A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA E O MODELO DIGITAL DE CAMPANHA ELEITORAL BRASILEIRO

A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA E O MODELO DIGITAL DE CAMPANHA ELEITORAL BRASILEIRO

1 de março de 2023 Off Por Cognitio Juris

THE ECONOMIC CONSTITUTION AND THE BRAZILIAN DIGITAL ELECTORAL CAMPAIGN MODEL

Artigo submetido em 22 de dezembro de 2022
Artigo aprovado em 27 de dezembro de 2022
Artigo publicado em 01 de março de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 45 – Março de 2023
ISSN 2236-3009

Autores:
Allan Thiago Barbosa Arakaki [1]
Maria de Fátima Ribeiro [2]

Resumo: O corrente artigo tem por objetivo principal verificar a necessidade de se compatibilizar o modelo de campanha eleitoral brasileiro com a ordem econômica. Os objetivos secundários, por sua vez, consistem em descrever se houve uma mudança nos formatos de campanhas eleitorais, máxime diante da maciça digitalização delas e se os valores destinados à sua dinâmica estariam atrelados necessariamente ao êxito do candidato. O assunto abordado na pesquisa é nitidamente atual, uma vez que em toda eleição há a destinação de recursos públicos para o financiamento da campanha eleitoral, e, além disso, mostra-se relevante, pois trata da incorporação das tecnologias a esse processo. Cuida-se ainda de uma pesquisa de natureza bibliográfica e documental. O método empregado é o dedutivo, posto que permite uma melhor progressão didática para a abordagem do assunto. Assim, parte-se inicialmente pela abordagem da Constituição Econômica, da ordem econômica e de sua importância. Após, adentra-se à análise da mudança de paradigmas de campanhas eleitorais pela migração de um sistema tipicamente analógico para um modelo digitalizado. Ao fim, aborda-se a pretensão inicial, qual seja, observar se, diante do novo paradigma de campanha eleitoral digitalizado, haveria uma necessidade de compatibilização daquele com a ordem econômica. O referencial teórico utilizado consiste na própria Constituição Econômica e na Teoria dos Sistemas.

Palavras-chave: Constituição Econômica; Campanha eleitoral; Digitalização da campanha; Teoria dos Sistemas.

Abstract: The main objective of this article is to verify the need to make the Brazilian electoral campaign model compatible with the economic order. The secondary objectives, in turn, consist of describing whether there has been a change in the formats of electoral campaigns, especially in the face of their massive digitization and whether the values ​​intended for their dynamics would necessarily be linked to the candidate’s success. The subject addressed in the research is clearly current, since in every election there is the allocation of public resources to finance the electoral campaign, and, in addition, it is relevant, as it deals with the incorporation of technologies to this process. There is also a research of a bibliographic and documentary nature. The method used is deductive, since it allows a better didactic progression to approach the subject. Thus, it starts initially with the approach of the Economic Constitution, the economic order and its importance. Afterwards, the analysis of the paradigm shift of electoral campaigns by the migration of a typically analog system, characterized by a face-to-face personality, to a more digital model is analyzed. In the end, the initial intention is approached, that is, to observe if, in the face of the new paradigm of electoral campaign, there would be a need to make it compatible with the economic order. The theoretical framework used consists of the Economic Constitution itself and the Theory of Systems.

Keywords: Economic Constitution; Election campaign; Campaign digitization; Theory of Systems.

INTRODUÇÃO

As campanhas eleitorais são um importante instrumento por meio do qual os candidatos expõem suas ideias e projetos a fim de amealhar os votos dos quais necessitam para se elegerem. Trata-se de ferramenta imprescindível ao funcionamento da democracia e que vem assumindo cada vez mais um corpo dinâmico e mutável. O elo entre as campanhas eleitorais e a democracia é perceptível e, em um contexto cada vez mais digitalizado e instantâneo, emerge como oportuno o respectivo estudo. 

A partir dessa premissa, o corrente artigo possui como objetivo principal verificar a necessidade de se compatibilizar o modelo de campanha eleitoral brasileiro com a ordem econômica. Como objetivos secundários, por sua vez, procura-se descrever se houve uma mudança nos formatos de campanhas eleitorais, máxime diante da maciça digitalização, e se os valores destinados à sua dinâmica estariam necessariamente atrelados ao êxito do candidato.

O assunto abordado é nitidamente atual em razão da frequente destinação de recursos públicos para o financiamento das campanhas eleitorais, movimentando cifras bilionárias do orçamento público. A relevância, em igual sentir, é clarividente, sobretudo pela imprescindibilidade de se tratar da incorporação das tecnologias a uma fase importante do processo eleitoral, propiciando o questionamento real da necessidade de se utilizar cifras robustas do recurso público para tanto.

Cuida-se ainda de uma pesquisa de natureza bibliográfica e documental. O método empregado é o dedutivo, posto que permite uma melhor progressão didática para a abordagem do assunto e para o atendimento dos objetivos propostos. Assim, parte-se inicialmente pela abordagem da Constituição Econômica, da ordem econômica e de sua importância a fim de contextualizar o leitor.

Após, explora-se a mudança de paradigmas de campanhas eleitorais pela migração de um sistema tipicamente analógico, caracterizado por uma pessoalidade física do candidato, para um modelo mais digital, em que a presença do candidato se torna digital. Ao fim, aborda-se o objetivo principal, qual seja, observar se, diante do novo paradigma de campanha eleitoral, haveria uma necessidade de compatibilização daquele com a ordem econômica.

