A PROTEÇÃO À MATERNIDADE E AS MÃES MÁS NA VISÃO DE BEAUVOIR: UM CONFLITO REAL ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS REFLETIDO NA JURISPRUDÊNCIA ACERCA DO DIREITO À PRISÃO DOMICILIAR
27 de dezembro de 2021MATERNITY PROTECTION AND BAD MOTHERS IN BEAUVOIR’S VIEW: A REAL CONFLICT BETWEEN FUNDAMENTAL RIGHTS REFLECTED IN JURISPRUDENCE ABOUT THE RIGHT TO HOUSEHOLD
Cognitio Juris Ano XI – Número 37 – Dezembro de 2021 ISSN 2236-3009 |
RESUMO
O presente artigo tem por escopo o estudo da proteção constitucional aos diretos à maternidade e à infância enquanto direitos sociais integrados, com enfoque nos reflexos de tais garantias no âmbito do processo penal, sobretudo, na prisão cautelar de gestantes, mães e mulheres responsáveis por crianças e pessoas com deficiência. Considerando a hipervulnerabilidade das mulheres encarceradas e o reconhecido estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, bem como a repercussão do status libertatis materno na vida dos filhos e pessoas sob cuidados da mulher, buscou-se verificar como vem sendo aplicada na prática a regra da prisão domiciliar de mulheres, notadamente perquirindo sobre a pertinência de decisões judiciais que extrapolam as exceções à benesse positivada no Código de Processo Penal. Através de uma pesquisa bibliográfica, constatou-se que, como acontece com outros direitos fundamentais, maternidade e infância, por vezes, colidem e precisam ser sopesadas e relativizadas. Na perspectiva de ideias feministas liberais, enaltecedoras da autonomia da mulher, que, no entanto, reconhecem-lhe a necessidade de proteção estatal direcionada, concluiu-se, à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ser plausível a postura dos juízes ao decidir casos concretos em que haja embate dos aludidos direitos, denegando o regime de prisão domiciliar a mulheres além das hipóteses legalmente ressalvadas, porém de forma excepcionalíssima, pontual e fundamentada no melhor interesse do infante.
Palavras-chave: Proteção à maternidade e à infância. Colisão de direitos fundamentais. Prisão domiciliar. Exceções.
ABSTRACT
This article has the escope of the study of motherhood and childhood constitutional protection as integrated social rights, focusing on their guarantees reflections in the context of criminal proceedings, specially, in case of pregnants, mothers and women responsible for children and disabled people. Considering the women in prision hypervulnerability and the admitted unconstitutional state of affairs of the brazilian penitentiary system as well as the repercussion of maternal status libertatis in the lives of children and people cared for by woman, we sought to verify how the rule of home prison for women has been applied in practice, notably inquiring about the pertinence of judicial decisions that go beyond the benefit exceptions provided for in the criminal procedure code. Through literature review, it was found that, as it happens to others fundamental rights, motherhood and childhood collide at times and need to be measured ang relativized. From the perspective of liberal feminist ideas, praising women’s autonomy, but reconizing their need for targeted protection by the state, it is concluded that, in the light of Supreme Court jurisprudence, the judicial position denying home prison for women in addition to the legally provided exceptions should be acceptable when deciding specific cases where there is a conflit betweem those mentioned rights, but in an exceptional and punctual way, based on the best interest of infants.
Keywords: Motherhood and childhood protection. Collision of fundamental rights. Home prison. Exceptions.
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo procura analisar, a partir da compreensão da faceta social do fenômeno da maternidade e das modificações do papel exercido na sociedade pelas mães no decurso da história da humanidade, a relevância e amplitude da proteção a ela conferida como direito social interligado à infância no art. 6º da Constituição Federal de 1988, investigando acerca da irradiação desse resguardo, que advém também de convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, no âmbito do direito processual penal, especialmente no que tange aos reflexos do status libertatis materno na vida de seus filhos e dependentes, dentro de um sistema carcerário que se encontra num estado de coisas inconstitucional.
Pondera-se, entretanto, que a proteção à maternidade e a proteção à infância, apesar de estarem associados na Constituição e na vida, por vezes, dissociam-se, e, como quaisquer outros direitos fundamentais, podem vir a colidir, situação em que merecem ser sopesados e relativizados. Assim, perquire-se acerca da legitimidade de se reservar aos juízes nessas situações de conflito entre direitos de mesmo peso e hierarquia, a possibilidade de, em casos concretos e pontuais, onde os direitos fundamentais à infância e à maternidade se choquem, excepcionalissimamente, alargar a exceção legal no superior interesse dos beneficiários da norma jurídica.
Na linha de um feminismo liberal calcado na ideia de autonomia feminina, porém sensível à vulnerabilidade da mulher nos campos da sua vida pública e privada, trazemos à tona pensamentos de mulheres sobre o próprio gênero, afastando determinismos num extremo e noutro. Objetiva-se, com isso, despertar os operadores do direito para a complexidade da prisão domiciliar em determinadas situações, sobretudo, no que se refere ao submundo do tráfico ilícito de entorpecentes, atividade que, por vezes, continua sendo praticada dentro da casa onde coabitam mulher traficante e sua prole.
Nossa pesquisa, em termos metodológicos, revela natureza qualitativa, eis que se utiliza do método dedutivo, constituindo-se num estudo exploratório por meio do levantamento bibliográfico. Influencia-nos a teoria da justiça de Jonh Rawls, que prima pela equidade e pela eleição dos princípios da igualdade e liberdade como estruturantes das decisões das instituições políticas, atenuada no seu aspecto individualista pela ideia de liberdade positiva defendida, dentre outros, por Sandel numa perspectiva mais realística do que teorizada. Preocupa-nos a busca da melhoria do desempenho judicial em cada caso concreto, com enfoque nas consequências reais, específicas e sistêmicas de atos decisórios tomados, pelo que alinhamo-nos, também, ao pragmatismo cotidiano proposto por Richard A. Posner.
