A ABRANGÊNCIA DA DISCUSSÃO DE MATÉRIA ESPORTIVA NO PODER JUDICIÁRIO

A ABRANGÊNCIA DA DISCUSSÃO DE MATÉRIA ESPORTIVA NO PODER JUDICIÁRIO

23 de fevereiro de 2025 Off Por Cognitio Juris

THE SCOPE OF THE DISCUSSION OF SPORTS MATTERS IN THE JUDICIARY

Artigo submetido em 19 de fevereiro de 2025
Artigo aprovado em 21 de fevereiro de 2025
Artigo publicado em 23 de fevereiro de 2025

Cognitio Juris
Volume 15 – Número 58 – 2025
ISSN 2236-3009
Autor(es):
João Paulo Alves Pinto[1]

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a abrangência da discussão de matéria esportiva no âmbito do Poder Judiciário. O art. 217, § 1º, da CF/88 preceitua que que o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições esportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. Assim, verifica-se que, cumprido o requisito previsto no citado dispositivo constitucional, é possível o Poder Judiciário apreciar tais matérias, o que levanta o debate a respeito dos limites dessa atuação do Poder Judiciário, se ela se limita a um controle de legalidade em sentido estrito, analisando-se aspectos formais/processuais, ou se ela é ampla, adentrando-se no mérito da questão. Com efeito, o presente artigo busca encontrar uma resposta racionalmente fundada a essa questão. 

Palavras-chave: Autonomia das entidades esportivas; Poder Judiciário; Competência.

Abstract: This paper aims to analyze the scope of the discussion of sports matters within the Judiciary. Article 217, § 1 of the Brazilian Federal Constitution of 1988 stipulates that the Judiciary will only admit actions related to the regulation and sports competitions after all instances of sports justice, regulated by law, have been exhausted. Thus, it is observed that, once the requirement set forth in the aforementioned constitutional provision is fulfilled, it is possible for the Judiciary to consider such matters, which raises the debate regarding the limits of this Judiciary action, whether it is restricted to a strict legality control, analyzing formal/procedural aspects, or if it is broad, delving into the merits of the issue. In fact, this article seeks to find a rationally founded answer to this question. 

Keywords: Autonomy of sports entities; Judiciary; Competence.

Sumário: Introdução. 1.Relação entre Estado e esportes no Brasil: aspectos históricos. 2. Do princípio da autonomia das entidades esportivas. 3. Da discussão de matérias esportivas no âmbito do Poder Judiciário. Conclusão. Referências Bibliográficas.

Introdução

Logo após elencar como um dos princípios que regem a ordem jusdesportiva brasileira a autonomia das entidades esportivas, no art. 217, I, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) prevê no § 1º do citado artigo que o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições esportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. 

Nota-se, pois, que, a despeito de a CF/88 ter estabelecido esse requisito para ajuizamento de ação relativa à disciplina e às competições esportivas, ela admite a análise dessas matérias pelo Poder Judiciário, o que levanta o debate a respeito dos limites da atuação do Judiciário nas demandas esportivas. 

De um lado, há doutrinadores que defendem que a atuação do Poder Judiciário nessas causas é ampla, analisando os aspectos formais/processuais e o mérito da questão. 

De outra banda, há aqueles que sustentam que, a exemplo do controle jurisdicional dos atos administrativos, o Poder Judiciário, quando da apreciação de causas referentes à disciplina e às competições esportivas, deve se limitar à análise de legalidade em sentido estrito, perscrutando-se aspectos formais/processuais, como verificação da observância do princípio do contraditório e da ampla defesa, devido processo legal e do duplo grau de jurisdição. 

Diante desse cenário, o presente artigo tem por objetivo apreciar tal questão, à luz do princípio da autonomia das entidades esportivas, com o intuito de oferecer uma resposta racionalmente fundada ao problema. 

Para tanto, far-se-á no primeiro capítulo um breve histórico da regulamentação estatal do esporte no Brasil, destacando o seu forte caráter intervencionista até o advento da CF/88, que consagrou o princípio da autonomia das entidades esportivas. 

Após, passar-se-á ao estudo do referido princípio, com o fito de extrair o seu conteúdo e suas fronteiras. 

