A CRISE DA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA: RISCOS E POSSIBILIDADES

A CRISE DA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA: RISCOS E POSSIBILIDADES

1 de março de 2022 Off Por Cognitio Juris

THE CRISIS OF CONTEMPORARY DEMOCRACY: RISKS AND POSSIBILITIES

Cognitio Juris
Ano XII – Número 39 – Edição Especial – Março de 2022
ISSN 2236-3009
Autor:
João Marcelo Barbosa Ribeiro Dantas[1]

Resumo: A ascensão, nos últimos anos, do autoritarismo e do populismo, em muitos países, que conduziu ao poder, com apoio de grande parcela da população, líderes e partidos políticos antidemocráticos, sugere haver uma crise da democracia contemporânea. Eis o tema central deste artigo e nele despontam algumas questões fundamentais, quais sejam: a democracia está realmente em crise? Se estiver, está se dirigindo ao seu fim? Se houver uma crise da democracia, há possibilidades de que se transforme e se revigore, e lugar de definhar e decair? Buscou-se responder a tais indagações mediante o emprego de uma pesquisa bibliográfica e comparativa, que permitiu abordar o tema, que se destaca por sua relevância e atualidade. Adotou-se como hipótese de trabalho que há uma crise da democracia, que poderá levá-la a uma transformação no sentido de sua radicalização, caracterizada por uma maior participação da sociedade civil nos processos decisórios e no controle e vigilância do exercício do poder.

Palavras chave: Crise; Democracia; Populismo; Autoritarismo.

Abstract: The rise, in recent years, of authoritarianism and populism in many countries, which led to power, with the support of a large part of the population, leaders and anti-democratic political parties, suggests that there is a crisis of contemporary democracy. This is the central theme of this article and some fundamental questions arise, namely: is democracy really in crisis? If so, are you heading to your end? If there is a crisis of democracy, are there possibilities for it to be transformed and reinvigorated, and a place to languish and decay? We sought to answer these questions by using a bibliographic and comparative research, which allowed us to approach the topic, which stands out for its relevance and currentness. It was adopted as a working hypothesis that there is a crisis of democracy, which could lead to a transformation towards radicalization, characterized by greater participation by civil society in decision-making processes and in the control and surveillance of the exercise of power.

Keywords: crisis; democracy; populism; authoritarianism.

Introdução

As décadas iniciais do século XXI têm revelado que a democracia se encontra em situação de crise, em muitos países, apresentado riscos à permanência do regime democrático, mas também possibilidades de reformulação da democracia.

Muitos são os termos empregados para designar essa situação de risco pela qual as democracias contemporâneas estão atravessando, no mundo, em geral, e no Brasil, em particular. Entre os termos utilizados, destacam-se: crise, retração, recuo, retrocesso, declínio, recessão, regressão, erosão, decadência, falência, desdemocratização, entre outros.

O termo crise será aqui empregado porque se revela apropriado para designar uma situação de turbulência, no sentido de que a democracia contemporânea sofre com a valorização de discursos, ações e líderes antidemocráticos, com o descrédito de instituições democráticas como partidos políticos, a classe política, o poder legislativo, o poder judiciário, ameaça a direitos e liberdades fundamentais, havendo a disseminação do discurso de ódio e intolerância a grupos sociais minoritários e à luta pelos direitos humanos, com a descrença em solução pacífica e dialogada de conflitos internos e internacionais.

O fenômeno da crise da democracia contemporânea revela, portanto, em face da mencionada situação de turbulência, riscos no sentido de um desfecho em que a democracia venha, possivelmente, a sucumbir diante do populismo e do autoritarismo, mas também de um resultado que aponta para um revigoramento da democracia, por meio do emprego maior de elementos de uma democracia deliberativa.

Neste artigo, em primeiro lugar, será retratado o cenário atual da democracia no mundo.

Em seguida, serão examinados fatores que sinalizam a crise do regime democrático, notadamente a corrosão de alguns de seus institutos fundamentais, bem como os riscos de seu possível fim, em vários países.

Ao final, são vislumbradas algumas possibilidades de revigoramento do regime democrático contemporâneo.

Adotou-se uma pesquisa bibliográfica comparativa, que permitiu reunir fatos e argumentos que indicam a mencionada crise democrática.

Cenário atual do regime democrático no mundo

Segundo o relatório Democracy Index, publicado pela revista The Economist, em 2018, a maioria da população mundial não vive sob uma democracia. Nesse relatório, foram examinados 165 países, sendo considerado, em cada qual o seu processo eleitoral, pluralismo, as liberdades civis, funcionamento do governo, participação e cultura política. No Index, os países são classificados segundo os seguintes tipos de regimes políticos: regime autoritário, regime híbrido, regime democrático, democracia defeituosa e democracia plena. 

(…) A total of 42 countries experienced a decline in their total score compared with 2017; 48 registered an increase in total score. But as a percentage of the world’s population, fewer people lived in some form of democracy (47.7%, compared with 49.3% in 2017). Very few of these (4.5%) were classified as living in a full democracy. Just over one-third of the population lived under authoritarian rule, with a large share represented by China (Democracy Index 2018: Me too? Political participation, protest and democracy)

Em análise sobre o regime democrático em diferentes regiões, o mencionado relatório apresenta as seguintes informações:

In Latin America and western Europe there were continued deteriorations, maintaining a trend that has been in evidence in both regions for three years. Eastern Europe remains the region that has deteriorated most since the Democracy Index began in 2006; (…). The return of populism in Latin America Elections in Mexico and Brazil in 2018 showed that, in Latin America, rumours of the death of populism were greatly exaggerated. In both countries, voters—disgusted by corruption, violence, and high levels of poverty and inequality—turned to populists to “stop the rot”. (…) Europe’s democratic malaise persists There were substantial declines in the rankings for several important European countries, including Italy, Turkey and Russia. (Democracy Index 2018: Me too? Political participation, protest and democracy)

O referido relatório destaca na América Latina, em especial no México e no Brasil, uma ascensão do populismo.

Segundo Dominique Rousseau, essa ascensão decorre de dois fatores principais. Primeiro, o enfraquecimento do vínculo representativo (voto) entre o povo e os governantes. Aquele não se sente, verdadeiramente, representado por estes. Segundo, o enfraquecimento das próprias instituições representativas: os partidos políticos, os sindicatos, o parlamento, etc. (ROUSSEAU, 2020).

Afirma Rousseau que um dos efeitos dessa crise é a recente ascensão do populismo, não apenas na América Latina, mas também presente na Europa ocidental, com o crescimento da força de Le Pen na França e com as vitórias eleitorais do movimento “Cinco Estrelas” na Itália, do “Brexit” no Reino Unido e de Donald Trump nos Estados Unidos. (ROUSSEAU, 2020).

Para Rousseau, o populismo milita contra a democracia. Isso porque: a) o populismo substitui o cidadão e o povo pelas ideias de “massa” e “multidão”. “Povo”, num contexto democrático, é uma conjunto de indivíduos com direitos e deveres, ao passo que uma multidão não passa de uma turbamulta desprovida de interconexão entre os seus membros; b) o populismo não se apoia na razão mas sim passionalidade, sendo, portanto, a antítese de uma organização racional de sociedade; c) o populismo, por fim, rejeita qualquer possibilidade de institucionalização da política, na medida em que parte do princípio de que as massas devem se relacionar diretamente com o líder e “se reconhecer” nele, havendo, assim, um canal direto de comunicação entre ambos. (ROUSSEAU, 2020)

Sinais de recessão, depressão e falência democrática mundial

Em 2015, Larry Diamond defendeu a tese de que o mundo, ou parte expressiva dele, estaria consolidando um período de recessão democrática, iniciado em 2006, após o mundo ter passado por período de ascensão e manutenção democrática (1975-2005). (DIAMOND, 2015)

Nesse período de ascensão e manutenção democrática, ocorreram fatos políticos que as revelam: ao fim das ditaduras do sul da Europa seguiu-se a democratização latino-americana, o fim das ditaduras comunistas do Leste Europeu, e alguns processos de democratização na Ásia e na África.

Essa vaga democrática, todavia, parece começar a refluir, considerando-se os atuais governos antidemocráticos nos Estados Unidos, Venezuela, Rússia, Polônia, Hungria, entre outros. Dos países que participaram da Primavera Árabe, em 2011, só a Tunísia se tornou, efetivamente, democrática.

