ORDEM ECONÔMICA E CAPITALISMO: A INFLUÊNCIA DO BIOPODER E DA BIOPOLÍTICA NA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
1 de março de 2022ECONOMIC ORDER AND CAPITALISM: THE INFLUENCE OF BIOPOWER AND BIOPOLITICS ON THE SOCIAL FUNCTION OF THE COMPANY
Cognitio Juris Ano XII – Número 39 – Edição Especial – Março de 2022 ISSN 2236-3009 |
RESUMO: o presente estudo propõe-se a apresentar o biopoder e a biopolítica como mecanismo de influência na ordem econômica, mais exatamente no princípio da função social da propriedade da empresa. Justifica-se o presente trabalho pela relevância do tema. Para atingir o objetivo almejado, inicialmente aborda-se os termos biopoder e biopolítica e suas principais características, conforme delineados por Foucault, em seguida, explora-se brevemente o capitalismo e o nascimento da ordem econômica, ato contínuo, aborda-se o direito de propriedade e a função social da empresa. Por fim, trata-se da influência do biopoder e da biopolítica na função social da propriedade. Concluindo-se que o biopoder e a biopolítica atuam como mecanismo de relativização da propriedade privada. A pesquisa baseou-se no método dedutivo e em pesquisas bibliográficas.
Palavras-chaves: Biopoder. Biopolítica. Capitalismo. Propriedade. Função social.
ABSTRACT: this study proposes to present biopower and biopolitics as an influencing mechanism in the economic order, more precisely in the principle of the social function of company property. The present work is justified by the relevance of the theme. To achieve the desired goal, initially the terms biopower and biopolitics and their main characteristics are addressed, as outlined by Foucault, then capitalism and the birth of the economic order are briefly explored, continuous act, the right to ownership and the social function of the company. Finally, it is about the influence of biopower and biopolitics on the social function of property. In conclusion, biopower and biopolitics act as a mechanism for the relativization of private property. The research was based on the deductive method and bibliographic research.
Keywords: Biopower. Biopolitics. Capitalism. Property. Social role.
INTRODUÇÃO
A partir da leitura singularizada de Foucault sobre o cenário histórico a contar dos séculos XVII – XVIII, originam-se as figuras do biopoder e da biopolítica que são identificados como instrumentos do capitalismo para manutenção e ampliação de sua dominação, tendo, basicamente, como estratégia a formação de uma população composta por corpos economicamente ativos e politicamente dóceis, permitindo a sua gestão conforme seus interesses. Tais mecanismos foram determinantes para constituir o capitalismo como modo de produção e também de reprodução.
A propriedade privada dos meios de produção sempre foi um dos pilares mais importantes da construção do capitalismo, podendo ter sua representação melhor ilustrada na figura da propriedade da empresa. A função social da propriedade, como princípio da ordem econômica, conforme inscrito na Constituição Federal de 1988, entra neste cenário com um significado e papel icônicos, visto que indicam a relativização dessa propriedade a medida que ela passa a ser justificada a partir da função social que desempenha.
O presente trabalho busca apresentar a influência do biopoder e da biopolítica na função social da empresa. A contribuição da presente pesquisa repousa nas reflexões que são levantadas acerca do assunto sob a ótica da Ordem Econômica vigente, naturalmente, sem a pretensão de esgotar a matéria, e justifica-se pela relevância do tema no cenário atual. Nota-se que a empresa possui um papel fundamental na sociedade, gerando emprego e renda, sendo a base da economia e também em arrecadação para o Estado.
Para atingir o objetivo almejado o presente estudo foi organizado em quatro tópicos, sendo o primeiro a abordagem dos termos biopoder e biopolítica, conforme as lições de Foucault; o segundo traz uma breve explanação sobre o capitalismo e o surgimento da ordem econômica; o terceiro tópico aborda o direito de propriedade e a função social da propriedade da empresa, e por fim, no quarto tópico, aborda-se a influência do biopoder e da biopolítica na função social da empresa. O presente trabalho utilizou-se do método dedutivo e pesquisa bibliográfica. A partir das pesquisas, como pode-se verificar a seguir, conclui-se que o biopoder e a biopolítica atuam como mecanismo de relativização da propriedade privada.
1. O BIOPODER E A BIOPOLÍTICA
Para melhor trabalhar o tema da influência do biopoder e da biopolítica na Ordem Econômica vigente, mais especificamente em relação ao Princípio da Função Social da Propriedade da Empresa, conforme se pretende visualizar, faz-se necessário contextualizar os referidos termos conforme delineados a partir da leitura singularizada de Foucault dos cenários históricos a contar dos séculos XVII – XVIII.
Conforme a lição de Medici (2011, p. 58), economistas clássicos do século XVIII, tais como Adam Smith, David Ricardo e na mesma trilha, mas de modo diverso, Karl Marx, já haviam assentado entendimento no sentido de que era na atividade dos indivíduos, em conjunto, que a riqueza das nações era proporcionada. Assim, aumentar as riquezas era diretamente proporcional ao aumento da atividade da população. Neste sentido, portanto, “a reprodução vital, a regulação de seus ciclos vitais e a garantia de sua saúde e educação eram estratégicas para o próprio fortalecimento do poder”.
Orientados por esta máxima, passa-se a ter um novo olhar sobre a população, de modo que sua importância transpõe-se para o nível qualitativo, visto que quanto mais vigor houvesse – mais atividade, mais produção, e esse fato levaria a mais riquezas e, consequentemente, a manutenção do poder.