Assim, temos que o trabalho se divide em oito tópicos, correspondendo o primeiro e o último, respectivamente, à introdução e às considerações finais. No segundo tópico, cuidamos do surgimento dos primeiros direitos vinculados à maternidade, enquanto no terceiro damos enfoque à condição da proteção à maternidade como direito fundamental vinculado à infância, tratando, no quarto tópico, das convenções e da legislação protetivas da maternidade e de seus reflexos no processo penal a fim de chegarmos, em específico, à situação do encarceramento feminino. Já no quinto tópico, consideramos a evolução jurisprudencial e legislativa a respeito da prisão cautelar em regime domiciliar como direito de gestantes, mães e mulheres responsáveis por crianças e pessoas com deficiência, enquanto no sexto tópico aventamos a possibilidade colisão entre os direitos de proteção à maternidade e à infância, apesar da sua interligação. Por fim, no sétimo tópico, tecemos considerações acerca de decisões judiciais concretas em casos de efetivo conflito entre esses direitos.
2 PROTEÇÃO À MATERNIDADE
2.1 Gênese da proteção à maternidade
Conquanto, hodiernamente, o ideário de mãe ultrapasse a ligação natural com a figura feminina, dada a evolução das relações humanas, em especial quanto ao conceito de família, a par da otimização de técnicas reprodutivas, para traçarmos uma linha histórica em relação à proteção à maternidade, mister inciarmos pela retrospectiva de como as mulheres estiveram socialmente posicionadas e de como, na cultura de cada época, exerceram a atribuição biológico-social de gestar e cuidar de seus filhos.
Pesquisas realizadas no início deste século tem apontado a participação feminina muito além do âmbito doméstico nos primórdios da humanidade. A mencionar-se o que escreveram Adovasio et al., (2007), corrigindo a ideia de mulher pré-histórica de forma a acentuar sua participação ativa na comunidade, com relevante papel no desenvolvimento da linguagem e de habilidades sociais, e mesmo nas atividades externas de subsistência do grupo, o que reputam os autores ter sido fator determinante na organização dos primeiros passos rumo à civilização.
Quando, enfim, avançamos para o que, nos parâmetros da Antiguidade Clássica, poder-se-ia considerar um alto nível civilizatório, deparamo-nos com a Grécia como expoente do mundo ocidental nos campos da cultura, ciência, filosofia e política. Porém, ao que parece, o caminhar em direção à sofisticação da vida em comunidade, trouxe à mulher decréscimo de consideração social, sendo-lhe relegada, a princípio, até mesmo a participação no processo da reprodução humana. Na mesma Grécia Antiga, tentando desmistificar a origem humana e diante da inegável experiência sensível da maternidade no corpo da mulher, Aristóteles, tido como o primeiro cientista propriamente dito por apregoar que as teorias sobre a origem do mundo natural precisavam ser testadas empiricamente, relegou à mulher um papel reprodutivo secundário, considerando que, pela sua inferioridade biológica, toda a semente da vida estaria contida no gameta masculino, no que a fêmea servia de mero repositório.
Para Laquer (1990) apud Gomez (2000), essa ideia depreciativa da mulher em seus aspectos naturais repercutiu desde a Antiguidade e foi usada para justificar o papel de inferioridade ocupado por ela na sociedade ao longo dos tempos. Gomez (2000) avalia que o ápice do peso do sistema patriarcal se deu na desvinculação entre a figura da mulher e a maternidade no modelo sistemático proposto por Aristóteles. Todavia, assinala que a sociedade moderna ainda apresenta essa menos-valia, sendo que agora de um modo muito mais sutil, menos explícito e implacável do que no caso da sociedade grega.
Ao aflorar das ideias iluministas, Jean-Jacques Rousseau inaugura a teorização sobre maternidade como meio de regeneração moral da sociedade, publicando, em 1762, “Emídio ou da Educação”, onde chega a determinar quais seriam as características de uma boa mãe e conclui que todas as mulheres deveriam ter filhos e explorar esse talento, sob pena de não poderem assim ser consideradas como verdadeiros exemplares da espécie. A obra apresenta preocupação extrema com a educação das crianças de quem dependia o futuro da Europa. Rousseau direcionou suas críticas, sobretudo, ao estilo de vida das mães da corte francesa, que, em sua maioria, como anota Camargo (2013), viviam a maternidade como apenas mais uma de suas obrigações sociais, entregando seus filhos logo após o nascimento a mercenárias amas de leite. Na visão do pensador iluminista, dita atitude negligente redundaria em adultos ingratos e incapazes de valorizar quem lhes dera a vida e quem lhes dera o leite, ou, em outras palavras, em péssimos cidadãos.
A salvação do continente europeu do caos moral em que se encontrava, para Rousseau (2014), residia na assunção pelas mulheres do seu indiscutível dever de cumprir as obrigações inerentes ao que denominava de “instinto materno”, na reclusão de suas moradas. Importante reconhecer que, embora, ao colocar em evidência o laço entre mãe e filhos como essencial à civilização seu foco não tenha sido a proteção das mulheres, mas a formação dos futuros cidadãos do mundo, Rousseau trouxe à tona direitos fundamentais relevantíssimos à maternidade, tais como a amamentação e a convivência da criança com a genitora, os quais se tornaram interesses da República e transformaram as mães numa categoria social e política, com reflexos positivos naquela época no que se refere à proteção de mães e esposas e à preocupação com a vida das parturientes e de seus bebês, por exemplo.
Concomitantemente à Revolução Francesa, ocorria uma profunda transformação tecnológica que alterou significativamente a forma de produção de bens de consumo, impactando a economia e a forma de viver da sociedade, fenômeno que ficou conhecido por Revolução Industrial, surgida na Inglaterra em meados do século XVIII e espalhada pelo mundo até o século XIX. A indústria que se iniciava precisava de mão de obra de baixo custo para operar máquinas e, assim, aproveitou a força de trabalho de mulheres e crianças, trazendo às primeiras o emprego assalariado fora do lar de maneira semelhante à dupla jornada de trabalho a qual se submetem hodiernamente, o que promoveu, notoriamente pela precariedade e abusividade das condições em que se desenvolvia, sempre em inferioridade em relação aos homens, reivindicações femininas que, não sem muita luta, mais tarde se convolaram nos primeiros direitos trabalhistas ligados à maternidade.
O século XX, por sua vez, trouxe-nos outro fator que propulsionou o ingresso de mulheres no trabalho remunerado fora de casa, qual seja a sequenciada eclosão das duas Grandes Guerras, que levaram os homens para o front das batalhas e impeliram suas esposas a assumirem seus postos e negócios em busca da sobrevivência da família. Para Jesus e Almeida (2016), a despeito de suas tensões e mobilidade nos destinos humanos, “[…], pode-se afirmar que para mais da metade da população mundial – as mulheres – ele também foi um século de conquistas e de grande visibilidade”. Mencionando a historiadora Françoise Thébaud[3], que assevera que as guerras para as mulheres foram uma experiência de liberdade e responsabilidades sem precedentes, os autores trazem a anotação de que cessados os conflitos, chegara para elas – mulheres – o momento de ceder os lugares conquistados e retornarem ao status quo anterior.
