A GUINADA LINGUÍSTICO-PRAGMÁTICA E A ÉTICA DO DISCURSO EM HABERMAS

A GUINADA LINGUÍSTICO-PRAGMÁTICA E A ÉTICA DO DISCURSO EM HABERMAS

1 de fevereiro de 2022 Off Por Cognitio Juris

THE LINGUISTIC-PRAGMATIC TURN AND THE ETHICS OF DISCOURSE IN HABERMAS

Cognitio Juris
Ano XII – Número 38 – Edição Especial – Fevereiro de 2022
ISSN 2236-3009
Autor:
João Marcelo Barbosa Ribeiro Dantas[1]

RESUMO: A sociedade contemporânea é marcada por grande diversidade cultural e axiológica. A ética do discurso de Jürgen Habermas pretende apresentar-se como uma teoria moral plausível e apta a responder aos desafios dessa sociedade. O desenvolvimento dessa teoria só foi possível em virtude da profunda e ampla mudança, ocorrida no pensamento contemporâneo, no âmbito da Filosofia e da Ciências Humanas e Sociais, do final do século XIX e ao longo do século XX. Essa mudança consistiu na guinada linguístico-pragmática ou na transição do paradigma da consciência para o da linguagem. Este artigo examina algumas das principais contribuições teóricas dessa guinada, bem como os argumentos habermasianos de fundamentação de sua ética do discurso, sendo este o foco temático deste trabalho. O problema de pesquisa que buscou-se responder foi se a teoria moral habermasiana encontra fundamentação plausível e aptidão para responder, por meio do diálogo racional, a alguns dos principais e complexos problemas éticos, presentes no mundo atual. Adotou-se uma pesquisa bibliográfica e comparativa, percorrendo algumas das principais concepções de pensadores contemporâneos, em especial de Habermas. Conclui-se que a ética do discurso habermasiana se revela um dos esforços teóricos mais promissores para compreender e contribuir para discursos práticos racionais, conducentes a uma sociedade plural e democrática.

Palavras-chave:transição, linguagem, pragmática, ética, discurso

ABSTRACT: Contemporary society is marked by great cultural and axiological diversity. The ethics of Jürgen Habermas’ discourse intends to present itself as a plausible moral theory and able to respond to the challenges of this society. The development of this theory was only possible due to the deep and wide change that occurred in contemporary thought, within the scope of Philosophy and Human and Social Sciences, from the end of the 19th century and throughout the 20th century. This change consisted of the linguistic-pragmatic shift or the transition from the paradigm of consciousness to that of language. This article examines some of the main theoretical contributions of this turn, as well as the Habermasian arguments for the foundation of his discourse ethics, this being the thematic focus of this work. The research problem we sought to answer was whether Habermasian moral theory finds plausible grounds and the ability to respond, through rational dialogue, to some of the main and complex ethical problems present in the world today. Bibliographic and comparative research was adopted, covering some of the main conceptions of contemporary thinkers, especially Habermas. We conclude that the Habermasian discourse ethics proves to be one of the most promising theoretical efforts to understand and contribute to rational practical discourses, leading to a plural and democratic society.

Keywords: transition, language, pragmatics, ethics, discourse

1 INTRODUÇÃO

Grande transição ocorreu no pensamento contemporâneo no âmbito da Filosofia e das Ciências Humanas e Sociais, incluindo, nesse contexto, o Direito, no decorrer do final do século XIX e ao longo do século XX. Essa passagem consistiu na mudança do paradigma do sujeito para o paradigma intersubjetivo, ou ainda, do paradigma da consciência para o paradigma da linguagem. A reflexão filosófica e científica passa, nesse período histórico, a reconhecer que a linguagem não é mera expressão exterior do pensamento, mas o que o constitui. Essa linguagem, por sua vez, é produto social e cultural, resultante das relações intersubjetivas. A clássica relação do sujeito cognoscente com o objeto a ser conhecido, relação especialmente investigada no âmbito do paradigma da consciência, passa a ser examinada como uma relação que requer a compreensão da linguagem, que se situa, portanto, na relação intersubjetiva.

A guinada linguística, que inicialmente, assume a forma semântica e, sem seguida, pragmática, representará o reconhecimento da centralidade da linguagem e dessa relação intersubjetiva, inclusive para compreender a relação do sujeito com o objeto.

Em decorrência da guinada linguístico-pragmática do pensamento contemporâneo e sob influência de Karl Otto-Apel, Jürgen Habermas desenvolve a sua ética do discurso, que pode ser considerada um dos esforços teóricos mais promissores para apresentar uma teoria moral universalista e secular na sociedade hodierna, marcada por uma rica diversidade cultural e amplo pluralismo axiológico.

Neste artigo, mediante o emprego de pesquisa bibliográfica e comparativa, analisou-se, primeiramente, a referida guinada, desde Humboldt até Apel. Num segundo momento, examinou-se a ética do discurso habermasiana, cujas fontes teóricas foram colhidas em pensadores que se destacarão na transição rumo ao paradigma da linguagem. Essa teoria moral de Habermas será aplicada no âmbito de sua teoria jurídica e política, numa perspectiva de defesa da democracia radical e deliberativa. O presente artigo limitou-se, porém, à breve análise da guinada linguístico-pragmática e da ética do discurso habermasiana.

2 A GUINADA LINGUÍSTICO-PRAGMÁTICA NO PENSAMENTO CONTEMPORÊNEO

2.1 A CONTRIBUIÇÃO DE HUMBOLT PARA A GUINADA LINGUÍSTICA

Habermas sustenta, porém, que, apenas com a guinada linguística, cujas origens remontam a Humboldt, a Frege, Russell, Wittgenstein, entre outros filósofos analíticos, inicialmente, por meio da semântica, e depois, da pragmática, em especial Wittgenstein tardio, Austin e John Searle. Com esses autores, uma nova concepção da linguagem é apresentada, já não se revelando, meramente, uma exteriorização linguística do pensamento do sujeito cognoscente, mas, sobretudo, o meio constitutivo do próprio pensamento e do mundo social da vida. Com essa guinada linguística, promove-se a passagem do paradigma da filosofia do sujeito ou da consciência para o paradigma da intersubjetividade ou da linguagem, no qual um novo conceito de razão ou racionalidade irá surgir, decorrente do agir comunicativo. Nesses termos, afirma Habermas:

As linguagens naturais não se limitam a abrir os horizontes de um único mundo específico, no qual os indivíduos socializados se encontram previamente: elas constrangem também os sujeitos a realizações próprias, isto é, inerentes a uma prática intramundana que se orienta por pretensões de validez e que submete o sentido, que abre previamente o mundo, a um teste continuado. Entre o mundo da vida como ressource do agir comunicativo e o mundo da vida como produto desse agir introduz-se um processo circular, no qual o sujeito transcendental desaparecido não deixa nenhuma fresta. A guinada linguística havida na filosofia preparou os meios conceituais através dos quais é possível analisar a razão incorporada no agir comunicativo. (HABERMAS, 1990, p.53)

Em  Wilhelm Von Humboldt, já há a superação da tradicional e limitada concepção da linguagem como mero meio de exteriorização linguística do pensamento para se tornar elemento  constitutivo do pensamento e do conhecimento, sendo, na linguagem kantiana, condição de possibilidade tanto da objetividade da do mundo dos fatos, quanto da intersubjetividade do mundo social das normas comunicativamente estabelecidas. Haja vista que a linguagem se revela em línguas naturais e natais específicas, em contextos históricos e culturais particulares, não podendo, assim, haver uma clara distinção entre o entre o transcendental e o empírico, entre o a priori e o a posteriori, com o que a razão se destranscendentaliza. (HABERMAS, 2000, p. 196-197)

Para Humboldt, a não é, portanto, possível pensar uma razão, ignorando sua constituição linguística e, portanto, suas raízes históricas e culturais, que constituem a perspectiva do mundo individual e social. Tampouco, afirma o linguista, é possível pensar a linguagem como um produto, não como um processo em contínua atividade. Essa dimensão ativa da linguagem remete ao seu caráter comunicativo. Se, por um lado, a linguagem possibilita uma visão do mundo, por outro, ela permite a realização de práticas comunicativas, que buscam o entendimento mútuo.

Lafont destaca, assim, a dimensão semântica e pragmática da linguagem para Humboldt:

A mudança de paradigma levada a cabo por Humboldt ocorre em duas dimensões diferentes. Em sua dimensão cognitivo-semântica, essa mudança consiste em encarar a linguagem não como um mero sistema de signos, não como algo objetificável (intramundanamente), mas como algo constitutivo da atividade de pensar, como a própria condição de possibilidade dessa atividade. A linguagem é, então, elevada a um estatuto quasi-trascendental, que reivindica contra a subjetividade a autoria das operações constitutivas da visão de mundo do sujeito […] Em sua dimensão comunicativo-pragmática, a mudança consiste em ver esse caráter constitutivo da linguagem como o resultado de um processo ou atividade: especificamente, a atividade de falar. Nesse sentido, a linguagem se torna a garantia da intersubjetividade da comunicação, a condição de possibilidade do entendimento entre falantes. (LAFONT, 1999, p. 18)

Humboldt atribuía igual importância a ambas as dimensões e defende a necessidade de compreender as funções da linguagem, presentes nessas dimensões. Afirma, assim, que a linguagem apresenta três funções: 1) a cognitiva, pela qual pensamentos são formados e expressos; 2) a expressiva, pela qual emoções e sensações são expostas e a 3) comunicativa, com a qual enunciados são proferidos com vistas ao entendimento mútuo. Afirmava que essas funções e dimensões da linguagem revelam uma tensão entre o particularismo semântico linguístico, associado à pertença do homem ao seu contexto histórico, cultural e linguístico, e o universalismo pragmático da comunicação, que envolve pressupostos e pretensões universais, inerentes à prática comunicativa. (HABERMAS, 2004, p. 65-69)

Segundo Habermas, o desafio, desde Humboldt, é manter uma concepção de linguagem que estabilize essa tensão, admitindo a linguagem, tanto como formadora do pensamento quanto médium do entendimento mútuo. Na visão habermasiana, o linguista acabou, contudo, não focando o entrelaçamento pragmático de função cognitiva e comunicativa da linguagem, desconsiderando, assim, as pretensões de verdade, associadas a enunciados sobre o mundo objetivo dos fatos. Concentrou-se, efetivamente, nas implicações morais decorrentes das trocas comunicativas entre interlocutores a exporem orientações axiológicas distintas e relativizadoras, umas das outras. Nessa visão, então, faltou ao pensamento humboldtiano uma análise convincente da função representativa da linguagem, e, portanto, das condições de referência e verdade dos enunciados, o que será objeto de estudo de Gottlob Frege. (HABERMAS, 2004, p. 74-75)

Frege concentrou-se, por sua vez, na função representativa da linguagem, mediante análise lógica da forma de proposições simples sobre o mundo objetivo dos fatos. Essa análise lógica o conduziu a uma perspectiva semântica e formal da linguagem, apartada de sua dimensão pragmática, o que isolou da linguagem a sua função comunicativa.

