COMO TORNAR A TUTELA COLETIVA NO BRASIL UM ESPAÇO ADEQUADO DE PARTICIPAÇÃO DOS INTEGRANTES DA COLETIVIDADE, EM ESPECIAL DE GRUPOS MINORITÁRIOS?
27 de outubro de 2025HOW TO MAKE COLLECTIVE PROTECTION IN BRAZIL AN APPROPRIATE SPACE FOR THE PARTICIPATION OF MEMBERS OF THE COMMUNITY, ESPECIALLY MINORITY GROUPS
Artigo submetido em 25 de outubro de 2025
Artigo aprovado em 27 de outubro de 2025
Artigo publicado em 27 de outubro de 2025
| Cognitio Juris Volume 15 – Número 58 – 2025 ISSN 2236-3009 |
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Resumo: O artigo tem por escopo a finalidade de atender a tutela coletiva e a representatividade adequada de grupos minoritários por meio da realização e responsabilidade dos valores do ordenamento jurídico, faz-se necessário que o acesso à justiça seja justo e razoável para a consecução de tais objetivos. Atualmente, o acesso à justiça tem de ser entendido e aplicado como instrumento de efetivação de uma garantia constitucional e como verdadeiro exercício democrático de cidadania, assegurando a todos o pleno acesso à tutela jurisdicional. Consideráveis foram os avanços legislativos operados no País, que contribuem para a efetiva e gradual substituição das ações individuais pelas coletivas, em consonância com os novos anseios da atual “sociedade de massa”. Além disso, a crescente democratização da tutela coletiva de direitos de grupos minoritários no Brasil representam instâncias privilegiadas de acesso à ordem jurídica justa, pois possibilitam a aquisição e o exercício dos mais variados direitos. Com o uso de metodologias que combinam técnicas e estratégias de investigação empírica, constatou-se que é possível perceber um uso estratégico das ações coletivas para pleitear a visibilidade da demanda e garantir o direito coletivo. Assim, o Poder Judiciário não é visto como o responsável pela solução do problema, mas como um meio para ampliar buscas por direitos de maneira mais ampla. O resultado é a aproximação da justiça com o campo das políticas públicas nas mais diversas áreas, pela via dos direitos difusos e coletivos, exigindo cada vez mais a participação dos grupos minoritários, de modo a resguardar o devido e correto acesso à justiça.
Palavras-chave: Tutela coletiva, Acesso à justiça, Grupos minoritários, Direitos fundamentais, Participação democrática.
Abstract: The article aims to address collective protection and the adequate representation of minority groups through the realization and enforcement of the values upheld by the legal system. It is essential that access to justice be fair and reasonable to achieve such objectives. Currently, access to justice must be understood and applied as an instrument for implementing a constitutional guarantee and as a true democratic exercise of citizenship, ensuring everyone full access to judicial protection. Significant legislative advances have taken place in Brazil, contributing to the effective and gradual replacement of individual actions with collective ones, in line with the new aspirations of the current “mass society.” Furthermore, the increasing democratization of collective legal protection for minority groups in Brazil represents privileged instances of access to a fair legal order, as it enables the acquisition and exercise of a wide range of rights. Using methodologies that combine empirical research techniques and strategies, it was found that collective actions are strategically employed to enhance the visibility of demands and to ensure collective rights. Thus, the Judiciary is not seen as solely responsible for solving the problem but as a means to broaden the pursuit of rights more extensively. The result is a closer connection between justice and public policy across various areas through diffuse and collective rights, increasingly requiring the participation of minority groups to safeguard proper and effective access to justice.
Keywords: Collective protection, Access to justice, Minority groups, Fundamental rights, Democratic participation.
INTRODUÇÃO
A fim de atender a tutela coletiva e a representatividade adequada de grupos minoritários por meio da realização e responsabilidade dos valores do ordenamento jurídico, no seu sentido finalístico, faz-se necessário, diante de encadeamentos visualizadores, que o acesso à justiça seja justo e razoável para a consecução de tais objetivos.