 Diamond destaca as seguintes características dessa recessão, que podem estar todas reunidas ou apenas parcialmente presentes em certos países, que revelam essa recessão: o declínio acentuado da participação popular em eleições; a funcionamento débil dos governos; o perda, ainda que parcial, de confiança em instituições democráticas e nos partidos políticos; o abismo entre as elites políticas e o eleitorado; o crescente cerceamento da liberdade de expressão e a restrição de liberdades civis.

Em 2015, antes da eleição de Trump à Presidência dos Estados Unidos e da conquista de novo período no poder por parte de Putin, Diamond considerava que a recessão não havia se convertido em depressão democrática, restando a possibilidade de que houvesse uma reversão desse processo recessivo. Ele apela para que os democratas não percam a fé, pois possuem o melhor conjunto de ideias. Assim afirma o cientista político:

A democracia pode estar recuando na prática, mas ainda é globalmente ascendente nos valores e aspirações dos povos. Isso cria novas oportunidades significativas para o crescimento democrático. Se a atual e modesta recessão da democracia se transformar em uma depressão, será porque nós, nas democracias estabelecidas, éramos nossos piores inimigos. (DIAMOND, 2015, p. 155)

Após a eleição de Trump, muitos estudiosos passaram a avaliar a possibilidade de os regimes democráticos não apenas entrarem em um período de recessão, mas de depressão, chegando, no limite, a um eventual fim, mesmo em democracias estabelecidas como a norte-americana.

Entre esses estudiosos, destaca-se David Runciman, que examina o que pode conduzir os regimes democráticos, mesmo estáveis, a perder, aos poucos, seu sentido original e essencial e transformar-se sem alardes ou mudanças bruscas, em algo total e disfarçadamente distinto.

Runciman, em suas análises, parte da declaração de que “nada dura para sempre. A democracia sempre esteve destinada a passar, em algum momento, para as páginas da história.”. (RUNCIMAN, 2018, p. 6). O autor, porém, ressalta que poucos imaginariam que pudessem presenciar o fim da democracia no tempo presente.

Runciman não está a defender, profeticamente, o fim da democracia, nem está a considerá-lo como inexorável, hodiernamente. Antes, afirma que esse fim é uma real possibilidade histórica em tempos atuais, mesmo em países com democracias consolidadas.

O autor compara a atual crise democrática com aquela ocorrida ao final do século XIX, período marcado por crise econômica, mudanças tecnológicas, desigualdade crescente, teorias da conspiração e a falta de uma grande guerra (que constitui situação de trauma coletivo, solo fértil de ascensão do populismo). Essa crise da democracia resultou, contudo, em um fortalecimento desse regime, nos países que conseguiram superá-la. Aquele fim de século testemunhou o início de grandes reformas que edificaram dois pilares do regime democrático: o primeiro foi a associação entre capitalismo e estado do bem-estar social e o segundo foi o respeito aos direitos e liberdades individuais. Os fatores que conduziram àquela crise da democracia estão, mutatis mutandis, presentes na atual crise, mas, para Runciman, a desvantagem desta última está no fato de que a democracia hodierna se revela exaurida e desperta descrença e desesperança em parte da sociedade contemporânea. Assim o autor sustenta:

A democracia não é mais jovem. (…) A reação populista que vem acontecendo nas democracias estabelecidas ocorre em lugares que, já faz um bom tempo, fizeram o melhor que podiam com a democracia. As pessoas estão enfurecidas com as instituições que se mostram incapazes de dar respostas melhores, não porque sejam subdesenvolvidas, mas porque estão cansadas. E esse quadro torna mais difícil romper o ciclo da desconfiança. A democracia não está funcionando bem — se estivesse, não veríamos esse retrocesso populista. (RUNCIMAN, 2018, p. 67)

Para o autor, não é cabível, porém, considerar as circunstâncias atuais como análogas com as que propiciaram o totalitarismo no início do século XX, assim como golpes ditatoriais em meados do mesmo século em países da América Latina, da África e do Leste Europeu. Nesses golpes, jovens democracias deram lugar, de um dia para outro, a regimes autoritários. Ele argumenta que os riscos à democracia, atualmente, ocorrem no contexto democrático, mas a desconfiguram, sem interrompê-la abruptamente. O regime democrático hodierno deve sucumbir, em regra, de forma lenta e contínua, sem que o fim ocorra em um momento único e preciso, variando em ritmo, profundidade e extensão os processos de falência democrática de país para país.

A propósito dos golpes de Estado abruptos, Runciman afirma que ainda podem ocorrer, principalmente, em países em que a democracia não se consolidou nem nas instituições, nem como forte vontade popular. Há, porém, para o autor, outros cinco tipos de golpes, menos evidentes e estridentes, mas igualmente ou mais venenosos ao regime democrático, que o definham por dentro, mantendo, por certo tempo, aparente saúde externa, e são cada vez mais usuais em democracias contemporâneas, quais sejam:

  1. os “golpes executivos”, em que o Chefe do Poder Executivo suspende o funcionamento das instituições democráticas;
  2. a “fraude do dia da eleição”, em que ocorre manipulação do processo eleitoral para favorecer potenciais autocratas;
  3. os “golpes promissórios”, em que um grupo político toma o poder e, em seguida, convoca eleições “com cartas marcadas” para legitimar seu governo;
  4. a “ampliação do Poder Executivo”, quando o Chefe do Poder Executivo desprestigia e ataca as instituições democráticas sem derrubá-las; e
  5. a “manipulação estratégica das eleições”, em que não há fraudes evidentes, mas o processo eleitoral transcorre sob manipulação disfarçada. (RUNCIMAN, 2018, p. 42-43)

Em todos esses cinco tipos de golpe, a democracia não sucumbe de uma só vez, mas inicia um lento processo de falência. A política converte-se em espetáculo de prestidigitação, no qual o ilusório se traveste de realidade e os cidadãos se tornam espectadores encantados. O êxito desses golpes disfarçados é tanto maior quanto mais persuadem a um maior número de cidadãos de que não o são.

A política como espetáculo alimenta-se também da disseminação de teorias da conspiração. Se, outrora, essas teorias eram propagadas por oposicionistas, que o faziam para solapar a sustentação do governo, agora, em muitas sociedades democráticas, são os próprios detentores do poder que as empregam para difundir a mensagem de que há ameaças à pátria, à Deus, à família, entre outras, que apenas esses detentores poderão debelar.

Além de golpes – evidentes ou dissimulados – e teorias conspiratórias, Runciman identifica também risco real à democracia no fato de que possíveis eventos catastróficos de grande alcance, como mudança climática e guerra mundial, não têm despertado maior mobilização e solidariedade social, desencadeando muito mais uma atitude de medo paralisante e descrença de que os regimes democráticos são capazes de evitá-los ou, caso ocorram, de lidar com eles.

Runciman, assim, retrata a atual debilidade da democracia em mobilizar a sociedade contra o risco de catástrofes mundiais:

Em meados do século XX, esperava-se que a ideia de uma calamidade pudesse ter um efeito mobilizador sobre a política democrática. Podia despertar as pessoas para os perigos que corriam. E o destino da democracia pode depender do quanto isso ainda é verdade. (…) A ameaça de uma calamidade ambiental é maior hoje do que em 1962. Ainda assim, estranhamente, perdeu parte do seu poder de mobilização — a sombra da morte tanto se espalhou quanto recuou ao mesmo tempo. (RUNCIMAN, 2018, p. 79-81)

A esse propósito, é de se destacar que líderes populistas minimizam, em regra, riscos de catástrofes naturais, visto que tais ameaças se baseiam em prognósticos científicos, portanto, em uma racionalidade que contraria a emocionalidade com a qual o populismo se relaciona com os seus liderados, e que contraria interesses econômicos imediatistas de setores ligados, por exemplo, ao agronegócio.

Runciman considera também que a revolução tecnológica tem contribuído para o processo de falência da democracia, conquanto sejam incertas, ao menos parcialmente, certas consequências dessa revolução, pois a tecnologia se encontra em estágio infantil, ao passo que a democracia, em idade avançada. Não resta dúvida, porém, que, assim como a democracia chegará ao seu fim, novas conquistas tecnológicas têm lugar reservado no futuro.