Segundo Habermas, essa dimensão também foi ignorada por Heidegger, que se ateve apenas à dimensão semântica da linguagem, anteriormente destacada por Humboldt, sem, porém, adotar a análise lógica da função representativa da linguagem, desenvolvida por Frege. Sob inspiração de Humboldt, Heidegger concentra-se na função de abertura ao mundo da linguagem e de suas consequências existenciais. Destarte, Habermas sustenta haver uma aproximação entre Frege e Heidegger, e, por conseguinte, entre filosofia analítica e hermenêutica. Em suas palavras:

Assim, partindo de pontos contrários, as filosofias analítica e hermenêutica limitam-se a aspectos semânticos, a saber, de um lado à relação entre proposição e fato, de outro à articulação categorial do mundo inscrita na totalidade de uma língua natural. Ambos os lados usam instrumentos diversos: os meios da lógica de um lado, e métodos de uma linguística orientada aos conteúdos de outro. Mas a semântica de conteúdos, que procede de maneira holística, faz a mesma abstração que a semântica de enunciados, que procede de maneira elementarista. Ambas tratam a pragmática da fala como algo derivado; em todo caso, elas não pensam que as propriedades estruturais da fala discursiva possam dar uma contribuição própria à racionalidade do entendimento mútuo. (HABERMAS, 2004, p. 75)

2.2 A HERMENÊUTICA DE GADAMER NO CONTEXTO DA GUINADA LINGUÍSTICA

Para Habermas, Gadamer, ao contrário de Heidegger, não parte semanticamente da abertura linguística ao mundo, mas pragmaticamente da busca de entendimento mútuo entre autor e leitor ou intérprete. No diálogo, ego e alter compartilham um mundo da vida, base de sustentação da conversa intersubjetiva sobre alguma coisa no mundo objetivo. O esforço de compreensão intersubjetiva exige a ampliação e, por fim, a fusão de horizontes inicialmente divergentes. Essa fusão é resultante do diálogo que parte de um consenso prévio e que gera uma progressiva espiral de entendimento mútuo entre os falantes. Esse consenso prévio é constituído com base em preconceitos transmitidos, inevitavelmente, por uma tradição cultural. (HABERMAS, 2004, p. 86)

A compreensão pressupõe preconceito e a fusão de horizontes históricos e culturais. Não se trata de se colocar no lugar do autor, mas de ampliar o horizonte do leitor, mediante a fusão com o do autor. Em Gadamer, o círculo hermenêutico se revela nos seguintes termos: “toda interpretação, para produzir compreensão, deve já ter compreendido o que deve interpretar”. (CORETH, 1973, p. 23)

Para Heidegger, a circularidade hermenêutica não só estabelece a relação entre o particular e o todo, mas também a justifica, em seus termos: “compreender é o ser existencial do próprio poder-ser da presença de tal maneira que, em si mesmo, esse ser abre e mostra a quantas anda seu próprio ser” (HEIDEGGER, 2005, p.200)

Uma das grandes contribuições teóricas da hermenêutica foi reconhecer que, embora o mundo objetivo dos fatos possa adotar uma metodologia empírico-racional e uma análise factual, por meio das categorias causa/efeito, o mundo social das normas e valores, diversamente, é constituído pela cultura, suas normas, valores, símbolos, tradições, preconceitos, que moldam a subjetividade e intersubjetividade, por meio da linguagem e da compreensão, que dão sentido ao mundo que nos cerca, ao outro, com o qual compartilhamos a convivência social e a nossa existência individual, inserida neste mundo e em contato e diálogo constante o outro.

Nesse sentido, afirma Gadamer,

A linguagem não é somente um dentre os muitos dotes atribuídos ao homem que está no mundo, mas serve de base absoluta para que os homens tenham o mundo, nela se representa o mundo. Para o homem o mundo está aí numa forma como não está para qualquer outro ser vivo que esteja no mundo. Mas esse estar aí no mundo é constituído pela linguagem. Esse é o verdadeiro coração de uma frase que Humboldt exprime com uma intenção bem diferente, a saber, que as línguas são concepções de mundo. Com isso, Humboldt quer dizer que, frente ao indivíduo que pertence a uma comunidade de linguagem, a linguagem instaura uma espécie de existência autônoma, e quando este se desenvolve em seu âmbito, ela o introduz numa determinada relação e num determinado comportamento para com o mundo. (GADAMER, 2005, p.571-572)

A linguagem empregada na comunicação possibilita o debate em busca da verdade, o entendimento entre intelocutores sobre a coisa. A linguagem não é, porém, elemento meramente de caráter instrumental, mas, sim, o próprio conhecimento materializado.  Nesses termos assevera Gadamer:

Costumamos dizer que “levamos” uma conversa, mas na verdade quanto mais autêntica uma conversação, tanto menos ela se encontra sob a direção da vontade de um outro dos interlocutores. Assim a conversação autêntica jamais é aquela que queríamos levar. Ao contrário, em geral é mais correto dizer que desembocamos e até que nos enredamos numa conversação. Como uma palavra puxa a outra, como a conversação toma seus rumos, encontra seu curso e deu desenlace, tudo isso pode ter algo como uma direção, mas nela não são os interlocutores que dirigem; eles são os dirigidos. O que “surgirá” de uma conversação ninguém pode saber de antemão. O acordo ou o seu fracasso é como um acontecimento que se realizou em nós. Assim, podemos dizer que foi uma boa conversação, ou que os astros não foram favoráveis. Tudo isso demonstra que a conversação tem seu próprio espírito e que a linguagem que empregamos ali carrega em si sua própria verdade, ou seja, “desvela” e deixa surgir algo que é a partir de então. (GADAMER, 2005, p.497)

Com Heidegger, Gadamer reconhece a compreensão (Verstehen), sempre limitada, como a estrutura própria da existência humana. A compreensão de si e do outro, que se revela persona, máscara enigmática a desafiar a coexistência humana.

Segundo Palmer (1989, p.51), Heidegger estende a hermenêutica para a ontologia, alcançando inclusive as ciências da natureza. Apel (2000, p 44), entende que, no lugar da vida, Heidegger coloca o Ser. A compreensão é, para ele, a base de toda interpretação e da própria existência; ela é cooriginal com nossa existência e, por isso, ontologicamente fundamental. Toda compreensão é temporal, intencional e histórica, inclusive a das ciências da natureza, vez que fatos ou objetos só existem como tais na medida em que são compreendidos porque interpretados por meio de categorias herdadas histórica e culturalmente.

Assim, Heidegger substitui os questionamentos epistemológicos das ciências do espírito por uma investigação fenomenológica e ontológica do ser. Neste ponto, Gadamer esclarece:

Foi somente Heidegger que tomou consciente, de uma maneira geral, a radical exigência que se coloca ao pensamento em virtude da inadequação do conceito de substância para o ser e o conhecimento histórico. […] o significado das palavras não pode continuar sendo confundido com o conteúdo psíquico real da consciência, p. ex., com as representações associativas que uma palavra desperta. Intenção de significado e cumprimento de significado fazem parte essencialmente da unidade do significado, e, tal qual os significados das palavras que usamos, todo ente que possua validez para mim possui, correlativamente, e com necessidade essencial, uma generalidade ideal dos modos reais e possíveis das coisas dadas serem experimentadas. Com isso é que se ganhou a ideia de “fenomenologia”, ou seja, a desvinculação de toda suposição do ser e a investigação dos modos subjetivos de estarem dadas as coisas, fazendo-se disso um programa universal de trabalho, o que teria que tornar compreensível toda a objetividade, todo o sentido do ser. (GADAMER, 2005, p. 371-372)

A tese central de Heidegger, em sua obra-prima Ser e tempo (Sein und Zeit, 1927), é, como afirma Gadamer “o próprio ser é tempo”. (2005, p. 389). Esse ser é, primeiramente, o ser-aí (Dasein) (ser-aí), que, muito antes e além de ser o sujeito ou consciência da epistemologia moderna,  é umser-com (Mitsein) e um ser-no-mundo (Sein-in-Welt), cuja existência corre o risco da inautenticidade se não descortina o fato da temporalidade e finitude da existência humana, como ser-para-morte (Sein-zum-Tode).

Nesse sentido, Heidegger desenvolve uma ontologia fundamental, examinando a existência humana no mundo, em face do espectro assombroso e constante da morte. Assim, revelam-se, a seguir, aspectos da ontologia heideggeriana.