É neste ínterim que se encaixam as estratégias de poder, conforme será verificado a seguir, basicamente, a biopolítica e o biopoder são instrumentos do capitalismo para sua manutenção e ampliação, passando a ser identificado não apenas como modo de produção, mas também, e de forma maximizada, como meio de reprodução. Ressalta-se que o biopoder e a biopolítica foram indispensáveis ao desenvolvimento do capitalismo.
De acordo com Medici (2011), conforme lições que foram extraídas das palestras no Collège de France, no período de 1977/1978, Foucault insere duas noções chaves às suas obras já existentes, sobre a arqueologia dos regimes de verdade e a genealogia dos dispositivos de poder, tais noções são as de governamentalidade e as tecnologias de si, ambas interligadas pela esfera da biopolítica.
Por governamentalidade entende-se uma nova forma de domínio, na qual o poder exercido sobre a população se torna menos perceptível, uma forma mais sutil de governar, em outras palavras, refere-se ao oposto do sistema anterior, o poder soberano, que era exercido pela força – “fazer morrer e deixar viver”. Essa nova forma se utiliza de técnicas disciplinares com a finalidade de construir uma população de acordo com a imposição (disfarçada) de sua vontade, ou seja, por meio da prisão, escola, hospício, serviço militar obrigatório, entre outras técnicas, promove-se a construção de corpos dóceis e economicamente úteis, servindo de fonte para o fortalecimento e manutenção do poder, assim a tônica inverte-se para “fazer viver e deixar morrer” (MEDICI, 2011).
Salienta-se que a governamentalidade introduz uma metodologia de dominação baseada em micropoderes, os quais serão manejados não diretamente pelo poder soberano do Estado, mas de modo pulverizado, por dispositivos de poder, a influenciar de forma indireta o comportamento da população. Os dispositivos de poder podem ser entendidos como uma teia de saberes arquitetados de forma estratégica, de tal modo, que produzam efeitos de poder (FOUCAULT, 1979).
A outra chave introduzida por Foucault são as tecnologias de si que podem ser entendidas como a autonomia do próprio indivíduo e suas implicações (subjetividade), ligadas ao direito natural, basicamente a pessoas e suas vontades mais básicas existenciais, como elas são de fato e sua natural busca pela liberdade.
Aqui cabe introduzir a definição grega de “bios” e de “zoé”, conforme a política Aristotélica. De acordo com Medici “[…]a distinção grega que se tornou famosa pela Política de Aristóteles, entre bios (a vida da polis, politicamente qualificada, do zoon politikon, como busca do bem viver), e o zoé, a mera vida natural que é comum para o homem e outros animais[…]” (2011, p. 58) , referem-se a duas faces da vida humana, sendo “bios” – a vida da polis, ou a vida em sociedade, na qual há um modelo politicamente articulado, onde se busca viver bem; enquanto “zoé” – corresponde a vida que se estabelece ao nascer, a vida nua, natural, comum a todos que nascem, sejam homens ou animais, ligada a liberdade, o sujeito em si mesmo.
Todas estas definições estão ligadas de modo que a governamentalidade produz efeitos na “bios” ou a define, ligada ao poder, enquanto as tecnologias de si estão ligadas ao “zoé” ou vida nua, na qual existe a autonomia da vontade dos sujeitos, a liberdade. Observa-se que a relação que se estabelece entre poder e liberdade, neste contexto, é importante na medida em que o sujeito, sendo titular de sua liberdade, pode se contrapor aos dispositivos de poder, dito de outro modo, esse sujeito pode não se submeter às ordens ou modelos estabelecidos na “bios”, uma espécie de resistência, dando origem ao conflito ou tensão entre poder (dispositivos de poder – governamentalidade) e liberdade (subjetividade). Tais variáveis – governamentalidade e tecnologias de si – estão interligadas pela biopolítica.
De acordo com Medici, “biopolítica é um conjunto de tecnologias de poder que buscam fundamentalmente controlar, regular a vida das populações, taxas de natalidade, mortalidade, saúde, migração e assim por diante” (2011, p. 58), este conjunto de tecnologias permitem a inserção do poder no processo reprodutivo da população, assim agindo diretamente na gestão da vida, transformando e integrando zoé e bios.
Nas palavras de Foucault:
Especificamente, esse poder sobre a vida se desenvolveu desde o século XVII de duas maneiras principais; eles não são antitéticos; em vez disso, eles constituem dois pólos de desenvolvimento ligados por todo um feixe intermediário de relacionamentos. Um dos pólos, aparentemente o primeiro a se formar, estava centrado no corpo como máquina: sua educação, o aumento de suas aptidões, a atração de suas forças, o crescimento paralelo de sua utilidade e sua docilidade, sua integração em sistemas de controle efetivo e econômico, tudo isso foi assegurado por procedimentos de poder característicos das disciplinas: anatomopolítica do corpo humano.
A segunda, formada um pouco mais tarde, em meados do século XVIII, centrava-se no corpo-espécie, no corpo transitado pela mecânica dos vivos e que serve de suporte aos processos biológicos: proliferação, nascimentos e mortalidade., o nível de saúde, a longevidade e a longevidade, com todas as condições que os podem fazer variar; todos esses problemas são superados por uma série de intervenções e controles regulatórios: uma biopolítica populacional. (1998, p. 83).