O autor afirma que, mesmo em tempos atuais, robôs e máquinas ainda sem inteligência própria já estão a afetar a democracia. Haja vista que esses aparatos tecnológicos reúnem um volume colossal de dados (big data) sobre um número descomunal de pessoas e grupos sociais, que são colocadas a serviço de governos, partidos e empresas. Além de coletar esses dados, esses aparatos são capazes de tomar decisões mediante cruzamento de informações, em velocidade vertiginosa, com que substituem, cada vez mais, o ser humano em seu papel de fazer escolhas. Dessa forma, a democracia, regime no qual, em tese, os cidadãos deveriam fazer escolhas livres, encontra-se diante do risco do esvaziamento do poder decisório, quer do eleitor, quer dos eleitos.

Runciman assevera, nesses termos, que

Os computadores podem não ter aprendido ainda a pensar por conta própria. Mas aprendemos a fazê-los pensar por nós. A máquina não precisa ser inteligente para dar conta de tarefas que recaíam tradicionalmente no âmbito da inteligência humana. Basta que seres humanos transfiram esse trabalho para a máquina, depois de lhes ensinar o que fazer. Máquinas desprovidas de inteligência própria, mas supereficientes, já fazem boa parte do trabalho nas democracias contemporâneas. Os partidos políticos contam com imensos bancos de dados automatizados para ajudar em suas campanhas. Cada vez mais, os governos utilizam imensos sistemas informatizados para administrar e franquear ao público cuidados de saúde e outros serviços. (…) O perigo das máquinas desprovidas de inteligência é que, à medida que se tornam mais úteis e potentes, convencem os inteligentes seres humanos a lhes confiar tarefas em excesso. A capacidade de aprendizado da máquina (machine learning) hoje faculta aos computadores minerar quantidades descomunais de dados à procura de conclusões a que nenhum humano teria como chegar. (…) E essa é a história de terror que hoje assombra a democracia ocidental, e voltarei a ela mais adiante, ainda neste capítulo. Seus sinais visíveis são as fake news e o microdirecionamento de mensagens aos eleitores, com conteúdo gerado por máquinas e construído de modo a apelar aos preconceitos de cada um. Se cair nas mãos erradas, o poder dos computadores de apertar nossos botões pode assinalar o fim da democracia. (RUNCIMAN, 2018, p. 111-113)

O autor ressalta, ainda, que empresas como a Google, Facebook e Twitter possuem usuários em número superior à população de qualquer Estado, que estão distribuídos por todo planeta. Essas e outras empresas que atuam no mundo virtual da internet colhem dados de seus usuários e os influenciam, persuadem ou distraem por meio do que lhes oferecem para ver e ouvir, em troca da liberdade de se expressarem e da participação universal na rede e de nela se sentirem, equivocadamente, como membros de uma comunidade de cidadãos livres e iguais, quando, de fato, estão a sofrer, diariamente, manipulação sistemática de seus modos de pensar, sentir, querer e agir. As ameaças à democracia revelam-se tanto na manipulação da população quanto na geração de indiferença, causada pela superexposição a notícias ou mensagens. (RUNCIMAN, 2018, p. 120-128)

Runciman assinala ainda que essa participação universal, associada à velocidade e instantaneidade das comunicações virtuais, na internet, contrasta com a lentidão e ineficiência da democracia representativa, que requer resiliência das pessoas em face de demandas não satisfeitas, ao modo e ao tempo pela população pleiteadas, o que produz ou acentua a insatisfação com o regime democrático indireto.

O autor destaca também que essa adesão maciça e esse fluxo comunicacional na internet tem acarretado invasão de privacidade e a disseminação de discursos de ódio, convertendo a rede mundial de computadores não numa ágora universal de debate racional, à semelhança, mutatis mutandis, da democracia direta ateniense, mas num espaço de exposição e execração públicas. A internet tem sido habilmente utilizada por líderes e partidos populistas que também disseminam o discurso de ódio e de desconfiança nas instituições democráticas, privilegiando o conflito e o embate, em lugar do consenso e da conciliação, cultivando, assim, o ambiente de polarização. Esses líderes e partidos tem conseguido, mais do que os líderes e partidos tradicionais, uma exitosa conexão, via internet, com expressiva parcela da população, tornando-a, em grande medida, um conjunto de usuários seguidores e adeptos sectários. (RUNCIMAN, 2018, p. 128)

Runciman acredita, contudo, ser possível que a tecnologia digital possa estar a serviço da democracia, antes que robôs decidam em lugar de cidadãos sobre quem governa e sobre a forma e finalidade do exercício do poder. Considera que:

nossas instituições políticas atravessam dificuldades por não conseguirem achar soluções viáveis para problemas aparentemente inabordáveis. Tudo indica que a capacidade de aprendizado da máquina poderia ser usada em nosso benefício, em vez de nos prejudicar. Máquinas que não perdem o foco devido a reações emocionais podem ser exatamente do que precisamos. Nas democracias, o foco se perde com extrema facilidade. As pessoas sentemque as coisas devem ser dessa ou daquela maneira, independentemente do que lhes dizem. As máquinas, não. Seguem os fatos até onde eles as levarem. (…) A máquina soluciona o problema; o representante político nos ajuda a entender o que a solução significa. Quem sabe assim a democracia funcione melhor. (…) A política precisa recobrar certa medida de controle sobre essas máquinas, e sobre as pessoas que as controlam no momento. De outro modo, corremos o perigo de, em vez de usar máquinas para resolver nossos problemas, nos limitarmos ao tipo de problema que máquinas podem resolver. A tecnologia, por si só, não determina o nosso futuro. Mas pode determinar, se deixarmos. (RUNCIMAN, 2018, p. 114)

O autor entende que, em face da falência democrática, o governo por robôs, a transformação do Estado democrático em uma empresa ou o retorno à monarquia absoluta não sejam alternativas factíveis ou desejáveis à democracia. Aposta, na verdade, no revigoramento do regime democrático pela retomada dos apelos que o fizeram perdurar por séculos, quais sejam: o respeito à dignidade da pessoa humana e aos indivíduos e suas opiniões, bem como estabilidade, prosperidade e paz.

Esses apelos democráticos, porém, nem sempre se apresentaram como uma realidade consumada; muitas vezes, como uma promessa não cumprida, o que, historicamente, ensejou frustações populares e alimentou alternativas ideológicas (como o comunismo) ou pragmáticas (como o autoritarismo populista).

Se o comunismo já não encanta como outrora, o autoritarismo populista pragmático tem ampliado o número de simpatizantes e asseclas, por meio de promessas de benefícios sociais tangíveis, no curto prazo.

Runciman, contudo, mantém sua convicção numa recuperação da democracia, que evite os erros do passado e do presente, que aprenda com eles e se alie à tecnologia digital, com a qual se possa vislumbrar possibilidades alentadoras ainda não experimentadas, mas que rejeite riscos, como abuso de poder, crescimento das desigualdades, disseminação do ódio e da violência e paralisia política. Caso não se recupere, em especial, pela participação ativa de seus cidadãos em defesa da liberdade e dos direitos individuais e sociais, a democracia chegará a um fim. Esse término, todavia, se revelará, como visto, de formas e tempos distintos, conforme se trata de um país de regime democrático estabelecido ou instável.

Conclui Runciman que, em todo caso, o fim da democracia não ocorrerá, como visto, por ocasião de um único evento – salvo se coincidir com uma catástrofe natural apocalíptica -, mas por ocorrência de fatores, como o golpe, a catástrofe e a revolução tecnológica. Sustenta o autor que esses fatores não selam, contudo, o destino derradeiro e inexorável da democracia, porquanto o futuro é um tempo de abertura ao novo e ao inesperado.

O fim da democracia é também o diagnóstico e temor compartilhados por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que sustentam a tese segundo a qual, na atualidade, a democracias entram em estado de falência e iminente morte não em virtude de um golpe de Estado, como os que inauguraram ditaduras militares no Brasil, em 1964, ou no Chile, em 1973, mas por meio de um processos políticos que, lentamente, criam condições eleitorais favoráveis para a vitória na urnas de líderes políticos populistas, demagógicos e autoritários. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019)

Para Levitsky e Ziblatt, hoje, as democracias morrem por vias eleitorais, quando as urnas conduzem, legitimamente, ao poder, autocratas que se valeram de uma instituição democrática, o sufrágio universal, mas que passam a exercer o poder para debilitar e subverter a democracia levando-a aos seus estertores.

