A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE E A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE E A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

13 de maio de 2025 Off Por Cognitio Juris

THE CONSTITUENT ASSEMBLY AND THE PROMULGATION OF FEDERAL CONSTITUTION OF 1988

Artigo submetido em 06 de maio de 2025
Artigo aprovado em 09 de maio de 2025
Artigo publicado em 13 de maio de 2025

Cognitio Juris
Volume 15 – Número 58 – 2025
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Gustavo Raymondi Chaves[1]

RESUMO: O texto explora a criação da Constituição Federal de 1988, que marcou a transição democrática no Brasil após a Ditadura Militar (1964-1985). Com o início da abertura política durante o governo de Ernesto Geisel, consolidou-se o compromisso com uma Assembleia Constituinte sob a presidência de José Sarney. A Assembleia foi composta por congressistas eleitos, organizada em comissões, que incluíam a participação popular por meio de emendas populares e de movimentos sociais.

A Constituição de 1988 consolidou os direitos civis, a justiça social e a dignidade da pessoa humana, permitindo uma maior participação democrática através de instrumentos como referendos e iniciativas populares. A promulgação da nova Carta significou uma ruptura com o autoritarismo e a consagração de um Estado Democrático, com princípios fundamentais de liberdade, igualdade e cidadania. A nova Constituição se apresenta como um reflexo dos anseios da sociedade brasileira, legitimando a participação popular na sua elaboração.

Palavras-chave: Constituição de 1988, Assembleia Constituinte, Ditadura Militar, direitos civis, Estado Democrático.

ABSTRACT: The text explores the creation of the 1988 Federal Constitution, which marked the democratic transition in Brazil after the Military Dictatorship (1964-1985). With the beginning of the opening policy during the government of Ernesto Geisel, the commitment to a Constituent Assembly was consolidated under the presidency of José Sarney. The Assembly was composed of elected congressmen, organized into committees, which included popular participation through popular amendments and social movements.

The 1988 Constitution consolidated civil rights, social justice and human dignity, allowing greater democratic participation through instruments such as referendums and popular initiatives. The promulgation of the new Charter meant a break with authoritarianism and the consecration of a Democratic State, with fundamental principles of freedom, equality and citizenship. The new Constitution is presented as a reflection of the desires of Brazilian society, legitimizing popular participation in its creation.

Keywords: 1988 Constitution, Constituent Assembly, Military Dictatorship, democracy, Democratic State.

  1. Introdução

O texto aborda o processo de transição democrática no Brasil, após o fim da Ditadura Militar, e a criação da Constituição de 1988 como um marco de restauração dos direitos civis e das liberdades. Durante o regime militar, diversas camadas da população lutaram para restabelecer a democracia, e, no governo de Ernesto Geisel, teve início uma abertura política gradual, que se consolidou com a eleição indireta de Tancredo Neves, que infelizmente faleceu antes de tomar posse, sendo sucedido por José Sarney. Sarney, comprometido com a convocação de uma Assembleia Constituinte, iniciou o processo para a elaboração de uma nova Constituição, que substituiria a de 1967, imposta pelos militares.

A nova Constituição visava ser um reflexo dos anseios populares e trazer mudanças fundamentais à sociedade brasileira, democratizando o Estado e garantindo a participação popular. Sob essa perspectiva, a Assembleia Constituinte foi formada, embora o processo tenha sido criticado por ocorrer dentro do Congresso Nacional, ao invés de uma Assembleia exclusiva e desvinculada. Juristas como Goffredo Telles Junior e José Afonso da Silva criticaram essa decisão, apontando que uma Constituinte derivada poderia comprometer a autonomia do novo texto constitucional, tornando-o suscetível às pressões e interesses das elites políticas.

Composta por 559 congressistas, a Constituinte foi organizada em comissões e subcomissões que discutiram diversos temas e contaram com emendas populares que expressavam os anseios da sociedade. Este processo incluiu temas como direitos trabalhistas e sociais, aprovação de licença-maternidade, e outras garantias. A participação popular, por meio de movimentos sociais e emendas populares, foi fundamental para que o novo texto da Constituição representasse os interesses do povo e não apenas das elites.

A Constituição de 1988 foi o produto de uma ampla negociação entre as elites políticas e o povo, alcançando um consenso que refletia as mudanças desejadas pela sociedade. Foi promulgada com 245 artigos e 70 disposições transitórias, com o objetivo de consolidar os direitos humanos, a justiça social, e promover a dignidade da pessoa humana. Ela também instituiu mecanismos de democracia direta, como o referendo e a iniciativa popular, permitindo maior participação social nas decisões políticas. Mesmo com algumas limitações, a Constituição de 1988 representou um avanço democrático significativo e uma conquista histórica para o Brasil, servindo como um instrumento de transformação e justiça social no país.

  • O surgimento da ideia constituinte.

O Brasil no ano de 1964 sofreu um duro golpe democrático[2], tendo se iniciado a Ditadura Militar (1964 -1988) em nosso território, pondo fim a um regime democrático de cunho social que a Constituição de 1946 salvaguardava. O Golpe Militar de 1964 “provocou grave crise de legitimidade, ao impor um sistema constitucional desvinculado da fonte originária do poder, que é o povo” (Silva, 2007, p.17), isto é, a intervenção militar no país suspendeu o regime democrático e muitos daqueles direitos antes assegurados pela norma constitucional foram suprimidos através dos Atos Institucionais, os quais suspenderam direitos e garantias que previstos na norma constitucional.

A tomada de poder pelos militares aprofundou os conflitos inseridos na sociedade civil e dela contra o Estado, rompendo o equilíbrio primordial de um regime constitucional democrático, tais como: entre o poder estatal e os direitos fundamentais do Homem; entre os poderes da República (principalmente os Poderes Executivo e Legislativo); entre o poder central e os poderes regionais e locais (Silva, 2007, p.18).