Nesse cenário pós-guerra, ressurge um movimento feminista que já se desenhava na Europa no século XIX, e que foi essencial ao retorno da luta pelos direitos ao corpo, ao prazer e ao antipatriarcado. Levanta-se, então, a corajosa voz da francesa Simone de Beauvoir que, em 1949, publica seu livro “ O Segundo Sexo” e, com seu existencialismo, inspira todo o ocidente no enfrentamento da questão da desigualdade entre os sexos. Beavouir (2009), contrapõe-se à definição da mulher a partir de critérios masculinos, repudiando a dicotomia de que eles são fortes e elas frágeis, de que a eles cabe o trabalho, a elas cuidar do lar, e problematiza o papel da mulher enquanto mãe, contestando o que apregoava Rousseau sobre a inexorabilidade do que ele denominava “instinto materno”. Enquanto o iluminista cataloga as virtudes abstratas inerentes às boas mães, a feminista elenca um rol de características factíveis que tornam algumas mulheres reais “más mães”. Segundo Beavouir (2009), “não é verdade que a maternidade seja o ideal de todas as mulheres”, como ainda “não é verdade que todas as crianças estejam seguras com suas mães”, reflexões sobre as quais, aliás, apoiam-se o nosso trabalho, consoante ver-se-á adiante.
É, pois, nesta contraposição de ideias, calcadas em razões diversas e nos pontos de vista antagônicos de Rousseau e Beauvoir, que temos as células embrionárias da proteção à maternidade em seus principais aspectos, quais sejam: o direito de maternar e o de escolher ou não a maternidade, compreendida esta desde os direitos reprodutivos de gerar, gestar, parir, passando pela amamentação e criação da prole e indo alcançar a filiação não biológica.
3 DA PROTEÇÃO À MATERNIDADE NO ÂMBITO DO PROCESSO PENAL
3.1 Convenções e leis protetivas de mulheres privadas de liberdade
É certo que a proteção à maternidade está alçada em nosso ordenamento jurídico à condição de direito fundamental, ou seja, de direito humano reconhecido no corpo da Constituição, daí advindo a validade e a força dos comandos que lhes correspondem. Nesse compasso, até pela agregação que o texto do art. 6º da Carta Magna faz entre a proteção à maternidade e à infância, por razões teleológicas, é de se fazer a abordagem conjunta e inter-relacionada das implicações dos aludidos direitos sociais, haja vista que um sempre afetará o outro, notadamente ante o previsto mais adiante no art. 227, o qual impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de zelar, com absoluta prioridade, pelos interesses de crianças, adolescentes e jovens, dentre eles o direito à convivência familiar.
Mais especificamente no âmbito do processo penal, a indissociabilidade dos direitos maternos em relação aos filhos é patente, tal como se depreende do art. 5º, inc. L, da CF/88, que assegura às presidiárias condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação. Para além do que consta expressamente na Constituição Federal, temos que, a teor do seu art. 5º, § 2º, os direitos e garantias ali expressamente positivados devem conviver e não excluir outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados, como também devem absorver os advindos de tratados internacionais de que o Brasil seja parte, sem contar com o princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, consoante previsto no inc. II do art. 4º da Lei Maior.
Numa zona supralegal, merecem destaque como principal marco normativo internacional sobre o tema devido não só à total abrangência em relação aos conteúdos dos postulados anteriores, mas também pela especificidade e precisão com que nelas se trata do aprisionamento feminino, as Regras das Nações Unidas Para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade Para Mulheres Infratoras, firmadas em 2010, em Bangkok na Tailândia.
Dados do Levantamento de Informações Penitenciárias sobre Mulheres – INFOPEN[4], em 2018, apontam que, no período de 2000 a 2016, a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou globalmente, porém não como no Brasil, onde tivemos um incremento da ordem de 525% de tal índice, fazendo com que ostentemos a terceira posição no ranking mundial de países que mais encarceram mulheres, atrás apenas da China, dos Estados Unidos e da Rússia. Esse mesmo levantamento reforça o estereótipo de hipervulnerabilidade das mulheres ingressas no sistema penitenciário brasileiro, constatando que elas, em sua maioria, são pobres, negras, tem precário grau de instrução e estão envolvidas no submundo do tráfico de drogas. Afirma-se ali também que 45% delas ainda não foram sentenciadas e, portanto, cumprem prisão cautelar, sendo que 50% da população prisional feminina geral é formada por jovens de até 29 anos, ou seja, em plena idade fértil, tanto que se constata no referido relatório que cerca de 74% de seu total têm filhos.
Nessa conjuntura de crescimento da população carcerária feminina, as Regras de Bangkok, dirigidas às autoridades penitenciárias e agências de justiça criminal, de fato, superam o olhar histórico exclusivamente voltado ao público masculino no contexto prisional, realçando demandas e necessidades peculiares das mulheres infratoras, muitas vezes vivenciadoras de situações delicadas como violência familiar e a própria maternidade.
Na seara da legislação ordinária, encontramos na própria LEP – Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84) dispositivos como o art. 83, § 2º, o art. 89, o art. 112, § 3º, e o art. 117, que, respectivamente, vão estipular a obrigatoriedade de locais apropriados à amamentação nos estabelecimentos prisionais que abriguem mulheres, a existência de seções para parturientes e gestantes, bem como creches para os filhos das presidiárias, regras diferenciadas de progressão de regime prisional para gestantes, mães ou mulheres que tenham pessoa incapaz sob sua dependência, e a possibilidade de concessão de prisão domiciliar às beneficiárias do regime aberto que se encontrem na situação retromencionada, com disposições correlatas no ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.060/90), o qual assegura no art. 8º, § 10º, às mulheres custodiadas em companhia de filhos na primeira infância que sejam inseridas numa ambiência que atenda às normas sanitárias e assistenciais do Sistema Único de Saúde para o acolhimento do filho, em articulação com o sistema de ensino competente, enquanto o art. 9º reza sejam propiciadas condições adequadas ao aleitamento materno por essas mulheres dentro do cárcere, o que se repete no art. 7º, § 2º, da Resolução n.º 14 do Conselho Nacional de Política Criminal e Previdenciária – CONAP, e o art. 19, § 4º, assegura a convivência dos menores de idade com pais privados de liberdade, dispositivos que tiveram suas redações aprimoradas pela Lei n.º 13.257/2016, conhecida esta como Marco da Primeira Infância, no intuito de efetivação das garantias constitucionais em questão.