Em sua ontologia fundamental, ele vê a relação do homem para com o mundo à luz de suas “existencialidades”, como o cuidado, a preocupação, o temor, a disposição, a compreensão. […] a atitude típica da existência do homem (seu “ser-no-mundo”) seria o cuidado e a sua experiência fundamental: o temor perante a certeza do fato de que, um dia, deverá morrer. A própria morte afrontaria o homem continuamente e constituiria parte intrínseca do próprio ser-aí, que nada mais é do que um ser-para-a-morte. Perante o limite absoluto da mortalidade, o ser-aí ganha a sua verdadeira significância. Se o homem dispusesse de tempo infinito, nada seria importante e verdadeiro para ele. Portanto, a temporalidade é, simultaneamente, motivo, fronteira e horizonte do ser-aí, que “não tem um fim no tempo, mas existe finitamente”. O tempo representa o imprescindível “horizonte de compreensão” do ser: apenas a partir dele é possível formar relações de sentido entre as coisas no mundo. Já o nada é chamado pelo filósofo de “véu do ser”, pois constitui o “radical diferente” de tudo que existe. (KRELL, 2016, P. 109-110)

Em Heidegger, com o ser-aí ou a presença, além da finitude e da temporalidade, coloca-se o fenômeno da linguagem e da tradição cultural que sempre carregamos conosco. Segundo Bittar,

o ser-no–mundo carrega esta experiência do estar-aí (Dasein) da qual não pode se desvincular; não posso desvincular minha concepção-de-mundo, pois ela já é determinada pela minha história-de-mundo, da qual não posso me alhear. As condições existenciais (ek-sistere, estar aí) em que sou posto determinam também as condições com as quais interpreto e con-vivo com o mundo. A existência ou não dos “pré-conceitos” na determinação de todo o sentido apreendido do mundo não depende da vontade humana. Os “préconceitos” existem, no sentido deste estar-aí contra o qual não se pode lutar, e estão presentes na avaliação de cada peça de nossa interação com o mundo. A vontade pode dizer não e renunciar aos “pré-conceitos”, mas esta é já uma postura claramente carregada de “pré-conceitos” e de tomadas de posição próprias de um sujeito histórico e gravado por uma experiência peculiar. (BITTAR, 2002, p. 184-185)

Ressalta Stein, como núcleo da hermenêutica gadameriana, a finitude humana e o esforço do homem em compartilhar essa convivência social por meio da linguagem e da comunicação. Nas palavras de Stein,

A hermenêutica de Gadamer parte da radical finitude do homem. Daí que a única possibilidade de se aproximar da questão do homem situa-se na comunicação dos homens entre si. Esta é possível, diz-nos a experiência. Quais são, no entanto, as condições de possibilidade de comunicação, quais as suas estruturas? Essas questões constituem o conteúdo da hermenêutica como uma filosofia transcendental. A comunicação dá-se como compreensão e esta acontece no seio da linguagem. “Ser que pode ser compreendido é linguagem”. Esta proposição tem sentido universal: pois vale sempre onde se trata da comunicação com os outros. O que ultrapassa os limites da possível comunicação humana é indizível. Nada se pode afirmar aí que abranja a compreensão no seio da linguagem. O sujeito que compreende é finito, isto é, ocupa um ponto no tempo, determinado de muitos modos pela história. A partir daí desenvolve seu horizonte de compreensão, o qual — este é o processo da comunicação — pode ser ampliado e fundido com outros horizontes. O sujeito que compreende não pode escapar da história pela reflexão. Dela faz parte. E este estar na história tem como conseqüência que o sujeito é ocupado por preconceitos que pode modificar no processo da experiência, mas que não pode liqüidar inteiramente. (STEIN, 1987, p. 111-112)

Para Gadamer, o compreender revela-se em diálogo entre passado e presente. Esse passado, porém, não se encontra sepultado e ultrapassado, pelo contrário, permanece vivo no presente, a permitir a compreensão de si e do mundo e a apontar para o futuro, enquanto projeto individual e coletivo do homem. A tradição não se apresenta como uma continuidade histórica natural ou um todo harmônico que se perpetua, mas um conjunto de valores e sentidos que se conserva, abrigando, porém, concepções e preconcepções, por vezes, distintas e em movimento dinâmico. Tradição é não estagnação.

Gadamer questiona a crítica iluminista à tradição e aos preconceitos, que, na modernidade, desde Descartes, associa a tradição (Tradition, Überlieferung), autoridade (Autorität) e os preconceitos (Vorurteile) à fonte de erros, imposições e arbitrariedades, a tolherem o espírito crítico da razão. Para Gadamer, essa crítica, além de não reconhecer a inevitável precedência da tradição e de seus preconceitos a toda forma de compreensão possível, ignora o fato de que a tradição e a autoridade podem também serem fonte de verdade.

Como Gadamer, Habermas percebe o vínculo inquebrantável entre tradição e compreensão, sendo aquela o horizonte intransponível desta. Critica, contudo, Gadamer quando este entende esse horizonte, não só como intransponível, mas também como inalterável. Assim, afirma: “Gadamer avalia mal a força da reflexão que se desenvolve no compreender. […] A reflexão não trabalha na facticidade das normas transmitidas (überliferten) sem deixar vestígios. Ela é condenada a chegar depois, mas, ao olhar para trás, desenvolve uma força retroativa.” (HABERMAS, 1987, p.18)

Habermas afirma “a substancialidade se esvai na reflexão, porque esta não apenas ratifica, mas também rompe ou derruba poderes dogmáticos.” (HABERMAS, 1987, p.18). Reabilitar o preconceito como tal e a tradição por si mesma representa um risco de conservadorismo pedagógico e de conformismo político, segundo Habermas.

Habermas exalta, todavia, o valor da hermenêutica gadameriana, em especial, do seu necessário e virtuoso distanciamento de uma metodologia científica positivista. Critica, porém, a pretensão de universalidade da hermenêutica filosófica que, não se aplicaria a contextos de comunicação sistematicamente distorcida, tampouco não conduz a uma visão reflexiva, crítica e esclarecedora da tradição e dos preconceitos, que podem se revelar como instrumentos de dominação e opressão.

Em que pese existam distinções e aproximações, entre a abordagem hermenêutica de Gadamer e o pensamento crítico de Habermas, inegável é a centralidade da linguagem no âmbito da realidade existencial humana e seu lugar privilegiado como problema filosófico e científico na contemporaneidade.

2.3 A RATFICAÇÃO DA GUINADA LIGUÍSITICA EM WITTGENSTEIN

Para Coreth, a guinada linguística é resultado do reconhecimento dessa centralidade. Além das abordagens hermenêutica, empreendida pela fenomenologia existencial de Heidegger e Gadamer, e da perspectiva crítica, adotada por Habermas, O fenômeno da linguagem assumiu também centralidade nas investigações desenvolvidas pela filosofia analítica de pensadores anglo-saxões e de Wittgenstein. (CORETH, 1973, p. 32-34)

Coube a este pensador vienense ratificar, segundo Habermas (2004, p. 77-78), a guinada linguística, mediante a afirmação da linguagem como formadora do mundo. No Tractatus logico-philosophicus, Wittgenstein afirma que a forma lógica da proposição elementar, que institui a acessibilidade da realidade ao pensamento, representa a essência do mundo. Em suas palavras: “Especificar a essência da proposição significa especificar a essência de toda descrição e, portanto, a essência do mundo” (WITTGENSTEIN,1994, p.225). A questão kantiana sobre o que se pode legitimamente conhecer conduzirá Wittgenstein à análise da estrutura lógica comum à linguagem e ao pensamento. No Tractatus,ofilósofo analítico desenvolve uma reflexão sobre a dimensão e o alcance do caráter representativo da linguagem/pensamento em relação à realidade. Nessa obra, Wittgenstein parte do pressuposto de o pensamento possui uma natureza simbólica e que o discurso enuncia o que as coisas são ou não são. Esse discurso enunciativo ou proposicional tem uma forma lógica simbólica essencial, condição necessária e suficiente para instituí-lo como um discurso. (WITTGENSTEIN,1994, p.169)

Nessa fase final do pensamento wittgensteiniano, o pensador vienense passa a considerar que não há uma conexão representativa entre linguagem e mundo, tampouco a verdade reside na representação linguística da realidade. Passa a entender que não há uma estrutura essencial comum à linguagem e ao mundo. Considera que essas concepções, agora tidas por equivocadas, revelam um apego ao paradigma da representação, da tradição metafísica. Em ruptura com esse paradigma e essas concepções, Wittgenstein adota a noção de jogos de linguagem (2000, § 7) , com qual revela o entendimento de que não há uma essência por traz da linguagem, tampouco uma estrutura lógica subjacente, visto que a linguagem é uma coleção de jogos de linguagem, que se realizam em contextos culturais e linguísticos diversos e que revelam usos múltiplos de palavras e sentenças, cujo significado dependerá desses contextos e usos diversos. Com essa ruptura, Wittgenstein abandona uma concepção estritamente semântica e lógica da linguagem e passa a adota uma concepção pragmática da linguagem, considerada na perspectiva do emprego plural e efetivo da linguagem em contextos comunicacionais. Jogos de linguagem são formas de vida, que emprestam sentidos às palavras Nas palavras dele, “O significado de uma palavra é seu uso na linguagem” (WITTGESNTEIN, 2000, § 43).

Segundo Habermas, Wittgenstein, embora tenha, corretamente, introduzido a noção de jogos de linguagem e promovido a transição para uma concepção pragmática da linguagem, contribuindo, assim, para a destrancendentalização da linguagem, não chegou a desenvolver uma teoria dos jogos de linguagem, considerando-os sempre de forma ad hoc e em contextos práticos específicos, permanecendo, assim, num contextualismo. (HABERMAS, 2004, p. 82).

Em ruptura com a semântica formal, presente em Frege e Russell, bem como em seu Tractatus, Wittgenstein repudia o esforço teórico de identificar a estrutura essencial da proposição, para defender a pluralidade de usos em contextos práticos específicos de signos, palavras e proposições em jogos de linguagem. Em Investigações Filosóficas, o pensador vienense, avesso à teorização dos jogos de linguagem, expõe uma extensa e exemplificativa lista desses usos (descrever, relatar, prescrever, ordenar, pedir, agradecer, etc), sem reuni-los sob o manto de um princípio de ordenação ou de uma teoria unificadora.