Os referenciais teóricos utilizados, por fim, consistem na própria Constituição Econômica e na Teoria dos Sistemas luhmanniano.

1 APONTAMENTOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA BRASILEIRA E A ORDEM ECONÔMICA

A partir do início do século XX, principalmente diante da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919, incorporou-se a compreensão da existência de uma Constituição Econômica, o que, no âmbito do Brasil, sobreveio inicialmente pela Carta Republicana de 1934, sucedendo-se nas demais Cartas Constitucionais brasileiras, consoante rememora Washington Albino de Souza (1989, p. 60-61).

Desde a Constituição Federal brasileira de 1934, tornou-se tradição a concepção de uma Constituição Econômica no bojo das Cartas Constitucionais, transpassando a mera circunscrição dos perímetros formais (ARAKAKI; RIBEIRO, 2022, p. 211). Significa dizer, em outras palavras, que, desde a Constituição de 1934, as Constituições brasileiras que se sucederam tratam de diversos dispositivos que abordam direta ou indiretamente a ordem econômica.

Sob esse prisma, a Carta Republicana de 1988 formalmente tratou da ordem econômica no Título VII (art. 170 ao art. 192), sendo imperioso reconhecer que o eixo fundante da própria ordem econômica e, portanto, da Constituição Econômica, é o art. 170 da CF/88, traçando balizas e vetores da organização daquela. Sucede, contudo, que não se podem compreender a ordem econômica e a Constituição Econômica como expressões meramente sinônimas.

Com efeito, António Carlos dos Santos (2006, p. 475), ao definir a Constituição Econômica, já percebia a dimensão abrangente dela, asseverando que são: “normas da lei fundamental […] relativas às relações econômicas e à ordem jurídico-econômica, sejam elas de natureza estatutária (de garantia do sistema econômico) ou de direção, orientação, desenvolvimento ou mesmo transformação desse sistema”.

Apesar de a ordem econômica integrar e figurar como centro gravitacional da Constituição Econômica, esta alberga diversas disposições que tratam da matéria econômica e de estruturação (GRAU, 2018, p. 77; SANTOS, 2016, p. 476), podendo estar, segundo ensina André Cyrino (2017, p. 957), espalhadas por textos que não integrem necessariamente a própria Constituição Federal, desde que cuidem de questões econômicas.

A par de tal compreensão, a Carta Constitucional brasileira de 1988, de fato, possui, como centro da ordem econômica, o art. 170 que garante uma diretriz hermenêutica para balizar o intérprete. Porém, outros enunciados constitucionais são igualmente relevantes para o forjamento da Constituição Econômica, como exemplificativamente podem ser citados o art. 1º, ao tratar dos fundamentos do Estado brasileiro, o art. 3º, ao abordar os objetivos do Estado brasileiro, e, inclusive, os direitos e as garantias fundamentais.

É cediço que os direitos e as garantias fundamentais integram a Constituição Econômica, uma vez que inúmeras questões atuam direta ou indiretamente na ordem econômica, como, por exemplo, a função social da propriedade (art. 5º, XIII), o dever de os entes federados implementar políticas públicas assecuratórias à saúde, educação, lazer (art. 6º, caput). Nesse contexto, situa-se justamente a compreensão de que os direitos políticos integram a própria Constituição Econômica.

Embora os direitos políticos possuam como fundamento propiciar a participação da vida política do Estado, é sabido que não há como se atingir os objetivos estruturantes do Estado (art. 3º, incisos, CF/88) ou consolidar as políticas públicas, relacionadas à ordem econômica, de forma apartada da participação política. Assim, não soa como exagerado identificar que os direitos políticos possuem íntima relação com a Constituição Econômica e podem ser considerados como integrantes, ainda que indiretamente, dela.

Considerando que os direitos políticos não são apartados da Constituição Econômica, ao contrário disso, possuem nítido elo, como consequência, compreende-se que os direitos políticos devem buscar uma harmonização com a disposição constitucional estruturante da Constituição Econômica. Em outras palavras, os direitos políticos e o art. 170 da CF/88 devem ser lidos de forma harmônica e coesa, sendo inconcebível a existência de distrofias entres ambos, o que colocaria em xeque a plenitude e a coerência do sistema constitucional (CALLEJÓN, 2014, p. 32).

Rui Limongi França (1995, p. 30-31), em igual sentido, ao estabelecer postulados hermenêuticos, advertia ao intérprete que: “[…] c) Deve ser afastada a exegese que conduz ao vago, ao inexplicável, ao contraditório e ao absurdo […]”. Ao estabelecer, destarte, que os direitos políticos e o art. 170 da CF/88 devem receber tratamento que busque a congruência entre eles, verbera como perceptível que necessariamente as campanhas eleitorais, sendo uma etapa integrante do processo democrático, devem coadunar com a Constituição Econômica.

Isso porque os direitos políticos, sob a visão individualista, ou seja, do direito-dever de o indivíduo participar da vida política estatal, integra um processo mais amplo que concerne ao funcionamento do regime político estatal, dentro do qual o indivíduo se encontra inserido. No caso, o funcionamento da democracia, por intermédio de seus representantes eleitos diretamente, impõe a realização de eleições periódicas e com o voto direto e universal (BUGALHO, 2008, p. 24), o que, inclusive, diante da tamanha importância, foi inserido como cláusula pétrea, consoante o art. 60, § 4º, II, da CF/88.