Os principais países do mundo civilizado assistem a um generalizado clamor contra a pouca eficiência da justiça oficial para solucionar a contento os litígios que lhes são submetidos. Como consequência imediata desse quadro de insatisfação social, configura-se uma crescente onda de reforma das leis processuais, da qual não escapa ninguém, nem mesmo aqueles povos que se gabam de ter produzido em campo da ciência jurídica monumentos gloriosos na edição de seus Códigos.
Por mais que juristas e legisladores se esforcem por aperfeiçoar as leis de processo, a censura da sociedade ao aparelhamento judiciário parece sempre aumentar, dando a ideia de que o anseio de justiça das comunidades se esvai numa grande e generalizada frustração.
Para tentar compreender esse fenômeno devemos relembrar o que se passou de inovação nos últimos 200 anos, não apenas em torno das instituições processuais, mas da própria estrutura política das nações.
De velhas e arraigadas concepções aristocráticas e autoritárias, no desempenho do poder público a humanidade evoluiu para a democracia e a república, fundada, primeiro, nas solenes declarações de direitos fundamentais e, finalmente, na inclusão, dentre os deveres estatais, o de tornar efetivos os declarados direitos fundamentais.
Os direitos dos cidadãos, em nosso tempo, saíram do âmbito das meras declarações solenes para entrar no campo das missões práticas que ao Estado cumpre implementar. Essa nova postura político-social em relação à cidadania iria refletir sobre todas as funções do moderno Estado Social de Direito, inclusive a do Poder Judiciário.
Aliás, na verdadeira evolução do Estado Democrático é principalmente pelo processo e o acesso à justiça que se revela o grau de aprimoramento das funções estatais. Assim, no antigo regime aristocrático, nem mesmo o poder judiciário autônomo existia, e o autoritarismo dos detentores do governo fazia com que as normas procedimentais fossem inoperantes para satisfazer qualquer anseio de justiça. Tudo, afinal, se resumia num ato arbitrário de vontade do soberano, ou de agentes subalternos que reproduziam com fidelidade sua vontade incontestável.
A primeira grande conquista do Estado Democrático é justamente a de oferecer a todos uma justiça confiável, independente, imparcial e dotada de meios que a faça respeitada e acatada pela sociedade. Por terem consciência de seus direitos à tutela jurisdicional, cada vez mais as pessoas, ou seja, integrantes da coletividade e, em especial, os grupos minoritários, passaram a ir à Justiça e a dela exigir a prestação que, de fato, correspondesse à função que as modernas constituições lhe atribuíam.
A garantia de acesso à Justiça e a instrumentalidade e efetividade da tutela jurisdicional passaram a ocupar a atenção da ciência processual, com preferência sobre as grandes categorias que haviam servido de alicerce à implantação do Direito Processual como ramo independente do direito material, integrado solidamente ao direito público.
Foi no relacionamento com o Direito Constitucional que o processo mais se distinguiu em seu eminente caráter publicístico. Mas não foi somente na publicização que se notabilizou o processo moderno. Além de ter sido, desde logo, reconhecido como instrumento de atuação de soberania estatal, aos poucos o caráter mais marcante do instituto foi se deslocando para a sua qualidade cívica, até que a generalidade das Constituições democráticas passasse a incluir o devido processo legal como um dos direitos fundamentais assegurados aos cidadãos.
Mais do que um meio de atuação da soberania do Estado, o processo assumiu a categoria de garantia de acesso do cidadão à tutela jurídica declarada e assegurada pelas Constituições. Ressalta-se, portanto, que interesse e tutela relacionam-se juridicamente, uma vez que os interesses representam o direito material, que quando violados necessitam de proteção, e a tutela é concedida pela norma processual.
Dessa forma, quando o jurisdicionado comparece ao Poder Judiciário e requer que uma tutela específica recaia sobre o seu interesse, ele exercita seu direito constitucional e processual de ação.
