vista como problema, envolve manipulação e disputa entre poderes, mas apresenta também muitos benefícios, grandes e pequenos”.

Não obstante, é uma realidade generalizada em todo o Brasil, envolvendo milhões de casos e recursos financeiros significativos anualmente. É fundamental reconhecer que:

Entre 2003 e 2009, o Ministério da Saúde respondeu a 5.323 processos judiciais com solicitações de medicamentos, o que representou um gasto de 159,03 milhões de reais. Os 5.323 processos de ações judiciais com solicitações de remédios se referem a 1.151 medicamentos – do total são 1.116 fabricados no país e 35 importados. Em 2009, o Ministério da Saúde investiu 83,16 milhões na compra desses medicamentos– 78,4% desse valor foi para aquisição dos 35 remédios importados (VITALI, 2014).

A situação reflete uma realidade complexa, onde a sociedade demanda uma ampla variedade de medicamentos, desde tratamentos acessíveis até casos crônicos e graves de difícil acesso, além das disputas políticas de diversas naturezas, há um subproduto gerado por todo este ativismo judicial em prol do direito à saúde individual e coletivo. Neste sentido Luciana Silva (2024) acentua que embora o estado possa proporcionar os medicamentos e tratamentos negados pelo SUS, há uma certa sobrecarga do sistema judicial que por consequência desorganiza a gestão recursos que poderiam ser investidos em melhorias estruturais no próprio SUS.

Em 2016, os gastos com ações judiciais em saúde no Brasil totalizaram R$ 1,6 bilhão, conforme relatado pelo portal da câmara dos deputados. Esse montante alarmante destaca uma tendência preocupante de aumento em comparação com anos anteriores. Tal cenário revela uma falha crítica do Estado em assegurar um acesso universal e equitativo à saúde, forçando os cidadãos a recorrerem ao sistema judicial para garantir seus direitos (SOARES, 2017).

Os dados demonstrados ilustram a distribuição desses gastos por diferentes entidades em 2016:

SUS: O Sistema Único de Saúde absorveu a maior fatia dos gastos, totalizando R$ 1,1 bilhão, o que equivale a 70% do total. Este dado alarmante sublinha a urgente necessidade de fortalecer o SUS para que ele possa efetivamente atender às demandas de saúde da população.

Estados e Municípios: As administrações estaduais e municipais despenderam cerca de R$ 300 milhões em ações judiciais relacionadas à saúde no mesmo ano, correspondendo a 19% do total. Isso reflete a responsabilidade compartilhada na promoção do direito à saúde e a importância de fortalecer os sistemas públicos de saúde em todos os níveis.

Planos de Saúde: Por sua vez, os planos de saúde responderam por R$ 200 milhões dos gastos em 2016, representando 11% do total. Esse valor evidencia práticas questionáveis de negação de cobertura e glosa de procedimentos, o que leva os consumidores a buscar reparação na esfera judicial (SOARES, 2017).

Esses números sublinham a complexidade e os desafios enfrentados pelo sistema de saúde brasileiro, exigindo medidas eficazes para mitigar os efeitos da judicialização e fortalecer os mecanismos de acesso à saúde de forma justa e equitativa para todos os cidadãos (SOARES, 2017).

Quando saímos do âmbito administrativo inerente a própria gestão do SUS, observa-se que decisões sobre o acesso aos medicamentos e cirurgias eletivas geralmente é dada pelos magistrados, havendo considerável variação entre juízes, o que faz com que seja amplamente debatido o direito coletivo e individual em face a saúde. Fato que conduz a alguns estudiosos a considerar o Judiciário como espécie de voz de certos grupos minoritários privilegiados em detrimento da tutela de outros grupos marginalizados ao, por meio de uma decisão, impor ao poder público a adquisição de medicamentos não regulamentados (MACHADO, 2010).

É crucial que essas decisões sejam embasadas em critérios consistentes, levando em consideração o histórico médico individual de cada paciente. Nesse formato se faz necessário verificar e compreender a limitação do corpo jurídico frente ao teor técnico de uma judicialização de acesso a medicamentos e cirurgias eletivas (MACHADO, 2010).

Uma vez que,para alguns juízes, a condição necessária e suficiente para a comprovação da efetiva necessidade da assistência requerida em juízo é, simplesmente, a juntada aos autos dos laudos comprobatórios da patologia e da prescrição médica, independentemente se oriunda de profissional do SUS, se houve falha terapêutica com as drogas, insumos, órteses e próteses já catalogados na rede pública e se existe alternativa de menor impacto financeiro (NAVES, 2018).

Embora seja frustrante depender da assistência pública e não obtê-la quando necessária, é preciso reconhecer que recursos limitados impõem restrições à capacidade do Estado de atender todas as demandas. Nessa perspectiva, a capacitação adicional de juízes por meio de instituições acadêmicas e de pesquisa, como universidades e centros especializados, permitiria decisões com fundamentação mais precisa quanto aos aspectos técnicos afetos à saúde (FERNANDES, 2015).