Observa-se a presença marcante da biopolítica na condução do processo reprodutivo como um todo, abrangendo tal proporção que forma um novo modelo de vida e convivência humanas, a partir do período histórico mencionado. Frisa-se a característica de processo evolutivo e de maestria, conferida pelo autor, ao conceito de biopolítica.
Para Negri (2008, p. 38), tomando por base o conceito de biopolítica aventado por Foucault, o vocábulo refere-se a uma forma de poder com dimensão holística na vida da população.
O termo «biopolítica» indica a forma como o poder se transforma, num determinado período, para governar não só os indivíduos através de determinados procedimentos disciplinares, mas também o conjunto dos seres vivos constituídos na Biopolítica das Populações (através dos biopoderes locais), a gestão da saúde, higiene alimentar, natalidade, sexualidade, etc., visto que estes diferentes campos de intervenção se tornam desafios.
O termo biopoder, neste contexto, pode ser entendido como os diversos poderes que são articulados dentro de uma esfera maior considerada a biopolítica. São os mecanismos pelos quais se exerce a disciplina na vida do indivíduo e da população, quais sejam: “[…] escolas, faculdades, quartéis, oficinas; aparecimento também, no campo das práticas políticas e observações econômicas, dos problemas de nascimento, longevidade, saúde pública, habitação, migração[…]” (1998, p. 84). Esses múltiplos e substanciais meios foram estrategicamente organizados para sujeitar e controlar os corpos e a população, respectivamente.
Nota-se que não se trata de um poder, mas de um conjunto de poderes com variadas formas.“E o poder, para Foucault, nunca é uma entidade coerente, unitária e estável, mas um conjunto de “relações de poder” envolvendo condições históricas complexas e efeitos múltiplos: o poder é um campo de poderes” (2008, p. 39).
Todo esse arranjo foi inserido de forma discreta, passando a conduzir a uma realidade arquitetada, na qual há um controle sobre a vida, buscando o “fazer viver e deixar morrer”, em contraposição à vertente de poder anterior. “O antigo poder da morte, no qual o poder soberano era simbolizado, está agora cuidadosamente coberto pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (1998, p. 84).
Importante observar que Foucault, conforme afirma Serva e Dias (2016), “ao tratar do nascimento da biopolítica, acaba por adotá-la como sinônimo de biopoder, ou seja, ambos os termos representariam a mesma coisa”. Porém, apontam os autores, que Negri deu uma nova contribuição, visto que “desenvolveu o tema de forma a destacar as particularidades que caracterizam e, portanto, diferenciam os dois termos”, conforme se observa a seguir:
Mas então a biopolítica parece, ao invés, marcar o momento de superação da tradicional dicotomia Estado/sociedade, em benefício de uma economia política da vida em geral. Dessa segunda formulação surge o outro problema: trata-se de pensar a biopolítica como um conjunto de biopoderes ou, na medida em que se diz que o poder investiu a vida, significa também que a vida é um poder, se pode situar na própria vida, isto é, é claro no trabalho e na linguagem, mas também nos corpos, nos afetos, nos desejos e na sexualidade, do lugar de emergência de um contra-poder, do lugar de uma produção de subjetividade isso seria dado como um momento de submissão. (2008, p. 39-40).
Nesse diapasão, trazendo para dentro do estudo o papel do Estado, pontua-se as considerações de Fachini e Ferrer (2019) quando da análise das obras de Foucault:
Esse controle é exercido por parte do Estado e se faz “necessário que o mesmo tenha um instrumento de controle para uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, contudo a verdadeira intenção do Estado é de um controle social […]
Portanto, é no Estado que se manifesta o poder político, pois é necessário manter e garantir uma ordem dentro das relações na sociedade. Nesse sentido, o Estado possui um poder soberano sobre a sociedade para o controle da mesma, mas, é preciso entender o verdadeiro sentido do poder e sua materialização […].
Neste sentido, analogamente, o surgimento de instituições de Estado está ligado ao estágio evolutivo da humanidade, nos campos econômicos, políticos ou sociais e suas intercorrências, as quais exigem soluções novas diante de novos desafios. Deste modo, pode-se afirmar que existe uma relação direta entre o cenário político, econômico e social e o poder político executado pela instituição Estado, ao longo de toda sua evolução. “Seguindo o raciocínio da concepção materialista da História, a teoria do Estado demonstra claramente as diversas formas que o poder político se apresentou durante seu desenvolvimento”.(FERRER; ROSSIGNOLI, 2018).
2. O CAPITALISMO E A ORDEM ECONÔMICA
O capitalismo se desenvolveu ao longo da história somando variáveis co-implicadas, que lhe renderam o protagonismo que se mantém até os dias atuais.
Dando um salto na história e levando em conta todo relevo do qual se reveste o capitalismo e o seu poder de dominação, fez-se necessário o estabelecimento de uma ordem econômica, “que adquire dimensão jurídica no início do século XX, quando várias Constituições Econômicas ao redor do mundo passaram a disciplinar o tema” (FACHINI; FERRER, 2019). Sendo certo que os primeiros modelos de Constituição, para análises mais modernas, sempre recaem na Constituição Mexicana de 1917 e na Constituição Alemã de Weimar em 1919, que trouxeram grande contribuições, pois concebidas num contexto histórico que já desfrutava de diversas transformações havidas na humanidade, principalmente, aquelas ligadas ao despertar para os conflitos gerados pela desigualdade social e a concentração da riqueza, entre outras razões e deficiências.