Por fim, no Código de Processo Penal, há preceitos como o do parágrafo único do art. 292 que, acrescido pela Lei n.º 13.434/2017, veda o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como durante o puerpério imediato, o do art. 6º, inc. X, que determinava à autoridade policial que detivesse uma mulher perquirir sobre existência e condições em que se encontravam seus filhos, e o contido no art. 318- A, trazido ao código por força da Lei n.º 13.769/2018, sobre o padrão de cumprimento de prisão preventiva na modalidade domiciliar para mulheres gestantes, mães ou responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência, ressalvando-se apenas situações em que os crimes tenham sido cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa e contra filho ou dependente, o que criou um sistema de regra versus exceção em torno do encarceramento cautelar feminino em cuja celeuma interpretativa pretendemos nos aprofundar.
3.2 Evolução legislativa e jurisprudencial quanto ao direito de mulheres mães e gestantes à prisão domiciliar
Desde o advento da Lei n.º 12.403/2011, que trouxe ao Código de Processo Penal medidas cautelares diversas da prisão, abrindo leque de providências menos restritivas do direito fundamental à liberdade aos magistrados, que passaram a ter que guardar a constrição cautelar da liberdade a casos mais severos e graves, já havia preocupação do legislador com a prisão processual de mulheres, em especial mães.
No pertinente à substituição da prisão preventiva pela domiciliar, a supramencionada legislação, pela redação original conferida ao art. 318 do Código de Processo Penal, contemplava a possibilidade de que, a critério do juiz e desde que houvesse prova inidônea dos requisitos exigidos, pessoas responsáveis por crianças de até 6 anos de idade ou com deficiência e mulheres gestantes a partir do sétimo mês ou em caso de gravidez de alto risco, dentre outros casos de vulnerabilidade, pudessem receber a aludida benesse legal, disposições que, por força da Lei da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016), sofreram alterações significativas, operando ampliação do benefício a gestantes, independentemente do tempo de gravidez e de haver nela risco, e a presas mães de crianças de até 12 anos de idade incompletos.
Vê-se, portanto, que, de início, a concessão de prisão domiciliar a gestantes e mães não era automática, haja vista depender não apenas dos requisitos do art. 318 do Código de Processo Penal, mas também da adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais da acusada, conforme consta do art. 292, inc. II, do mesmo Diploma. Essa era a opinião de boa parte da doutrina ao tempo, como se afere da lição de Lima (2015) e Nucci (2017), para quem preenchidos os requisitos mínimos do art. 318 do Código de Processo Penal, cabia ao magistrado verificar, na hipótese concreta, se a prisão domiciliar seria suficiente para neutralizar o periculum libertatis. Nucci (2017) alertava para o perigo da vulgarização da prisão domiciliar e a utilização de manobras de invocação de vínculo familiar-afetivo para obter desmerecidamente o benefício legal, pelo que entendia ser necessária a comprovação da efetiva imprescindibilidade do cumprimento da prisão preventiva fora do ambiente carcerário, tanto para mães quanto para grávidas, posição prevalente na Corte Superior, da qual é exemplo o decidido no Habeas Corpus[5] n.º 363.958/SP. De outra banda, parte dos processualistas criminais – cite-se Badaró (2012) – e alguns julgados, destacando-se decisão do Superior Tribunal de Justiça em sede do Habeas Corpus n.º 291.439/SP[6], já defendiam que a prisão domiciliar ad custodiam constituía direito subjetivo de gestantes e mães ou responsáveis por crianças e pessoas com deficiência. Dito julgado e vários outros que se seguiram a sinalizar a prisão domiciliar como regra para mulheres grávidas e mães ou responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência, embora ainda não prescindindo de comprovação de inadequação do estabelecimento prisional às condições em comento, respaldavam-se, invariavelmente, no princípio da dignidade da pessoa humana, utilizando-se da positivação desse primado levada a efeito não apenas na Constituição Federal, mas também nas Regras de Bangkok, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei de Execução Penal, com as modificações operadas pela Lei n.º 13.527/2016 (Marco Legal da Primeira Infância), daí a extrema relevância desses institutos infraconstitucionais na concretização da garantia do direito social sobre o qual nos debruçamos.
Nas vezes em que fora acionada a respeito da matéria, nossa Corte Constitucional também divergiu, até dentro de suas próprias Turmas, amostras disso são processos da Relatoria do Min. Gilmar Mendes (Habeas Corpus n.º 142.593/SP)[7] e Ricardo Lewandowski (Habeas Corpus n.º 145.576 AgRg/SP)[8], este no sentido de que a possibilidade de colocação de preso (mulher ou homem) em custódia domiciliar pressupunha prova idônea dos requisitos legais a serem avaliados pelo juízo de origem, não se perfazendo como hipótese automática de causa e consequência, aquele no sentido oposto, ou seja, da absoluta preferência pelo não encarceramento nas situações em tela, haja vista a proteção à maternidade e à infância, além da dignidade da pessoa humana e do bem-estar do menor e do nascituro.
Todavia, se até então havia controvérsia a respeito do tema, o julgamento do Habeas Corpus Coletivo n.º 143.641/SP, relatado pelo Min. Ricardo Lewandoviski, traçou parâmetros para a questão do encarceramento preventivo de mulheres gestantes, puérperas e mães de crianças de até doze anos de idade ou pessoas com deficiência que vivam sob seus cuidados. Com efeito, em diversos aspectos, o aludido julgado merece aplausos, porquanto ousou no afã de dar cumprimento aos preceitos constitucionais e convencionais agasalhados em nosso ordenamento jurídico, dando máxima efetividade ao que dispõe o art. 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos no que pertine à proteção judicial mediante recurso rápido, simples e efetivo, com vistas à garantia de direitos fundamentais, quando vence preliminares processuais e admite a impetração de habeas corpus coletivo, à míngua de previsão do remédio constitucional nessa modalidade, como única solução viável a assegurar direitos sociais dos mais vulneráveis, reconhecendo na causa direitos individuais homogêneos a serem respaldados e dando preferência à substância do que diz ser o mais precioso dos direitos – a liberdade – em relação à forma, em absoluta consonância, aliás, com o princípio regente do nosso direito processual da primazia do alcance do mérito.