Esses equilíbrios de poderes são fundamentais para que a “engrenagem” da democracia se mova a fim de viabilizar objetivos como forma de governo, sendo consagrados pelo texto constitucional vigente da época. Assim, a Constituição Federal de 1946 estabelecia controles recíprocos entre os poderes e entre estes e o povo, bem como a participação popular no regime de governo, sendo que o texto constitucional tinha como um dos principais objetivos assegurar o regime democrático, não deixando que nenhum dos três Poderes sobressaísse sobre os demais ou sobre o povo, assegurando também os direitos do povo para que não fossem suprimidos ou violados.

A democracia requer uma regulamentação formal e, mais do que isso, exige uma “correção das desigualdades sociais, o fortalecimento das instituições legislativas e o adensamento das diferentes formas de participação política, em condições de propiciar aos grupos, categorias e classes economicamente desfavorecidos maiores representatividades nos círculos de poder” (Faria, 1995, p. 11).

De fato, a Ditadura Militar como regime de exceção pôs fim ao regime democrático nacional, suspendendo direitos e leis que não condiziam, segundo a classe militar no poder, com a nova forma de governo imposta. Todo o período ditatorial no Brasil foi marcado por extensas lutas populares para restabelecer a ordem democrática e expungir o regime de exceção imposto “de cima para baixo” aos brasileiros.

Podemos dividir o governo dos militares entre linha dura e linha branda[3], entretanto o nosso objetivo não é discutir a classificação de governo de cada Presidente militar, mas destacaremos que no governo do último Chefe do Executivo, João Baptista Figueiredo[4] (linha branda), ocorreu a transição para o regime democrático.

A abertura democrática se iniciou de forma lenta por meio do governo do Presidente Ernesto Geisel, passando pelo governo de João Baptista Figueiredo, período no qual foi escolhido pela forma do voto indireto o novo Presidente do Brasil, Tancredo Neves, que deveria conduzir o processo político em conformidade com as aspirações da nação.

Tancredo prometeu que ao ser eleito e tomar posse do cargo de Presidente da República convocaria uma Assembleia Constituinte a fim de elaborar uma nova Constituição ao Brasil, isto é, o intuito do novo Presidente era eliminar os resquícios do autoritarismo que durante duas décadas assolou a nação através de uma nova Constituição elaborada por uma Assembleia Constituinte e não pelo Congresso Nacional na forma de Congresso Constituinte.

Tancredo Neves não chegou a ser empossado no cargo devido à sua morte, ficando o Vice-Presidente, José Sarney, incumbido na convocação da Assembleia Constituinte.

Segundo José Afondo da Silva, a Assembleia Constituinte que Tancredo Neves se comprometeu a convocar criaria uma aura no povo brasileiro vislumbrando condições de liberdade, a fim de se debater democraticamente o conteúdo da nova Constituição, isso que segundo o autor citado se caracteriza como uma medida pré-constituinte.

A primeira medida pré-constituinte é a posse na Presidência da República de um candidato democrático e comprometido com a convocação de uma Assembleia Constituinte. Após a medida pré-constituinte, elabora-se um novo sentimento dentro da nação chamado de situação constituinte, caracterizada pela necessidade de criação de normas fundamentais (justiça social).

Na transição de um regime a outro é demasiadamente fácil perceber o espírito do povo, o sentimento nacional de isto é, o povo passa a reivindicar novamente o seu direito fundamental através da sua representação na Assembleia Constituinte, que decidirá sobre a forma e o conteúdo de uma nova Constituição democrática em sintonia com as ambições e desejos do povo (Silva, 2007, p. 19 e 30).

Essa é a principal função de uma Assembleia Constituinte, devendo ser formada através de uma eleição direta pelos cidadãos, que escolherá os constituintes que mais se comprometam com suas aspirações, e os eleitos democraticamente deverão ouvir suas súplicas, desejos e vontades, devendo, baseados nisso, elaborar um novo texto constitucional que atenda às aspirações do povo e resguarde o governo democrático.

O maior desafio do Poder Constituinte no Brasil após mais de 20 anos de desrespeito à soberania popular foi produzir uma Constituição legítima e popular “condensando as aspirações profundas e renovadoras da sociedade brasileira, isto é, uma Constituição que seja o instrumento consagrador da transformação, da modernização e da reforma democrática” (Bonavides, 2010, p. 17).

Em suma, um dos principais objetivos do texto constitucional é conduzir a sociedade ao pleno exercício da cidadania, possibilitando o acesso do povo à lei, à justiça e à educação (Minardi, 2007, p. 57). A Constituição Federal de 1988 buscou de forma abrangente atender todas as súplicas do povo, marcando na data de sua promulgação o fim do regime autoritário e a retomada da democracia como regime de governo.

A convocação de um Poder Constituinte visando a produção da referida Constituição e revogação da Constituição de 1967, imposta pelos militares, marcou o período de ruptura política e institucional com o passado autoritário. Mais do que elaborar um novo texto constitucional, o Poder Constituinte se tornou a referência na história pela ratificação do fim do regime autoritário militar.

O Poder Constituinte é o poder do povo de decidir sobre a constituição fundamental do Estado, ou seja, é o poder de elaborar e promulgar o texto constitucional, definindo, dessa maneira, o regime político do Estado e o seu sistema de governo (Telles Junior, 1986, p. 37). Esse Poder instituído pelo povo aos constituintes é uma espécie de corpo presente da sociedade civil, onde ela se vê representada e outorga àqueles a confiabilidade na elaboração das regras de convivência entre Estado e sociedade, passando pela definição de legalidade, limitações de poderes e definição das liberdades.

Goffredo Telles Junior ressalta que o Poder da Assembleia Constituinte é um Poder “originário, autônomo e incondicionado”, ele é originário, pois é o poder de origem de todos os Poderes do Estado, sendo chamado de Poder Fonte porque não é conferido por outro Poder, ou seja, ele é criador de todos os demais e não tem regras estabelecidas previamente por qualquer lei ou Constituição, ele apenas se limita à vontade popular.

Este Poder também é autônomo, pois rege por si mesmo, levando em si a própria lei e, finalmente, também é considerado um Poder incondicionado devido suas deliberações não depender da verificação da circunstância ou conjuntura que outro Poder estabeleceu ou determinou.