Os aspirantes a autocratas valem-se do sufrágio universal para chegar ao poder, por meio de um discurso populista e demagógico, em que se apresentam como outsiders e críticos do establishment, em regra, como críticos de partidos políticos tradicionais da situação e da oposição, como críticos da pobreza, do desemprego, da violência, da corrupção, da ameaça estrangeira e, não raro, se esforçam em criar a imagem de homens fortes, defensores do povo, de Deus, da família, da moral e da pátria.

Grade exemplo histórico de outsiders, Hitler e Mussolini arrebataram massas populares por meio de discursos inflamados, ultranacionalistas e autoritários, que encontravam ressonância em grande parte da sociedade, vítima da grave situação política e econômica de seus países, entre os anos 20 e 30 do século passado. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019, p. 32)

Levitsky e Ziblatt sustentam que, para chegar ao poder pela via eleitoral “aspirantes a autocratas costumam usar crises econômicas, desastres naturais e, sobretudo, ameaças à segurança – guerras, insurreições armadas ou ataques terroristas” (2019, p. 108) e, após eleitos, para subverter a democracia, embora, não raro, aleguem que é em sua defesa, adotam medidas antidemocráticas.

Para Levitsky e Ziblatt, além de se valerem do apoio arrebatado de grande parcela da população, os outsiders conseguem, muitas vezes, celebrar alianças com elites políticas dominantes e líderes insiders, que julgam poderem se beneficiar da súbita popularidade dos aspirantes a autocratas, fortalecendo ainda mais sua ascensão política.

Ocorre, porém, que essa aliança fatídica, no dizer dos dois autores, revela-se traiçoeira para os insiders, pois de aliados considerados inocentes e úteis pelos líderes tradicionais, os outsiders, ao chegarem ao poder, que irão exercê-lo de forma autocrática e autoritária, dispensam antigos aliados, que já não são necessários. De posse do poder, os autocratas mostram cada vez mais a sua face autoritária, levando a termo o processo de vulnerabilização da democracia, levando-a, na pior das hipóteses, ao seu óbito. Encorajar e dar espaço midiático e político a políticos com discursos autoritários e antidemocráticos é um dos principais motivos que levam as democracias à morte.

Exemplos dessa aliança fatídica são mencionados por Levitsky e Ziblatt:

Um elenco de outsiders políticos, incluindo Adolf Hitler, Alberto Fujimori no Peru e Hugo Chávez na Venezuela, chegou ao poder da mesma maneira: a partir de dentro, via eleições ou alianças com figuras políticas poderosas. Em cada caso, as elites acreditaram que o convite para exercer o poder conteria o outsider, levando a uma restauração do controle pelos políticos estabelecidos. Contudo, seus planos saíram pela culatra. Uma mistura letal de ambição, medo e cálculos equivocados conspirou para levá-las ao mesmo erro: entregar condescendentemente as chaves do poder a um autocrata em construção. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019, p. 26)

Os autores comparam as medidas para solapar a democracia, adotadas pelos autocratas, ao se encontrarem no poder, com as técnicas utilizadas por um time para, a todo custo, vencer um campeonato ou partida de futebol. Para que se consolidar no poder, autocratas precisam conseguir, sutilmente, o apoio do árbitro, a retirada da partida dos melhores jogadores do time adversário e precisam chegar a alterar, paulatina e ardilosamente, as regras do jogo para seu próprio benefício.

Os autores assim afirmam:

ao capturar os árbitros, comprando ou enfraquecendo oponentes e reescrevendo as regras do jogo, líderes eleitos podem estabelecer uma vantagem decisiva – e permanente – sobre seus oponentes. como essas medidas são levadas a cabo gradativamente e com aparência de legalidade, a deriva para o autoritarismo nem sempre dispara as sirenes de alarme. os cidadãos muitas vezes demoram a compreender que sua democracia está sendo desmantelada – mesmo que isso esteja acontecendo bem debaixo do seu nariz. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019, p. 108)

Capturar os árbitros significa tornar aliadas as instituições judiciárias e policiais, bem como as várias agências com autoridade para investigar e punir delitos. Numa democracia tais instituições e agências atuam, de forma neutra e independente, para prevenir ou reprimir condutas ilícitas tanto de funcionários ou mandatários públicos como de cidadãos comuns, mas num regime sob o poder de um aspirante a ditador passam a ser controladas por sectários governistas que agem de modo seletivo, de um lado, para blindar política e juridicamente o governo, de outro, para investigar, chantagear e cooptar adversários políticos.

Com os árbitros ao seu dispor, os autocratas passam a ter, além de um escudo auto-protetivo, uma arma a ser empregada no mundo jurídico, vez que decisões judiciais e a lei passam a ser aplicadas de forma seletiva a favorecer lhes e a atacar aos seus adversários políticos.  No governo Putin, autoridades fiscais foram utilizadas para prender empresários que a ele se opunham, como Mikhail Khodorkovsky, o homem mais rico da Rússia, que foi preso por uma denúncia de fraude e desvio de dinheiro após ter começado a financiar partidos de oposição. Ele ficou na prisão por quase uma década. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019, p. 100).

Levitsky e Ziblatt apresentam quatro indicadores de comportamentos autoritários que servem para identificar potenciais autocratas, que podem ostentar um ou mais desses indicadores, sendo que quantos mais os revelar, mais autoritário será o líder autocrata e maior risco à democracia. Eis os indicadores propostos:

  1. Rejeição às regras do jogo democrático ou fraco comprometimento com a democracia: ainda candidatos ou depois de tomarem posse, os autocratas associam, muitas vezes, as regras da democracia com leniência com a corrupção e lentidão para solução dos problemas políticos, jurídicos e econômicos do país. Exaltam os supostos êxitos e conquistas de regimes autoritários, minimizando-lhes aspectos considerados negativos, como a tortura. Criticam a Constituição e a proteção, considerada excessiva e seletiva, dos direitos humanos – que beneficiaria apenas criminosos e não suas vítimas e policiais -, dos direitos civis, políticos, trabalhistas e previdenciários. Admitem o emprego de medidas de exceção para mudar o arcabouço político e jurídico do país, como golpes e protestos de massa contra os poderes constituídos. Desconfiam do processo eleitoral, quando não os favorece, recusando-se a aceitar, sob alegação de fraude, os resultados das urnas.
  2.  Negação da legitimidade de seus oponentes políticos, acusando-os de subversivos, criminosos, ou até de não amarem a Deus ou ao país, ou ainda de estarem a serviço de interesses estrangeiros.
  3. Tolerância ou encorajamento da violência, mediante apologia do combate ao crime e a movimentos sociais, por meio da violência praticada por forças policiais ou paramilitares, como milícias ou guerrilhas.
  4. Propensão a restringir liberdades civis de adversários políticos e de cidadãos em geral, bem como a liberdade da imprensa, por meio da aprovação de leis que ampliam o rol de crimes contra a honra, visando criminalizar a crítica ao governo autocrata ou ainda mediante ataques sistemáticos à mídia tradicional e ataques pessoais a jornalistas, visando intimidá-los e pretendendo desacreditar em suas informações, quase sempre consideradas parciais e interessadas em opor-se ao governo e caracterizadas como “fake news” . (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019, p. 36)

Para os autores, esses indicadores podem ser aplicados para identificar o comportamento autoritário de autocratas, quer de países desenvolvidos, quer de países em desenvolvimento ou pobres; quer de matiz ideológico à direita, como Putin e Trump, quer, à esquerda, como Chavez e Maduro.

Em análise histórica e comparativa, Levitsky e Ziblatt sustentam que as democracias, quer nos Estados Unidos, quer em países latino-americanos, dependem a sua manutenção e força não apenas de regras constitucionais e legais escritas, mas, em especial, de regras não escritas, que são igualmente observadas e respeitadas, quer em disputas eleitorais, quer na relação entre poderes, quer na relação entre governo e oposição. O respeito a essas normas não escritas não ocorre por nobreza de caráter dos que a observam, mas pela tradição de sua observância, seja na política, seja na sociedade. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019, p. 118)

A Constituição norte-americana tem sido um bastião da democracia nos Estados Unidos, mas tal qual outras constituições liberais e democráticas, não é suficiente para garantir a manutenção duradoura do regime democrático. Haja vista que constituições, mesmo as bem elaboradas, são incompletas, bem como possuem lacunas e ambiguidades. Além de incompletas, estão sujeitas a interpretações conflitantes ou mesmo a interpretações literais, que contrariam o seu espírito.