2.4 A GUINADA PRAGMÁTICA EM AUSTIN, SEARLE APEL

John Langshaw Austin, por sua vez, seguindo a ruptura com semântica formal, defendida por Wittgenstein, mas procurando suprir a lacuna teórica, acima mencionada, desse pensador, irá desenvolver uma teoria pragmática da linguagem, identificando e sistematizando os tipos de uso das expressões linguísticas e as regras que orientam o seu emprego efetivo. Tal qual Wittgenstein, Austin considera a linguagem não, meramente, uma forma de descrever a realidade, mas, sobretudo, uma forma de ação. (HABERMAS, 1990, p. 56). Contrariando, porém, o filósofo austríaco, o pensador britânico procura, numa perspectiva pragmática, dar um tratamento sistemático à linguagem, desenvolvendo uma teoria dos atos de fala.

Nessa teoria, Austin defende, a princípio, a necessidade de se distinguir atos de fala constatativos dos performativos. Os primeiros consistem em sentenças descritivas que podem ser verdadeiras ou falsas em relação aos fatos que descreve ou constata. Já os últimos consistem em sentenças que expressam condutas com as quais o falante se compromete perante o ouvinte, que podem ser avaliados como bem ou mal sucedidos, em face das consequências que dele decorrem. O pensador britânico percebe, em seguida, que, na verdade, não há dicotomia entre ambos os atos de fala, porquanto ambos possuem tanto uma dimensão performativa quanto constatativa. O ato de descrever pode ser também avaliado como bem ou mal sucedido, ao passo que o ato de prometer, igualmente, se refere a uma situação fática futura, com a qual o falante se comprometeu e que poderá ser constatada. Austin acaba, então, estendendo a sua concepção performativa da linguagem a todos os atos de fala, que passa a ser considerado a unidade básica de significação. (MARCONDES, 2005, p. 17-18)

Considerando essa concepção performativa da linguagem, Austin passa a distinguir os atos de fala em locucionários, os ilocucionários e os perlocucionários. Os locucionários consistem em palavras e sentenças, dotadas de sentido e referência, visto que observam regras gramaticais, pertinentes à língua específica adotada para proferi-las. Dotados de força ilocucionária, os atos ilocucionários ensejam uma ação realizada no momento do proferimento do ato. No momento mesmo do proferimento de uma promessa, está se realiza. A força do ato do falante verifica-se no ato do proferimento, que enseja uma ação. Prometer, assim como ameaçar, são exemplos de verbos performativos, que podem estar elípticos, mas revelam força ilocucionária. Por fim, o ato perlocucionário é aquele que é realizado com o propósito de provocar efeitos psicológicos ou cognitivos no ouvinte, influenciando-o em seus sentimentos ou pensamentos.

Para Austin, todo ato de fala é, em verdade, simultaneamente, locucionário, ilocucionário e perlocucionário. Assim, quando se enuncia a proposição “Eu prometo que estarei em casa hoje à noite”, há o ato locucionário de enunciar cada elemento lingüístico que a compõe. Há também, no momento em que se enuncia a sentença, a realização de uma promessa. Finalmente, com o proferimento da proposição, que poderá ser considerada uma ameaça, um agrado ou um desagrado revela-se o ato perlocucionário, que não se realiza na linguagem, mas pela linguagem. (SILVA, 2020)

Além de tratar das consequências e realização dos atos de fala, Austin aborda também as suas condições. Identifica a intencionalidade do falante como condição subjetiva ou psicológica e as convenções e regras sociais como condição objetiva dos atos de fala, mas não as trata de modo estanque, pois ambas estão interrelacionadas O sucesso ou insucesso da realização de um ato de fala depende da satisfação dessas condições.

A teoria dos atos de fala de Austin revela, assim, uma abordagem acerca não da natureza ou essência da linguagem, tampouco acerca das condições de verdade das sentenças linguísticas, preocupação maior da tradição semântica, mas uma preocupação com de sucesso e de felicidade para sua realização dos atos de fala, considerando-lhes os constituintes necessários do uso e da compreensão da linguagem natural, em contextos comunicacionais. Desse modo, Austin pretende propor um método de análise de problemas filosóficos por meio do exame do uso da linguagem entendido como forma de ação.

Visando seguir e superar a teoria dos atos de fala proposta por Austin, John R. Searle, mais do que seu antecessor, destaca a importância da situação de fala e do diálogo para a compreensão do significado e da força dos atos de fala. É no contexto comunicacional que se revelam os atos de falas explícitos ou diretos, mas também os implícitos ou indiretos, quando, por exemplo, além de uma declaração, há, implicitamente, um convite, como ocorre quando em um diálogo um dos falantes profere:

“(a) “Há um bom filme no cinema da esquina”, ao que o outro responde (b) “Tenho prova de matemática amanhã”. É óbvio que no caso (a), o primeiro proferimento (explicitamente um constatativo, ou declarativo, […] é implicitamente um convite, como de fato é interpretado pelo colega.” (MARCONDES, 2005, p. 16)

Searle ressalta que em situações de fala, como a do exemplo acima, o ato de fala possui força ilocucionária implícita, sendo-lhe compreendido o significado, por meio da análise do contexto cultural e comunicacional compartilhado pelos falantes, não sendo, portanto, suficiente a consideração de elementos exclusivamente linguísticos.

Sob forte influência da filosofia pragmática da linguagem, em especial do segundo Wittgenstein, de Austin e de Searle, ao destacarem a importância do contexto comunicacional para a compreensão do significado, Habermas irá desenvolver, inicialmente, uma pragmática universal, e, posteriormente, uma teoria da ação comunicativa, para cuja formulação contribui também, como visto, hermenêutica gadameriana, no que concerne, em especial, a importância da tradição e do horizonte cultural para a compreensão da linguagem. Em que pese a grande influência sobre Habermas, essas correntes de pensamento não revelaram, porém, a dimensão crítica, que a tradição marxista e frankfurtiana sempre destacou. Mantendo a preocupação com essa dimensão, mesmo tendo se distanciado dessa tradição, Habermas recebe o impacto do pensamento de Karl Otto Apel.

Apel reconhece, em paralelo a Habermas, a transformação na filosofia, título de uma de suas principais obras, pela qual, na passagem da filosofia moderna para a contemporânea, a subjetividade monológica cede lugar à intersubjetividade comunicativa. Para Apel, a linguagem deixa de ser mero objeto de reflexão para se tornar condição de possibilidade do próprio pensamento e do conhecimento. Não se trata de abandonar a investigação transcendental na linha kantiana, mas de nela substituir a subjetividade pela intersubjetividade, o pensamento pela linguagem e pela comunicação, para lhes procurar os fundamentos e as condições de possibilidade.

Assim, nas palavras de Apel,

A filosofia da linguagem, hoje em dia, pode assumir – ou até mesmo: tem de assumir – a função da filosofia transcendental em sentido kantiano? Ou seja, ela pode (ou tem que) assumir hoje a função de uma prima philosophia? Talvez se possa chegar sem dificuldades – entre os conhecedores da literatura filosófica – ao consenso de que em nosso século a ocupação do filósofo com a própria consciência, algo característico para a Era Moderna, deu lugar, mais recentemente, à ocupação do filósofo com a linguagem. E isso parece significar que a filosofia da linguagem veio ocupar o lugar da epistemologia tradicional – a filosofia da linguagem não como tematização do objeto linguagem entre outros tantos objetos possíveis da cognição, mas sim como reflexão sobre as condições linguísticas da cognição. (APEL, 2000. p. 353-354)

Apel procura identificar pressupostos intrínsecos e inescapáveis presentes na linguagem em comunicação, investigação que será por ele denominada de pragmática transcendental, porquanto, à semelhança de Kant, ele busca condições universais e necessárias de possibilidade inerentes à comunicação. Essas condições apresentam-se como regras do discurso e da argumentação pressupostas pelos interlocutores em uma ação comunicativa na qual são expressas pretensões de verdade quando proferidas proposições teóricas ou de correção normativa, quando emitidas proposições práticas. Essas regras implícitas são: (1ª regra) Todos os participantes do discurso em princípio são iguais (e, portanto, não lhes devem ser excluídos quaisquer argumentos) e (2ª regra) a obrigação de argumentar sem violência, explícita ou velada. Em Apel, na ação comunicativa, se o interlocutor nega essas regras incorre em contradição performativa, porquanto no momento em que as nega, por meio de uma ação comunicativa, já as teria assumido como válidas. (APEL, 2000, p. 353-354)

À semelhança de Apel, Habermas irá desenvolver, ainda antes da publicação de sua obra Teoria da Ação Comunicativa, uma pragmática universal, que – diferentemente, da pragmática apeliana, ainda apegada à metafísica –  visa encontrar os fundamentos de uma teoria crítica da sociedade, os quais seriam derivados das condições constitutivas da ação comunicativa. Ao se deter nessa ação, Habermas reconhece se tratar de uma pragmática e ao externar que o seu propósito vai além de usos concretos e empíricos da comunicação, então se revela seu caráter universal, notadamente, na busca das condições de possibilidade de toda e qualquer comunicação possível.

 2.5 A PRAGMÁTICA UNIVERSAL EM HABERMAS

Em seu trabalho O que é a Pragmática Universal ?, de 1976, Habermas segue investigação distinta da de Noam Chomsky em sua teoria da competência linguística. Este pensador preocupa-se em identificar as regras sintáticas e semânticas necessárias ao locutor para proferir sentenças, ao passo que Habermas busca identificar e reconstituir as condições universais que são satisfeitas pelos interlocutores quando emitem enunciados ou proposições em uma ação comunicativa.