Em suma, Telles Junior configura o Poder Constituinte como soberano devido à sua autonomia e incondicionalidade. Entretanto, o autor demonstra que, embora o Poder seja originário, autônomo e incondicionado, ele não é ilimitado em razão do próprio fim para o qual a Assembleia Constituinte é convocada, isto é, ela deve elaborar uma Constituição conforme os anseios da coletividade, consagrando as concepções atuais e dominantes da normalidade, e não promulgar uma Constituição discrepante do quadro geral das convicções vigentes sobre a ordem social e política e sobre os direitos e as liberdades do cidadão (Telles Junior, 1986, p. 44 a 46), seus poderes se limitam à vontade do povo.

Corroborando a esse entendimento, Raymundo Faoro destaca que a Constituinte além de soberana é também essencialmente ilimitada, no sentido de ser um Poder que não segue regras pré-determinadas e não é subjaz a nenhum outro Poder. Ou seja, Faoro deixa claro que o referido Poder “atenta unicamente aos ditames da vontade popular” (Faoro, 1986, p. 73) que o evocou. Percebe-se que existe um contra-senso no entendimento do vocábulo ilimitado, mas ambos os autores deixam claro que o Poder Constituinte somente se subjaz aos anseios do povo.

O poder Constituinte funda-se no povo, sendo uma vontade política do mesmo em constituir o Estado por meio de uma Constituição (Silva, 2007, p. 68). O espírito do povo busca uma nova Constituição, uma nova vontade social, reivindicando seus direitos fundamentais através do exercício do Poder, fase chamada de situação constituinte (SILVA).

A vontade popular ao ser atendida pelos constituintes reordena a sociedade civil, dando-lhe condições para que se possa conviver em harmonia com o Estado e ter a garantia de que seus direitos são reconhecidos e assegurados por força de uma Constituição democrática, que buscou atender aos anseios do povo e reequilibrar os poderes do Estado, sem que um se sobressaia sobre o outro. O ato constituinte só é transformado em Constituição depois de averiguada sua condição de eficácia pelo povo, isto é, após a aceitação global por parte dos governados (Faoro, 1986, p. 22), devendo transpor uma série de “obstáculos” até ser completado o ciclo da legitimação fundamental, terminando com sua aprovação pelo povo soberano.

A atividade constituinte confere expressão ao poder que emana do povo e legitima-o, somente ela reconcilia a constituição social com a constituição jurídico-normativa (Faoro, 1986, p. 95), constituindo meios preventivos para limitar e controlar o Poder, além de formar uma moldura jurídica a fim de evitar a ruptura revolucionária.

O Poder Constituinte tem como uma das suas funções o de proclamar os Direitos do Homem e de fixar barreiras contra o arbítrio dos governantes, dessa forma ele pode também atribuir ao Congresso Nacional (Poder Constituinte Derivado) o poder de emendar a Constituição. Entretanto, estabelecerá no próprio texto o processo a ser adotado para a propositura, o exame, o debate e a aprovação das emendas constitucionais.

A principal questão acerca do Poder Constituinte é a convocação de uma Assembleia Constituinte (Poder Constituinte ou Poder Constituinte Originário) ou de um Congresso Constituinte (Poder Constituinte Derivado), questão que será amplamente analisada ao longo do presente texto, apresentando as características de uma Assembleia Constituinte contrapondo às do Congresso Constituinte.

O Poder Constituinte Originário serve de fundamento à criação de uma nova Constituição, todos os demais Poderes são originados a partir dele e são chamados de Poderes Constituídos

Por sua vez, o Poder Constituinte Derivado tem a prerrogativa de reforma e de emenda à Constituição não se configurando propriamente como Poder Constituinte, embora tenha competência para modificar a norma existente (Silva, 2007, p. 68).

O Poder Constituinte não pertence aos legisladores, pois seria inviável que atribuíssem a um dos três Poderes do Estado a incumbência de elaborar uma Constituição da República, pois o Estado Democrático de Direito se consagra pela real limitação do poder obtida através da separação dos Poderes, no sentido que “a Constituição de uma sociedade livre jamais poderá ser elaborada por qualquer um dos poderes que se pretende justamente limitar” (Bierrenbach, 1986, p. 77).

A Constituinte deve ser um órgão de soberania e não um órgão de representação, pois o que se busca definir com uma nova Constituição são os fundamentos institucionais da organização jurídica de um povo, representando uma consciência popular acerca do novo texto constitucional, não sendo um artefato de privilégios da elite social brasileira preocupada em manter seu domínio sobre as demais classes (Bonavides, 2010, p. 15).

Quando a consciência nacional e as próprias lideranças do governo pedem uma nova Constituição, compete aos poderes instituídos convocar novas eleições para que o povo escolha seus representantes legítimos, compondo assim uma Assembleia Constituinte. Esta é a manifestação do Poder Constituinte Originário, não limitando-se a regramento prévio, cujo exercício não provém de Poderes já constituídos (Lopes, 2008, p. 25). Isto é, caracterizada na forma de uma reunião de representantes do povo, em determinado local e com a missão específica de elaborar e promulgar uma Constituição, de forma que sua missão é de fato revolucionária pois elaborará um novo texto constitucional inspirado nas ideias dos que a convocaram (Telles Junior, 1986, p. 43).

Antes de tudo é necessário que o povo tenha a consciência de que o Poder Constituinte o representa e deverá atender aos seus anseios, manifestando, ao tempo da promulgação da Carta, um consenso popular acerca do conteúdo da norma. Logo, a nova Constituição é uma ruptura com a ordenação “velha” do Estado que impedia as grandes reformas sociais exigidas, sendo que no novo texto constitucional deverão constar regras e direitos que atendam à vontade popular e diminua o abismo entre o povo e as elites dominantes.

Por isso a importância de se eleger constituintes afinados com as aspirações populares, a fim de que a Constituição se transforme em um instrumento de transformação política, econômica e social (Silva, 2007, p. 72), rompendo com um regime no processo natural de desenvolvimento do povo e da nação.

A convocação de uma Assembleia Constituinte visa atender ao povo, mas também elimina qualquer intromissão que um dos Poderes Republicanos poderia causar, porque o fato de não estar vinculada com nenhum dos demais Poderes e/ou instituições a faz soberana e autêntica, impedindo que qualquer pessoa influa na vontade dos constituintes ou as limite.