No mesmo sentido, Fachini e Ferrer (2019), apontam que a mudança de paradigma que deu origem às constituições econômicas foi resultado da crise social e econômica causada pela primeira guerra mundial, marcando o fracasso do Estado Liberal. Este tinha como norte para a política econômica a “mão invisível” de Adam Smith, pela qual a autorregulação do mercado, sem a interferência do Estado, era o padrão de conduta. A partir daí surge o modelo de Estado Social, guiado pela intervenção estatal na ordem econômica, no sentido oposto ao modelo anterior, buscando proteger o interesse da coletividade, inserindo os direitos sociais.
A ordem econômica adquiriu dimensão jurídica a partir do momento em que as constituições passaram a discipliná-la sistematicamente, o que teve início com a Constituição mexicana de 1917. No Brasil, a Constituição de 1934 foi a primeira a consignar princípios e normas sobre a ordem econômica, sob a influência da Constituição alemã de Weimar. (SILVA, 2016, p. 800).
A Ordem Econômica, conforme estabelecida na Constituição Federal de 1988, adotou a forma econômica capitalista, como pode-se depreender da lição de José Afonso da Silva. (SILVA, 2016, p. 800).
O art. 170 da Constituição Federal, que abre o título VII, introduz a ordem econômica brasileira conjugando elementos que contemplam tanto o modelo liberal quanto o modelo social de Estado. O Estado social entende-se representado pelo fundamento da ordem econômica tido na valorização do trabalho humano, pela finalidade buscada de assegurar a todos existência digna, conforme os imperativos da justiça social, além de vários princípios, dos quais destacam-se: função social da propriedade, defesa do consumidor, redução das desigualdades regionais e sociais e busca do pleno emprego. Já o Estado Liberal, entende-se representado pelo fundamento tido na livre iniciativa e em alguns princípios, dos quais destacam-se, a propriedade privada e a livre concorrência. Neste último destaca-se a figura do sistema capitalista que conforme apontou o doutrinador citado acima, mostra a estrutura econômica do país apoiada inteiramente na apropriação privada dos meios de produção e na iniciativa privada.
Paralelamente, o Estado limita sua atuação na economia (art. 173), condicionando sua participação naquilo que a lei determinar como sendo relativo a imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, além disso, engendrou sua atuação, de um lado, reservando para si o monopólio de direito em atividades estratégicas para a proteção do interesse público brasileiro, e de outro combatendo a formação de monopólios privados que são nocivos ao desenvolvimento da economia do país.
Assim, “revela o caráter de compromisso das constituições modernas entre o Estado liberal e o Estado social intervencionista” ((SILVA, 2016, p. 801)., rompendo com a ordem interventiva anterior e dosando tal poder de acordo com as mais modernas práticas desse momento histórico.
3. O DIREITO DE PROPRIEDADE E A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
De acordo com as lições de Hunt (2013. p. 2), podemos afirmar que o capitalismo é singularizado a partir da reunião de quatro pilares institucionais e comportamentais, sendo o primeiro, a produção de mercadorias, tendo como alvo o mercado; em segundo, a propriedade privada dos meios de produção; o terceiro, um grande segmento da população que existe em função da venda de sua força de trabalho; e o quarto e não menos importante pilar, comportamento individualista, aquisitivo, maximizador, da maioria dos indivíduos dentro do sistema econômico.
Particularmente identifica-se melhor ao objeto desse estudo, dentre os pilares mencionados, o relativo à propriedade privada dos meios de produção, pois é nele que se desenvolve a atividade humana, aliada aos demais elementos que compõem o modo de produção. Lembrando que “modo de produção é o conjunto social da tecnologia de produção ou forças produtivas e os arranjos sociais através dos quais uma classe une forças produtivas para produzir todos os bens […]”. (2013. p. 2).
Vale mencionar que a propriedade sempre foi fator de grande relevância na história da humanidade, inclusive figurando como elemento mais importante em um dos quatro estágios distintos de desenvolvimento econômico e social – o pastoreio, conforme a classificação de Adam Smith, neste estágio surge o governo civil, instituído com a finalidade de oferecer segurança à propriedade, porém, é na verdade uma forma para defender o rico do pobre, ou seja, os que têm alguma propriedade daqueles que nada possuem (2013. p. 2). As versões atuais da relevância da propriedade serão abordadas a seguir.
Com o evoluir da história da humanidade e a constitucionalização de vários institutos jurídicos, toda propriedade privada passa a cumprir, a teor da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional, uma função individual e também uma função social, como no caso do Brasil.
Entende-se por direito de propriedade o poder que a lei confere ao proprietário de usar, gozar e dispor da coisa, podendo, ainda, reivindicá-la de quem a injustamente tenha sua posse, conceito esse expresso no artigo 1.228 do Código Civil de 2002: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
Embora o direito de propriedade pertença a categoria real e tem por essência sua aplicabilidade erga omnes, nos tempos atuais, ele não é absoluto, encontrando limitação na função social, como se verá adiante.
Maria Helena Diniz (2010. p. 447), conceitua o direito de propriedade como sendo “direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar, dispor de um bem corpóreo ou incorpóreo, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha”.
Embora o proprietário possa dispor da coisa, usá-la, vendê-la, doá-la, enfim dar o destino que lhe interesse, em tese ele teria poder absoluto sobre o bem (coisa), absolutismo esse que não se sustenta, ante ao moderno direito que exige que o bem cumpra não só a sua função individual, mas também, a função social. Decorrente da evolução histórica, como já mencionada, o Estado Liberal cedeu espaço para o Estado Social, marcado pela função intervencionista.