Assim, Habermas afirma que

A tarefa da pragmática universal é identificar e reconstruir as condições universais de compreensão (Verständigung) possível. Em outros contextos, também se fala de “pressupostos gerais de comunicação”, mas prefiro falar de pressupostos gerais de ação comunicativa porque tomo o tipo de ação que visa alcançar compreensão para ser fundamental. Assim, começo do pressuposto (sem me comprometer a demonstrá-lo aqui) que outras formas de ação social – por exemplo, conflito, competição, ação estratégica em geral – são derivados da ação orientada para alcançar o entendimento (Verständigungs orientert). Além disso, como a linguagem é o meio específico de compreensão no estágio de evolução sociocultural, quero dar um passo adiante e destacar as ações de fala explícita de outras formas de ação comunicativa. Devo ignorar ações não verbalizadas e expressões corporais. (HABERMAS, 1979, p. 4)

 Segundo Habermas, ao iniciarem uma ação comunicativa, os interlocutores assumem quatro pretensões ou expectativa de validade (Geltungansprüche). A primeira pretensão de validade, de inteligibilidade (Verständlichkeit), é a de que os conteúdos proposicionais emitidos pelos interlocutores sejam compreensíveis a ambos. A segunda, de sinceridade ou veracidade (Wahrhaftigkeit), é a de que os falantes estão sendo sinceros ou verazes ao dizerem o que dizem. A terceira, de verdade proposicional (Wahrheit), é a de que os conteúdos das proposições teóricas, ou seja das proposições que se referem aos mundo objetivo dos fatos seja verdadeiro e a quarta, de correção normativa (Richtigkeit), é a de que é legítima ou normativamente correta o conteúdo proposicional das proposições práticas externadas pelos interlocutores. As duas primeiras expectativas podem ser resolvidas no âmbito da própria ação comunicativa, de modo que os interlocutores se certifiquem da compreensibilidade da mensagem e da sinceridade dos falantes. Já as duas últimas, quando há o questionamento das pretensões de verdade e de correção normativa, conduzem os interlocutores a deixarem a ação comunicativa, no qual o consenso entre falantes é imediato, para ingressarem no que Habermas chama de discurso (Diskurs), no qual os interlocutores se colocam em busca do consenso, que, nesse caso, não se apresentou no início, mas é a meta a ser alcançada.

Seja no discurso teórico, seja no discurso prático, o objetivo é a busca do consenso com base no melhor argumento. A lógica de justificação racional e argumentativa está presente em ambos os discursos, não ficando, portanto, o discurso prático – que versa sobre questões morais, jurídicas e polícias -, relegado ao âmbito de preferências subjetivas e arbitrárias, e, sim, inserido no contexto do debate intersubjetivo e racional.

Habermas reconhece que, não raro, os debates, sejam nos discursos práticos, sejam nos teóricos, não conduzem ao consenso com base no melhor argumento, porquanto estão sujeitos a perturbações sistemáticas da comunicação, decorrentes de interesses políticos, econômicos, entre outros. Por outro lado, afirma Habermas que numa ação comunicativa ou em um discurso, os interlocutores pressupõem uma situação ideal de fala, na qual estariam excluídas quaisquer deformações da comunicação, na qual os interlocutores seriam tratados de forma igual, tendo chances iguais para argumentar, sem coação de qualquer espécie. Numa tal situação, os falantes estariam comprometidos com uma busca cooperativa da verdade, que seria alcançada em um entendimento mútuo baseado no melhor argumento aduzido.

A propósito dessa situação ideal de fala, Rouanet e Freitag, assim, afirmam:

Habermas acredita que, se for possível descrever uma situação tal que os discursos nela realizados possam ser considerados automaticamente verdadeiros, e se tal descrição não for arbitrária, nem sujeita, por sua vez à argumentação discursiva (porque nesse caso estaríamos nos movendo em círculos), seria possível distinguir o verdadeiro consenso do consenso ilusório. Tal situação, para ele, é a situação linguística ideal, pela qual ‘a comunicação não é perturbada por efeitos externos contingentes, nem por coações resultantes da própria estrutura da comunicação. A situação linguística ideal exclui deformações sistemáticas da comunicação. Essa descrição, segundo   Habermas, não é arbitrária, porque em cada discurso ela é pressuposta corno real. Ela supõe para ser atingida que, em princípio, todos os interessados possam participar do discurso e que todos eles tenham oportunidades idênticas de argumentar, dentro dos sistemas conceituais existentes ou transcendendo-os. e chances simétricas de fazer e refutar afirmações, interpretações e recomendações. Mas, supõe também que só são admitidos ao discurso aqueles participantes que, como atores, agiam de acordo com normas que lhes pareciam justificáveis, e não movidos pela coação, e satisfaziam o pressuposto da veracidade, não sentindo nem intencionalmente, nem inconscientemente (neurose ou falsa consciência).  Essas duas condições configuram o modelo da ação comunicativa pura: uma forma de interação (e de organização social) caracterizada pela eliminação de todas as formas de coação externa e interna. (FREITAG e ROUANET, 1990, p. 19)

O caráter contrafactual e ideal dessa situação de fala foi, algumas vezes, objeto de crítica, que o considerava uma indevida concessão ao idealismo, notadamente kantiano, e, portanto, uma concessão à metafísica, da qual Habermas pretendia afastar-se.

Habermas rejeita, contudo, a alegação de que estaria recaindo no idealismo metafísico kantiano. Assevera que a situação ideal de fala é um “experimento de pensamento” (ein Gedankenexperiment), uma projeção metodológica, sem qualquer sentido idealista ou metafísico, e se revela na reconstrução dos pressupostos idealizantes da racionalidade comunicativa já operantes na facticidade de toda ação comunicativa. Em suas palavras:

a estrutura interna racional do agir orientado para o entendimento está refletida nas pressuposições que os atores têm que fazer se eles querem se engajar nessa prática. A necessidade desse ‘ter que’ possui antes um sentido wittgensteiniano do que kantiano. Isso é, ela não possui o sentido transcendental das condições numenais, necessárias e universais da experiência possível, mas o sentido gramatical de uma ‘inevitabilidade’ advinda das conexões conceituais internas de um sistema de comportamento guiado por regras, em que nos socializamos, e que, em qualquer caso, ‘é para nós inescapável’. (HABERMAS, 2005, p. 86)

Segundo Habermas, quando os interlocutores se colocam a debater argumentos, inicia-se um empreendimento cooperativo em busca do entendimento mútuo. Na ação comunicativa e no discurso, essa cooperação, bem como as expectativas criadas e as condutas esperadas entre interlocutores revelam uma dimensão ética na interação comunicacional entre falantes.

Austin já reconhecia essa dimensão ética, quando, por exemplo, em um ato de fala performativo como numa promessa, é assumido um compromisso pelo falante, que dá a sua palavra ao ouvinte, que espera o cumprimento da promessa realizada, sob pena da perda da credibilidade do falante e da ruptura da própria ação comunicativa.

Apel, por sua vez, vai além do reconhecimento dessa dimensão ética e formula, antes e ao lado de Habermas, uma Ética do Discurso. Em seu trabalho “O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética: o problema de uma fundamentação racional na era da ciência”, de 1967, Apel afirma que todo indivíduo é membro de uma comunidade de comunicação real, nela tornando-se um interlocutor cujas interações comunicativas devem satisfazer normas de validade vigentes nessa comunidade, que revelam o caráter racional dessas interações. Ao os interlocutores se comprometerem a justificar racionalmente suas proposições teóricas e práticas, assumem como válidos pressupostos comunicacionais, como a igualdade entre eles,  inerentes à comunidade de comunicação ideal, base moral e racional a priori das pretensões de validade discursiva se apresentam na comunidade de comunicação real. Apel sustenta que essa base normativa constitui um princípio regulador e uma meta a ser alcançada no âmbito das interações comunicacionais reais. Nesses termos, Apel afirma:

Junto com a comunidade de comunicação real, no entanto, a justificação lógica de nosso pensamento também pressupõe o cumprimento de uma norma moral básica. Mentir,  por  exemplo,  tornaria  certamente impossível o diálogo do argumentante; a mesma coisa vale também da recusa de compreensão crítica, e respectivamente, da explicação e justificação de argumentos. Em suma:  na comunidade de argumentação se pressupõe o mútuo reconhecimento de todos os membros, como parceiros de discussão com direitos iguais. (APEL, 1994, p. 120)

A Ética do Discurso em Apel baseia-se no princípio moral da reciprocidade dialógica universal, que pressupõe igualdade, liberdade e autonomia dos interlocutores para argumentar e a responsabilidade de todos em assumir as consequências de suas afirmações e ações.

3 A ÉTICA DO DISCURSO HABERMASIANA

A ética do discurso em Habermas caracteriza-se por inserir-se na tradição do cognitivismo ético – que reúne, além de Apel, pensadores, tais como Kurt Baier, Marcus George Singer, John Rawls, Paul Lorenzen e Ernst Tugendhat. que, na linhagem kantiana, admitem ser possível fundamentar uma ética de caráter secular, formal, racional e universal.

O cognitivismo ético contesta, portanto, o ceticismo ético, cuja tese central nega a possibilidade de fundamentação da ética nos moldes cognitivistas.

A corrente cética de pensamento, conquanto tenha surgido na Antiguidade, pode ser considerada como uma radicalização do pensamento empirista, notadamente da filosofia de Hume, para quem todo conhecimento se reduz a relações entre ideias ou a questões de fato. As questões de valor não são passíveis de serem tratadas racionalmente.  

Assim, em Hume, como analisa Manfredo A. de Oliveira,

em se tratando de afetos, atos de vontade e ações não tem sentido levantar a questão da adequação à realidade. Razão e vontade são duas dimensões irredutíveis e daqui se segue a tese da dicotomia entre razão e moral: as regras da moral não podem ser consequências da razão, mas têm a ver com os sentimentos. […] Ora, o critério fundamental de nossos julgamentos morais é se as ações são úteis ou agradáveis. (OLIVEIRA, 1995, p. 40)

Tal critério remete apenas à nossa subjetividade, individualidade e particularidades, excluindo a possibilidade de uma ética de caráter universalista, fundada na razão.