Os autores ressaltam, assim, a importância de regras não escritas para a sobrevivência e saúde da democracia. Dentre as regras não escritas, destacam-se a tolerância mútua e a reserva institucional. A tolerância mútua consiste na aceitação de que o rivais políticos podem conviver e discordar, de forma civilizada, mantendo-se a disputa pelo poder e a relação entre governo e oposição dentro das regras institucionais e legais, sem que se vejam, portanto, como inimigos e uma ameaça à existência um do outro. A consolidação da ideia de respeito à divergência política, sem resultar na desqualificação do oponente, tido como um traidor, um herético, um antipatriota, foi consequência de longa evolução histórica e política.

Além da tolerância mútua, a sobrevivência da democracia depende do que os autores denominam por reserva institucional, que consiste em uma postura, quer do poder executivo, quer do legislativo, de não adotar medidas, em que pese legais, que representem uma polarização e um acirramento extremos, que, no limite, levem ao enfrentamento entre governo e oposição, em que um e outro se consideram uma ameaça real para a governabilidade do país. 

 Levitsky e Ziblatt citam como exemplo de reserva institucional a escolha do primeiro ministro britânico, que que poderia ser quem quer que o rei ou a rainha escolhesse, mas que a Coroa, tradicionalmente, escolhe um membro do Parlamento capaz de comandar a maioria na Câmara dos Comuns – geralmente, o líder do maior partido parlamentar. Mencionam ainda a regra do limite de dois mandatos presidenciais consecutivos nos Estados Unidos. Essa regra, até a ratificação da Vigésima Segunda Emenda, em 1951, foi observada, por tradição política, por presidentes republicanos e democratas, que, apesar de oponentes políticos, não se consideravam inimigos intoleráveis, nem uma ameaça ao país. Essa tradição do limite de dois mandatos presidenciais consecutivos só veio a ser contrariada com a reeleição de Roosevelt, em 1940, o que levou à aprovação da Vigésima Segunda Emenda. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019, p. 121-125)

Em democracias presidencialistas, como a norte-americana, normas de reservas institucionais são de grande importância. Haja vista que essas normas podem evitar excessos políticos, ainda que legais, evitando, assim, situações como o aparelhamento da Suprema Corte ou o exercício do governo por meio de decretos, por parte do Presidente, bem como retaliação do congresso ou da Suprema Corte ao Presidente, bloqueando as suas iniciativas, chegando, no limite, a iniciar um processo de  afastamento do presidente com base em motivos controversos.

Os autores entendem, portanto, que a tolerância mútua e a reserva institucional são fundamentais para a sobrevivência, a saúde, a renovação e rotatividade do regime democrático. Sem elas, o risco de morte da democracia é real:

(…) A tolerância mútua e a reserva institucional têm uma relação estreita. Por vezes, reforçam uma à outra. Políticos são mais propensos à moderação quando se aceitam uns aos outros como rivais legítimos, e aqueles que não encaram os oponentes como subversivos serão menos tentados a recorrer a violações da norma para mantê-los longe do poder. Atos de reserva – por exemplo, um Senado controlado por republicanos aprovando a indicação de um presidente democrata para a Suprema Corte – reforçarão a crença de cada partido de que o outro lado é tolerável, promovendo um círculo virtuoso. Porém, o oposto também pode ocorrer. A erosão da tolerância mútua pode motivar os políticos a desdobrar seus poderes institucionais tão amplamente quanto possível sem serem punidos. (…) Quando as sociedades se dividem tão profundamente que seus partidos se vinculam a visões de mundo incompatíveis, e sobretudo quando seus membros são tão segregados que raramente interagem, as rivalidades partidárias estáveis dão lugar a percepções de ameaça mútua. À medida que desaparece a tolerância, os políticos se veem cada vez mais tentados a abandonar a reserva institucional e tentar vencer a qualquer custo. Isso pode estimular a ascensão de grupos antissistema com rejeição total às regras democráticas. Quando isso acontece, a democracia está em apuros. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019, p. 128-133)

Levitsky e Ziblatt concluem, porém, que o risco mortal da democracia é reversível, em que pese a crescente percepção de que a democracia está em crise ou recuando em todo o mundo, considerando a situação política de países como Rússia, Estados Unidos, Venezuela, Tailândia, Turquia, Hungria, Polônia, entre outros.

Após o número de democracias ter crescido de forma expressiva, entre os anos 1980 e 1990, chegando ao auge em 2005 e permanecendo estável desde então, a ponto de o período 1990-2015 poder ser considerado o quarto de século mais democrático da história mundial, a permanência de Putin e de Trump no poder, havendo chances reais da permanência deles no comando de seus países nesse novo início de década, os autores reconhecem que, em muitos países, uma recessão democrática torna-se, cada vez mais, real. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019, p. 226-227).

Levitsky e Ziblatt acreditam, todavia, que essa recessão democrática poderá perder força à medida que se formem e se consolidem amplas coalizões democráticas, moderadas e pluralistas, que reúnam líderes partidários diversos, inclusive ideologicamente opostos, bem como líderes e movimentos sociais de diferentes matizes políticos e culturais, tendo em comum a defesa moderada da democracia. Essas coalizões democráticas, ao não se deixarem atrair pela polarização e pelo discurso radical, deverão conseguir isolar o líder autocrata e com ele disputar o poder em terreno no qual não está habituado a lutar: o campo do embate eleitoral no qual provocações raivosas serão respondidas com sensatez e clareza. Se o populismo radical e demagógico é capaz de atrair multidões, seu discurso de ódio e violência repugna, por outro lado, parte expressiva da sociedade. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019, p. 253)

Defendem os autores que essa ampla coalizão poderá salvar a democracia, caso consiga assumir pacífica e legitimamente o poder e o exerça de forma a restaurar normas escritas e não escritas democráticas e as estenda, de modo inclusivo, à sociedade plural do século XXI. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2019, p. 254).

Ascensão do Populismo e Autoritarismo

Não se vislumbra, todavia, no cenário político hodierno a formação de amplas coalizões democráticas moderadas, ao contrário, percebe-se o recrudescimento do populismo e do autoritarismo.

Essa ascensão e consolidação é notada por Yascha Mounk, que, considera que as quatro maiores democracias do mundo (Estados Unidos, Índia, Rússia e Brasil) são governadas, atualmente, por líderes populistas e autoritários, além de países europeus como a Polônia, a Hungria, a República Tcheca, entre outros estarem sob forte influência do populismo e do autoritarismo. Aponta três fatores essenciais para que os cidadãos elejam candidatos antidemocráticos: a estagnação dos padrões de vida, o medo da democracia multiétnica e a supremacia das mídias sociais, conduzem a uma recessão democrática no mundo. (MOUNK, 2019, p. 166)

Segundo Mounk, nos EUA e em parte da Europa e da América Latina, os padrões de vida não melhoraram significativamente para uma parcela expressiva da população, nos últimos 30 anos, a recessão ou estagnação ou um baixo crescimento econômico favoreceu a uma descrença em instituições democráticas.

Além disso, nos EUA e em parte da Europa, ocorreu, nesse período, uma grande e rápida transformação demográfica e cultural, tornando as sociedades, dessa região, multiétnica, em virtude da imigração, o que conduziu a movimentos reivindicatórios de minorias, não apenas étnicas, mas também de gênero, raça e de orientação sexual, levando a uma polarização entre valores conservadores defendidos por parcela da população e valores progressistas, sustentados por esses grupos e minorias sociais. Essa polarização tem se estabelecido em detrimento da tolerância e do diálogo, valores democráticos.

Por fim, destaca Mounk a influência inédita das mídias sociais nos processos político-eleitorais, permitindo que lideranças populistas desmoralizem as instituições democráticas, disseminem fake news, corroendo campanhas de adversários políticos, e se apresentem com verdadeiros salvadores de pátria, a encarnação do povo, estando, assim, legitimados a tolher os direitos individuais e as instituições democráticas, quando consideram não corresponder à vontade ou ao interesse do povo. (MOUNK, 2019, p. 179)

Mounk ainda ressalta que em certos países, entre eles o Brasil, a ascensão de lideranças populistas foi também favorecida pela corrupção, que envolveu governos, partidos e líderes políticos tradicionais, bem como grandes empresas e empresários, o que conduziu à descrença de parte da população nos valores democráticos.

A Transparência Internacional (TI), organização não-governamental fundada em 1993 e com sede em Berlim, produz, desde 1995 um relatório, o Índice de Percepção da Corrupção (IPC), queé o principal indicador de corrupção no setor público do mundo. Esse índice avalia 180 países e territórios com base nos níveis percebidos de corrupção no setor público, por especialistas e empresários. 100 significa muito íntegro e 0 significa altamente corrupto.