DO ACESSO A JUSTIÇA
Ninguém mais do que Mauro Capelletti (1988) se debruçou, nos últimos cinquenta anos, sobre a pesquisa e a formação do conceito de “acesso à Justiça” como meta maior de garantia de tutela jurisdicional assegurada aos cidadãos. Na introdução de uma de suas várias obras sobre o tema, escrita em parceria com Bryant Garth, o grande processualista e pensador italiano registrou que:
A expressão ‘acesso à Justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado.
Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.[3]
Para Cintra, Dinamarco e Grinover (1999), o acesso à Justiça não é o simples acesso à jurisdição, mas o acesso à “ordem jurídica justa”, que, por sua vez, é a admissão ao processo, a maneira de ser desse processo (devido processo legal), a justiça das decisões e a efetividade destas decisões (utilidade). Citam, ainda, “o acesso à Justiça é, pois, a ideia central à qual converge toda a oferta constitucional e legal desses princípios e garantias”[4].
A ideia de acesso à Justiça evoluiu paralelamente à passagem da concepção liberal para a concepção social do Estado moderno. De início, a participação do Estado não ia além da declaração formal dos direitos humanos. Nessa época, em que prevalecia como máxima dominante o laissez-faire, todos eram solenemente presumidos iguais e a ordem constitucional se restringia a criar mecanismos de acesso à Justiça, sem maiores preocupações com sua eficiência prática ou efetiva. Diferenças econômicas ou institucionais nem sequer eram cogitadas pelo ordenamento jurídico. Os problemas reais dos indivíduos não chegavam a penetrar no campo das preocupações doutrinárias em torno do Direito Processual.
No século XX, todavia, o coletivo ou social passou a ser a tônica da política governamental e legislativa em todos os países do mundo civilizado, mesmo naqueles em que a ideologia se rotulava de capitalista e liberal ou neoliberal. A política constitucional e as cartas contemporâneas deixaram, então, de atuar como simples tarefa de declarar direitos, refletindo a consciência social dominante, e voltaram-se para a efetivação dos direitos fundamentais.
Assumiu-se, dessa maneira, o encargo não só de defini-los e declará-los, mas também, e principalmente, de garanti-los, tornando-os efetivos e realmente acessíveis a todos. O Estado Social de Direito pôs-se a braços com a tarefa nova de criar mecanismos práticos de operação dos direitos fundamentais.
Nos tempos atuais, o acesso à justiça tem de ser entendido e aplicado como instrumento de efetivação de uma garantia constitucional, assegurando a todos o pleno acesso à tutela jurisdicional, que há de se manifestar sempre como atributo de uma tutela justa. Por oportuno, cabe registrar que o acesso à Justiça é um Direito cívico fundamental, e possui os seguintes propósitos:
- Acesso à Justiça como poder/dever de cidadania;
- Acesso à Justiça como direito à tutela jurisdicional;
- Acesso à Justiça como acesso ao “ordenamento jurídico justo”;
- Acesso à Justiça efetiva e eficaz.
É notória a importância do papel exercido pela tutela jurisdicional coletiva como instrumento do acesso à justiça e como verdadeiro exercício democrático de cidadania. Entretanto, para que tal finalidade seja alcançada, é necessária a superação de certos dogmas da processualidade clássica, cunhados no individualismo.
Com relação às ações coletivas, coube à doutrina e à jurisprudência sua definição. Por seu turno, caracterizam-se como direitos coletivos aqueles que possuem transindividualidade na titularidade do interesse por ele tutelado, ou seja, na qual a titularidade do direito apresenta-se como interesse privado ou individual, contrapondo-se aos interesses públicos e sociais.
Diante desta prerrogativa, as ações serão coletivas porque veiculam pretensões coletivas, sejam estas essencialmente coletivas (interesses difusos e coletivos) ou acidentalmente coletivas (interesses individuais homogêneos) (VIGLIAR, 2001).