A judicialização da saúde se configura como um tema complexo e multifacetado no contexto brasileiro. Diante da falha do Estado em garantir o acesso universal e de qualidade aos serviços de saúde, conforme previsto no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, o Judiciário assume um papel crucial na efetivação desse direito fundamental.

Nessa ótica, ressalta-se que a esmagadora maioria dos juízes brasileiros entende que a promessa constitucional do direito à saúde não pode ser mera formalidade. Assim, caso um cidadão não consiga o tratamento médico ou medicamento necessário por meio da esfera administrativa, cabe ao Judiciário determinar o fornecimento através de medidas como mandados de segurança e tutelas de urgência (BEZERRA, 2019).

Contudo, discutir o processo de judicialização da saúde implica necessariamente, e também, em analisar a relação que o Estado mantém com a sociedade civil, sobretudo no que concerne ao respeito aos direitos humanos e políticos e sociais, preponderantemente para aferir o grau de atual do Poder Judiciário. Tal grau de interação entre Estado e sociedade, por meio da atividade jurisdicional, tem sido denominado de ativismo judicial, o qual tem colocado em destaque o papel do Judiciário em questões que envolvem políticas públicas e processos decisórios políticos, tradicionalmente atribuídos aos Poderes Legislativo e Executivo (BEZERRA, 2019).

A noção de ativismo do judiciário se verifica principalmente quando analisado os julgamentos das Supremas Cortes do País, em que se verifica nas decisões judiciais muitas vezes a exigência de implementações de medidas que satisfaçam os direitos constitucionais, todavia o aludido fenômeno da judicialização da saúde atualmente tem expressivo impacto no ordenamento jurídico brasileiro, porquanto transcende a esfera individual e alcança o sistema de saúde como um todo, a sociedade e o próprio Estado (BEZERRA, 2019).

A judicialização envolve uma série de parâmetros legais que abrangem desde a intervenção dos gestores públicos, defensores, juízes e promotores, até a eficácia questionável e os riscos desconhecidos. O que geralmente ocorre é uma busca intensa, preocupante e muitas vezes desanimadora por parte daqueles que realmente necessitam, dessa forma:

O julgamento, simbolizado pela balança, exige que se conheça o conteúdo do outro prato, ou seja, quem ganha e quem perde, quem de fato dá e quem recebe. Ou, na seara dos interesses coletivos, a visão ampliada dos benefícios e dos prejuízos distribuídos. São duas visões distintas: a da justiça comutativa e a da justiça distributiva. Na primeira, própria dos conflitos bipolares, entre indivíduos, a vitória de uma das partes resulta na derrota da outra. Se alguém ganha, o outro tem de perder (NETO, 2015, p. 50).

Consequentemente, de acordo com Neto (2015, p. 50), é forçoso reconhecer os muitos benefícios da judicialização da saúde. Em primeiro lugar, a própria afirmação da saúde como direito e o reconhecimento de pretensões individuais a prestações positivas do Estado em um momento de declínio do denominado Estado de bem-estar social.

Nesta abordagem, cabe ao estado rever seus conceitos e parâmetros para que o direito individual e coletivo andem juntos, no sentido de que o sistema nacional de saúde ampare todos com qualidade, mesmo ciente das dimensões continentais do nosso país, assim:

O grande desafio é pensar na judicialização da saúde como estratégia legítima, porém a ser orquestrada com outros mecanismos de garantia constitucional de saúde para todos. As demandas judiciais não podem ser consideradas como principal instrumento deliberativo, pois, de fato, para o alcance da justiça, deve ser adotado um conjunto de ações por meio das quais se busque implementar as diretrizes constitucionais (VENTURA et al, 2010).

Em síntese, a judicialização da saúde é tão complexa que as soluções devem respeitar não somente o devido processo legal e os princípios cabíveis ao direito, mas também todas as situações no que pese a individualidade de cada cidadão que busca através da saúde o seu mínimo existencial. Desta forma, é necessário aprofundar o debate da perspectiva teórica, colocando-o em pauta nos espaços de participação social da política de saúde, com o intuito de proporcionar o diálogo entre os diversos atores sociais envolvidos nessa temática e buscar formas de assegurar uma nova cidadania política (OLIVEIRA, 2015).

4 LIMITES ORÇAMENTÁRIOS PARA EFETIVIDADE DO DIREITO À SAÚDE

O Estado tem a responsabilidade de garantir o atendimento às necessidades básicas da população, como saúde, educação, habitação e saneamento, especialmente em países periféricos como o Brasil, onde a desigualdade social é acentuada. Gerindo os recursos arrecadados, o Estado busca atender às demandas sociais fundamentais, implementando direitos sociais por meio de benefícios materiais (ALVES BRANDÃO, 2021).

No entanto, é comum o argumento de escassez de recursos, o que leva o Estado a priorizar setores específicos e a realizar escolhas que podem prejudicar a realização plena de todos os direitos (ALVES BRANDÃO, 2021).