Pela sua não vinculação com a máquina do Governo e pelo restrito prazo de sua vigência, a Assembleia Constituinte autêntica tem uma atuação necessariamente circunscrita a seu objetivo específico, que é o de elaborar a Constituição. Por este motivo, tal Assembleia proporciona as condições necessárias para a concentração dos pensamentos e dos esforços de seus membros num ideal único: no de substituir a Constituição vigente por uma Constituição moderna e realista (Telles Junior, 1986, p. 64).

Depois de promulgada a Constituição os mandatos dos deputados constituintes se extinguem, não podendo se estender para as cadeiras de deputados federais ou senadores do Congresso Nacional. Com isso, os deputados constituintes ficam imunes a pressões de qualquer instituição, não os direcionando a legislar em causa própria, diferente do Congresso Constituinte onde os deputados, após promulgar a Constituição retornam às suas respectivas cadeiras no Congresso Nacional, ficando à mercê de possíveis pressões ou incitações que os assanham.

O caso brasileiro de convocação do Poder Constituinte por meio da Emenda Constitucional (EC) no 26 de 27de novembro de 1985 em que se atribuía ao Congresso Nacional o Poder Constituinte foi muito debatido e questionado, de modo que no presente trabalho não poderíamos deixar de citá-lo e analisar as consequências desse ato do então Presidente da República José Sarney[5].

A divergência deu-se em razão da convocação pelo presidente José Sarney do Poder Constituinte a ser exercido pelos membros eleitos para o Congresso Nacional, ficando de um lado os que aceitaram a proposta e de outro os que reivindicavam uma “Assembleia Nacional Constituinte plena, exclusiva e desvinculada do Congresso Nacional, mas funcionando concomitantemente com este” (Silva, 2007, p. 72), esse entendimento representa os que defendem como soberana apenas a Assembleia Constituinte formada exclusivamente para a promulgação da Constituição, devendo ao fim disso se dissolver.

Afonso Arinos de Melo Franco, analisando as dimensões jurídicas e políticas do Poder Constituinte afirmava que uma Assembleia promovida pelo Legislativo traria “uma solução jurídica, quanto à sua essência, mas política, quanto à sua forma”, o aspecto jurídico consistia no fato de o Congresso colocar em um texto “a ideia de direito que a nação desejar”, enquanto o caráter político residia no fato de não abalar o “estado de direito existente” (Moraes Filho, 2009, p. 121).

No dia 27 de novembro de 1985 foi aprovada a Emenda Constitucional (EC) no 26/85, proposta pelo presidente da República José Sarney, que convocava uma Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana a ser reunida no dia 1 de fevereiro de 1987 pelos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal[6], os quais seriam eleitos na próxima eleição (15/11/1986) para as respectivas Casas[7].

Essa proposta do Presidente foi amplamente criticada e contestada pela Ordem dos Advogados do Brasil, por juristas renomados e por partidos políticos como PT, PDT, PSB e pela ala esquerda do PMDB (Lopes, 2008, p. 24). Embora criticada, a referida Emenda Constitucional representou um marco no processo de mudança política iniciado na década de 1970 e intensificado na década de 1980, por meio de medidas liberalizantes que reconheceram instituições representativas da sociedade facilitando a abertura política.

As críticas à maneira como o Poder Constituinte foi convocado e também quanto aos constituintes oriundos do Congresso Nacional foi amplamente discutida por diversos juristas da época, dentre os quais podemos citar as sábias análises que José Afonso da Silva e Goffredo Telles Junior fizeram acerca do tema.

Silva destaca que o mais correto seria convocar uma Assembleia Constituinte a ser composta por representantes eleitos pelo povo e não outorgar poder constituinte ao futuro Congresso Nacional, pois tais órgãos do Poder Legislativo constituído não existem ou não deveriam considerar-se existentes durante o funcionamento da Constituinte. O jurista também destaca que a convocação da Constituinte não provém de fato revolucionário, pois não se deu por ato de Governo Provisório, de Junta Governativa ou de titular do Poder revolucionário, mas sim por uma conjugação de vontades do Presidente da República e do Congresso Nacional (Silva, 2007, p. 78).

Telles Junior critica alguns pontos da Emenda Constitucional supra, mencionando que a ela simulava convocar uma Assembleia Constituinte, todavia, prescrevia a conversão do Congresso Nacional em Assembleia Constituinte, sendo questionada a eficácia do Poder Legislativo em elaborar uma Constituição que atenda à vontade do povo soberana e que promovesse a justiça social.

A tarefa de promulgar uma Constituição é muito mais complexa do que fazer leis ordinárias. Quando o povo elege seus representantes para a missão específica do Congresso Nacional ele busca escolher aqueles que exercerá eficazmente as tarefas legislativas, dentre elas a de elaborar as leis ordinárias. Já quando o povo elege representantes para construir uma nova Constituição, procura escolher aqueles que melhor desempenharão as funções constituintes e, necessariamente, um congressista eleito pode não ser um bom elaborador de uma lei constitucional devido às ideias constitucionais de soberania, direitos fundamentais do homem, justiça social e de liberdades concretas aos trabalhadores, onde os requisitos especiais que se exigem dos legisladores da Constituição não se aplicam aos legisladores de leis ordinárias (Telles Junior, 1986, p. 57). O renomado jurista cita que:

“o Congresso Nacional travestido de Assembleia Constituinte jamais promoverá o ato de abertura da revolução (…). Jamais será o instrumento do protesto nacional contra a ordenação constitucional vigente, que impede a eclosão de grandes reformas. Jamais será o órgão da revolta popular contra o desempenho negativo do próprio Congresso, em ocasiões memoráveis. Jamais criará novos canais de representação democrática, novos meios de comunicação entre os diversos setores e os órgãos planejadores do Governo” (Telles Junior, 1986, p. 57).

Por fim, Telles Junior afirma que a EC 26/85 é ilegítima porque foi imposta de cima para baixo, contrariando a vontade inequívoca da sociedade, além de discrepar das convicções manifestadas em todo o território nacional por intermédio das entidades mais representativas da sociedade. Em suma, o jurista conclui que a emenda procurou consolidar, por meio de normas constitucionais adequadas, “o grupo dos que se acham no poder” (Telles Junior, 1986, p. 65).