Habermas acredita ser viável fundamentar um padrão universal de julgamento moral, desde que seja possível afirmar um princípio ético que sirva de base para um eventual acordo entre ego e alter em argumentações morais. Tal princípio encontraria sustentação em pressuposições inevitáveis da ação comunicativa. Esta inevitabilidade representaria o caráter universal desse princípio ético.

Antes, porém, de chegar ao momento de fundamentação desse princípio, Habermas irá desenvolver um diálogo crítico entre o cognitivismo ético, representado por ele, e o ceticismo ético que nega a possibilidade de uma fundamentação racional de uma ética universalista e secular. Esse diálogo desenvolve-se em sete etapas argumentativas. (HABERMAS, 1989, p. 62)

Na etapa inicial, Habermas baseia-se na fenomenologia do fato moral elaborada por Strawson, em “Freedom and Resentment” ,  no qual se afirma a atitude performativa – que nos leva a adotar o papel da 1o  e da 2o pessoas num diálogo – como a que permite, diferentemente da atitude objetivante – pela qual se assume o papel da 3o pessoa frente a um dado de realidade –  perceber propriamente os fenômenos morais. Tais fenômenos não podemos vê-los, por muito tempo, adotando uma atitude objetivante, pois estão eles inseridos no mundo da vida no qual crescemos e nos educamos e, desse modo, eles nos afetam e nos envolvem de tal modo a nos exigir a adoção de uma atitude performativa. Impõe-se, portanto, adotar a atitude performativa seja por parte do falante, seja por parte do filósofo moral. (HABERMAS, 1989, p. 65-67)

Habermas extrai algumas conclusões da fenomenologia do fato moral de Strawson:

  1.  O âmbito dos fenômenos morais só é percebido numa atitude performativa.
  2. Tais fenômenos não podemos ignorá-los por muito tempo, adotando por exemplo uma atitude objetivante, pois estão eles inseridos no mundo da vida no qual crescemos e nos educamos. Impõe-se, portanto, adotar a atitude performativa seja por parte do falante, seja por parte do filósofo moral.
  3. O caráter moral de nossas reações afetivas ante uma ofensa, por exemplo, reside no fato de que tal ofensa constitui uma infração de uma expectativa de validade suprapessoal. As reações afetivas remetem, portanto, a critérios universais para a avaliação de normas.
  4.  Essa pretensão de validez universal de normas supõe a legitimidade das mesmas, a qual precisa ser demonstrada por razões.
  5. A justificação prático-moral das razões de uma norma não requer uma justificação racional instrumental, mas uma justificação ético-racional, propriamente. (HABERMAS, 1989, p. 67-70)

Na etapa seguinte do debate entre cognitivismo e ceticismo éticos, tratar-se-á de distinguir a abordagem cognitivista da ética, em Habermas, das abordagens objetivista e subjetivista da ética.

A abordagem objetivista julga que os enunciados teóricos e práticos não revelariam nenhuma diferença quanto às pretensões de validez, nem quanto ao modo de se justificá-las. Nesse sentido, os objetivistas afirmam os enunciados   teóricos e práticos poderiam ser igualmente verificados ou falseados, de modo que ciência e ética estariam na mesma situação de prova de suas proposições.

A abordagem subjetivista, por sua vez, julga que os enunciados práticos não revelam a possibilidade de serem verificados ou falseados, isto é, não podem ser testados, como os enunciados teóricos. Dessa forma, os subjetivistas negam qualquer chance de os enunciados práticos serem tratados em termos racionais e, assim, tais enunciados estariam reservados ao âmbito da subjetividade, ou seja, ao âmbito da decisão pessoal ou social, em última instância arbitrária.

Conforme Habermas:

“naturalmente os subjetivistas não negam os fatos gramaticais que atestam que efetivamente, no mundo da vida, não cessamos de discutir sobre questões práticas como se estas fossem decidíveis com base em boas razões. Mas eles explicam essa confiança ingênua na possibilidade de fundamentar normas e mandamentos como uma ilusão suscitada pelas intuições morais da vida quotidiana. (HABERMAS, 1989, p. 75)

Os resultados, respectivamente, das abordagens objetivista e subjetivista são antagônicos, quais sejam: de um lado se afirma a possibilidade de racionalmente tratar proposições práticas, tal como as proposições teóricas, de outro, se nega essa possibilidade.

Para Habermas, conquanto essas abordagens cheguem a resultados opostos, “ambos os lados partem da premissa falsa de que é a validez das proposições descritivas e só ela que determina o sentido em que as proposições em geral podem ser fundadamente aceitas”. (HABERMAS, 1989, p. 74-75)

A abordagem cognitivista de Habermas não parte dessa premissa, pois sustenta que os enunciados   práticos podem ser racionalmente tratados, mas não exatamente no mesmo sentido que os enunciados teóricos. A pretensão de validez das proposições práticas é a de correção normativa e não de verdade, como no caso das proposições teóricas. A pretensão de validade dos enunciados éticos não envolve verificação ou falseamento empírico, mas apenas a argumentação racional. Portanto, Habermas afasta-se tanto dos objetivistas quanto dos subjetivistas. 

Habermas entende que

as abordagens não-cognitivistas desvalorizam de um só golpe o mundo das intuições morais do quotidiano. Segundo essas doutrinas, numa perspectiva científica só se pode falar empiricamente sobre a moral. Nesse caso, assumimos uma atitude objetivante e restringimo-nos a descrever que funções preenchem as proposições e os sentimentos que, do ponto de vista interno dos participantes, são qualificados de morais. Essas teorias não querem e não podem concorrer com as éticas filosóficas; elas aplainam em todo o caso o caminho para as investigações empíricas, após ter ficado aparentemente claro que as questões práticas não são passíveis de verdade e que as investigações éticas no sentido de uma teoria normativa são desprovidas de objeto.  (HABERMAS, 1989, p. 76-77)

O cognitivismo ético habermasiano, portanto, não concorda, especialmente com as abordagens subjetivistas, em cuja origem filosófica se encontram o empirismo e o positivismo, porquanto não haveria, segundo Habermas, no dizer de Rouanet: “o abismo entre proposições descritivas e as normativas. Umas e outras estão sujeitas à argumentação discursiva, e a validade de ambas depende de um consenso fundado”. (ROUANET, 1993, p. 222)

Consciente de que a facticidade de uma norma não se identifica com sua validade, Habermas, como revela Luís B. L. Araújo, distingue “com clareza, a norma em vigor da norma válida. A questão da verdade moral […] está associada não só ao reconhecimento da norma, mas também, e sobretudo, às boas razões apresentadas em defesa de sua legitimidade.” (ARAÚJO, 1997, p. 186-187)

Assim Habermas nega a concepção segundo a qual somente as questões teóricas seriam passíveis de receber tratamento racional. Assim Freitag e Rouanet ressaltam:

como se verifica, o conceito de justificação discursiva elimina o abismo entre questões teóricas e questões normativas , que , desde Hume  mas especialmente em Weber e nos positivistas modernos, considera unicamente as proposições descritivas como suscetíveis de validação; as proposições prescritivas ou relativas a valores, pertencem à  esfera da mera opinião, e não são, a rigor, nem verdadeiras, nem falsas. Com sua teoria da validação consensual de afirmações e recomendações (proposições normativas) Habermas tenta revogar o interdito positivista, voltando à tradição grega, para a qual as questões relativas à vida desejável eram mais que quaisquer outra, suscetíveis de serem verdadeiras. A teoria consensual de Habermas pretende elevar tais questões à dignidade da Wahrheitsfähigkeit (literalmente, capacidade de serem verdadeiras), mostrando que a lógica do discurso prático, no qual elas são debatidas é idêntica à lógica do discurso teórico, no qual são debatidas as proposições descritivas.  (FREITAG e ROUANET, 1990, p. 18-19)

Habermas sustenta, como veremos a seguir, ser possível não só fundamentar racional e discursivamente proposições normativas, mas também o princípio sobre o qual tais proposições encontram sua fundamentação. Trata-se da terceira etapa da discussão acima mencionada.

Para defender essa tese, Habermas precisa antes criticar o positivismo – cujas raízes remontam , como vimos, ao empirismo humeano -,  pois tal corrente de pensamento advoga ser impossível validar racionalmente proposições normativas.

O positivismo abole a distinção entre razão teórica e razão prática, e só admite a primeira. com o desaparecimento da razão prática, o reino das normas e dos fins deixa de ser acessível à razão, pois esta, reduzida à razão científica, só tem competência sobre as proposições analíticas da lógica e da matemática e sobre as proposições sintéticas relativas ao mundo objetivo dos fatos. As proposições normativas escapam a essas duas esferas. Elas não são nem empíricas, nem tautológicas, e portanto não podem ser fundamentadas à luz da única instância racional que sobreviveu à dissolução da razão kantiana – a razão teórica. […] A moral é privatizada, reduzida ao foro íntimo de cada um. É a expressão de emoções e preferências pessoais. Está entregue ao contingente, ao irracional, ao subjetivo. (ROUANET, 1993, p. 220)

Habermas responde ao positivismo, sustentando que as proposições normativas podem ser validadas racionalmente, na medida em que também elas, juntamente com as proposições descritivas, permitem um processo argumentativo de discussão racional acerca da pretensão de validade nelas implícitas. Nesse caso desaparece o abismo entre proposições descritivas e as normativas. Umas e outras estão sujeitas à argumentação discursiva, e a validade de ambas depende de um consenso fundado.

Além de criticar o positivismo, Habermas terá de enfrentar o racionalismo crítico, porquanto esta corrente filosófica sustenta não ser possível encontrar algum princípio de fundamentação que escape ao esforço de falsificação.