Delineado o sentido do princípio da autonomia das entidades esportivas, ao final, será estudada a questão controvertida em apreciação. 

Por fim, cumpre registrar que se optou no presente trabalho por usar o termo “esportivo” em vez de “desportivo”, tendo em vista que essa é a nomenclatura utilizada pela Lei nº 14.597/23 (Lei Geral do Esporte). 

1.Relação entre Estado e esportes no Brasil: aspectos históricos

Antes de analisar o atual arranjo jusdesportivo delineado pela Constituição Federal de 1988 (CF/1998), faz-se mister o estudo da história da relação entre o Estado brasileiro e os esportes, a partir de seu advento no final do século XIX até a promulgação da CF/1988, com o intuito de entender o caminho trilhado pelo Estado brasileiro na regulação do esporte, bem como as razões pelas quais o atual regramento foi fixado nos termos definidos pelo art. 217 da CF/1988.

A propósito dos aspectos históricos dos esportes, tem-se que os esportes no mundo começaram a ser sistematizados na segunda metade do século XIX, com destaque para as universidades inglesas, de onde se originaram algumas modalidades, como o rugby e futebol.

A partir da Inglaterra, eles foram difundidos para o restante do mundo também nesse período, inclusive no Brasil, onde na segunda metade do século XIX já existiam clubes de remo e de cricket, formados essencialmente por imigrantes ingleses. Quanto ao futebol, paixão nacional, a despeito de haver várias versões a respeito dos primórdios desse esporte no país, a versão mais aceita é a de que Charles Miller, após retornar dos estudos na Inglaterra, em 1894, trouxe consigo os equipamentos usados na prática do futebol e buscou difundir o esporte no Brasil.

No início do século XX, os esportes eram praticados no Brasil majoritariamente na dimensão de participação, de forma amadora, até porque a profissionalização não era bem-vista pelos praticantes das modalidades, sob o argumento de que a recompensa pecuniária pela prática esportiva dissipava os ideais olímpicos, o cavalheirismo, a solidariedade e o respeito mútuo, princípios que deveriam nortear a prática esportiva.

Contudo, no que concerne ao futebol, que é o “carro-chefe” dos esportes no Brasil, a profissionalização foi inevitável, no início da década de 30, ante o intenso êxodo de jogadores para o exterior. Como destaca Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga, “o remédio encontrado para reprimir o êxodo dos jogadores para o exterior foi profissionalizar o esporte”.[2]

Com a profissionalização, houve uma estruturação esportiva e, por conseguinte, uma intensa popularização do esporte, especialmente do futebol, por todo o país.

Diante desse fenômeno, o Estado não poderia mais ficar indiferente em relação ao esporte, situação que exigia uma regulamentação, a fim de se garantir maior segurança jurídica aos clubes, dirigentes e atletas.

Soma-se a isso um fato ocorrido no Brasil em 1930, que foi a Revolução de 30, por meio da qual Getúlio Vargas e seus aliados do Exército tomaram o poder, rompendo com a política oligárquica do Café com Leite da República Velha.

Como uma populista, Vargas queria construir a ideia de que seu governo daria espaço ao povo, o fazendo por meio de vários elementos. Ao perceber que o futebol estava se popularizando, Vargas o usou como um desses elementos, passando a intervir no esporte. Estava pavimentado o caminho para a regulamentação do esporte, com um viés fortemente intervencionista por parte do Estado.

O primeiro passo foi a criação da Comissão Nacional de Desportos, por meio do Decreto-Lei nº 1.056 de 19 de janeiro de 1939, o qual ficaria responsável pela realização de estudos sobre a questão esportiva no país e pela apresentação de um projeto de regulamentação. Todos os seus cinco membros foram escolhidos pelo Presidente da República, o que mostra o seu forte caráter intervencionista.