No supramencionado writ, reconheceu-se que a prisão preventiva nos moldes intra muros subtraía das mulheres grávidas direitos fundamentais relacionados à maternidade, tais como o acesso a programas de saúde pré-natal, assistência regular na gestação e no pós-parto, e ainda privando as crianças de condições adequadas ao seu desenvolvimento pela privação da convivência familiar, constituindo tratamento desumano, cruel e degradante, com violação flagrante dos postulados constitucionais relacionados à individualização da pena, à vedação de sanções cruéis e, ainda, ao respeito à integridade física e moral das mulheres encarceradas.
A partir do que se firmou no HC Coletivo n.º 143.641/SP, todas as presas e adolescentes infratoras gestantes, puérperas ou mães de crianças ou deficientes sob sua guarda (leia-se cuidados) que tiverem contra si prisões processuais decretadas, mesmo que reincidentes, passaram a ter o direito de cumprir suas medidas cautelares restritivas de liberdade em suas casas, na companhia dos seus, somente sendo excepcionadas dessa prerrogativa aquelas mulheres que tenham cometido crimes com violência ou grave ameaça contra pessoa ou contra os seus descendentes, além de situações excepcionalíssimas a serem justificadas pelo magistrado.
Na sequência, tivemos a edição da Lei n.º 13.769, de 19 de dezembro de 2018, que introduziu os arts. 318- A e 318-B ao Código de Processo Penal, suprimindo, entretanto, a terceira causa de exceção da aplicação de prisão domiciliar a mulheres contempladas no Habeas Corpus Coletivo, que consistia na genérica situação excepcionalíssima a ser mensurada pelo juiz do caso concreto. Dúvidas surgiram quanto à possibilidade de o juiz fundamentar o indeferimento da medida cautelar domiciliar fora das duas hipóteses contempladas nos dois incisos do art. 318-A do mencionado Diploma, não nos parecendo, contudo, razoável a interpretação no sentido de que está afastada de forma absoluta a cláusula de reserva de jurisdição a implicar a automaticidade do benefício.
Enfim, a compreensão de toda essa ratio legislativa e jurisprudencial acima exposta é, a salvo de dúvidas, essencial para elucidar que, conquanto desde sempre incontroversa a hostilidade do ambiente prisional para mulheres gestantes e mães, com óbvios malefícios extensivos aos infantes e deficientes sob suas guardas, o direito em análise não se mostra banalizado, mas antes fora e deve continuar sendo deveras sopesado e construído paulatinamente com responsabilidade por parte de quem deve zelar pelo cumprimento da Lei Maior e dos Tratados Internacionais por ela incorporados, prova disso os diversos contrapontos levantados no percurso da consolidação dessa garantia de forma mais abrangente em nível de direito positivado.
3.3 Da interligação e da possibilidade de conflito entre direitos fundamentais inerentes à maternidade e à infância
Pode-se afirmar que o artigo 6º da Constituição Federal confere fundamentalidade de proteção à proteção maternidade, integrando-a à infância e colocando os bens jurídicos que ambas as garantias representam em pé de igualdade e importância.
Apregoa Alexy (2017) que “[…] o caráter principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um sopesamento quando elas colidem com princípios antagônicos” […], atentando, em sua teorização, para a importância da dimensão normativa do princípio como direito positivo válido ligado, sem esquecer da práxis jurídica e jurisprudencial como ponto de partida para se determinar qual a decisão correta num caso concreto.
Migrando para o campo do processo penal, cujos princípios garantistas são notória e integralmente interdependentes dos direitos fundamentais, vemos que prevalece idêntica indispensabilidade de harmonização de princípios constitucionais contidos nos direitos e garantias agasalhados na Lei Maior, os quais devem corriqueiramente ser relativizados entre si, porquanto facilmente em situações concretas se põem em atrito por colocarem direitos fundamentais extremos em oposição, uma vez que de um lado teremos o direito à segurança pública, alicerce máximo do jus puniendi estatal, do outro o direito à liberdade e seus consectários que desembocam, inexoravelmente, pela via do devido processo legal, no respeito à dignidade da pessoa humana.
Entretanto, embora nem tão óbvios e mais raros, encontramos outros pontos de embate entre direitos fundamentais dentro do caminho da persecução penal e da execução da sanção emanada de sentença criminal condenatória. Esse conflito, por vezes, aparece no pertinente à situação de mulheres gestantes e mães sujeitas ao cárcere, a qual se impõe um olhar diferenciado, dadas as singularidades da maternidade a tornar essas mulheres especialmente vulneráveis no contexto do sistema prisional, com crianças, adolescentes e pessoas com deficiência sob seus cuidados atingidas de maneira reflexa pela privação de suas liberdades. As proteções à infância e à maternidade, é certo, no mais das vezes estão no mesmo lado da balança ao serem sopesadas com a imperiosidade da contenção do periculum libertatis em nome da ordem pública, quando, por exemplo, analisa-se a concessão de prisão domiciliar à luz do art. 318 do Código de Processo Penal. Porém, pontualmente, esses direitos fundamentais coligados entram em conflito, tanto que, a par das ponderações judiciais quanto à adequação da medida, há previsões legais expressas suscetíveis de respaldar a denegação do benefício, quais sejam quando o crime é cometido com violência ou grave ameaça à pessoa e quando se volta contra o próprio filho ou dependente.
Temos que, mesmo considerando todas as alterações legais com o fim ampliativo do benefício em tela, não há que se perder de vista no embate entre os direitos implicados o melhor interesse da criança, adolescente ou pessoa com deficiência a quem se dirige o amparo materno, no que muito importa a compreensão da relação mãe-criança, em cada caso concreto, como fator decisivo à consecução da proteção constitucional ideal, lembrando que, como asseverou Nucci (2014) com propriedade, a intenção da lei foi resguardar a pessoa em situação de vulnerabilidade e não o agente criminoso.
Se é certo que merece louvor o Habeas Corpus Coletivo n.º 143.641/SP ao mais uma vez reconhecer a absoluta falência do sistema penitenciário, em especial diante da fragilidade da situação feminina no cárcere, que jamais fora adequadamente pensada e planejada, o que é reforçado por dados concretos coletados em junho de 2016 para basear as Diretrizes para Mãe Filho/a no Sistema Prisional do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, onde se verificou que a taxa de ocupação no sistema prisional brasileiro em relação às mulheres era de 156,7%, o que significa dizer que uma cela onde cabiam 10 detentas acomodava 16 delas. Além disso, simplesmente faltavam e faltam em muitos presídios espaços onde as mulheres privadas de liberdade possam passar o tempo com seus filhos e lhes prestar cuidados.