Em relação ao direito de propriedade, considerado um direito absoluto, a doutrina evoluiu e numa tentativa de relativizar os princípios abusivos em relação aos direitos individuais, passou a considerar este direito como um direito de caráter pleno, onde o proprietário, ao invés de poder abusar de seu direito, passa a pautar sua conduta sob os limites legais, impostos pelo direito positivo. Nessa evolução do instituto, prenuncia-se a função social da propriedade. Realmente, ao retirar o poder de abuso do proprietário, a função social começa a aparecer, anunciando uma mudança de paradigma, já iniciada pela jurisprudência francesa, no sentido de impor gradativo limite ao poder absoluto do proprietário. (CASTRO).
A função social da propriedade ficou expressa pela primeira vez no Brasil, na Constituição de 1934, na qual o direito de propriedade é garantido pela Carta Magna já trazendo consigo a condição de não poder ser exercido contra o interesse social ou coletivo, tal disposição constava no item 17, do art. 133, no Capítulo II, que tratava dos direitos e das garantias individuais, o qual expressava:
Art 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: […]
17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior. (BRASIL).
Atualmente, o inciso XXII e caput, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, garantem o direito à propriedade e no inciso XXIII insere que a propriedade deve atender a sua função social.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; (grifo nosso)
A expressão “direito de propriedade”, prevista no artigo 5º da Constituição, é um direito subjetivo e de uma amplitude alargada por ser um direito patrimonial, razão pela qual está disciplinado não só na Constituição como também na legislação infraconstitucional, em especial no direito civil, quando este trata dos direitos das coisas.
Na lição de Eros Grau (2015. p. 236), o termo propriedade conforme insculpido no art. 5º e no art. 170, da Constituição, constituem institutos jurídicos que se relacionam a diferentes de tipos de bens, em razão disto, para entender a função social que lhe é atribuída pela ordem jurídica, existe uma necessidade inicial de se identificar a qual tipo de bem jurídico está se referindo.
A propriedade não constitui uma instituição única, mas o conjunto de várias instituições relacionadas a diversos tipos de bens. Não podemos manter a ilusão de que à unicidade do termo – corresponde a real unidade de um compacto e íntegro instituto. A propriedade, em verdade, examinada em seus distintos perfis – subjetivo, objetivo, estático e dinâmico -, compreende um conjunto de vários institutos. Temo-la, assim, em inúmeras formas, subjetiva e objetiva, conteúdos normativos diversos sendo desenhados para aplicação a cada uma delas, o que importa no reconhecimento, pelo direito positivo, da multiplicidade da propriedade.
Para o referido doutrinador, “o que se impõe salientar é a distinção que aparta a propriedade dotada de função social da propriedade dotada de função individual”. Visto que essa última, ao longo da história, justificou-se como modo de proteção do indivíduo e de sua família, em todos os seus aspectos ligados à sua subsistência, razão pela qual vincula a limitação existente no exercício desse direito apenas em casos de abusos cometidos, sujeitos ao poder de polícia do Estado. “Aqui se cogita, portanto, de uma propriedade distinta daquela(s) outra(s) afetada(s), em sua(s) raiz(es), pela função social. Daí por que a afirmação de sua função social, no artigo 5º, XXIII, não se justifica”. (2015. p. 235).
Acrescenta-se ainda que para este tipo de propriedade é dado o adjetivo de propriedade estática, havendo, neste particular, divergências doutrinárias sobre a aplicação da função social[3].
Já a propriedade dotada de função social, a qual concentra-se a atenção por identificar-se pontualmente com o objeto deste estudo, é tratada como peça integrante no processo produtivo. É neste contexto, que verifica-se um acervo de outros interesses que superam aqueles particulares aos do proprietário e são concorrentes e, deste modo, condicionam-se mutuamente. (2015. p. 236).
Reside neste ponto a identificação de uma fase dinâmica do direito de propriedade, pois referentes a uma cadeia de fruição em ciclos que se mantém, diferente dos bens de consumo que se esgotam após seu uso. A apropriação, pelos particulares, desses bens e recursos de produção são relevantes para o interesse coletivo ou interesse público, o que justifica o tratamento normativo diferenciado, aplicando-lhe a função social. Ressalta-se que esse dinamismo é próprio do capitalismo, em regime de empresa, identificado como função social da empresa, conforme ensina Eros Grau (2015. p. 237), citando Fábio Konder Comparato, acrescentando que trata-se não mais de um poder-dever do proprietário apenas:
[…] O princípio da função social da propriedade ganha substancialidade precisamente quando aplicado à propriedade dos bens de produção, ou seja, na disciplina jurídica da propriedade de tais bens, implementada sob compromisso com a sua destinação. A propriedade sobre a qual os efeitos do princípio são refletidos com maior grau de intensidade é justamente a propriedade, em dinamismo, dos bens de produção. Na verdade, ao nos referirmos à função social dos bens de produção em dinamismo, estamos a aludir à função social da empresa. As limitações, negativas e positivas, aplicáveis ao dinamismo da propriedade, expressam técnicas de direito econômico […]
Nessa linha, a função social da propriedade deve ser entendida, não como direito absoluto, mas um “poder-dever (dever-poder) ”, ou como uma condição, qual seja a de proporcionar o bem-estar da coletividade. Dessa forma, a função social deve cumprir deveres positivos, negativos e também de colaboração.