Segundo o IPC de 2019, a esmagadora maioria da população mundial vive em países com pontuação inferior a 50 pontos no IPC. Entre esses países, um dos destaques mais negativo foi a Venezuela, tendo ficado em último lugar no ranking regional das Américas, com 16 pontos, o que também a posiciona entre os cinco últimos colocados no ranking global. Assim, a TI ressaltou em seu relatório

Mais de dois terços dos países tiveram uma pontuação abaixo de 50 no IPC de 2019, com média de apenas 43. Tal como nos anos anteriores, os dados mostram que, apesar de ter havido algum progresso, a maioria dos países ainda falha no enfrentamento eficiente da corrupção no setor público. As nações que obtiveram as maiores pontuações foram Nova Zelândia e Dinamarca, cada uma tendo atingido 87 pontos, seguidas por Finlândia (86), Singapura (85), Suécia (85) e Suíça (85). Os países que registraram as menores notas foram Somália, Sudão do Sul e Síria, com 9, 12 e 13 pontos, respectivamente. Eles são seguidos de perto por Iêmen (15), Venezuela (16), Sudão (16), Guiné Equatorial (16) e Afeganistão (16). (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL,2019)

A propósito do cenário brasileiro, a TI destacou que, em 2018, após ter caído nove posições no ranking global de 180 países e territórios, e perdido dois pontos, o Brasil, em 2019,

manteve-se no pior patamar da série histórica do Índice de Percepção da Corrupção, com apenas 35 pontos. (…) Com esse resultado, o Brasil caiu mais uma posição no ranking para o 106º lugar. Este 5º recuo seguido na comparação anual fez com que o país também atingisse sua pior colocação na série histórica do índice. (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL,2019)

Se a corrupção, em especial na América Latina, tem se revelado como um fenômeno que tem favorecido a ascensão do populismo e o declínio de valores e instituições democráticas, nos Estados Unidos e no Leste Europeu, Timothy Snyder afirma, então, que é preciso aprender com trágicos eventos históricos, como a ascensão e apogeu dos regimes totalitários, como o fascista, o nazista e o stalinista, no século XX, a fim de evitar, ao máximo, erros do passado no presente. (SNYDER, 2017, p. 11)

Ao se referir à campanha presidencial norte-americana em 2016, Snyder assevera que Trump já deixava revelar traços autoritários, não como descuido, mas como estratégia intencional de campanha -, que suscitaram o interesse teórico do historiador pelo tema da tirania, ao tempo que nele despertaram o temor pelo risco à democracia, que é definida por ele como o regime do primado da lei, de um sistema de controle do poder e de regras de sucessão pacífica do governante. (SNYDER, 2017, p. 11)

Entre tais traços, podem ser destacados a linguagem bombástica e violenta, apologia da força e armamentos, o uso da truculência e deselegância contra adversários, o culto à personalidade, a comunicação e apelo emocional dirigidos diretamente à população, sem recurso a intermediários e o apelo ao discurso nacionalista, ufanista e populista.

Para Snyder, o presidente Trump constitui uma afronta à tradição republicano-democrática dos Estados Unidos, que valorizava o liberalismo político, econômico, religioso e jurídico, defendendo os direitos individuais, o respeito pela vida privada, pela liberdade de pensamento, expressão e reunião, pelas instituições republicanas e democráticas. (SNYDER, 2017, p. 12)

Também no Leste-europeu, em especial na Rússia, na Hungria, na Turquia e na Polônia, cujos governantes ostentam perfil e estilo semelhantes ao de Trump, cerceiam-se as liberdades civis, tolhem-se instituições políticas e sociais, calam-se vozes dissonantes, tudo isso – o que é mais triste e assustador – com expressivo apoio popular.

Entre as lições ensinadas por Snyder, na obra mencionada, destaca-se logo a lição inicial: “Não obedeça de antemão”. Nela, o autor alerta:

a maior parte do poder do autoritarismo é concedido voluntariamente, (…) as pessoas calculam com antecedência o que um governo mais repressivo pode querer, e muitas vezes oferecem sua adesão sem que sejam solicitadas. Um cidadão que procede dessa maneira está ensinando ao poder o que ele pode fazer. A obediência por antecipação é uma tragédia política. (SNYDER, 2017, p. 17)

Regimes populistas e totalitários costumam, por um lado, repudiar o uso crítico da racionalidade, o que sempre os levou a serem anti-intelectualistas e contrários à filosofia e à ciência, bem como à arte contestadora, e, por outro, a valorizar o sentimentalismo extático e pueril, que, não raro, obnubila o espírito questionador e o pensamento autônomo e conduz a um comportamento subserviente e à obediência cega ao “pai”, ao grande líder, à aquele em que são depositadas todas as confianças, a quem servir e obedecer antecipadamente, é um dever indubitável.

Para Snyder, líderes do passado como Mussolini e Hitler ensejaram uma conduta submissa de seus liderados, proporcionando-lhes, em grande medida, um domínio docilmente aceito pela população em geral, sob o governo de ambos.

Adverte Snyder para o risco de que governos populistas e autoritários atuais venham a conquistar, mediante discursos e ações dissimuladores de seus líderes, essa subserviência cega e automática de seus governados. (SNYDER, 2017, p. 18-19)

Snyder defende a concepção de que a política da inevitabilidade e a política da eternidade explicam a política deste início de século XXI. Ambas são concepções anti-históricas, porque não percebem a história como um curso de acontecimentos, moldados livremente pelo homem, ainda que em circunstâncias dadas e limitantes, mas jamais inescapáveis ou inexoráveis. São concepções teleológicas que consideram o tempo como o deslindar de fatos predeterminados, restando ao homem admitir ou admirar a sua inevitabilidade ou a sua eternidade.

No final do anos 80 e início dos 90, no século passado, com o fim da Guerra Fria, grande parte da classe política e do meio intelectual ocidental concebeu que a História havia chegado ao seu fim – tal qual na famosa formulação de Fukuyama -, porquanto o destino inevitável e glorioso das sociedades em todo o planeta, após a queda do Muro de Berlim, era o da democracia liberal, da crescente globalização e da prosperidades sem precedentes. (SNYDER, 2017, p. 114)

Nessa época, segundo Snyder, “(…) baixamos as nossas defesas, reprimimos nossa imaginação e abrimos caminho justamente para os regimes aos quais nos prometemos nunca voltar” (SNYDER, 2017, p. 114)

Em verdade, nessa ocasião, semeou-se o regresso a regimes antidemocráticos justamente porque não mais admitíamos a sua ressuscitação como uma possibilidade histórica. Eis que, para pasmo geral, esses regimes ergueram-se de suas covas fétidas nas quais haviam sido enterrados, mas, como se zumbis fossem, estão a assombrar a alguns; a outros, todavia, a encantar como salvação de um mundo corrompido e violento.

A política da inevitabilidade não nega o passado, mas considera que o presente irá necessariamente desembocar num futuro radiante de paz, liberdade e riqueza para todos. Essa concepção, além de pueril, não conduz a uma atitude política passiva, vez que, segundo essa concepção, não há razão em vigiar ou velar pela paz, liberdade, prosperidade geral vez que o futura já as reserva, indubitavelmente.

Ledo engano de muitos e narrativa ardilosa de poucos, a política da inevitabilidade serviu a governantes como Reagan e Margareth Thatcher, antes mesmo do fim da Guerra Fria, para defender a ideia de que não há alternativa ao neoliberalismo, quer no mercado nacional, quer na economia internacional. Esses governantes justificaram suas políticas econômicas e suas políticas externas com base na tese central da política da inevitabilidade. (SNYDER, 2017, p. 115-116)

Se a política da inevitabilidade vislumbra um futuro implacável e luminoso a ser atingido em retilínea temporal, a política da eternidade descortina um passado cíclico e incessante, cujos fantasmas estariam sempre prestes a assombrar o presente e cujas ameaças estariam sempre a amedrontá-lo. Ambas políticas guaram em comum a visão anti-histórica e teleológica do tempo. Em ambas, não pode ser feito, seja para evitar a marcha triunfal do futuro cintilante, seja para cessar o eterno retorno do nebuloso e metuendo passado.