Aliás, o Direito Eleitoral, assimilado como “ramo do Direito Público que trata de institutos relacionados com os direitos políticos e das eleições, em todas as suas fases, como forma de escolha dos titulares dos mandatos eletivos e das instituições do Estado” (CÂNDIDO, 2006, p. 27), não é estranho à Constituição Econômica. A própria Constituição Federal de 1988 possui inúmeras disposições de Direito Eleitoral que se permeiam com a ordem econômica, máxime no que concerne às campanhas eleitorais financiadas pelo ente público em cifras bilionárias que gera um impacto econômico robusto.

Ademais, a imprescindibilidade das campanhas eleitorais para a democracia representativa é patente, uma vez que esta, enquanto sistema de governo, como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2018, p. 18), seria “caracterizado por determinadas instituições, que dão ao povo participação efetiva na governança, senão a escolha dos governantes, influência na orientação dessa mesma governança, dentro de um clima de liberdade e com respeito à igualdade”.

Imperioso destacar que a democracia não pode ser visualizada apenas como o governo da ditadura da maioria, mas, principalmente, deve ser garantido o espaço para que as minorias participem dos governos e, mais do que isso, possam conquistá-lo num futuro, conforme rememora Arend Lijphart (2019, p. 24) ao tratar das democracias consensuais.

Segundo o referido autor (2019, p. 24), a democracia consensual consiste justamente em satisfazer o máximo de pessoas dentro de uma possibilidade, o que é a tônica do próprio regime democrático brasileiro. Não se devem atender apenas os interesses da maioria ocasional, levando à ditadura da maioria, mas sim a satisfação do maior número de pessoas, albergando, inclusive, a minoria (LIJPHART, 2019, p. 24).

Apesar de as decisões serem tomadas por maioria, a Constituição Federal brasileira de 1988 preservou os direitos das minorias, em geral, excluídas socialmente, buscando uma ótica inclusiva. Para além disso, desempenha a Carta Maior um papel contramajoritário, salvaguardando o direito das minorias dentro do processo parlamentar, como é o caso das Comissões Parlamentares de Inquérito. Enfim, é cristalina a tônica de democracia consensual desenhada pela Carta Republicana brasileira de 1988. 

Nesse aspecto, dentro das campanhas eleitorais, ocasião em que os candidatos debatem propostas e se apresentam ao eleitor, não se pode ignorar que o papel do Direito Eleitoral e a função da Constituição Econômica assumem importante relevo para o próprio funcionamento da democracia representativa e consensual, procurando um ponto de equilíbrio entre o dissenso natural ao embate de ideias e a organização da ordem econômica.

É possível entender, imerso nesse cenário, que as campanhas eleitorais, reguladas pelo próprio Direito Eleitoral, não podem ser assimiladas de forma totalmente divorciada da Constituição Econômica e da ordem econômica, como se houvesse um hiato semântico entre ambos ou como se fossem realidades totalmente estanques e incomunicáveis.

De fato, questões levadas a efeito nas campanhas eleitorais, sob a égide do Direito Eleitoral, podem trazer consequências econômicas que serão identificadas e internalizadas pela ordem econômica. Assim, demanda-se uma visão confluente entre as campanhas eleitorais e a Constituição Econômica, visto que não são fenômenos absolutamente estranhos, situados em universos individualizados, mas, ao contrário disso, demandam uma compreensão conjunta e de equilíbrio.

2 DAS CAMPANHAS ELEITORAIS TRADICIONAIS PARA AS CAMPANHAS ELEITORAIS DIGITAIS

Discorrido sobre o elo entre as campanhas eleitorais e a Constituição Econômica, mister se faz analisar o formato das campanhas eleitorais brasileiras e eventual desenvolvimento de um novo modelo, bem como a necessidade do emprego das cifras bilionárias destinadas para tanto diante de eventual mudança no formato da publicidade eleitoral.

A começar, interessante não olvidar que o sistema político brasileiro não permite a candidatura avulsa, sendo imprescindível o registro de candidatura do interessado a concorrer no pleito eleitoral em uma agremiação partidária, consoante o art. 14, §3º, V, da CF/88. Os partidos políticos, atualmente 32 registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE, 2022a), recebem recursos financeiros do Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (FP) e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC).

O Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos encontra previsão no art. 38 da Lei nº 9.096/95, porém, já possuía amparo desde a Lei nº 4.740/60, sendo que a ratio legis, a princípio, seria para pagar os custos da própria agremiação e usar o remanescente para a campanha eleitoral (ARAKAKI, 2021, p. 69). Já, quanto ao Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), este sobreveio de uma reação do Congresso Nacional ao julgamento da ADI 4650, pela Suprema Corte brasileira, proibindo a doação de pessoas jurídicas privadas às campanhas eleitorais.

Diante da proibição da doação de pessoas jurídicas às campanhas eleitorais, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 13.487/17, a qual consistiu em conceber o Fundo Especial de Financiamento de Campanha, integrado por dotações orçamentárias da União, a serem rateadas pelas agremiações partidárias de acordo com a respectiva proporcionalidade (art. 16-C). É imprescindível não olvidar que o FEFC surgiu da vedação do financiamento da doação de pessoas jurídicas privadas para as campanhas eleitorais, como efeito backlash.