 O doutrinador Julio Aurélio Vianna Lopes observa que “a opção pelo Congresso Constituinte se coadunava com o contexto da transição à democracia” caracterizado por uma situação na qual coexistiam:

instituições despidas de legitimidade democrática (especialmente as do Poder Executivo) e às quais se admitia o desempenho de funções provisórias e essenciais à futura democracia;

instituições cuja limitação pelo autoritarismo ainda vigente não impedia sua legitimação progressiva pelo voto popular (especialmente as do poder Legislativo) e às quais se conferia prestígio crescente e papel crucial na ultrapassagem da ordem democrática (Lopes, 2008, p. 25).

Segundo o autor em questão, a fórmula do Congresso Constituinte era fundamental para fortalecer os partidos políticos e o Legislativo, assegurando a superação do autoritarismo político. A sociedade buscava por meio da Constituinte e, consequentemente, pela Constituição pôr fim aos laços de servidão mantidos pela elite oligárquica que sempre dominou as demais classes, e devido à sua influência nos bastidores dos três Poderes e também dos Poderes Constituintes de outrora, impediu que o povo tivesse direitos e garantias reconhecidos e registrados no texto constitucional, ficando à mercê dessa elite que sempre dominou e pressionou o governo a fim de manter seus poderes.

Embora se convocasse um Congresso Constituinte ao invés de uma Assembleia Constituinte, não podemos deixar de destacar a importância desse ato político como forma de evidenciar que a ordem vigente não era mais aceita pelo povo, devendo passar ao outro passo da democratização da vida brasileira.

Dessa forma, o povo resgatava seu direito fundamental de manifestar-se sobre o modo de existência política da nação por meio de uma Assembleia Constituinte (Silva, 2007, p. 42). É evidente que tanto a convocação de uma Assembleia Constituinte quanto de um Congresso Constituinte se configurava como uma vitória da redemocratização, passando ao povo o poder político de refazer uma Constituição Democrática.

Todavia, o que se pretende expor são as diferenças e as vulnerabilidades entre os dois poderes constituintes, destacando que uma Assembleia Constituinte autêntica não estava livre de pressões corruptoras, mas seria muito menos vulnerável a isso do que o Congresso Constituinte pelo fato daquela não estar vinculada a nenhum poder do governo e também em virtude do restrito prazo de vigência (Telles Junior, 1986, p. 62), ficando sob suspeita a legitimidade da nova Constituição e sua correspondência aos anseios e expectativas da nação.

A Constituição elaborada pelo Congresso Constituinte deveria ser “compatível com a realidade nacional, consoante ao sentimento geral de normalidade, observados os anseios da coletividade, segundo as concepções atuais do povo” (Bierrenbach, 1986, p. 90), ou seja, ela seria considerada ilegítima se contrariasse as convicções do povo. Sobre isso, Bonavides ressalta que a Constituinte congressual é representativa de uma estrutura partidária decadente, contrariando as aspirações da sociedade brasileira.

O Congresso Constituinte reuniu as elites burocráticas de Estado e também os movimentos sociais (cuja participação se valeu especialmente pelas emendas populares), fazendo com que se confrontassem interesses díspares entre ambos, tendo de um lado os anseios da sociedade e a defesa para uma Constituição mais cidadã que atendesse à vontade popular e que desse ao povo um maior acesso ao Estado e aos seus mecanismos reguladores, e de outro lado a elite nacional que defendia uma maior regulação do Estado sobre a vida social, isto é, um texto constitucional menos abrangente em relação ao povo.

  • Os trabalhos no Congresso Constituinte

O Congresso Constituinte era integrado por 559 congressistas (72 senadores e 487 deputados federais) divididos ao longo de 8 comissões temáticas, divididas em três subcomissões, totalizando 24 subcomissões (Minardi, 2007, p. 114).

A elaboração da Constituição contou com a participação de segmentos da sociedade que puderam através das emendas populares auxiliar os constituintes acerca dos anseios da nação, a fim de diminuir o abismo que existia em Constituições passadas entre a lei e a realidade, e entre o que o povo pensa e sente e o que pensam as elites (Bonavides, 2010, p. 16).

 A participação popular na promulgação do texto constitucional objetivou preservar o que a sociedade buscava com a nova Carta, isto é, limitando, de certa forma, a atuação dos constituintes congressistas concernente aos seus poderes em favorecimento próprio quanto às situações futuras e a de correligionários dentro da organização do Estado, sendo esta a crítica que se faz ao se convocar um Congresso Constituinte, cujos congressistas poderão se utilizar da Constituinte como forma de ambição pessoal e de conveniências particulares que se misturarão às ideias dos imperativos nacionais (Telles Junior, 1986, p. 61).

Assim como membros do Poder Legislativo, os constituintes eleitos e seus respectivos partidos políticos se dividiram entre governo e oposição, de forma que no Congresso Constituinte se verificou a clivagem de partidos políticos, o que causaria de certa forma uma disputa política destoando do objetivo único da Constituinte.

Um dos blocos políticos era chamado de “Centrão” (formado por forças de centro e de direita a fim de evitar o domínio excessivo das forças de esquerda e a polarização da direita e da esquerda), já o outro bloco era da ala progressista englobando a maioria do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) e dos pequenos partidos de esquerda (Minardi, 2007, p. 113).

A classe política estava entusiasmada para cumprir as diretrizes que lhe foram concedidas pela sociedade, sendo que depois de décadas de autoritarismo o Legislativo punha fim às restrições impostas à vida política. Isso pode ser verificado pelo estudo dos vários temas que foram consensuais entre os dois blocos políticos, dentre eles destacamos a aprovação da licença-maternidade (98% do plenário), do adicional de férias (91%) e da licença-paternidade (83%), esta no segundo turno de votações (Lopes, 2008, p. 187).