Às afrontas à dignidade ocasionadas naturalmente pela superpopulação carcerária e pelo ambiente hostil da prisão e à falta de estrutura adequada para o acolhimento de gestantes, bebês e crianças dentro das instituições prisionais, some-se a vedação contida no art. 5º XLV da Carta Magna de que a pena – e assim também compreenda-se a medida cautelar – possa transcender a pessoa do acusado para atingir outrem, e, prestigiando o art. 227 da mesma Lei Fundamental, teremos argumento perfeito e irrefutável a favor da regra sobre prisão domiciliar de mulheres grávidas e mães em conflito com a lei, a evitar institucionalização tanto delas quanto dos filhos, o que traria prejuízos certos ao desenvolvimento psíquico, educacional, social e até físico dos infantes.
Contudo, não se tratando de uma ciência exata, como acentua Pacelli (2018), quando trata do tema, “O Direito há de seguir sempre sua sina e rotina: é regra, mas também é exceção”. Devem, portanto, no mundo dos fatos, serem levadas em conta uma série de variantes, tais como o risco, não apenas para o processo e para a sociedade, da liberdade da mãe, mas sobretudo ao desenvolvimento de seus próprios dependentes, a composição familiar e o contexto psicossocial em que ela se insere. Na linha da psicanálise, Chodorow apud Cordeiro (2013) afirma que “[…] esse pressuposto [maternação como fato natural é questionável, dado o grau em que o comportamento humano não é determinado instintualmente, mas mediado culturalmente”.
Acrescente-se em combate ao feminismo essencialista, que, de certa forma, justifica a subordinação natural da mulher a parir e cuidar dos filhos por razões hormonais, o pensamento liberal transformador de Marta Nussbaum, que não dispensa as concepções de individualismo e autonomia. Para Nussbaum, segundo cita Cyfer (2010), as implicações biológicas da maternidade, como a elevação do estrógeno pós-parto, não devem ser interpretadas com um viés simplista e ideológico, olvidando que o comportamento maternal, até porque advém de um indivíduo com margem de autonomia, também inclui a agressividade, que ora é dirigida a possíveis agressores de seus filhos, ora é dirigida a seus próprios filhos. A linha feminista liberal defendida por Nussbaum converge, pois, com tantas outras quando afirma que a separação entre público e privado não pode se dar a tal ponto de tornar invisíveis e inalcançáveis ao Estado as assimetrias de poder no domínio doméstico, o que inclui, por óbvio, a relação entre todos os entes familiares e assim também a relação mãe-filho.
E é justamente nesse ponto do discurso que se insere o pensamento de Simone de Beauvoir de que nem todas as crianças estão seguras em companhia de suas mães a ser confrontado com situações atuais que desafiam o exercício responsável da jurisdição.
3.4 Concessão de prisão domiciliar por juízes nos casos concretos
Na medida em que os fatos da vida demonstram que, por mais desfavoráveis que sejam as circunstâncias, os cuidados maternos se fazem, e assim devem ser presumidos nos moldes do Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP, essenciais ao pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, a quem se equiparam pessoas com deficiência, merece elogios a aplicação de medidas não encarceradoras às mulheres responsáveis por estes, especialmente porque a hipervulnerabilidade generalizada da situação faz jus a uma maior proteção e porque as peculiaridades do envolvimento feminino no crime tornam, em tese, mais facilmente contornável o periculum libertatis.
Diante de tal conjuntura fática, vozes se levantam a apontar que, na prática, os juízes tem agido em desacordo com as previsões garantistas constitucionais, convencionais e legais atinentes à espécie. É preciso, entretanto, relembrar a lição de Bobbio (2014), de acordo com a qual “[…] deve-se ter em mente, antes de mais nada que teoria e prática percorrem duas estradas diversas e a velocidades muito desiguais”.
Relativamente à maior parte dos crimes, inexiste qualquer clamor quanto à não aplicabilidade da prisão domiciliar a mulheres, haja vista que a justificativa da violência e ameaça parece persuadir a sociedade sobre a legitimidade da exceção capitulada no inciso I do art. 318-A do Código de Processo Penal, assim como convence o cumprimento de prisão cautelar intra muros quando, consoante previsto no inciso II do mesmo dispositivo, o delito cometido atinge os próprios filhos, igualmente beneficiários da medida, a despeito do não menos flagrante ferimento de direitos fundamentais e do abandono da mulher no cárcere. Em verdade, a celeuma se instaura em torno do tráfico de drogas, em razão do qual a maioria das mulheres está preventivamente presa, delito que constitui tipo muito aberto, que comporta condutas que vão desde papéis periféricos de armazenamento, transporte e comercialização de entorpecentes em pouca quantidade até a participação e chefia em organizações criminosas. Outrossim, há de se considerar que, embora prescinda de violência para sua concretização, a traficância dela se cerca, utilizando armas para assegurar suas operações e desembocando, por via indireta, em outros delitos gravíssimos, tais como roubos, sequestros e homicídios. Por essas e outras razões, esse tipo de infração merece especial atenção quando da flexibilização de medidas cautelares privativas de liberdade em geral.
Dentro de processos reais em que se apurava a participação de mulheres no comércio ilegal de entorpecentes, Silva (2019) e Garcia (2020), a primeira analisando decisões, dos Tribunais de Justiça de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Sergipe; a segunda, as decisões das Cortes Superiores, verificaram uma possível subversão da lógica normativa do artigo em comento, eis que em vários casos mulheres que preenchiam os requisitos legais objetivos deixaram de ser beneficiadas por ausência de comprovação da imprescindibilidade dos cuidados a serem prestados aos dependentes, em manifesto confronto com a presunção reconhecida no Habeas Corpus Coletivo n.º 143.641/SP. Por sua vez, Machado (2016), estudando ações criminais em curso no Poder Judiciário do Rio de Janeiro, aferiu que os magistrados, acima de tudo, continuam priorizando a segurança pública ao invés dos valores atinentes à maternidade e à infância.