Já, em relação ao FP, tendo em vista a sua previsão desde a Lei nº 4.740/60 e, mais tarde, com a Lei nº 9.096/95, era justificável o funcionamento dele dentro de uma dinâmica de custos para a manutenção do próprio partido e de uma ótica de campanha eleitoral presencial, em que havia uma baixa incorporação das tecnologias. Apontava-se, nesse sentido, para a preponderância de:

um modo tradicional de campanha eleitoral, caracterizado pela contratação de cabos eleitorais e pessoas para trabalharem na dinâmica presencial fisicamente, sem prejuízo da confecção de diversas bandeiras com a imagem e número do candidato, impressão de variados panfletos ou papeis com propostas, imagem e/ou número daquele, chamados santinhos. (ARAKAKI, 2021, p. 69).

Embora impossível de mensurar exatamente a data exata, a disseminação de novas tecnologias e a incorporação das mídias sociais como itens essenciais no marketing político-eleitoral inauguraram um novo formato de campanha político-eleitoral, dentro do qual se tornou imprescindível o uso das redes sociais (facebook, twitter, instagram, etc) pelos candidatos. Se antes, na fórmula tradicional de campanha eleitoral, justificadora do FP, era impensável o candidato possuir redes sociais, atualmente, o inimaginável é justamente o candidato não as possuir.

A respeito da mudança de paradigma da campanha eleitoral, mister se faz rememorar que os subsistemas sociais não são isolados, porquanto são fechados operativamente, mas abertos cognitivamente, consoante destaca a teoria luhmanniana (VITA, 2010, p. 39). Implica dizer que os subsistemas sociais se formulam, produzindo seus próprios elementos, por meio do atendimento do código e programação próprios, o que impõe à sua autopoiese (LUHMANN, 2016, p. 74). 

A Teoria dos Sistemas não possui por foco o ser humano como eixo do sistema, mas sim a própria comunicação, figurando a própria sociedade enquanto um produto da comunicação (TRINDADE, 2008, p. 35). A sociedade, como comunicação, o movimento autopoiético, o fechamento cognitivo dos sistemas/subsistemas e a abertura cognitiva são elementos fundamentais para a compreensão do modelo digital de campanha eleitoral, substituindo progressivamente a presença física e corpórea do candidato na campanha corpo a corpo por uma presença onipresente e virtual.

Com efeito, a partir das irritações provocadas pela disseminação das mídias sociais e a proximidade provocada por elas entre candidatos e eleitores e, sobretudo, diante da dinamização das comunicações, o subsistema social provocou a incorporação delas ao formato das campanhas eleitorais tradicionais. Assim, ante a irritação no entorno do sistema, consistente nas mídias sociais e na inevitável digitalização das campanhas eleitorais, o próprio sistema jurídico fez nascer novas comunicações dentro de si, propulsionado pelo movimento autopoiético.

Sob esse prisma, o Direito, por intermédio do atendimento de sua codificação lícito/ilícito (CORSI; ESPOSITO; BARALDI, 1996, p. 54), buscou regulamentar o uso das mídias sociais para as campanhas eleitorais, tutelando melhor as questões ligadas à tecnologia e às campanhas eleitorais. Sucede que o tempo analógico difere do tempo digital (LUHMANN, 2016, p. 349), o qual é considerado no âmbito do sistema, no caso, do próprio Direito, sendo que nitidamente os sistemas sociais com movimentos mais ágeis são aqueles influenciados pela difusão tecnológica (VITA, 2010, p. 133).

Esse hiato temporal entre o tempo digital, focado na análise intrassistêmica, e o tempo analógico, visualizado de forma metassistêmica, permite compreender que, embora o Direito tenha tentado assimilar as irritações, esboçando a pouca regulamentação existente quanto à digitalização do espaço de campanha eleitoral, ainda há um grande vácuo pendente de preenchimento e de estabelecimento de diretrizes.

Além da diferença entre os tempos digital e analógico, pontos nodais da teoria luhmaniana, interfere também a comunicação entre o subsistema do Direito e o subsistema da Política, cada qual possuindo tempos diferentes. Esse quadrante temporal e comunicacional permite a existência desse vácuo da regulamentação das campanhas digitais, predominando, por outro lado, as disposições das campanhas eleitorais de um período em que sequer havia qualquer incorporação tecnológica nelas. 

Mostra-se evidente, portanto, ao menos no plano dos fatos, que as campanhas eleitorais tradicionais, quando do surgimento do Fundo Partidário, datado de 1965 e 1995, não encontram mais guarida diante da difusão tecnológica e da incorporação das mídias sociais ocorridas nas últimas eleições, tornando ainda mais incompreensível o Fundo de Financiamento de Campanha Eleitoral.

Mesmo com a vedação da doação de pessoas jurídicas para as campanhas eleitorais, não se mostra razoável endossar o financiamento de campanha eleitoral, por intermédio de recursos públicos, tendo por justificativa o fenômeno backlash, máxime em havendo alteração substancial do formato de campanha eleitoral.

Nesse ponto, não se pode ignorar dois pontos históricos que dimensionam a digitalização das campanhas eleitorais: a) a campanha eleitoral presidencial de 2018; b) as campanhas eleitorais municipais de 2020 (ARAKAKI, 2021, p. 70). Na campanha presidencial de 2018, o candidato que venceu o pleito, Jair Bolsonaro, ao invés de utilizar valores exorbitantes do fundo eleitoral, com o formato tradicional, preferiu migrar para a divulgação ostensiva em mídias sociais, lives, facebook, instagram, twitter, garantindo-lhe a vitória.