Ao PMDB, partido majoritário da Constituinte, coube a indicação da maioria das composições das Comissões Temáticas, proporcionando-lhe uma influência relevante nas eleições nos cargos de relatores, presidentes e vice-presidentes, embora houvesse essa influência consideravelmente alta de um partido político é necessário afirmar que em toda a Constituinte, pelo que podemos perceber através das aprovações citadas acima, os direitos sociais gozavam de ampla aceitação.

O Regimento Interno (RI) aprovado a fim de sistematizar os trabalhos do Congresso Constituinte estabelecia que a elaboração do texto teria um formato descentralizado, sendo elaborado de “baixo para cima”, u seja, a partir das aspirações populares.

Os membros da Constituinte se dividiram conforme a sua preferência em 24 subcomissões temáticas (21 membros cada), que após organizarem as propostas nela debatidas as enviavam às suas respectivas Comissões Temáticas. Após as 8 Comissões Temáticas deliberarem, compostas por 73 membros cada, encaminhavam os 8 relatórios a uma nova Comissão, chamada de Comissão de Sistematização, que organizaria os relatórios, sem introduzir novos conteúdos e proporia um Anteprojeto de Constituição final a ser encaminhado ao Plenário da Constituinte para discussão, recebimentos de emendas, parecer do relator da Comissão de Sistematização e proposição de um novo Projeto de Constituição ou de um Substitutivo.

A proposição aprovada na Comissão de Sistematização (chamada de Projeto de Constituição) seria, enfim, o documento a ser encaminhado à Mesa Diretora da Assembleia Nacional Constituinte para discussão e votação em 1o Turno, em plenário (Gomes, 2002, p. 24). A estrutura do procedimento consistia em quatro etapas:

24 subcomissões -> 8 Comissões Temáticas -> Comissão de Sistematização -> Plenário

Após a Comissão de Sistematização receber as propostas das Comissões Temáticas, seu relator, Bernardo Cabral, reuniu as propostas enviadas num texto único com 501 artigos para o qual foram oferecidas emendas dos constituintes.

Posteriormente, o relator elaborou o primeiro projeto de Constituição ao qual, durante um período de tempo, seriam oferecidas emendas por qualquer membro da Assembleia e no mesmo período seriam aceitas as emendas populares. Findo o prazo, a Comissão de Sistematização possibilitou a defesa de todas as emendas populares perante seus membros, inclusive o relator.

 Após esse processo, um novo projeto de Constituição com 264 disposições permanentes e 72 transitórias foi apresentado pelo relator em 18 de setembro de 1987 para a apreciação da Comissão (Lopes, 2008, p. 109).

Enfim, depois de inúmeras discussões, apresentações de propostas de redação e votações foi finalizado o processo constituinte no qual se aprovou a Constituição da República com redação final contendo 355 artigos, dos quais 245 eram disposições permanentes e 70 transitórias[8].

Bonavides reforça que no momento era necessária uma Constituição que refletisse:

o estado atual das forças de opinião e sentimento do País, de sorte que as instituições tenham firmeza nos alicerces da Sociedade, e assim possamos, mediante a colaboração, o sacrifício e a solidariedade dos governados, transpor os obstáculos da crise (Bonavides, 2010, p. 94).

O processo constituinte é legítimo desde que não discrimine a coletividade, pessoas e esferas de opinião, isto é, não pode excluir nenhum membro pertencente à sociedade, pois isso acarretaria sua ilegitimidade perante a vontade popular.

Sabemos que o povo não é unânime nas suas opiniões, entretanto, não poderiam deixar de ouvir todas as classes inseridas no espectro social, desde a classe mais alta à mais baixa.

Quanto mais abrangente for a presença da sociedade no processo constituinte, mais resultados em torno das questões sociais serão conseguidos, pois pela primeira vez na história constituinte do Brasil se abriu espaço para que o povo participasse da promulgação da sua Constituição, devendo esta estar subordinada à vontade popular e não às elites que sempre comandaram o país e promulgavam o texto constitucional e as leis de forma que as beneficiassem, apenas.

A ativa participação da sociedade civil, em oposição ao caráter excludente e desmobilizador do regime autoritário, foi o catalisador do processo constituinte de 1987/1988, impulsionando a construção de uma nova ordem jurídica mais democrática e inclusiva.

As propostas de emenda popular teriam que ser subscritas por, no mínimo, 30 mil pessoas (cada eleitor poderia subscrever, no máximo, 3 propostas de emenda constitucional), cujas assinaturas seriam colhidas por 3 entidades associativas ou determinadas instituições públicas, inclusive Assembleias Legislativas estaduais e Câmara de Vereadores.

À Mesa Diretora da Assembleia foram apresentadas 122 propostas, sendo que um total de 83 atendiam às exigências regimentais da Constituinte, ao se considerar o limite máximo de 3 subscrições por eleitor verificou-se um envolvimento de mais de 4 milhões de cidadãos num total de 12.277.423 subscrições às emendas populares (Lopes, 2008, p. 54).

Após o processo de análise das emendas foi necessária a sua defesa diante da Comissão de Sistematização, ou seja, a participação popular não se limitou em oferecer emendas à nova Constituição, a sociedade teve importância ao defender as 83 emendas diante da Comissão de Sistematização, nos depoimentos das associações nas reuniões das subcomissões pertinentes, nas milhares de sugestões encaminhadas e na apreciação das emendas populares durante os ajustes dos textos-base aprovados em plenário (Lopes, 2008, p. 183).

A participação da sociedade civil na elaboração da Constituição foi de suma importância para sabermos quais os anseios populares, dentre eles podemos citar a ampliação da participação popular no Estado, e outras propostas de emendas que tiveram um grande apoio popular como nos casos dos direitos às crianças, educação e participação popular. Em suma, esses poucos exemplos demonstram que o povo reconheceu sua importância perante o Poder Constituinte e se pôs na posição de lutar pelos seus direitos e interesses, fazendo com que os constituintes lhes atendessem na formulação de um texto constitucional democrático de cunho social.

Todos esses dados discutidos até o presente momento demonstram que o povo amadureceu pela legitimidade que buscava a Constituinte, pois ao participar diretamente do referido processo não se deixou ser posto de lado pela elite congressual que também participou ativamente do Congresso Constituinte

O povo defendeu suas vontades de mudança e renovação social, cumprindo o papel de outorgar legitimidade ao Poder além de perceber o peso político que tem, haja vista a ampla participação na elaboração e apoio às emendas apresentadas na Comissão de Sistematização.