No Brasil, a história das ações coletivas liga-se à emergência de novas necessidades decorrentes do compartilhamento de bens e interesses coletivos e sociais. Dentre os principais diplomas legais que versam sobre direitos coletivos, destacam-se a Lei de Ação Popular Constitucional[5], editada em 1965; a Lei Ambiental nº. 6.938/1981; a Lei da Ação Civil Pública (LACP)[6]; o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)[7]; e, sobretudo, o Código de Defesa do Consumidor[8] que, inclusive, ampliou a abrangência da lei de ação civil pública e disciplinou uma nova categoria de direitos, denominada de individuais homogêneos; além da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB), que introduziu várias inovações, inclusive no campo das demandas coletivas.
PRINCIPAIS INSTRUMENTOS PROCESSUAIS PARA A TUTELA DOS INTERESSES METAINDIVIDUAIS
Ressalte-se, primeiramente, como um dos principais instrumentos processuais em nossa legislação, a ação civil pública ou coletiva, prevista inicialmente na Lei nº. 7.347/1985 (LACP) e, posteriormente, na Lei nº. 8.078/1990.
A Lei da Ação Popular (LAP) foi o diploma inaugural concebido especificamente para tutela dos interesses da coletividade, apresentando uma proteção pontual dos direitos metaindividuais que contava com uma legitimação e objetos limitados[9].
Por sua vez, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é um importante instrumento democrático e constitucional de acesso ao Poder Judiciário. Além de princípios que norteiam a tutela dos interesses coletivos, prevê em seu bojo o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX) e a ação de improbidade administrativa, prevista no artigo 37, §4º.
O mandado de segurança coletivo apresenta como principal objetivo a verificação da inconstitucionalidade ou ilegalidade do ato de agente do Poder Público, ou a ele equiparado. Seu cabimento dá-se em relação aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
A ação de improbidade administrativa, regulada pela Lei nº. 8.429, de 02 de junho de 1992, em suma, busca tutelar o direito transindividual dos cidadãos de ter um governo honesto, eficiente e zeloso pelas coisas públicas. Guarda identidade de propósitos com ação civil pública e ação popular, neste aspecto. Contudo, diferencia-se delas pelo seu objeto imediato, que visa punir os responsáveis por ilícito de improbidade, apresentando-se como ação de caráter eminentemente repressivo.
Ainda, no que tange às ações coletivas a Constituição da República Federativa do Brasil atribuiu legitimidade às associações (art. 5º, inciso XXI), e aos sindicatos (art. 8º, inciso III). Em seu art. 232, atribuiu-se legitimidade também aos índios e às suas comunidades e organizações. O rol de legitimados para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade foi ampliado (art. 103). Incumbiu o Ministério Público na função de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127)[10].
Em 07 de dezembro de 1989, foi editada a Lei nº. 7.913 e o legislador disciplinou, pela primeira vez, a utilização da ação coletiva no âmbito do mercado de capitais.
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, as normas processuais reguladas neste diploma legal, juntamente com aquelas previstas na Lei da Ação Civil Pública, passaram a compor o que a doutrina denomina de “direito processual coletivo”, ou “microssistema processual coletivo”.
Consideráveis foram os avanços legislativos operados no País, os quais contribuíram, e contribuirão, para a efetiva e gradual substituição, a médio prazo, das ações individuais pelas coletivas, em consonância com os novos padrões, anseios e conflitos da atual “sociedade de massa”. Entretanto, há um longo caminho a percorrer, para a inserção da tutela coletiva no Brasil como um espaço adequado de participação dos integrantes da coletividade, em especial de grupos minoritários.
A minoria, via de regra, constitui um grupo quantitativamente inferior à maioria. Mas a característica essencial desses grupos não se reduz a termos numéricos, e sim a certas feições estruturais básicas nas inter-relações maioria- minorias, como v.g. a relação de poder, de acordo com a qual se verifica uma superioridade da “maioria” frente a uma minoria, inferior quanto ao poder.