Insta ainda rememorar que, na campanha presidencial de 2018, os candidatos que mais se beneficiaram dos fundos partidários, provenientes de siglas tradicionais do eleitorado brasileiro (MDB, PT e PSDB), foram derrotados (TSE, 2019). O MDB, que à época recebeu a maior parcela do fundo, seguido pelo PT e pelo PSDB (TSE, 2019), obteve desempenho eleitoral de 1,20% dos votos válidos, ficando em 7º lugar no primeiro turno.

O PT, apesar de ter seguido para o segundo turno nas eleições presidenciais de 2018, tendo usufruído da segunda maior cota do fundo eleitoral, perdeu para Jair Bolsonaro, o qual era proveniente de uma agremiação partidária pequena, diante de uma diferença acima de 10% dos votos válidos entre os candidatos no segundo turno. (MAZUI, 2018).

O PSDB, por sua vez, terceiro partido que mais obteve recurso financeiro do fundo de financiamento, nas eleições presidenciais de 2018, tal qual o MDB, sequer chegou ao segundo turno, tendo o candidato da agremiação ficado em 4º lugar, com 4,76% dos votos válidos, no primeiro turno. (MAZUI, 2018).

Nitidamente é perceptível que o financiamento público da campanha eleitoral e a destinação de cifras altas não necessariamente implicarão a vitória a respectivo candidato que for mais contemplado por esse modelo, posto que a disseminação das comunicações, por intermédio das mídias sociais, inaugurou um formato mais dinâmico de campanha eleitoral e democrático.

Somem-se a esse fenômeno as eleições municipais de 2020, quando então ocorrendo a pandemia de COVID-19 no mundo, com índices alarmantes no Brasil, o Congresso Nacional manteve as eleições municipais. Nesse cenário, o próprio Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Mato Grosso do Sul aprovou a Resolução nº 700 (TRE-MS, 2020), incorporando as restrições para evitar a disseminação de COVID-19 aos atos de campanha eleitoral, determinando que os candidatos evitassem contato físico (art. 1º, §2º), o que evidentemente exigiu dos candidatos maior exploração dos canais tecnológicos e das mídias sociais.

 As campanhas eleitorais municipais de 2020, em razão da pandemia de COVID-19, exigiu que o modelo tradicional fosse adaptado urgentemente para um novo formato em que se preponderaria a presença digital do candidato com o eleitor, como realização de lives, grupos de whatsapp, entre outros. O contato entre eleitor-candidato não foi perdido, porém, inevitavelmente foi sendo substituído para uma presença mais digital, normalizando a incorporação e a adaptação das tecnologias e da difusão das comunicações à realidade das campanhas eleitorais.

Ademais, a digitalização das campanhas, fator inevitável no atual momento, refrata aspectos substanciais da democracia digital, sobretudo, no que concerne à abertura da seleção da decisão política, por intermédio do debate e da deliberação (GOMES, 2005, p. 220). Abre-se, enfim, o canal para uma nova noção democrática, permitindo que haja relação entre o próprio sistema político e o social sem a necessidade de diversos intermediários, consoante rememora Wilson Gomes (2005, p. 218).

Tal qual na teoria dos sistemas, a difusão e as inovações tecnológicas inauguraram um novo formato de propulsão comunicacional, o que atinge inevitavelmente os formatos das campanhas eleitorais, eis que: “É a própria comunicação que produz comunicação (autopoiesis da comunicação), afinal, só por comunicação é possível se comunicar (autorreferência da comunicação).” (SILVA, 2016, p. 52).

Observada a incorporação das tecnologias ao formato das campanhas eleitorais, inaugurando um formato diferenciado, com maior potencial de disseminação das comunicações e sem maiores custos, mister se faz analisar se as campanhas eleitorais digitais, como vem ocorrendo no Brasil, atualmente encontram guarida na Constituição Econômica brasileira ou, ao contrário disso, conflitam com esta.

3 A COMPATIBILIZAÇÃO DO MODELO DIGITAL DE CAMPANHA ELEITORAL COM A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA BRASILEIRA

Para se responder se haveria ou não compatibilidade do modelo digital de campanha eleitoral, na forma como vem se processando no Brasil, com a Constituição Econômica, é preciso se compreender a dimensão do financiamento público das campanhas eleitorais, o que não é irrelevante. Já, nas eleições municipais de 2020, de acordo com a Lei Orçamentária Anual, foram destinados mais de R$ 2.034.954.823,96, somente a título de FEFC, enquanto o FP foi de R$ 959.015.755,00. (ARAKAKI, 2021, p. 72).

Para as eleições de 2022, somente o FEFC, rateado entre as agremiações partidárias, foi de R$ 4,9 bilhões, sem prejuízo do FP (TSE, 2022b), o que demonstra incoerentemente as cifras bilionárias movimentadas para o financiamento de campanhas eleitorais que, com incorporação das tecnologias e das mídias sociais acessíveis gratuitamente, deveriam implicar a diminuição dos custos ou ao menos o estancamento dos gastos públicos.

É perceptível que, a par da disseminação de um formato tecnológico de campanha eleitoral digital, não se realizou a devida compatibilização com a Constituição Econômica. Criou-se e se agravou um cenário dentro do qual se gastam cifras bilionárias em campanhas eleitorais, para justificar o uso do recurso financeiro, sem qualquer relação entre dinheiro gasto e eficiência na conquista do eleitorado dentro da dinâmica da campanha eleitoral.