Os movimentos sociais tiveram muita importância na representação da vontade popular perante os constituintes, sendo que as emendas populares potencializaram a participação desses movimentos no referido processo, que contava com uma minoria ligada aos movimentos. No aparato de participação no Congresso Constituinte, os movimentos sociais conseguiram ampla mobilização da sociedade para defender suas demandas, buscando se utilizarem da identidade coletiva perante a sociedade, a fim de garantir ao povo a representatividade dentro do Poder.

As elites detentoras do poder político brasileiro monopolizaram o processo de desenvolvimento nacional, ou seja, a sociedade como um todo não tinha o menor controle sobre as decisões que afetam sua vida. Em virtude de vários fatores, o controle sobre as políticas estava nas mãos de um reduzido número de pessoas.

Bonavides defende que a formulação do conteúdo básico de uma Constituição deve ser amplamente aberta à participação popular, e após ser aprovado o projeto deveria ser submetido a um referendo popular para que assim “receba um banho de legitimidade” e seja a expressão de “valores de nacionalidade e instrumento de mudanças, na busca de realização de justa distribuição de riquezas e de efetiva concretização da justiça social” (Bonavides, 2010, p. 52).

A sociedade foi muito bem representada durante a Constituinte pelos movimentos sociais que buscaram fazer o elo entre a vontade popular e os constituintes, todavia, precisamos entender como funcionou a dinâmica de articulação desses movimentos durante o regime autoritário.

Os movimentos sociais ou movimentos populares se reuniram perante as classes desorganizadas ou pulverizadas da sociedade reprimida, isto é, o governo centralizador do poder reprimia de tal forma os cidadãos que eles buscavam através de pequenos grupos sociais reivindicar direitos e lutar pelo fim do regime autoritário.

Por fim, esses pequenos grupos acabaram juntando-se e organizando-se para representar classes sociais na luta por direitos e serem reconhecidos pelo Poder enquanto interlocutores legítimos na reivindicação de direitos. O reconhecimento dessas organizações populares se deu após muita repressão e prepotência dos órgãos públicos para poderem ser reconhecidas, adquirindo, portanto, o status de reivindicação dessa cidadania elementar.

Os movimentos sociais emergiram efetivamente durante o período político do regime militar, sendo que durante o regime de exceção tais movimentos não eram reconhecidos pelo governo e até sofriam repressão devido os seus objetivos. Dessa forma, tiveram que se constituir por fora do Estado, na ilegalidade, desenvolvendo determinadas reivindicações e rechaçando as razões do Estado em não as atender (Sader, 1987, p. 21).

Os movimentos sociais após a derrocada do regime autoritário iniciado em 1964 obtiveram o reconhecimento de sua legitimidade enquanto organização representativa de setores da sociedade, ou seja, o reconhecimento se estendeu às reivindicações que passaram a ser consideradas justas fazendo com que o povo participasse mais ativamente da vida política do país.

Um problema a ser resolvido é a disseminação de vários movimentos populares nos mais variados setores sociais, de forma que eles ao serem totalmente descentralizados e independentes uns dos outros não conseguiam impor ao extremo suas reivindicações, resultando que o Estado sabendo desses limites de imposição e articulação de vários movimentos respondeu pouco às demandas dos mesmos.

O Estado manteve uma divisão entre esses agrupamentos para que tivessem menor capacidade de organização, menor mobilização e se satisfizessem com respostas mais limitadas do Estado (Sader, 1987, p. 22). Os movimentos sociais devem superar a fase de reivindicações, pois o próprio Estado os reconheceu e foi até eles propondo projetos concretos para a mudança do status quo, sendo necessário que esses movimentos se reorganizassem para requisitar medidas eficazes e abrangentes quanto às suas reivindicações.

A Constituição de 1988 foi elaborada dentro do movimento neoconstitucionalista proclamando a primazia da dignidade da pessoa humana, ou seja, dentro do Estado Democrático de Direito tende a se equilibrar o poder e a cidadania através da participação do povo no poder.

Esta participação se amplia de modo que o Estado se integra à sociedade civil, incorporando novas mudanças como direitos do Homem e harmonizando-as com as declarações internacionais dos direitos humanos (Silva, 2010, p .20).

  • Considerações finais

Em suma, a nova Constituição, promulgada pelos constituintes com o auxílio da sociedade civil por meio dos movimentos sociais, esteve voltada não para o Estado, mas sim para a sociedade, que foi reestruturada e organizada por intermédio do texto constitucional.

A soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político foram erigidos como fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1o), proclamando-se que o poder emana do povo, que o exercerá por meio de representantes eleitos ou diretamente (Moraes Filho, 2009, p. 22).

Os constituintes instituíram um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício de direitos sociais e individuais, a liberdade, a igualdade, o bem-estar, a segurança, o desenvolvimento e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (Moraes Filho, 2009, p. 20). A Carta Constitucional de 1988 estabeleceu como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação[9].

Enfim, se buscou no texto constitucional aprovado pelos constituintes uma maior proteção e preservação aos direitos do Homem e, substancialmente, à dignidade da pessoa humana.

O texto constitucional de 1988 tem a vocação de realizar os direitos fundamentais do Homem, servindo como instrumento de transformação da realidade nacional. O princípio popular teve importante papel na sua elaboração, pois ao ser promulgado tivemos a certeza de que o procedimento constituinte foi compatível com o poder popular efetivando-se com fidelidade o princípio de justiça do resultado e assumindo a condição de instrumento de realização dos direitos fundamentais, não sendo à toa que logo após ser promulgada, a Constituição já era combatida pelas elites (Silva, 2007, p. 111).

Bonavides nos lembra que o grande objeto de uma Constituição contemporânea é a chamada justiça social, que “não despreza a herança dos valores contidos nos direitos de resistência ao Estado, objeto de uma ação revolucionária até que se institucionalizaram graças aos códigos constitucionais”, mas nesse momento o fundamental para o povo é “institucionalizar, em bases de livre participação, a presença do povo e a satisfação dos interesses e das necessidades maiores da coletividade” (Bonavides, 2010, p. 35).