A referida comissão elaborou um projeto de Código Nacional de Desportos, que, dentre outras disposições, criava o Conselho Nacional de Desportos. Ao analisar as funções que seriam atribuídas a esse órgão, João Lyra Filho destaca o forte intervencionismo do Governo nos esportes:

Ainda mais evidentes, como denúncia das tendências àquele tempo frustrado de alternativas, eram, dentre outras, as seguintes  atribuições prometidas ao CND: a) assegurar a  orientação nacionalista das organizações desportivas em todo o país; b) tornar efetivas as intenções oficiais em matéria desportiva; c) controlar permanentemente o modo pelo qual as organizações filiadas colaborem no movimento desportivo nacional; d) resolver, em última instância, os casos relativos a mais de uma organização nacional; e) aprovar ou modificar estatutos de todas as organizações de caráter nacional, encaminhando-as para um tipo uniforme de regulamentação e denominação. O sentido estranhamente intervencionista do projeto extremava-se com força de denominação, sufocando a iniciativa das entidades, desmerecendo o movimento do chão para as alturas, sacrificando a seiva   que   fortalece   o   conteúdo   democrático do desporto.[3]

Após os longos debates finalmente o projeto se tornou lei. Ele deu origem ao Decreto-Lei n.º 3.199/41, que estabeleceu as diretrizes da organização do desporto nacional. O principal ponto do diploma legal foi a criação do Conselho Nacional de Desporto (CND), vinculado ao Ministério da Educação e composto por nove membros nomeados pelo Presidente da República, incumbido de fiscalizar, orientar e incentivar a prática desportiva no país.

Ao CND estavam subordinadas as entidades esportivas nacionais, tais como a CBD (Confederação Brasileira de Desporto), a CBB (Confederação Brasileira de Basquete) e a CBX (Confederação Brasileira de Xadrez). No contexto do intervencionismo, o Conselho criou uma estrutura piramidal, colocando-se no topo da pirâmide, seguido pelas Confederações (âmbito nacional), após, as Federações (âmbito estadual), e na base, encontravam-se os clubes de prática esportiva e as ligas. Vale destacar que esse modelo tinha inspiração na estrutura montada pelo regime fascista de Benito Mussolini na Itália.

Na mesma esteira do ditador italiano, Getúlio Vargas pretendia controlar a atividade desportiva, a fim de verificar se ela estava alinhada aos interesses do governo em relação aos desportos.

A despeito do fim da ditadura varguista em 1945, tal modelo intervencionista perdurou até o advento da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu um outro modelo jusdesportivo, o qual será abordado na sequência, em que trataremos do princípio da autonomia das entidades esportivas.

2. Do princípio da autonomia das entidades esportivas 

Em oposição ao sistema intervencionista que se estabelecera no Brasil desde o Decreto nº 3.199/41, como falado anteriormente, o art. 217, I, da Constituição Federal de 1988 (CF/88) consagrou o princípio da autonomia das entidades esportivas, dirigentes e associações, quanto à sua organização e funcionamento. 

Reforçando esse princípio, o § 1º do citado artigo prevê que o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições esportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça esportiva, regulada em lei, o que representa uma restrição ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, previsto no art. 5º, XXXV, da CF/88. 

Para que se possa determinar o alcance do referido princípio e, assim, compreender qual a luz que ele lança sobre o tema de investigação, faz-se mister definir o seu conteúdo.  

Com efeito, o jurista Álvaro de Melo Filho conceitua o princípio da autonomia das entidades esportivas nos seguintes termos: 

A autonomia desportiva é, à evidência, ínsita ao próprio desporto e cada entidade associativa tem, dentro de certos limites de competência, plenos poderes de autorregulação e autonormatização, resguardadas tão apenas as clássicas áreas de responsabilidade estatal, ordem pública e segurança pública. E não poderia ser de outra forma. Com efeito, é plena a possibilidade de convivência entre a autonomia desportiva e os poderes de ordenação e de controle do Estado. Ou seja, não se negam, não se repelem e nem constituem “deux choses qui hurlent de se trover esemble”, sendo apenas aparente o antagonismo, na medida em que se complementam em harmoniosa interação e inarredável integração, sem transformar o desporto em “assunto de Estado”.[4]

Extrai-se da conceituação feita pelo ilustre jurista que a autonomia das entidades esportivas tem por essência a capacidade de autonormatização, o que, inclusive, está na própria etimologia da palavra “autonomia”, originada do Grego autonomos (auto-de si mesmo + nomos-lei), ou seja, capacidade de se reger por suas próprias leis. O mesmo conceito é dado pelo professor Rafael Fachada, em sua obra Direito Desportivo: uma disciplina autônoma.[5]

Nessa linha de considerações, ao consagrar tal princípio, a CF/88 institui uma barreira à atuação do Estado, outorgando às entidades esportivas o direito de estabelecer suas próprias normas de organização e funcionamento, ou seja, atos interna corporis.