Ocorre que, conquanto por questões culturais historicamente construídas deixemos sempre o feminino no segundo plano, relegando-lhe funções menos importantes e subalternas, ideia que facilmente se transpõe para as atividades delituosas nos moldes da teoria de Cesare Lombroso, é imperioso reconhecer que nas últimas décadas a mulher buscou seus espaços de empoderamento no privado e no público, no lícito e no ilícito. Para Souza (2009): “Atualmente merece ser mais bem investigada cientificamente a ocupação, por parte da mulher, de altos escalões do tráfico de drogas, já que a violência feminina encontra-se cada vez mais relacionada ao tráfico”. Oportuna a colocação da mesma autora sobre a mudança de paradigma no âmbito da criminalidade, eis que tanto homens quanto mulheres podem ser vítimas e agressores, por isso é preciso, ao tratar o sujeito e a violência, evitar generalizações de espécie que enxergam invariavelmente homens como autores e as mulheres como vítimas.
Almeida apud Sousa (2009) há tempos trouxe à tona importante reflexão a respeito:
As mulheres que por muito tempo foram representadas e representantes da figura pacata, dedicada ao amor romântico e ao lar, se mostraram, escondida ou abertamente, como delituosas, capazes de cometer crimes. Muitas mulheres, o tempo todo controladas até por elas mesmas, se rebelam contra um status feminino que lhes fora imposto no decorrer dos séculos, bem como contra maus tratos, contra a submissão e também contra a subestimação de sua capacidade de delinquir. Ousaram transgredir para viver o próprio desejo, sua verdade, a própria vida (ALMEIDA, 2001, p. 100).
Barcinski (2009), em trabalho calcado em entrevistas feitas com mulheres que adentraram o mundo do tráfico, concluiu que havia dois tipos de envolvidas, as que participavam involuntariamente do submundo criminoso por dependência amorosa, e as que deliberadamente assumem o desafio. E, apesar de nenhuma delas escapar da submissão de gênero a também ali estabelecer uma hierarquia, em geral, para todas o maior motivo para ingresso na rede de traficância foi a busca do poder, do alinhamento com o masculino e o distanciamento e destaque em comparação a outras mulheres da comunidade, de modo que não é impensável que mulheres atuem no comando de bocas de fumo e galguem posições de comando em organizações criminosas.
Em que pese ser minoria, não se pode desprezar o número de casos em que a atividade das mulheres no tráfico traz evidente prejuízo a crianças e adolescentes que as circundam, muitos deles refletidos em algumas jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, mesmo após o advento da Lei n.º 13.769/2018, que acresceu o art. 318-A ao Código de Processo Penal. Ao revés, cumpre dizer que ditos Tribunais tem mantido a concessão da benesse nas hipóteses de tráfico privilegiado e quando não se vislumbra riscos insuperáveis à ordem pública e aos próprios filhos e dependentes das acusadas, fundamentando-se, justamente, na proteção à infância e à maternidade e no interesse do menor[9].
Verbi gratia, um julgado de cada um dos nossos Tribunais Superiores onde se encontra fundado conflito dos direitos fundamentais supramencionados, um do Supremo Tribunal Federal, qual seja o HC 179449/SP[10], onde se denegou a prisão domiciliar a duas mães de adolescentes que viviam na companhia de outros parentes (avô e tio) e foram apanhadas com 3.360 porções de cocaína, pesando 1.558,8 gramas, 400 de crack, com peso líquido de 122.7 gramas, 430 de maconha, totalizando 1.526 gramas, e 156 embalagens plásticas vazias, já tendo ambas sofrido pretéritas condenações por crimes graves como roubo e associação ao tráfico; outro do Superior Tribunal de Justiça, qual seja o HC 594600/MG[11], onde a mãe traficante, que consigo transportava considerável quantidade entorpecentes, perseguida pela polícia, a fim de se livrar do flagrante policial empreendeu fuga fazendo manobras automobilísticas perigosas com seus filhos menores de idade dentro do carro.
Num segundo passo, paremos e reflitamos, à luz da almejada proteção à infância e juventude, sobre cada uma das situações fáticas acima esposadas, onde é impossível não enxergar o risco à integridade física e psíquica dos dependentes das mulheres que figuram como pacientes desses writs. É difícil, ainda, pensar na traficância de grande monta e mesmo no funcionamento de uma simples boca de fumo dentro de casa também habitada por menores de idade, motivo de muitos indeferimentos de prisão domiciliar a mães, que não esteja sujeita a qualquer momento a uma abordagem policial mais truculenta, que não envolva manejo de armas de fogo, sem contar os óbvios malefícios de crescer presenciando o manuseio e uso de substâncias tóxicas, assimilando o tráfico como acontecimento cotidiano e bem assim as mazelas comportamentais daí decorrentes. Não é de se esquecer as muitas vezes em que mulheres e crianças são usadas para despistar a polícia no transporte de drogas e ali são apanhadas, sujeitando infantes ao constrangimento da abordagem policial. Não precisamos ser profundos conhecedores do comportamento humano para entender a prejudicialidade de tais conjunturas no desabrochar daqueles que ainda estão se descobrindo no mumdo, prova disso a constatação do ingresso cada vez mais precoce de crianças no tráfico, numa média de 10 a 12 anos de idade, conforme noticiou, dentre outros, o portal “Cotidiano” do sítio de internet UOL (2018) com base em informações repassadas por Organizações não Governamentais – ONGs.
Por fim, é de se ter em mente que os benefícios legais concedidos no âmbito do processo penal e da execução penal exigem sempre a contrapartida dos acusados, que devem demonstrar responsabilidade e compromisso na própria reintegração social, o que não acontece com gestantes e mães que, em prisão domiciliar, mantém atividades ilícitas às vistas dos filhos e até mesmo nelas os envolvem direta ou indiretamente. Diante da ausência dessa responsividade, é, pois, de se legitimar a atividade judicial a perquirir soluções alternativas em cada caso, invariavelmente no maior interesse do menor, buscando, por exemplo, a existência de parentes próximos que, em substituição aos vínculos biológicos, possam oferecer maior segurança aos dependentes de mulheres envolvidas com o crime, se a convivência com elas em prisão domiciliar for temerária, daí a imprescindibilidade de se demonstrar, em situações pontuais, a real necessidade da presença de mães infratoras não comprometidas com mudança de padrão comportamental na vida de seus filhos, a par, claro, do acompanhamento, quando impostas a elas medidas cautelares alternativas ao cárcere, da salubridade das relações familiares extramuros.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreendendo a maternidade como algo inato às mulheres, porém, paradoxalmente, como um atributo natural cujo reconhecimento e garantia fora conquistado num árduo caminho ao longo da história da humanidade, desenvolvemos a compreensão acerca da dimensão da importância do seu reconhecimento como direito fundamental social agasalhado em nossa Constituição Federal de 1988, juntamente e de forma inseparável da proteção à infância.