Uma Constituição que não responde ao problema da questão social não tem eficácia e não tem juridicidade, o interesse social se reparte debaixo da justiça social, isto é, o interesse que há de prevalecer no texto constitucional é a legitimidade ao princípio da justiça social. De fato, a nossa Constituição pós-regime autoritário de 1964 propiciou um grande desenvolvimento da cidadania, garantindo que os direitos humanos passassem a fazer parte do cotidiano do povo, repulsando o arbítrio e o autoritarismo.

Ao lado dos mecanismos de democracia representativa, institucionalizou-se instrumentos de participação permanente do povo e de suas organizações de base no processo político e na ação governamental, por meio de institutos de democracia semidireta, forma de democracia participativa que corrige, em boa medida, os defeitos e as ficções do mandato político representativo, que não reproduz a vontade popular por inteiro (Silva, 2007, p. 20).

Os instrumentos de participação do povo a que Silva faz referência são a iniciativa popular, o referendo popular, o veto popular, a revocação popular e a ação popular, todos instrumentos que garantem a participação da sociedade civil na democracia, fazendo com que se reconheça o poder emanado do povo e seja exercido por ele, direta ou indiretamente, para benefício próprio.

Deve a Constituição ser a salvaguarda dos direitos humanos e o instrumento do pacto de garantia das liberdades concretas aos trabalhadores, todavia, em algumas partes ela foi omissa ao transferir às leis complementares alguns assuntos importantes.

Os constituintes sofrendo pressões de todos os lados, de um lado os civis e do outro as elites, acabaram por deixar algumas normas constitucionais sem efeitos jurídicos pois não continham uma redação e nem legislação ulterior exigida pelos princípios constitucionais, criando-se uma lacuna técnica para o cumprimento efetivo do texto constitucional mesmo existindo o Mandado de Injunção garantidor de direitos básicos nos casos de inexistência de norma regulamentadora dos direitos constitucionais Minardi, 2007, p. 125).

Em conclusão, a Constituição Federal de 1988 ao longo dos seus promulgados 245 artigos e mais 70 em suas disposições transitórias procurou estabelecer objetivos e prioridades econômicas concernentes a todos os aspectos da vida política, social, econômica e cultural brasileira, resultado do consenso entre as diversas elites detentoras dos poderes políticos e do povo.

REFERÊNCIAS

BIERRENBACH, Flavio.  Quem tem medo da Constituinte. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1986.

BONAVIDES, Paulo. Constituição e Constituinte: a democracia, o federalismo, a crise contemporânea. 3a edição. Malheiros Editores. São Paulo.

FAORO, Raymundo. Assembleia Constituinte: a legitimidade recuperada. 5a edição. Brasiliense. São Paulo. 1986.

FARIA, José Eduardo de. A crise constitucional e a restauração da legitimidade. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre. 1995.

GOMES, Sandra. A Assembleia Nacional Constituinte e o Regimento Interno. 2002. Dissertação (Mestrado em Ciência Política)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2002.

LOPES, Júlio Aurélio Vianna. A carta da democracia: o processo constituinte da ordem pública de 1988.Top Books. Rio de Janeiro. 2008.

MINARDI, Ines. A elite possível: Congresso Constituinte de 1988. Expressão e Arte Editora. São Paulo. 2007.

MORAES FILHO, José Filomeno de. Congresso Constituinte, Constituição dirigente e Estado de bem-estar. 2009. Tese (Doutorado em Direito)-Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2009.

SADER, Éder.  Poder local e participação popular. AVANCINI, Sérgio; TREVAS, Vicente (orgs). Poder local e constituinte. EDUC. são Paulo. 1987.

SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular. Malheiros Editores. São Paulo. 2007

TELLES JUNIOR, Goffredo.  A Constituição, a Assembleia Constituinte e o Congresso Constitucional. Saraiva. São Paulo. 1986.


[1] Bacharel em História pela Universidade de São Paulo e em Direito pela Escola Paulista de Direito – EPD. Pós-graduação lato sensu em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade Legale.

[2] O golpe militar a que nos referimos ocorreu dia 1 de abril de 1964, resultando no afastamento do então presidente da República João Goulart, assumindo provisoriamente o cargo o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, que em seguida o passaria ao marechal Castelo Branco.

[3] Essas denominações se dão em função das várias correntes dentro do mesmo governo, partido ou movimento. No período autoritário brasileiro (1964-1986) a “linha-dura “era a denominação utilizada a fim de designar os militares mais radicais, menos moderados e mais intolerantes, de forma contrária eram designados os militares da “linha-branda”

[4] João Figueiredo foi presidente do Brasil durante o regime militar entre os anos de 1979 e 1985, ele foi o responsável por implantar medidas que tinham o intuito de fazer a transição do regime autoritário para o regime democrático.

[5] José Sarney foi eleito vice-presidente por via indireta na chapa de Tancredo Neves, todavia assumiu a presidência interinamente em 15 de março de 1985, diante do adoecimento de Tancredo Neves. Com o falecimento de Tancredo no dia 21 de abril, tornou-se o titular do cargo de presidente da República.

[6] Emenda Constitucional no26 de 27 de novembro de 1985

Art. 1o Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal se reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana no dia 1o de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional.

[7] O Senado Federal se renovaria em dois terços, pois na vigência da Constituição de 1946, segundo o::

 Art. 43 – § 1o– Cada Estado elegerá três senadores, com mandato de oito anos, renovando-se a representação, de quatro em quatro anos, alternadamente, por um e por dois terços.

A eleição para senadores do ano de 1986 renovou dois terços do Senado Federal, ficando um terço que corresponde aos senadores eleitos em 1982 cujos mandatos duraram até 1990.

[8] http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/assembleia-nacional-constituinte/fundo-assembleia-nacional-constituinte/saiba-mais…-2.2-historia-administrativa.

[9] Constituição Federal de 1988: Título I – Dos Princípios Fundamentais:

Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I –  construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III –  erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.