A campanha eleitoral presidencial de 2018 e as campanhas municipais de 2020 demonstraram, com clareza solar, a possibilidade de se fazer campanha eleitoral sem a necessidade do formato tradicional, com gastos bilionários na contratação de pessoas, impressão de papeis, sem qualquer prejuízo quanto ao desempenho do candidato nas urnas. Figura-se, nesse sentido, extremamente conflitante à Constituição Econômica a manutenção do financiamento de campanha eleitoral, nos valores extraordinários, diante da inevitável digitalização dela e da possibilidade de torná-la menos custosa.

A incorporação das tecnologias às campanhas eleitorais inevitavelmente criou um hiato e um lapso com o formato tradicional e presencial. Implica dizer que a adoção de tecnologias às campanhas eleitorais fez emergir uma expectativa no próprio sistema do Direito e que não veio ainda a ser satisfeito a contento. Surgiu-se então uma séria discrepância diante da regulamentação existente e lastreada no modelo anacrônico de campanha eleitoral, ignorando as campanhas digitalizadas e todo o seu potencial eleitoral, ao menos na ótica do sistema do Direito.

Conforme descrito alhures, a Constituição Econômica não reside apenas na ordem econômica, embora esta seja o seu centro gravitacional. Encontra a Constituição Econômica disseminada pelos diversos enunciados constitucionais. Sob esse aspecto, observa-se que é impossível a construção de uma sociedade mais justa e a erradicação da pobreza (art. 3º, I, III, da CF/88) ao se permitir que cifras bilionárias sejam despendidas em campanhas eleitorais, prendidas economicamente em um formato pretérito, enquanto 33 milhões de brasileiros encontram-se na faixa da insegurança alimentar. (MAIS…, 2022).

No mesmo sentido, sob o enfoque do art. 170 da CF/88, as campanhas digitais necessitam de urgente redimensionamento, pois praticamente conflitam com todo o dispositivo constitucional. A começar, além de tornar inócuo o art. 3º, I, III, da CF/88, o financiamento de campanhas eleitorais em cifras bilionárias, contraria o art. 170, VII, da CF/88, uma vez que, ao invés de corrigir e reduzir desigualdades sociais, agrava-as substancialmente.

Conveniente ainda esclarecer que a digitalização das campanhas eleitorais, embora ainda economicamente processadas como se ainda não tivessem sofrido qualquer impacto da sobrevinda das tecnologias disponíveis atualmente, propicia um conflito que transborda o mero desrespeito ao art. 170, VII, da CF/88. Com efeito, tal conduta contraditória de, por um lado, incorporar as mídias sociais para as campanhas eleitorais e, por outro, manter o financiamento como se estivesse no modelo pré-digital, ofende o item 10.2 da Agenda 2030. (ONU, 2022a).

Inexiste inclusão social e muito menos qualquer redução de desigualdades sociais sem uma otimização do uso dos recursos público, o que necessariamente perpassa pelo estabelecimento do que é prioridade na agenda pública. Esta não deveria oscilar de acordo com as vontades de cada governo, mas deveria sim ser perenizada segundo o que estabelece a Carta Constitucional de 1988, situação muito distante da realidade.

Ademais, para além da questão social, o formato de campanha eleitoral tradicionalmente concebido destoa claramente da livre concorrência, baliza fundamental da ordem econômica e da Constituição Econômica, na forma do art. 170, IV, VI, da CF/88. Isso porque, como é cediço, as agremiações partidárias são pessoas jurídicas de direito privado na forma do art. 44, V, do CC, motivo pelo qual não se submetem à fiscalização dos Tribunais de Contas e muito menos ao regime de direito público, como a necessidade de contratação por concurso, licitação, entre outros pontos.

Significa, em outras palavras, que, além de pessoas jurídicas de direito privado serem beneficiadas em cifras bilionárias por recursos públicos, aquelas apenas prestarão contas formalmente à Justiça Eleitoral, cujo papel evidentemente não é contábil e possui competência restrita quanto à análise da prestação de contas. Evidentemente que, sem prejuízo da falta de fiscalização mais apurada, ocorre claramente ofensa ao princípio da livre concorrência, eis que permite à agremiação partidária realizar os gastos, desde com os documentos formais mínimos, sem qualquer concorrência.

A possibilidade de a agremiação partidária, munida de recursos públicos, possa, de acordo com os seus principais nomes, realizar gastos diretamente, sem qualquer procedimento amplo e formal que propicie a ampla concorrência, como a licitação, evidentemente traz prejuízo ao princípio da livre concorrência. Por vezes, o indivíduo atuante no mesmo nicho dentro do qual a agremiação partidária deseja contratar não conseguirá êxito simplesmente por ignorar essa possibilidade e os trâmites para competição.

Enfim, é sabido que o princípio da livre concorrência não é um fim em si (SAAVEDRA, 2013, p. 1802) e exige não só um conflito entre potenciais concorrentes, porém, de igual maneira, uma postura de neutralidade estatal, conforme destaca Eros Roberto Grau:

b.1) faculdade de conquistar a clientela, desde que não através de concorrência desleal – liberdade privada; b.2.) proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência – liberdade privada; b.3) neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos concorrentes – liberdade pública (GRAU, 2018, p. 200).

A entrega de uma cifra robusta de recursos públicos financeiros a pessoas jurídicas de direito privado para gastos de campanha, sem paridade competitiva, ainda que potencialmente, propicia clara afronta ao dever de neutralidade estatal concorrencial, eis que permite que a própria agremiação escolha a quem contratar desde que tenha um mínimo de documento formal para prestação de contas à Justiça Eleitoral.

Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência não podem ser lidos de forma absoluta, simplesmente, adotando-se a prática do laissez-faire. Walkíria Ferrer e Marisa Rossignoli (2018, p. 41) elucidam que “A lógica do livre mercado nem sempre garantirá os direitos sociais a toda população […]”, motivo pelo qual a possibilidade de se franquear recursos públicos a pessoas jurídicas privadas para contratar particulares, sem regramento que permita um mínimo de paridade competitiva entre estes, vai de encontro ao princípio da livre concorrência.

Ademais, imperioso, de igual forma, mencionar que a manutenção da campanha eleitoral tradicional, sobretudo, diante da inevitável digitalização de seu formato, ofende claramente o princípio da defesa ao meio ambiente, previsto no art. 170, VI, da CF/88. Isso porque, tendo a instantaneidade da comunicação assumido papel primordial dentro do subsistema das campanhas eleitorais, mostra-se obsoleto destinar recursos do erário à confecção de materiais impressos, como santinhos ou propostas dos candidatos, os quais muitas vezes são jogados na lixeira ou nas próprias ruas.

A prática incoerente de se assimilar um formato digitalizado de campanha eleitoral, porém, permitindo a existência de traços da campanha pré-digital ou analógica, criou um verdadeiro centauro injustificável. Tal qual na história mitológica, a figura metade humana e metade animal reflete bem o cenário metafórico das campanhas eleitorais. Embora seja ambientalmente recomendável evitar impressões gráficas como forma de preservação ao meio ambiente, jorram-se recursos financeiros do próprio erário para as agremiações partidárias realizarem essas impressões, o que é um oxímoro.

Além da ofensa às disposições constitucionais de proteção ao meio ambiente, tal prática vai de encontro ao item 12.2 da Agenda 2030. (ONU, 2022b). Para se atingir a sustentabilidade ambiental e a utilização eficiente dos recursos naturais finitos, necessariamente essas incoerências, sobretudo, partindo do ente público, devem ser corrigidas.

Não se diga, ademais, que a impressão de materiais gráficos seria imprescindível para as campanhas eleitorais a fim de atingir o público excluído digitalmente. A respeito desse ponto, as eleições presidenciais de 2018, em que o candidato vencedor não foi o que mais recebeu recursos dos fundos públicos de campanha eleitoral, bem como teve a campanha dele voltada à utilização maciça das ferramentas digitais, demonstram justamente o contrário.

O contexto das campanhas eleitorais presidenciais de 2018 deixam claro que é possível a realização de campanhas eleitorais, sem a utilização de cifras bilionárias dos fundos públicos, atingindo o eleitorado, e, inclusive, o candidato lograr êxito em vencer o pleito. Não há, por conseguinte, correlação exata entre quantias exorbitantes dos fundos de financiamento de campanha e necessariamente o êxito do candidato no pleito eleitoral, posto que a incorporação das mídias sociais e das tecnologias propiciou uma democratização maior do ambiente.

Soa como sendo extremamente contraditório o comportamento do ente estatal que envida esforços em campanhas educativas voltadas à conscientização da população para evitar impressões gráficas, porém, de forma ilógica, em se tratando de campanhas eleitorais, permite que o recurso público seja utilizado justamente com os materiais gráficos e impressões que se fala para a população evitar. Enfim, o comportamento do próprio ente estatal se torna incoerente diante da dinâmica de uma campanha eleitoral, cuja relevância tem se assentado na dinamização e na instantaneidade das comunicações, principalmente, por intermédio das mídias sociais.

O acoplamento estrutural necessário para a comunicação entre os diversos sistemas e subsistemas sociais é fundamental para a manutenção da abertura cognitiva, evitando com isso que o sistema se torne um fóssil, perdido no seu próprio hermetismo. A Teoria dos Sistemas, sob esse aspecto, trabalha com o fechamento operativo do sistema e do subsistema, mas jamais permite abdicar-se da abertura cognitiva, responsável por permitir, ao lado do acoplamento estrutural, a produção de novos elementos e a renovação do próprio sistema.

Sob essa dimensão, mister se faz verificar que a ausência de incorporação definitiva das campanhas eleitorais digitais, deixando de lado o formato tradicional, vem criando um verdadeiro centauro dentro da relação entre os sistemas e subsistemas. Isso porque, se de um lado as tecnologias, no futuro presente (LUHMANN, 2016, p. 160-161), edificaram inúmeras possibilidades, como a diminuição dos custos de campanha e a eliminação de práticas ambientalmente insustentáveis, no cenário de presente futuro (LUHMANN, 2016, p. 160-1), contrasta-se com uma regulamentação arcaica.

Esse movimento disruptivo, obviamente, cria um cenário contrastante entre as campanhas eleitorais implementadas e a Constituição Econômica, mais precisamente a própria ordem econômica, permitindo o surgimento de pontos contraditórios como os aqui descritos. As irritações do entorno do subsistema evidentemente estão exigindo uma nova regulamentação do sistema do Direito e que seja coerente e consentânea à ordem econômica, máxime, para corrigir as distorções operacionalizadas entre as campanhas eleitorais e a ordem econômica.

CONCLUSÃO

As eleições presidenciais de 2018 e o pleito municipal de 2020 demonstram, com clarividência, que a incorporação de novas tecnologias aos formatos de campanha eleitoral se tornou uma realidade, propiciando uma difusão de comunicação cada vez mais instantânea e democrática. Se anteriormente o formato de campanha eleitoral era caracterizado pela imprescindibilidade de altos recursos financeiros, com equipes numerosas, com o contato físico entre eleitor-candidato, atualmente o contato digital se tornou imperioso, trazendo ao centro das campanhas a instantaneidade da comunicação.