Ora, se, para Habermas, as normas podem ser fundamentadas desde que repousem sobre um consenso racional, então é preciso dar fundamento a esse consenso. Para Habermas, esse fundamento das normas consensuais válidas, é ele próprio passível de ser fundamentado, contrariando aqui o racionalismo crítico, especialmente de Hans Albert (1973, p. 22-26). Trata-se agora da quarta etapa de argumentação contra o ceticismo.

Assim ele propõe o princípio “U”, como regra de argumentação, que permitiria aos interlocutores chegarem a um consenso racional.

 O princípio “U” da ética do discurso de Habermas é assim expresso:  

toda norma válida deve satisfazer a seguinte condição: que as consequências e efeitos colaterais, que (previsivelmente) resultarem para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos (e preferidos a todas as consequências das possibilidades alternativas e conhecidas de regragem. (HABERMAS, 1989, p. 86)

A fundamentação do princípio “U” baseia-se no reconhecimento de que o conteúdo do princípio “U” encontra-se implícito  nas  pressuposições   de   toda   argumentação. Para demonstrar essas pressuposições, Habermas recorre ao conceito de “contradição performativa”, desenvolvido por Karl Otto Apel. Essa contradição é aquela em que se incorre no momento mesmo em que se expressa a réplica a uma tese, pelo fato de que tal réplica só seria possível de ser enunciada, admitindo a tese – que se pretende negar- como verdadeira.

Assim, um dos exemplos de contradição performativa é a réplica à tese: “penso, logo existo”. Ora, para negar tal tese, já a pressuponho como válida; daí a contradição performativa.

O mesmo ocorreria com a réplica ao princípio “U”, pelo qual se defende que as normas sejam válidas se forem aceitas livre e racionalmente, num processo argumentativo, por todos. Haja vista que “quando nego que a validade da argumentação exige a aceitação livre de todos, só posso fazê-lo por um ato lingüístico que pressupõe que minha tese é verdadeira, mas isso significa pressupor que sua verdade possa ser livremente aceita por todos. Teríamos a seguinte frase: ‘Afirmo como verdadeiro, isto é, submeto essa tese ao livre exame de todos, que não estou obrigado, como participante de uma argumentação, a aceitar que minha tese seja submetida ao livre exame de todos’.  De novo manifesta-se uma contradição performativa, estou negando numa parte da frase aquilo mesmo que estou afirmando em outra.

O mesmo ocorreria com a réplica ao princípio “U”, pelo qual se defende que as normas sejam válidas se forem aceitas livre e racionalmente, num processo argumentativo, por todos. Haja vista que

quando nego que a validade da argumentação exige a aceitação livre de todos, só posso fazê-lo por um ato lingüístico que pressupõe que minha tese é verdadeira, mas isso significa pressupor que sua verdade possa ser livremente aceita por todos. Teríamos a seguinte frase: ‘Afirmo como verdadeiro, isto é, submeto essa tese ao livre exame de todos, que não estou obrigado, como participante de uma argumentação, a aceitar que minha tese seja submetida ao livre exame de todos. (ROUANET, 1993, p. 223)

Aqui também ocorre uma contradição performativa, estou negando numa parte da frase aquilo mesmo que estou afirmando em outra.

O princípio “U” seria fundamentado por derivar de pressuposições inevitáveis existentes em toda argumentação, de modo que um falante, tão logo faça enunciados, não pode prescindir de assumi-las.

Tais pressupostos incluem o de que todos os participantes devem ser verídicos, o de que todos os interessados podem participar, o de que todos podem problematizar qualquer afirmação, o de que todos podem introduzir qualquer argumento no debate o de que ninguém pode ser coagido, etc. Não importa que essas condições   sejam   frequentemente   contrafactuais, isto é, que não estejam sempre presentes em processos comunicativos concretos: trata-se apenas de pressupostos, que podem ou não se realizar, mas são pressupostos necessários, porque sem eles o ingresso na argumentação é impossível. (ROUANET, 1993, p. 224)

Assim,

cada pessoa que ingressa num discurso prático se obriga intuitivamente aceitar procedimentos que equivalem ao reconhecimento implícito do princípio “U”. Não posso, sem contradizer aos pressupostos gerais da argumentação, aceitar, na argumentação moral, que alguns interessados sejam excluídos, que alguns participantes sejam coagidos, que outros não tenham a possibilidade de argumentar em defesa de seus interesses, que outros se arroguem o direito de não seguir a norma. o princípio da universalização está fundamentado. (ROUANET, 1993, p. 224)

Na quinta etapa do debate, Habermas esclarece qual seja o status de fundamentação do princípio “U”, o   qual   se distingue daquele defendido por Apel.  Se   ambas   as concepções – a habermasiana e apeliana – aferram-se à ideia de reconstruir os pressupostos do saber pré-teórico ou intuitivo que estão presentes na comunicação ou na argumentação em geral.  Em Habermas, o procedimento reconstrutivo é concebido como hipotético e falível, enquanto, em Apel, ele é entendido como uma prova a priori.

Este caráter reconstrutivo da ética do discurso habermasiana configura-se, portanto, pelo fato desta ética utilizar reconstruções hipotéticas do saber pré-teórico ou intuitivo dos sujeitos capazes de falar e agir, de maneira falível, procurando aclarar os fundamentos presumidamente universais do falar e do agir. Por isso, ela necessita de uma confirmação por parte desses sujeitos, de modo que eles reconheçam, em cada caso, esses fundamentos.

Na realidade, segundo Habermas, a sua ética do discurso não pode nem precisa erguer uma pretensão última de fundamentação, porquanto uma filosofia transcendental, como a apeliana – ainda excessivamente apegada a figuras do paradigma da filosofia da consciência, como a kantiana -, não se sustenta após a passagem desse paradigma para o da filosofia da linguagem. Assim Habermas afirma:

Tão logo os argumentos transcendentais são desacoplados do jogo de linguagem da filosofia da reflexão e se veem reformulados no sentido de Strawson, o recurso à operação sintetizadora da autoconsciência perde evidência, o objetivo de prova das deduções transcendentais perde o seu sentido e também perde o seu direito àquela  hierarquia que deveria subsistir entre conhecimento a priori  dos fundamentos e conhecimento a posteriori dos fenômenos. (HABERMAS, 1989, p. 145)      

Nesse sentido, Habermas propõe a reconstrução das estruturas da linguagem, mas não de suas características fonéticas, sintáticas ou semânticas, mas sim de suas características pragmáticas, que envolvem todos os elementos constitutivos da ação comunicativa. Assim, Habermas parte de uma guinada linguística para uma guinada pragmática, com a qual se verifica o fim do solipsismo do sujeito, em seu lugar se coloca a intersubjetividade.  Para Habermas, portanto, não apenas sentenças são passíveis de uma análise formal, mas também proferimentos ou atos de fala. Essa análise formal é realizada pela sua pragmática formal ou universal que se propõe a reconstruir os pressupostos universais da competência não apenas linguística, mas comunicativa dos sujeitos falantes.

Assim, segundo Habermas   a pragmática universal resguarda o núcleo que está contido na   fundamentação transcendental, isto é, “a ideia de que podemos nos certificar do caráter insubstituível de determinadas operações intuitivamente executadas desde sempre segundo regras.” (HABERMAS, 1989, p. 18)

Habermas explicita algumas regras pressupostas e seguidas pelos interlocutores. Algumas regras possuem um caráter apenas lógico-semântico, já outras revelam um caráter ético, quais sejam:

(1.1) A nenhum falante é lícito contradizer-se.

(1.2) Todo falante que aplicar F a um objeto a tem que estar disposto a aplicar F a qualquer outro objeto que se assemelhe a a sob todos os aspectos relevantes.

(1.3) Não é lícito aos diferentes falantes usar a mesma expressão em sentidos diferentes […]. 

(2.1) A todo falante só é lícito afirmar aquilo em que ele próprio acredita.

(2.2) Quem atacar um enunciado ou uma norma que não for objeto da discussão tem de indicar uma razão para isso […].

(3.1) E lícito a todo sujeito capaz de falar e agir participar de Discursos.

(3.2) a. É lícito a qualquer um problematizar qualquer asserção.

b. É lícito a qualquer um introduzir qualquer asserção no Discurso.

c. É lícito a qualquer um manifestar suas atitudes, desejos e necessidades.

(3.3) Não é lícito impedir falante algum , por uma coerção exercida dentro ou fora do Discurso, de valer-se de seus direitos estabelecidos em (3. I) e (3.2). (HABERMAS, 1989, p. 110-112)

A pragmática universal habermasiana distingue-se da pragmática-transcendental apeliana, porquanto, sustenta Habermas:

certamente, o   saber intuitivo de regras que os sujeitos capazes de falar e agir tem que empregar para de todo poderem participar de argumentações, não é de certo modo, falível – mas, certamente, são falíveis nossas reconstruções desse saber pré-teórico e a pretensão de universalidade que a ela associamos. (HABERMAS, 1989, p. 120)

 Nesse sentido, a pragmática universal não ergue a pretensão de uma fundamentação última como o faz a pragmática transcendental.  O status da pragmática universal não é senão hipotético-reconstrutivo e o seu caráter falível exige que suas as reconstruções dependam de uma confirmação maiêutica, isto é, confirmação dada pelo próprio interlocutor de uma ação comunicativa.  A pragmática universal depende também de confirmações indiretas que podem ser fornecidas pelas ciências reconstrutivas. Esse é o caso da teoria moral habermasiana que encontra seus traços essenciais na teoria do desenvolvimento da consciência moral de L. Kolhberg.  Assim, a ética do discurso de Habermas pretende ajustar-se fenomenologicamente aos fatos psicológicos.