De acordo com as características que envolvem o contexto de relações maioria-minoria, infere-se que o fenômeno “minoria” só se tornou possível ao longo da História humana com o advento do Estado. Com efeito, o Estado é constituído de um povo ocupando um território determinado com soberania própria perante outros grupos estatais, os quais pretendem, de igual modo, o monopólio do poder sobre o seu território e seu povo. Contudo, o povo constitutivo de um Estado dificilmente forma uma nacionalidade única, compondo-se, ao contrário da agregação, de diferentes grupos étnicos. Um desses, ao apropriar-se do poder, impõe suas características culturais sobre os outros, reivindicando a representatividade da nação inteira. Os grupos subordinados formam as minorias.
O poder estatal é, pois, o instrumento mais eficiente de que a maioria numa sociedade dispõe para subjugar as minorias integrantes da mesma sociedade. Vincula-se, certamente, com essa reflexão, a alegação de Wirth (1964): “[…] a gênese das minorias deve ser procurada no fato de que seu território, autoridade política, povo e cultura só raramente coincidem”[11].
Do ponto de vista político, assistimos à ascensão das políticas destinadas a grupos minoritários caracterizados por sexo, raça, etc., que marcam uma fragmentação do debate político no qual o conceito de classe social, que para alguns autores deixa de existir, perde importância no debate político.
O ACESSO À ORDEM JURÍDICA JUSTA
O denominado “Projeto de Florença”, desenvolvido por Cappelletti e Garth (1988) na década de 1970 com o propósito de suscitar reflexões sobre a problemática do acesso à justiça, rendeu uma obra em que são apresentadas soluções práticas para o referido problema, divididas em três “ondas”[12].
A primeira “onda” diz respeito à necessidade de se proporcionar assistência judiciária em favor dos pobres. A segunda “onda” refere-se à necessidade de se viabilizar a tutela eficiente dos interesses difusos. E a terceira “onda” diz respeito à necessidade de se adotar uma concepção mais ampla de acesso à justiça. Tratando especificamente da terceira “onda”, os autores afirmam que “Ela centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas”
Na esteira desse movimento, e com um generoso espírito jurídico, Watanabe (1998) vem sustentando, entre nós, uma ampliação da noção de acesso à justiça:
A problemática do acesso à justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata de possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal; e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa[13]
Com tal compreensão, a garantia constitucional de acesso à justiça deixa de ser simples sinônimo do princípio processual da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, caput, XXXV da Constituição) e passa a ser entendida como garantia de acesso à ordem jurídica justiça, ao direito, à juridicidade.
Aliás, a Constituição da República Portuguesa dispõe, sugestivamente, em seu art. 20º, que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios econômicos”[14].
José Carlos Barbosa Moreira (1988) diz que, a partir da Constituição da República Federativa do Brasil vigente, as “ações coletivas assumiram dimensão jamais vista no Direito Brasileiro. Isso se deve por evidente ao reconhecimento pelo Estado Democrático de Direito dos direitos transindividuais e da importância das formações sociais para a vida democrática nacional”[15] . Assim, faz-se necessário entender os mecanismos para efetivação das tutelas coletivas e a relação entre os legitimados e detentores do direito, já que, ao defender no processo o direito de uma coletividade, a uma das pessoas lesadas, um ente ou pessoa pública estará sendo potencializado o acesso à justiça. Entretanto, existem problemas que devem ser postos em discussão, pois nem todos os titulares de direito poderão se manifestar. E como poderíamos garantir que a representação do legitimado na instrução processual está em conformidade com o que pleiteia o detentor do direito, se não há prévia comunicação entre eles?[16] . O processo coletivo é importantíssimo para garantir o acesso à justiça porque mostra- se como um procedimento adequado e eficiente, para “quebrar barreiras”, mesmo quando esgotadas as possibilidades de ação individual. A tutela do direito, ora desrespeitado que lese uma infinidade de pessoas, pode ser resolvida conjuntamente com menor dispêndio de dinheiro e de tempo com uma única ação coletiva[17].