Sob essa dinâmica mais ágil de propulsão comunicacional, torna-se incontestável a necessidade de se compatibilizar os formatos das campanhas eleitorais à Constituição Econômica e, mais precisamente, à ordem econômica. Não faz qualquer sentido permitir a permanência das balizas retrógradas e os recursos financeiros robustos para campanhas eleitorais, gestadas em um formato totalmente presencial e custoso, olvidando a incorporação das ferramentas tecnológicas e seus benefícios.

Aliás, a incorporação das tecnologias aos formatos de campanha eleitoral, inexistindo a mudança formal na sua regulamentação, permitiu a ocorrência de distrofias que vem acarretando uma quebra do atendimento da expectativa normativa do sistema do Direito. Diante de tal cenário, observa-se um grande contraste entre o funcionamento das campanhas eleitorais, como concebido originalmente e como se modificou, com a Constituição Econômica, gerando questionamentos a respeito da real efetividade da democracia.

O hiato existente entre as campanhas eleitorais e a Constituição Econômica são perceptíveis. Os valores bilionários aportados para pessoas jurídicas de direito privado, permitindo que tais agremiações partidárias só prestem contas formalmente à Justiça Eleitoral, sem qualquer fiscalização do Tribunal de Contas, demonstram a distrofia existente.

Para além da incoerência social e da obsolescência da crença de que os recursos financeiros públicos nas campanhas eleitorais garantiriam paridade de disputa entre candidatos, há, sobretudo, diante dessa disfuncionalidade da regulamentação da campanha eleitoral tradicional em um cenário fático da digitalização inevitável das campanhas eleitorais, uma contrariedade agravante à ordem econômica.

Com efeito, sem prejuízo de tornar vazio o comando para a redução das desigualdades sociais, a permanência da regulamentação de um modelo tradicional de campanha eleitoral custoso contraria o princípio da livre concorrência também, posto que não prevê qualquer possibilidade de igualdade de competição para os indivíduos ou empresas que venham a ser beneficiados com os recursos do fundo eleitoral. Cria-se, enfim, uma vantagem clara, eis que, conforme dito, as agremiações partidárias usufruem de um regime jurídico de direito privado.

Ademais, ofende ainda tal prática as próprias diretrizes de proteção ao meio ambiente, porquanto, embora já tendo a eleição presidencial de 2018 demonstrado o potencial das mídias sociais, insiste-se na fórmula tradicional e desgastada de confecção de inúmeros materiais impressos a serem destinados ao eleitor. Nesse aspecto, não faz nenhum sentido os entes públicos desenvolverem políticas públicas para a conscientização ambiental no setor privado e público, evitando impressões, como forma de proteger os recursos ambientais, porém, em se tratando de eleições, manter o formato de impressões e confecções de propagandas.

Aliás, a impressão e confecção de propagandas das propostas do candidato e da difusão da imagem dele, na realidade, garante a continuidade de uma política pública de gastos dos recursos naturais, sem qualquer justificativa plausível. Além disso, a gravidade vem da circunstância de que é dinheiro público que é destinado ao financiamento desse formato ultrapassado, porém, custoso, e que, no final, permite simplesmente que seja o material impresso e financiado pelo erário jogado no lixo, indo de encontro à política ambiental apregoada pelo próprio Poder Público.

Enfim, cenários como os aqui expostos demonstram o surgimento de uma realidade incontestável: a incorporação das tecnologias aos formatos das campanhas digitais. Assim, é crucial que, diante dessas novas expectativas criadas no sistema do Direito, seja promovida a regulamentação correta, propiciando a migração de um modelo tradicional de campanha, caracterizado nitidamente pela presença maciça e física do candidato com o eleitor, para um formato digital, onde a presença digital é caracterizante, principalmente nas mídias sociais.

O modelo digital das campanhas encontra pleno eco na difusão da democracia digital, propiciando, por meio das mídias sociais e da digitalização das campanhas, que o embate de ideias e o conhecimento do candidato não fique à mercê da boa vontade das agremiações partidárias apenas. A democracia digital e, por conseguinte, a campanha eleitoral digital permitiram uma maior democratização do acesso a esses cenários e do estabelecimento de um vínculo mais próximo e instantâneo entre candidato e eleitor, porém, não há como avançar mantendo o Sistema do Direito no formato presencial e tradicional.

 Diante do contexto declinado, figura-se como necessário que o Sistema do Direito atenda e satisfaça às novas expectativas normativas geradas, contemplando regramentos mais consentâneos e adequados à Constituição Econômica e à ordem econômica. Imprescindível, em outras palavras, a procura pela harmonização entre os formatos de campanha eleitoral e a ordem econômica, mediante o tratamento de uma realidade conglobante.

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[1] Doutorando e Mestre em Direito pela UNIMAR. Master em Fundamentos da Responsabilidade Civil pela Universitat de Girona/Espanha. Especialista em Direito Público pela Uniderp/Anhanguera e em Ciências Criminais e Segurança Pública pelo CERS. Promotor de Justiça.

[2] Pós-Doutora em Direito Fiscal pela Universidade de Lisboa. Doutora pela PUC-SP. Mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-RJ. Professora do PPGD da UNIMAR e Advogada.