Snyder ressalta, ainda, que os Estados Unidos viveram a política da inevitabilidade, até a crise financeira de 2008, quando, então, o otimismo em relação ao futuro começou esboroar, com a perda ou limitação de benefícios sociais, como assistência médica, licença maternidade e paternidade e aposentadoria.

Nos Estados Unidos e em parte da Europa, a política da inevitabilidade entrou em colapso, dando lugar à política da eternidade. Nesses termos, afirma Snyder:

Enquanto a inevitabilidade promete um futuro melhor para todos, a eternidade coloca um país no centro de uma história cíclica de vitimização. O tempo não é mais uma linha reta para o futuro, mas um circulo que traz de volta, de forma incessante e infinita, as mesmas ameaças do passado. Na inevitabilidade, ninguém é responsável, porque todos sabemos que os detalhes se resolverão da melhor forma possível; na eternidade ninguém é responsável porque todos sabemos que o inimigo está a caminho, independentemente do que fizermos. Os defensores da política da eternidade espalham a convicção de que o governo não pode ajudar a sociedade como um todo, apenas tomar precauções contra ameaças. O progresso dá lugar à condenação. (SNYDER, 2019, p. 17)

Na Rússia, a política da eternidade começou a se consolidar ainda no início do século XXI, sob Putin. Ex-agente da KGB e chefe dos serviços secretos soviético e russo, Putin está no poder desde 1999 e seu atual mandato presidencial encerra-se em 2024.

Se, a princípio, Putin, em seus primeiros anos no poder, manteve uma certa aproximação com o liberalismo político e econômico ocidental, conseguindo promover, graças à abundância de petróleo e gás, uma recuperação do nível de vida dos russos; aos poucos, Putin passa a adotar políticas antiliberais e democráticas, elegendo o Ocidente como inimigo.

Em 2004, a eleição de um candidato pró-Ocidente à presidência da Ucrânia, incomodou a Putin, que considerou o episódio uma interferência ocidental em sua área de influência.

Em 2007, em Munique, por ocasião de uma Conferência de Segurança, Putin fez um discurso muito crítico ao Ocidente e, em especial, aos Estados Unidos, defendendo uma ordem mundial multipolar, condenando a política externa unilateral norte-americana e a ampliação da Otan em direção ao Leste Europeu.

Alguns fatos ocorridos nos anos seguintes, como a guerra na Geórgia em 2008; a intervenção ocidental na Líbia em 2011; a anexação da Crimeia, em 2014; intervenção russa na Síria, em 2015; reconhecimento da eleição de Maduro na Venezuela; crise entre EUA e Irã, em 2020, vem deteriorando a relação entre a Rússia e o Ocidente.

Na medida em que se afastava do Ocidente, política e culturalmente, Putin passou a revelar maior apego aos valores conservadores pregados pela Igreja Ortodoxa, em contraposição à “devassidão moral” do Ocidente e ao liberalismo político e econômico ocidental.

Além da influência religiosa conservadora, Putin demonstra também receber forte influência filosófica de Ivan Ilyin, pensador russo fascista, da primeira metade do século XX.

Ilyin defendia o fim do individualismo e da individualidade, vez que a sociedade e o Estado são superiores ao indivíduo. Advogava que “precisamos deixar de existir como seres humanos individuais”. (SNYDER, 2019, p. 33). O indivíduo deve anular-se em prol da coletividade guiada pelo grande líder, guardião do Estado e da sociedade, a quem a massa deve obediência cega.

Além de defender o anti-individualismo típico do fascismo, Ilyin defendeu que o grande líder seja um monarca, que estaria acima das leis e da constituição, sendo, portanto, autoridade suprema. Esse monarca ou czar ou vozhd deve possuir qualidades espirituais que infundem amor, adoração, respeito e temor em seus súditos, que com ele devem formar um único corpo, uma só carne e alma.

Em texto intitulado as tarefas básicas de um monarca, Ilyin, assim, argumenta:

Em quase todos os lugares encontramos indícios de que o czar deve ser inerente a um tipo especial de trabalho espiritual interno, que deve dar a ele as propriedades de que ele precisa, colocando-o em sua altura adequada, tornando-o digno da atitude em relação a ele de seus súditos, que é a própria natureza, autoridade real. A base deste trabalho interior, no qual o rei deve permanecer, é a religiosidade. (…). Eu falo sobre isso agora apenas do ponto de vista daconfiança dos súditos do monarca. Essa confiança deve ter algum último motivo:  a confiança dos súditos de que o próprio monarca se coloca diante da face de Deus. (ILYIN, 2020)

Barbashin considera que Ilyin, ao defender essa relação místico-religiosa entre a vozhd (líder) e os súditos, está a sustentar a supressão de qualquer laivo de racionalidade por parte dos governados.

Ao falar da ” qualidade espiritual “, Ilyin significa a maneira única pela qual os russos ” amam e acreditam “; ele está pedindo abertamente a supressão do racional nas pessoas, propondo moldar um novo tipo de homem pela ” nova seleção de pessoas “. Aqueles que não fizerem essa seleção serão degradados para “o último posto na sociedade”, tambémas pessoas que são incapazes de autocontrole serão restringidas e estigmatizadas”. Ilyinexige que essas novas pessoas “amem incondicionalmente e acreditem incondicionalmente”. Estes são os objetos para o amor, de acordo com Ilyin: “Deus, pátria e a vozhd nacional. (BARBASHIN, 2020)

O amor ao líder confunde-se com o amor divino e patriótico. Esse amor é alimentado pela crença em um destino russo inigualável, em glória, poder e responsabilidade.

Ilyin propõe, portanto, à Rússia a criação de uma ditadura nacional que se baseie nos papéis excepcionais da religião e das forças armadas, sob a égide do grande líder, que deve promover uma nova consciência e atitude dos russos em prol de uma missão sagrada, incluindo a defesa de vastas massas terrestres da Eurásia contra uma multidão de inimigos, bem como o domínio de nações menores que vivem nesses territórios.

Essa concepção de Ilyn vai ao encontro de cinco ideias básicas, que, segundo Vera Tolz, revelam a identidade russa, quais sejam:

1) Ser russo é fazer parte de um Império de estados supranacionais; 2) Ser russo é fazer parte do mundo Pan-Eslavo; 3) Ser russo é participar de uma comunidade de falantes da língua russa; 4) Ser russo é uma questão racial; 5) Ser russo é ter uma cidadania e assim ser leal ao Estado e a constituição da Federação Russa. (TOLZ, 2010)

 Snyder considera, outrossim, que o irracionalismo, o misticismo, o fascismo e o nacionalismo presentes no pensamento de Ilyin nutrem uma cultura, propagada na Rússia sob Putin, de desprezo pelas liberdades individuais, pela imprensa livre, pelo individualismo,  pelo Império da Lei,  pela busca racional da verdade na ciência, na política, na justiça, na mídia e na internet.

Para Snyder, o objetivo de Putin é solapar a democracia no Ocidente, alçando a Rússia à condição de líder da onda autoritária que se dissemina no planeta.

A Rússia se opõe à democracia europeia e norte-americana para garantir que os russos não percebam que a democracia pode funcionar como um princípio de sucessão no seu próprio país. Os russos precisam desconfiar de outros sistemas tanto quanto desconfiam do seu. (SNYDER, 2019, p. 305)

Snyder sustenta que o governo russo, por meio de difusão de fake news[2] e guerra cibernética, contribuiu, decisivamente, na campanha pelo Brexit e pela eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos.

Afirma o historiador que existe na Rússia uma Agência de Pesquisa de Internet, localizada em São Petersburgo, que controla um grupo de trolls dedicado a realizar ciberataques destinados a desestabilizar a União Europeia e os Estados Unidos. A Federação Russa tem demonstrado amplo domínio das táticas dessa nova modalidade de guerra. (SNYDER, 2019, p. 134)

Se, durante a Guerra Fria, a então União Soviética buscava apresentar suas conquistas espaciais e militares para promover o seu regime, agora, a Rússia consegue, com menor esforço, realizar propaganda e contrapropaganda cibernética, conforme seus interesses políticos e econômicos, afinal é mais fácil manipular aqueles que passam horas por dia em frente às telas de um computador ou smartphones, mediante uso hábil de mensagens que nelas pululam.