Nesse contexto, verifica-se que a concretização dos direitos sociais no país mantém relação com o sistema econômico, o qual, por muitas vezes, dificulta a execução condizente de políticas públicas sociais, uma vez que os recursos arrecadados, mediante orçamento público, são distribuídos pelos governando que determinam as prioridades da respectiva alocação de gastos, cujas restrições de cunho orçamentário impostas sob o argumento da “reserva do possível” são cada vez mais relevantes na realização de políticas sociais, primordialmente em sede da temática da saúde pública (ALVES BRANDÃO, 2021).

Tal concepção é fortalecida pela própria noção conceitual da denominada reserva do possível, a qual enfatiza que a disponibilidade de recursos financeiros a ser destinado para a concretização dos direitos sociais está sujeita ao campo da discricionariedade das decisões políticas, a serem organizadas por meio de instrumentos legislativos do orçamento público (ALVES BRANDÃO, 2021).

Em termos gerais, o conceito de “reserva do possível” aborda a limitação dos recursos disponíveis diante das múltiplas necessidades a serem atendidas, refletindo a capacidade econômica restrita para satisfazê-las. No contexto brasileiro, essa teoria representa um desafio significativo na efetivação dos direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988, exacerbado pela falta de planejamento adequado do orçamento público (ALVES BRANDÃO, 2021).

A teoria busca equilibrar a realização dos direitos sociais com a viabilidade econômica, promovendo a máxima concretização das prestações de forma sustentável, sem menoscabar as disponibilidades financeiras orçamentárias, porquanto, para que as políticas públicas de saúde sejam verdadeiramente universais e abrangentes, é essencial contar com condições financeiras favoráveis e uma gestão transparente e bem estruturada do financiamento (ALVES BRANDÃO, 2021).

No entanto, é fundamental que o Estado não use a reserva do possível como um argumento constante para se eximir de suas obrigações constitucionais, haja vista que a preservação da vida deve ser prioritária, mesmo que isso implique em ajustes orçamentários ou comprometimento de outras áreas (ALVES BRANDÃO, 2021).

Portanto, é necessário evitar que a alegação de impossibilidade financeira seja um obstáculo recorrente para a melhoria da realidade brasileira. A administração pública deve tomar decisões de maneira transparente, demonstrando claramente quando os recursos financeiros não são suficientes para a realização de certos direitos sociais (ALVES BRANDÃO, 2021).

5 CONCLUSÃO

A questão da judicialização da saúde é e sempre será um assunto atual, uma vez que boa parte dos brasileiros precisam recorrer ao sistema judicial para obter medicamentos necessários ou cirurgias eletivas, mesmo sendo este direito amplamente garantido. É fato reconhecido a deficiência do sistema de saúde no Brasil, seja em seu viés administrativo, orçamentário e burocrático que muitas vezes resulta na necessidade direta da busca pelo o direito à saúde por meio de decisões judiciais.

Embora a lei por natureza jurídica garanta diversos benefícios, a realidade é frequentemente diferente, apesar de o Poder Público disponibilizar medicamentos e procedimentos essenciais à população brasileira pelo Sistema Único de Saúde (SUS), conforme listagem da RENAME elaborada pelo Ministério da Saúde, nem todas as necessidades individuais são atendidas. É comum que nos tribunais haja pedidos frequentes para o fornecimento de medicamentos e procedimentos que não estão incluídos na cobertura do SUS, fenômeno conhecido como judicialização da saúde.

Assim, este estudo enfatizou a necessidade de garantir, diante da crescente demanda social por serviços de saúde, o pleno direito à saúde e a distribuição equitativa dos recursos limitados pelo Estado. Além disso, a judicialização da saúde, como é praticada atualmente, complica o cenário das políticas públicas de saúde, pois os recursos destinados para cumprir os acórdãos judiciais afetam diretamente o orçamento público destinado à saúde de toda a população. Quando um juiz decide favoravelmente em um caso específico para garantir o direito à saúde de um indivíduo, pode inadvertidamente comprometer a eficácia do direito coletivo à saúde, que é a verdadeira alma da política pública visada.

Por fim, concluímos que persistir na busca pela efetivação dos direitos sociais, como o direito à saúde, exclusivamente através do Judiciário, não levará à plena efetividade desses direitos. Como mencionado anteriormente, no máximo são resolvidos casos individuais, em detrimento dos direitos sociais da maioria. É crucial avançarmos nos parâmetros judiciais, nas novas legislações, nas políticas públicas e nos mecanismos de acesso à justiça, de modo que as decisões judiciais, parlamentares ou políticas considerem tanto os direitos individuais quanto os coletivos no contexto do direito à saúde em nosso país.

REFERÊNCIAS

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[1]  Graduando do Curso de Direito da Faculdade Serra do Carmo – FASEC/TO. Email: vcsouza805@gmail.com.

[2] Bacharel em Direito pela UFT/TO e Especialista em Direito Processual Civil pela FIJ/RJ. Professor de Direito Processual Civil e Direito Tributário da Faculdade Serra do Carmo – FASEC/TO. Email: jefferson.franco.silva@gmail.com.