No que tange a amplitude do instituto jurídico em questão, Izabel Vaz ensina (1993. p.322-323):
O aspecto dinâmico das propriedades, tal como o concebemos, repousa, sobretudo, na ideia de ação, de atividade econômica organizada. Esta pode ser exercida diretamente sobre a natureza, como o cultivo da terra, as atividades extrativas ou agropastoris e outras, enquadráveis no chamado setor primário de produção. Num plano intermediário, encontram-se os setores industriais de transformação, ora produtores de máquinas e equipamentos, a indústria têxtil e siderúrgica, por exemplo, agrupados sob a denominação genérica de setor secundário. Em uma etapa mais desenvolvida, localizam-se as atividades produtoras de bens mais sofisticados, possibilitadas pelo emprego de tecnologias geradas no país ou importadas, como os serviços de automação, da química fina, aparelhos médicos, computadores, aos quais corresponde a criação, tanto de novos bens de produção, como de outros produtos, serviços e bens de consumo.
Em outro plano, porém, incluídas entre aquelas regidas pela ordem econômica e financeira (conforme art. 192 da C.R./88) encontram-se as atividades compreendidas no sistema financeiro nacional, sujeitas, também, aos princípios do título VII da Constituição. Além destes, o Sistema Financeiro deve ser “estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade.
Podemos, assim, entender a empresa como uma “organização econômica de fatores de produção”, como sendo o exercício de uma “atividade organizada dirigida à criação de riqueza, pela produção e circulação de bens ou de serviços, desenvolvida por uma pessoa natural ou jurídica, por meio de um estabelecimento”. Ou ainda, já no contexto de direito econômico, como sendo um “agente da atividade econômica, ou melhor, instrumento de execução da política econômica”. (DINIZ, 2010, p. 235).
A empresa sendo um agente social e dado o importante poder socioeconômico inerente a sua criação, possui caráter relevante na manutenção da ordem e da pacificação social, incluindo, o suporte financeiro do Estado.
Maria Cristina de Almeida (2003) lecionando sobre o ônus social do empresário, traz a seguinte contribuição:
[…] é indispensável estender os efeitos axiológicos constitucionais também à empresa. O novo conjunto legal – consumidor, antitruste, ambiental – tem atentado para a importância da responsabilidade social da atividade empresarial. A dignidade humana, em vista de um mercado funcionalizado, é do sujeito e não somente do homem, também havendo espaço para a tutela da personalidade jurídica da empresa e do empresário. É importante notar que o “ônus social”, que eventualmente o empresário poderia suportar, é certamente um investimento que hoje compõe a sua atividade. Cresce, pois, ao lado e concomitantemente ao viés mercantil da empresa, a visão sobre o interesse social a que ela está voltada, condicionando uma grande parte do exercício da atividade empresarial ao atendimento da função social.
A ideia de função social não é interferir de maneira que a empresa não obtenha lucros, pelo contrário é fazer com que ela esteja atenta às repercussões ao que a economia chama de externalidades negativas ou positivas da sua atividade.
Neste sentido, Rodrigues e Régis tecem as seguintes considerações (RODRIGUES, 2020):
[…] que a função social da empresa, apesar de ter sua essência originada na função social da propriedade e do contrato, possui balizas e aplicação distintas, sendo-lhe atribuída duas facetas: uma incentivadora, voltada à sua preservação, e outra condicionadora, com limites endógenos e exógenos, voltados à promoção do “ser” sobre o “ter” e ao pleno atendimento aos interesses socialmente relevantes elegidos pela ordem constitucional, como o trabalho, a proteção ao consumidor e ao meio ambiente, de modo a guiar a atividade empresarial, em verdadeira compatibilização dos deveres inerentes ao exercício da empresa.
A função social da empresa não deve assumir o papel social que é de responsabilidade do Estado, mas tem um importante papel no complexo das relações jurídicas porque dela depende toda a coletividade, criando uma verdadeira cidadania empresarial.
É inegável que a função social da atividade empresarial deve observar aspectos relacionados às repercussões de sua atividade na coletividade na qual está inserida, especialmente contando a função social com previsão legal que é dotada de elevado grau de coercibilidade.
4. A INFLUÊNCIA DO BIOPODER E DA BIOPOLÍTICA NA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
No contexto de mudança que se desenvolveu nos tópicos anteriores, acrescenta-se a transição havida nas legislações no que concerne aos valores tutelados. Ao se retornar um pouco na história, inclusive usando como base o Código Civil de 1916, pode-se observar a proteção da propriedade privada como sendo o centro da estrutura legal, naquele documento, é possível claramente visualizar a preocupação maior com o ter (o contrato, a propriedade) do que com oser(os direitos da personalidade, a dignidade da pessoa humana) (GAGLIANO, 2019. p. 125), sem outras preocupações de cunho social.
Neste contexto, vale retomar um dos pilares que forma a caracterização do capitalismo, conforme Adam Smith na lição de Hunt, qual seja, o comportamento individualista, aquisitivo, maximizador, da maioria dos indivíduos dentro do sistema econômico, que reflete bem a característica marcante da classe dominante. Neste tocante, observa-se que o ordenamento jurídico sempre foi movimentado no sentido de defender a propriedade privada, que a grosso modo pertencente ao capitalista.
Ocorre que o instituto jurídico da propriedade privada ganhou ao longo do último século novos contornos, até chegar ao instituto jurídico da função social, como já trabalhado no tópico anterior, e por qual razão se haveria de alterar uma posição condizente com as perspectivas capitalistas?