Snyder alega que parte dos robôs que atuaram na campanha a favor do Brexit, promovendo partidos eurocéticos na extrema direita e esquerda, foi usada também na campanha de Trump, especialmente no ataque a Hillary Clinton, com ampla divulgação de fake news, que associavam a candidata democrata a satanismo e pedofilia. (SNYDER, 2019, p. 301)

Snyder entende que Trump é fruto de uma construção ficcional criada por Moscou. De herdeiro falido de um império imobiliário, transforma-se em “empresário de sucesso” graças ao dinheiro injetado em seus negócios por cleptocratas russos (que provavelmente uniram o útil ao agradável ao lavar dinheiro na compra de imóveis americanos enquanto forjavam o próximo presidente dos EUA). (SNYDER, 2019, p. 264)

O termo “cleptocracia” refere-se a uma a uma forma de governo que se sustenta por uma rede estável e velada de corrupção e de roubos sistemáticos praticados no âmbito do Estado, por seus agentes.

Dawisha alega que Putin instalou um sistema cletocrático que desvia recursos para enriquecer políticos e empresários devotados a apoiá-lo em seu governo autoritário e personalista, que se apresenta disfarçado de democrático. (DAWISHA, 2014)

Com base em Dawisha, Almeida indica as práticas corruptas usuais de uma cleptocracia:

propinas de empresas nacionais e estrangeiras para trabalhar com empresas públicas; pedágios em contratos inflados, não sujeitos a sistemas abertos de licitação nos projetos do governo; regulação ajustada para beneficiar certos grupos e enriquecer os amigos do poder (pode ocorrer em processos viciados de privatização); mecanismos de “coleta” de parte dos recursos amealhados por eles para financiar campanhas eleitorais, ou diretamente para contas bancárias no exterior; operações de comércio exterior, com faturamento a mais ou a menos nos preços; subsídios estatais seletivos; doações legais ou semilegais para obras públicas; transações imobiliárias a preços fictícios, escondendo pagamentos por fora dos contratos; lavagem de dinheiro; financiamento de atividades políticas, com ou sem campanha eleitoral; contas não declaradas em bancos no exterior; maquiagens contábeis nas contas domésticas; arranjos lucrativos com cartéis, quando não com os próprios sindicatos do crime; intimidação, manipulação e controle da mídia; no limite, eliminação física dos “obstáculos” a esses negócios heterodoxos. (ALMEIDA, 2020)

A política da eternidade adotada por Putin, que pretende exportá-la para o Ocidente, infunde a concepção de que mazelas da sociedade, como a desigualdade social, são males inevitáveis e recorrentes. Longe de resolver os problemas de uma sociedade dominada por cleptocratas, o governo russo tem produzido crises para se perpetuar, como a guerra na Tchetchênia e invasão da Ucrânia. “Em vez de governar, o líder produz crise e espetáculo”, afirma Snyder. (SNYDER, 2019, p. 41)

Em seu governo prestidigitador, Putin desvia a atenção interna e internacional de suas práticas autoritárias e cleptocráticas para temas que permitem ao líder russo ostentar seu discurso nacionalista e populista.

Para Putin e seus asseclas, em coerência com a pirotecnia de sua política da eternidade, a homossexualidade é o grande problema da Rússia. Não raro, o governo russo associou a homossexualidade a perversão sexual e moral do Ocidente, cujo objetivo seria a degradação moral e exploração econômica do povo russo, corrompendo a sua inocência e escorchando as suas riquezas materiais e espirituais.

A esse respeito, Snyder reproduziu declaração do governo russo em Conferência sobre os Direitos Humanos na China, em 2013:

Os direitos dos homossexuais eram nada menos que a arma preferida de uma conspiração neoliberal global, destinada a preparar sociedades tradicionais virtuosas, como a Rússia e a China, para a exploração. (SNYDER, 2019, p. 69)2 — ano em que

Snyder considera que o discurso ufanista de exaltação da pureza e virilidade russa e de crítica inflamada contra supostos inimigos, internos e, sobretudo, externos da Rússia constituem, portanto, estratégias ilusionistas que escamoteiam os reais problemas políticos russos, como o cerceamento das liberdades individuais e políticas. Entende que sejam também estratégias, associadas ao culto à personalidade, para enfrentar eventuais decréscimos de popularidade de Putin, após duas décadas no poder.

Apesar do recente declínio na popularidade causado pela estagnação econômica e por uma reforma da aposentadoria, para a maioria dos russos, Putin ainda é muito popular depois de 20 anos após sua chegada ao poder, sendo considerado como o líder que tirou o país do caos pós-soviético, retomando o prestígio internacional da Rússia.

A propósito do culto à personalidade, tão típico de regimes autoritários e totalitários, o governo russo e seus aliados políticos e econômicos prosseguem a promover a imagem de Putin, associando-a ao semblante de um líder forte e respeitado e de um salvador da pátria capaz de conduzir à Rússia ao seu destino manifesto de um futuro glorioso. Esse culto à personalidade não ocorre apenas por meio de propaganda política oficial, mas também por meio de publicidade de mercadorias as mais diversas colocadas à venda em lojas físicas e virtuais, como se pode notar em matéria de O Estado de S. Paulo sobre a onipresença de Putin na sociedade russa:

(…) O rosto de Vladimir Putin é onipresente nas vitrines de lojas para turistas, quiosques e livrarias das principais cidades russas em meio às matrioshkas, chocolates e presentes. Ainda que as vendas não sejam colossais, o rosto e o perfil do líder russo se tornaram imprescindíveis nas vendas de produtos oferecidos a turistas locais e estrangeiros. (KORENEVA, 2020)

Snyder conclui que, na contemporaneidade, a democracia na Rússia e no mundo encontra-se diante de grande perigo de sucumbir, de forma ainda mais profunda e duradoura, em face da ascensão de governos e de líderes autoritários, como Putin.

Conclusão

Em face dos fatos e argumentos aduzidos, pode-se admitir que o regime democrático vive, na atualidade, uma crise em diversos países do mundo, inclusive no Brasil.

Não há, porém, que se decretar o fim da democracia, que ainda goza de prestígio em grande parte da sociedade civil, nacional e internacional. Se há possibilidade de perdurar, o regime democrático requer, ao que tudo indica, uma transformação, que aponte para uma ampliação da participação dessa mesma sociedade civil no processo decisório democrático. Já não se admite, todavia, que esse processo fique limitado, quase que exclusivamente, à classe política e aos partidos políticos.

Trata-se de radicalizar a democracia, como defendem alguns autores como Habermas, e o atual avanço científico e tecnológico permitiu que a voz e a imagem de indivíduos e grupos sociais se manifestem, em tempo real e em qualquer lugar.

Se, por um lado, o ciberespaço tem sido, infelizmente, palco para a profusão de fake news e a disseminação do discurso de ódio, em desserviço à cidadania e à democracia, por outro lado, há ferramentas tecnológicas que podem utilizar esse mesmo ciberespaço para a divulgação de notícias verídicas, de opiniões fundamentadas, de argumentos e contra-argumentos políticos, de denúncias de efetiva corrupção e de condutas políticos evidentemente ilegais ou antiéticas.

A crise da democracia contemporânea poderá, assim, em lugar, de conduzi-la ao seu fim, propiciar oportunidade de transformá-la, afastando-a do populismo e do autoritarismo. O destino da democracia, não está, definitivamente, traçado; persiste aberto, seja para sua ruína, seja para sua redenção. O tempo dirá.

Referências Bibliográficas

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[1] Advogado e professor universitário. Aprovado em Banca de Doutorado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), aguardando emissão do diploma. Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Possui Mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Foi membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do UniCEUB e do ICESP. Atualmente, é Coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário ICESP. Tem mais de 25 (vinte e cinco) anos de experiência docente superior e pesquisas na área de Filosofia e Direito, com ênfase em Ética, Filosofia Política e do Direito, atuando, principalmente, nos seguintes temas: ética do discurso habermasiana, filosofia do direito habermasiana, fundamentação dos Direitos Humanos. Leciona também disciplinas propedêuticas, como Ciência Política e disciplinas técnico-jurídicas, como Direito Internacional Público e Direitos Humanos. E-mail: jmbrdantas05@gmail.com

[2] Snyder afirma que a expressão Fake News “parece invenção norte-americana, e Donald Trump a reivindica; mas o termo era usado na Rússia e na Ucrânia bem antes de começar sua carreira nos Estados Unidos. Significava criar um texto fictício que posava como jornalismo, com o duplo objetivo de espalhar confusão a respeito de determinado acontecimento e desacreditar o jornalismo como um todo” (p.21).