Entretanto, se a filosofia pode ser de algum modo confirmada, tal como as ciências, isso não significa que não guardem – filosofia e ciência – entre si nenhuma diferença.  Para Habermas, elas encontram-se em relação de complementaridade.  Voltando ao exemplo da teoria moral e da teoria psicológica de Kolhberg, temos a seguinte formulação dessa relação de complementaridade: “A ciência pode, pois, testar se a concepção moral de um filósofo se ajusta fenomenologicamente aos fatos psicológicos.  Contudo, a ciência não pode ir além disso e justificar essa concepção moral como aquilo que a moral deveria ser”. (HABERMAS, 1989, p. 56)

O trabalho cooperativo entre ciência e filosofia pode ser percebido ao longo da história das ciências que por diversas vezes abordaram questões científicas com base em hipóteses filosóficas. De outro lado, de disciplinas científicas, como as das ciências sociais, psicologia e psicanálise surgem temas que, apesar de sofrerem uma abordagem empírica, são passíveis de um tratamento universalista e, portanto, capazes de serem desenvolvidos filosoficamente.

A ética do discurso habermasiana não fornece, portanto, um fundamento último para o agir moral. Na verdade, limita-se a apresentar critérios que possibilitam a formação de consenso em discursos. Na busca cooperativa desse consenso, segundo Habermas, os interlocutores acabam por revelar, não raro, a virtude cognitiva da empatia em relação às suas diferenças recíprocas na percepção de uma mesma situação. (HABERMAS, 2013, p. 10)

Na sexta e penúltima etapa do debate entre o cognitivismo habermasiano e o ceticismo, Habermas procurar fazer ver ao cético que a alternativa de se calar para evitar o fato de assumir pressuposições da ação comunicativa é inviável, porquanto somos arrastados à ação comunicativa por sermos seres comunicativos, não se pode, pensa Habermas, abandonar a prática comunicativa, sem afetar a própria sanidade mental. (HABERMAS, 1989, p. 124-125)

Por fim, na última etapa, trata-se da defesa do caráter formal da ética do discurso.  Como nos diz Luís Araújo, “para Habermas o objetivo da ética discursiva não é orientar na escolha de normas práticas concretas, mas explicar o valor prescritivo de tais normas.” (ARAÚJO, 1997, p. 190) O discurso prático, revela Habermas, não é um processo de geração de normas justificadas, mas, sim, o exame da validade de normas propostas e consideradas hipoteticamente. (HABERMAS, 1989, p. 126)

O caráter formal da ética do discurso habermasiana permite a abertura para a discussão de propostas normativas dos integrantes do discurso, apelando para o reconhecimento de pressuposições assumidas por todos os falantes, de qualquer cultura, quando do ingresso numa ação comunicativa.  As propostas, proposições e pretensões são colocadas pelos interlocutores em discussão, não havendo, portanto, conteúdos previamente estabelecidos pela ética do discurso, a serem introduzidos em debate. O processo discursivo e de busca do consenso é conduzido pelos próprios interlocutores. Esse caráter formal e procedimental da ética do discurso a coloca, assim, imune a eventuais críticas quanto a um suposto etnocentrismo ou de uma alegada imposição cultural, porquanto valores e conteúdos normativos concretos não são inseridos em discussão prática, senão pelos seus participantes, a partir de seus contextos culturais próprios.

Do mesmo modo, o universalismo ético presente na concepção moral discursiva habermasiana extrai esse caráter universal de pressuposições comunicacionais, presentes em toda ação comunicativa, independentemente de contextos sociais e culturais particulares. Não possui, portanto, índole opressiva e dominante, respeitando o pluralismo axiológico e cultural, sem o qual, na verdade, a discussão prática não seria despertada e empreendida.

O universalismo presente na ética do discurso de Habermas brota, portanto, das próprias entranhas da comunicação, independentemente da vontade dos interlocutores, o que evita o etnocentrismo. O caráter formal dessa ética também impede a imposição de normas substantivas não discutidas.

Assim, a ética do discurso habermasiana, nota Manfredo A. de Oliveira, em sendo

uma ética universalista, enquanto se estabelece a partir da consideração dos homens como participantes de uma comunidade ideal de comunicação, portanto como iguais nos direitos e deveres, não se põe a serviço da uniformização repressiva dos estilos individuais e comunitários de vida. Antes, é esse tipo de reflexão ética que tematiza a condição de possibilidade do máximo desenvolvimento de formas de vida individuais e coletivas. (OLIVEIRA, 1993, p.39)

Em sua obra A Inclusão do Outro (Die Einbeziehung des Anderen), de 1996, Habermas reafirma sua ética do discurso, sustentado o seu universalismo inclusivo. Em suas palavras:

A desconfiança moderna diante de um universalismo que, sem nenhuma cerimônia, a todos assimila e iguala não entende o sentido dessa moral e, no ardor da batalha, faz desaparecer a estrutura relacional da alteridade e da diferença, que vem sendo validada por um universalismo bem entendido. […] um universalismo dotado de uma marcada sensibilidade para as diferenças. O mesmo respeito para todos e cada um não se estende àqueles que são congêneres, mas à pessoa do outro ou dos outros em sua alteridade. A responsabilização solidária pelo outro como um dos nossos se refere ao “nós” flexível numa comunidade que resiste a tudo o que é substancial e que amplia constantemente suas fronteiras porosas. Essa comunidade moral se constitui exclusivamente pela idéia negativa da abolição da discriminação e do sofrimento, assim como da inclusão dos marginalizados – e de cada marginalizado em particular-, em uma relação de deferência mútua. Essa comunidade projetada de modo construtivo não é um coletivo que obriga seus membros uniformizados à afirmação da índole própria de cada um. Inclusão não significa aqui confinamento dentro do próprio e fechamento diante do alheio. Antes, a “inclusão do outro” significa que as fronteiras da comunidade estão abertas a todos- também e justamente àqueles que são estranhos um ao outro – e querem continuar sendo estranhos. (HABERMAS, 2002, p. 7-8)

Jeverton dos Santos sintetiza, assim, não apenas o caráter universalista da ética do discurso habermasiana, mas a sua intuição básica:

[…] podemos expor a intuição básica da ética do discurso nos seguintes termos: no dia-a-dia, nenhuma pessoa capaz de falar e agir entra numa discussão com teor moral sem se apoiar no pressuposto de que seja possível chegar a um consenso fundamentado. Este é, inclusive, o sentido genuíno da ideia de diálogo: poder chegar a uma concordância a partir da exposição do ponto de vista de cada envolvido na conversa. A pragmática universal e a teoria do agir comunicativo permitiram – tanto no nível formal quanto sociológico – chegar à compreensão do sentido universal das pretensões de validade normativa. Segundo a sua própria lógica interna, a pretensão de validade normativa surge com a intenção de exteriorizar um interesse social comum a todos os atores sociais envolvidos. Por isso que em uma perspectiva comunicativa a pretensão de validade normativa merece um reconhecimento de todos os afetados, isto é, ela tem o direito de encontrar o assentimento racional de todos os participantes de uma interação linguística. O ponto de vista da moral (moral point of view) na qual se baseia a ética do discurso, por meio da fixação do interesse imparcial e o bem-estar de todos os envolvidos em uma conversação, tem suas raízes nessas pressuposições. (SANTOS, 2015, p. 109-110)

4 CONCLUSÃO

Após as breves análises acima realizadas, pode-se concluir que a guinada linguística e pragmática no pensamento contemporâneo, ao superar o paradigma monológico do sujeito, exerceu, e ainda provoca, profundo impacto no âmbito da filosofia e das ciências humanas e sociais, em especial, na teoria moral, política e jurídica de Habermas.

A ética do discurso de Habermas, que, em virtude do seu caráter racional, formal, universal , não-etnocêntrico e dialógico, revelou-se – num mundo onde a metafísica, secular ou religiosa, já não constitui fonte plausível para a orientação ética, jurídica e política de uma sociedade que prima pelas direitos humanos e por um regime democrático mais efetivamente participativo.

Em sua teoria moral, Habermas sustentou a afirmação do princípio “U”, verdadeiro núcleo da ética do discurso habermasiana. A sustentação desse princípio repousa na constatação hipotético-reconstrutiva de pressuposições pragmáticas inevitáveis presentes na ação comunicativa, cuja evidência e aceitação implícita se revelariam pelo recurso à contradição performativa.

A ética do discurso habermasiana parte do mesmo arcabouço teórico que permitirá a Habermas desenvolver a sua teoria jurídica e política, com a qual defenderá  um regime democrático radical e deliberativo, no qual questões práticas  fossem, por todos os interessados, discutidas racionalmente e a observância dos direitos humanos fosse substantiva e não apenas formal.

Em verdade, a ética do discurso habermasiana pavimenta o caminho para conferir maior força teórica à universalidade dos valores éticos, como a democracia e os direitos humanos. O propósito aqui perseguido foi, porém, traçar, em linhas gerais o percurso habermasiano para a constituição e fundamentação de sua teoria moral, sendo o exame da teoria jurídica e política de Habermas um desafio para investigações futuras.

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[1] Advogado e professor universitário. Aprovado em Banca de Doutorado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), aguardando emissão do diploma. Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Possui Pós-graduação em Direito Público pelo Instituto Processus. Possui Mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Foi professor do Curso de Filosofia e do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília, do Curso de Direito do UniCEUB, do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF), do Centro Universitário Projeção (UniProjeção) e do Centro Universitário ICESP (UnICESP), exercendo também, nessas últimas três instituições, os cargos de Assistente de Coordenação e Coordenador do Curso de Direito. Foi membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do UniCEUB e do ICESP. Atualmente, é Coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário ICESP. Tem mais de 25 (vinte e cinco) anos de experiência docente superior e pesquisas na área de Filosofia e Direito, com ênfase em Ética, Filosofia Política e do Direito, atuando, principalmente, nos seguintes temas: ética do discurso habermasiana, filosofia do direito habermasiana, fundamentação dos Direitos Humanos. Leciona também disciplinas propedêuticas, como Ciência Política e disciplinas técnico-jurídicas, como Direito Internacional Público e Direitos Humanos