Pode-se identificar, neste panorama, o surgimento de um contra-poder originado a partir da tensão existente entre a governamentalidade e as tecnologias de si, conforme os ensinamentos de Foucault (tópico 1). Esse contra-poder poder ser identificado desde os movimentos de revolta popular provocados pelo caos social instalado após a Revolução Industrial, reflexo das desigualdades sociais e a exploração do homem pelo homem (CARVALHO NETTO, 2004. p.34) em dimensões e amplitudes únicas na história, até os movimentos surgidos após os horrores praticados na segunda guerra mundial. Pode ainda ser associados a diversos movimentos surgidos em razão do crescimento da desigualdade social e concentração de riquezas, potencializadas pelo modelo de Estado Neoliberal. A presença desse contra-poder provocou inúmeras modificações, que foram resolvidas ou articuladas por meio da biopolítica.
Daí identifica-se o despertar para a dignidade da pessoa humana passando tal figura a ser inserida nos ordenamentos jurídicos, como forma de atender ao clamor social, como é o caso da Constituição Federal de 1988, e também como forma de controle e manutenção do poder. Na lição de José Afonso da Silva (2016, p. 800) sobre a ordem econômica extrai-se:
Isso não quer dizer que, nessa disciplina, se colhe necessariamente um sopro de socialização. Não, aqui, como no mundo ocidental em geral, a ordem econômica consubstanciada na Constituição não é senão uma forma econômica capitalista porque ela se apoia inteiramente na apropriação privada dos meios de produção e na iniciativa privada (art. 170). Isso caracteriza o modo de produção capitalista, que não deixa de ser tal por eventual ingerência do Estado na economia nem por circunstancial exploração direta de atividade econômica pelo Estado e possível monopolização de alguma área econômica, porque essa atuação estatal ainda se insere no princípio básico do capitalismo que é a apropriação exclusiva por uma classe dos meios de produção, e, como é essa mesma classe que domina o aparelho estatal, a participação deste na economia atende a interesses da classe dominante.
Reconhecendo a amplitude do poder econômico e, de certo modo, corroborando com a afirmação do doutrinador acima citado, importante mencionar que Constituição Federal de 1988 traz as previsões acerca dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, cada um deles possuindo um tratamento pormenorizado à altura do status que ocupam na ordem jurídica do país, no entanto, reconhece também a existência de um poder além dos três poderes já mencionados. Tal afirmação é a que se colhe a partir da leitura dos parágrafos 9º e 10, do art. 14, quando no Capítulo IV trata dos Direito Políticos:
§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
§ 10 – O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude. (BRASIL, 1988 – grifo nosso).
No mesmo sentido, verifica-se o conteúdo do parágrafo 4º, do art. 173, da Carga Magna, inserido no Título VII, que trata da Ordem Econômica e Financeira: “§ 4º – A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. (BRASIL, 1988 – grifo nosso).
A partir da leitura de tais inscrições constitucionais é possível identificar o reconhecimento pelo Estado do poder econômico com capacidade para influenciar e sobrepor seus interesses, podendo-se subentender o reconhecimento dele como classe dominante. Ainda na lição de José Afonso da Silva:
A atuação do Estado, assim, não é nada menos do que uma tentativa de pôr ordem na vida econômica e social, de arrumar a desordem que provinha do liberalismo. Isso tem efeitos especiais, porque importa em impor condicionamentos à atividade econômica, do que derivam os direitos econômicos que consubstanciam o conteúdo da constituição econômica […]. Mas daí não se conclui que tais efeitos beneficiem as classes populares. Sua função consiste em racionalizar a vida econômica, com o que se criam condições de expansão do capitalismo monopolista, se é que tudo já não seja efeito deste. (2016, p. 800).
Não obstante todas essas observações impactantes, observa-se que Constituição traz mecanismos de controle para conter a expansão dos interesses da classe dominante, tem-se na empresa a melhor expressão desse interesse e ela está sujeita ao princípio da função social. Verifica-se que a Constituição busca criar, “ no mínimo, um capitalismo social, se é que isso seja possível, por meio da estruturação de uma ordem social intensamente preocupada com a justiça social e dignidade da pessoa humana” (SILVA, 2016, p. 827).
Neste contexto, destaca-se o papel desempenhado pela empresa no contexto social e econômico:
A empresa desempenha um importante papel na sociedade, pois é a grande propulsora da produção e do desenvolvimento econômico. Grande parte da população depende diretamente da empresa, seja por meio dos empregos que cria, das receitas fiscais e parafiscais que o Estado por intermédio dela arrecada, seja por meio dos serviços ou bens que produz e faz circular, e do
desenvolvimento que proporciona. (CASSAR, 2018, p. 37).
Neste ponto, considerando o papel relevante que desempenha a empresa na sociedade, e tendo em vista que o titular dessa empresa é levado a adotar esta ou aquela conduta de acordo com os ditames de sua função social, esse certo “controle” exercido poderia até ser associado a influência da biopolítica. Já que entendemos que a biopolítica “consiste na adoção de mecanismos de controle que, incidindo sobre o conjunto da população, induzem para que ela adote esta ou aquela postura, tudo para atingir objetivos previamente definidos” (SERVA; DIAS, 2016), também no sentido inverso, ou seja, os mesmos mecanismos são usados no sentido de fazer com que o titular da empresa (que em grande parte pertencem à classe dominante) a adotarem posturas condizentes com a função social da propriedade que possuem.