Assim, temos que a proteção à maternidade está ligada à primazia do direito à vida, num patamar de absoluta prioridade, de um modo tal que a forma como uma sociedade acolhe esse direito fundamental repercute na forma de existência e organização social das gerações subsequentes. No entanto, no afã da igualdade que se busca, é preciso considerar o ponto de vista das próprias pensadoras feministas acerca das mulheres, que, humanas que são, tem suas virtudes, capacidades e também falhas, não sendo inexoravelmente predestinadas à maternidade, embora questões biológicas e culturais apontem, não ao todo desfalcadas de razão, a predisposição a tanto. De qualquer forma, instaurada a maternidade na vida de uma mulher, por vínculos biológicos ou civis de quaisquer natureza, daí por diante será ela indissociável da proteção à vida que gerara ou assumira, para efeitos de direitos e deveres.
Ao invadir o campo do direito penal e processual penal, profundamente permeado pelos princípios constitucionais, com destaque para aquele elegido como fundamento do Estado Democrático de Direito no art. 1º, inc. III, da Carta Magna, qual seja a dignidade da pessoa humana, todo o cuidado na mensuração de direitos eventualmente em conflito se requer, e se, porventura, estamos a analisar a maternidade exercida dentro de uma prisão desestruturada e incapaz de ressocializar, tampouco de acolher crianças em condições decentes e não assemelhadas ao próprio cumprimento da pena sofrido pelas mães, concluímos que a fórmula prisão versus liberdade com foco na segurança pública não nos serve se não inserirmos nela, com maior peso e valor, o ingrediente do melhor interesse da infância, adolescência ou pessoa com deficiência equiparada.
Propõe-se, assim, uma releitura pormenorizada e mais atenta de cada um dos casos em que os direitos à maternidade e à infância se confrontam, evitando-se determinismos de um lado ou de outro. Nem ao longe deve se cogitar o afastamento da regra positivada graças ao Habeas Corpus Coletivo nº 143.641/SP, que em muito contribuiu para a política de desencarceramento feminino num contexto do declarado estado inconstitucional de coisas do sistema penitenciário brasileiro, o que trouxe reflexos mais do que positivos no fortalecimento da família, na viabilização da ressocialização de mulheres em conflito com a lei e na segurança e referencial familiar de crianças e adolescentes. Todavia, mister reconhecer que, em muitos casos, faz-se preciso manter atenção antes e após a concessão da medida de prisão domiciliar a mulheres mães ou responsáveis por incapazes e deficientes, cogitando-se a verificação sobre o cumprimento do objetivo de atender ao interesse primordial dos filhos e dependentes, com estipulação de acompanhamento paralelo de órgãos como o Conselho Tutelar e pareceres de equipes multiprofissionais, a fim de se contribuir para a construção de um Poder Judiciário eficaz, responsável e inclusivo.
E não se diga que estamos a defender o encarceramento como regra. Mas, o oposto, defende-se aqui o aprofundamento da discussão e ampliação dos espectros de visão de situações socialmente complexas experimentadas pela mulher que se encontra inserida no contexto do crime, sobretudo, do tráfico de entorpecentes, de forma clara, sincera e no intuito de efetivamente tirar mulheres gestantes, mães e responsáveis por incapazes ou deficientes da invisibilidade, diferenciando as conjunturas de cada caso concreto, inclusive com diligências paralelas a respeito do ambiente em que vivem com seus filhos e dependentes. Que se pondere sensatamente se, a depender da situação, e principalmente na existência de vínculos familiares outros mais afastados dessa nefasta realidade, não seria de se considerar legítima a viabilidade de ponderações judiciais para além das exceções positivadas sustentada pelo Supremo Tribunal Federal, no interesse superior dos menores envolvidos, porquanto, por vezes, deparamo-nos com uma maternidade irresponsável, negligente, não desejada ou não suficientemente priorizada a nos impelir a concordar com Simone de Beauvoir quando afirma que nem todas as crianças estão seguras com as respectivas mães.
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[1] Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo UNIPÊ; Professora de Processo Penal da Escola Superior da Magistratura (ESMA/PB); Juíza de Direito do Estado da Paraíba; Especialista em Direito Processual Penal pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).
[2] Professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ); Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra; Mestre em Direito Econômico pela UFPB.
[3] THÉBAUD, Françoise. A Grande Guerra: o triunfo da divisão sexual. In: DUBY, Georges, PERROT, Michelle (Org.). História das Mulheres no Ocidente: o século XX. Porto: Afrontamento, 1995, p. 31-94.
[4] BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2020.
[5] HC 363.958/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 13/09/2016, DJe 26/09/2016.
[6] STJ, HC 291439 SP 2014/0068074-0, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 22/05/2014, T6 – Data de Publicação: DJe 11/06/2014.
[7] STF, HC 142.593/ SP – SÃO PAULO, T2, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 22/06/2017 – Data de Publicação: DJe 13/10/2017.
[8] STF, HC 145576 AgRg / SP – SÃO PAULO, T2, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 22/02/2018 – Data de Publicação: DJe 02/03/2018.
[9] STF, HC 147301 / SP, T1, Rel. Min. Marco Aurélio, data do julgamento: 05/02/2019, DJe 21/03/2019; STF, Rcl 32521 AgR / GO, T2, Rel. Min. Gilmar Mendes, data do julgamento: 22/02/2019, Dje 09/04/2019; STF,, HC 168374 AgR / MA, T2, Rel. Min. Lewandowski, data do julgamento: 29/03/2019, Dje 05/04/2019; STJ, HC 543919 / AC, T5, Rel. Min. JOEL ILAN PACIORNIK, data do julgamento: 25/08/2020, Dje 31/08/2020; STJ, HC 594600 / MG , T6, Rel. Min. Nefi Cordeiro, data do julgamento: 18/08/2020, Dje 27/08/2020.
[10] STF, HC 179449 / SP, T1, Rel. Min. Marco Aurélio, data do julgamento: 05/08/2020, Dje 20/08/2020.
[11] STJ, HC 594600 / MG, T6, Rel. Nefi Cordeiro, data do julgamento: 18/08/2020, Dje 20/08/2020.