Nessa ordem de ideias, a crescente democratização da tutela coletiva de direitos de grupos minoritários no Brasil representam instâncias privilegiadas de acesso à ordem jurídica justa, pois possibilitam, na esfera da realização voluntária do direito, a aquisição e o exercício dos mais variados direitos. Com a intervenção e o assessoramento jurídico no caso podem contribuir sobremaneira para a adequada representatividade em ações coletivas, de forma que os impactos tecnológicos são imprescindíveis na potencialização das ações coletivas.
Segundo o Relatório Analítico Propositivo sobre Ações Coletivas no Brasil, publicado pela Sociedade Brasileira de Direito Público (2018), com o uso da metodologia que recorreu a uma combinação de técnicas e estratégias de investigação empírica, a fim de apresentar as dimensões acerca das ações coletivas no Brasil, houve a possibilidade de obter dados quantitativos e qualitativos relevantes e expressivos no que se refere ao recorte temporal pesquisado (janeiro/2007 a 31 de janeiro de 2017). Constatou-se que é possível perceber um uso estratégico das ações coletivas não só pelas associações da sociedade civil, mas sempre associado a outras estratégias de aumento de visibilidade da demanda. O pleito é proposto não com vistas a uma vitória em relação ao resultado, mas considerando os efeitos simbólicos e/ou indiretos causados pelo processo. Portanto, o Poder Judiciário não é visto como o responsável pela solução do problema de direitos em si, mas como um meio para dar amplitude e voz às buscas por direitos.
O uso da ação coletiva, em alguns casos, está associado a muitas outras estratégias para adquirir certa eficiência na garantia do direito coletivo, o que, às vezes, pode não ser adequadamente assegurado apenas pelo uso das ações coletivas. Assim, a questão do momento de apresentação de uma ação coletiva é importante para o resultado obtido por ela para a garantia de direitos. Por isso, a estratégia judicial é apenas uma das etapas, nem sempre a mais importante, da luta pela garantia dos direitos ou contra o desrespeito aos direitos humanos de maneira mais ampla.
Por fim, nas últimas quatro décadas o Brasil desenvolveu um dos sistemas de tutela coletiva mais sofisticados do mundo. Embora a Constituição de 1988 lhe dê guarida, este sistema começou a se desenvolver antes dela e, de certo modo, conheceu sua expansão de maneira relativamente independente. Hoje, um conjunto de leis e de práticas de tutela coletiva confirmam uma das áreas mais importantes do funcionamento da justiça, no Brasil, com um intenso e diversificado nível de atividades não apenas judiciais, mas também extrajudiciais. Apesar de sua reconhecida importância, não dispomos de estudos mais abrangentes sobre o seu funcionamento e impactos positivos ou também sobre seus limites e contradições.
A tutela de direitos se abriu à dimensão coletiva, principalmente por meio de reformas processuais, que legitimaram novos agentes (estatais e sociais), introduziram novas formas de ação e novas regras de tramitação que alargaram o acesso à justiça no Brasil. O resultado inevitável dessa expansão foi a aproximação da justiça e de suas principais instituições com o campo das políticas públicas nas mais diversas áreas. Com a intervenção em políticas, pela via dos direitos difusos e coletivos, os operadores do Direito se viram diante de grandes e inesperados desafios.
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[1] Professora de Direito Processual Civil na Graduação em Direito e Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Campus Franca (SP). Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina.
[2] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Positivo, Oficial de Registro de Imóveis de Colorado do Oeste/RO, e-mail: nafedejesus@hotmail.com.
[3] CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 8.
[4] CINTRA et. tal., 1999, p. 33-35.
[5] Lei nº 4.717/65
[6] Lei nº 7.347/1985
[7] Lei nº 8.069/1990
[8] Lei nº 8.078/1990
[9] ARENHART, 2003, p. 152
[10] No art. 129, o rol de funções institucionais do Ministério Público, entre as quais merece destaque: “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”; e “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade”.
[11] WIRTH, 1964, p. 347-372
[12] CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 67-68.
[13] WATANABE, 1998, p. 128
[14] PORTUGAL, 1976.
[15] MOREIRA, 1988, p. 189
[16] VITORELLI, 2019, p. 13
[17] MENDES et. al., 2018, p. 238