Neste ponto, interessante observar, que existe uma relativização em relação à garantia do direito de propriedade, tendo em vista que a disciplina é trazida como princípios constitucionais impositivos e a propriedade dotada de função social só é justificada pelos seus fins, seus serviços, sua função (GRAU, 2016, p.252). A função social “transforma a propriedade capitalista, sem socializá-la. […] introduziu, na esfera interna do direito de propriedade, um interesse que pode não coincidir com o do proprietário […]” (SILVA, 2016, p. 286), e que ainda assim é garantia e fundamento para o reconhecimento desse mesmo direito.
Neste sentido:
A função social da empresa dirige-se aos casos em que esta, ao contratar, dê preferência, de acordo com os percentuais estabelecidos em lei, aos deficientes físicos ou às minorias; que trate com urbanidade e condições salubres seus empregados, que diminua os riscos inerentes ao trabalho, que respeite os direitos trabalhistas; que não discrimine seus empregados na admissão, no curso do contrato ou na demissão, nem discrimine o trabalhador em virtude de sexo, cor, idade, raça etc. Desta forma, é fácil concluir que a empresa tem interesses internos e externos. O primeiro aspecto (interno) está relacionado à observância pelo empresário de todos os direitos dos seus trabalhadores, sem sonegar-lhes qualquer um e sem abusar dos direitos que a lei confere aos empregadores. Baseia-se no inciso VIII do art. 170 da CRFB. A classificação sob o aspecto interno do condicionamento ao exercício da empresa só pode ser explorada quando não houver discussão acerca de sua existência, isto é, quando a empresa estiver em pleno funcionamento, independentemente de estar ou não atravessando dificuldades econômicas.(CASSAR, 2018, p. 38).
Todas essas implicações decorrentes da função social têm o condão de conduzir a atuação do titular do direito da empresa, numa clara influência externa de poder.
Todavia, acredita-se que as tensões existentes entre os poderes se mantêm constantes, as quais aparecem desafiando a ordem estabelecida. Essa afirmação pode ser verificada, por exemplo, a partir do expressivo número de reclamações trabalhistas, multas ambientais, entre outras violações, fazendo-se deduzir que há descumprimento da legislação em vigor e, consequentemente, descumprimento da função social, por um grande número de empresas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo exposto no presente estudo, observa-se que o biopoder e a biopolítica, conforme definidos por Foucault, são instrumentos do capitalismo não só para propiciar sua manutenção e ampliação, mas também apaziguar as tensões que as questões sociais tendem a produzir ao buscar beneficiar a coletividade em contraponto aos interesses do particular.
O capitalismo ao assumir o protagonismo de dominação econômica não tem poder absoluto, sendo necessário mecanismos de regulação, cristalizados na Ordem Econômica, possibilitando, de certa forma, favorecer o desenvolvimento econômico e ao mesmo tempo produzir igualdade social, sem comprometer a governamentalidade.
A Ordem Econômica, conforme estabelecida na Constituição Federal de 1988, introduziu de forma articulada elementos do Estado Liberal e do Estado Social, tratando assim de abarcar tanto interesses como a livre iniciativa e a propriedade privada, como a dignidade da pessoa humana e justiça social, contrabalanceando os interesses buscando desenvolvimento sustentável (harmonia nacional).
Percebe-se que existe uma tensão constante entre os interesses da classe dominante e os interesses coletivos, enquanto o capitalismo tem por essência a obtenção do lucro e a acumulação de riqueza com base na propriedade privada, a função social da propriedade, e, em particular, a função social da empresa, tem por objetivo criar valores para que a sociedade possa se beneficiar do exercício da propriedade privada.
Entende-se que a função social não retira o direito da empresa em obter lucros e distribuí-los aos proprietários e acionistas, mas se exige que no exercício dessa atividade econômica a empresa desempenhe a sua função social, produzindo riquezas e também benefícios para a sociedade, como, por exemplo, pagar os tributos, contratar pessoas com deficiência, proteger o meio ambiente etc.
É nesse choque de interesses: propriedade da empresa e obtenção de lucros x função social e distribuição de riquezas para a sociedade – que o biopoder e a biopolítica atuam como mecanismo de manutenção e regulação (indireta) do mercado, relativizando a propriedade privada em contraponto com a função social.
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[1] Mestranda do PPGD UNIMAR – Programa de Pós-graduação em Direito da UNIMAR. Especialização em Gestão de Pessoas e MBA em Gestão do Talento Humano pela Faculdade de Ciências Gerenciais de Dracena/SP. Especialização e M.B.A. em Gestão Econômica e Financeira pela Faculdade de Ciências Gerenciais de Dracena/SP. Graduação em Direito pela Rede Gonzaga de Ensino Superior, Dracena/SP. Graduação em Ciências Contábeis pela Faculdade de Ciências Gerenciais de Dracena/SP. E-mail: cleidearruda@hotmail.com / ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1991-8028
[2] Docente do Programa de Pós-graduação e graduação em Direito da Universidade de Marília. Doutorado em Educação e Pós-doutorado em Sociologia do Trabalho.
[3]. Por uma questão de coerência com as ideias por nós desenvolvidas, discordamos de Eros Grau quanto a alguns posicionamentos referentes à distinção por ele efetuada entre propriedade estática e dinâmica. O que considera “direito subjetivo” equivalente a um poder inerente à titularidade sobre a propriedade estática não configura um direito absoluto, a ponto de subtrair-se às limitações ou imposições da função social. In: VAZ, Izabel. Direito Econômico das propriedades. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p.322.