Contudo, vale destacar que tal autonomia não é absoluta, pois a autonomia absoluta é, em verdade, soberania, o que não é o caso. Portanto, as entidades esportivas possuem o direito de se autorregularem dentro de certos limites, como bem destaca a conceituação citada acima são ressalvadas dessa autonomia as áreas clássicas de responsabilidade do Estado, como a ordem pública e a segurança pública.

Assim, cabe aos estudiosos do Direito Esportivo analisar se uma determinada matéria está abrangida pela autonomia das entidades esportivas ou se está na esfera da ordem pública, sendo, pois, objeto de regulação estatal.

Como o escopo do presente trabalho é definir a abrangência da discussão de matéria esportiva no Poder Judiciário, a área que nos interessa é a da disciplina e a das competições esportivas, citada no art. 217, § 1º, da CF/88.

Nesse diapasão, Álvaro de Melo Filho cita algumas matérias que certamente estão no campo da autonomia das entidades esportivas, in verbis[6]: deliberação sobre transferências de atletas, elaboração e coordenação de calendários, profissionalização ou não do esporte que dirigem, organização de campeonatos, número de divisões, períodos e formas de disputas.

Verifica-se que a maior parte das matérias citadas por Álvaro de Melo Filho dizem respeito à disciplina e competições esportivas, razão pela qual a primeira conclusão a que chegamos para elucidação da questão em análise é a de que as áreas citadas no art. 217, § 1º, da CF/88, a saber, a disciplina e competições esportivas, estão abrangidas pela autonomia das entidades esportivas, estando, pois, no campo do direito à autorregulação dessas entidades.

Se tais matérias estão no campo da autonomia das entidades e a Constituição Federal de 1988 não veda o controle jurisdicional sobre elas, apenas estabelece uma barreira, qual seja, o esgotamento das instâncias esportivas, cumpre agora perscrutar em que medida é legítima a apreciação dessas matérias pelo Poder Judiciário, à luz do princípio da autonomia das entidades esportivas, o que será abordado no próximo tópico.

3. Da discussão de matérias esportivas no âmbito do Poder Judiciário

Como falado anteriormente, a matéria de disciplina e competições esportivas está no âmbito da autonomia das entidades esportivas, ou seja, na sua esfera de autorregulação. Contudo, não é vedada a sua apreciação pelo Poder Judiciário, já que o art. 217, § 1º, da CF/88 estabelece apenas requisitos para ela e não vedação. Em sendo assim, em quais termos a atuação do Poder Judiciário nessa matéria pode existir?

A esse respeito, há duas correntes: a primeira defende que o poder de revisão do Poder Judiciário sobre as decisões da Justiça Esportiva é amplo, podendo inclusive adentrar no mérito; já a segunda sustenta que o poder de revisão do Poder Judiciário é restrito, limitando-se a questões formais/processuais.

Com a devida vênia aos que advogam a primeira corrente, entendo que assiste razão à segunda corrente, pelos motivos a seguir expostos.

Em primeiro lugar, o princípio da autonomia das entidades esportivas surgiu como uma forma de proteger a esfera esportiva de influências deletérias do Poder Público, com o fito de instrumentalizar os esportes para projetos político-ideológicos. Nesse contexto, embora ele tenha sido consagrado como uma reação a uma ordem intervencionista que partia do Poder Executivo, desde o Decreto nº 3.199/41, como abordado no primeiro tópico, ele possui o condão de proteger a ordem esportiva de incursões indevidas de todos os poderes do Estado.

Nesse orbe, é notório que a partir da segunda metade do século XX o Poder Judiciário vem ampliando sua esfera de poder e muitas das ações estatais sobre associações e indivíduos não partem dos poderes Executivo e Legislativo, mas do Poder Judiciário.

Com efeito, permitir que o Poder Judiciário revise o mérito das decisões da Justiça Esportiva, decidindo questões relativas a competições e disciplina dos atletas, é esvaziar o princípio da autonomia das entidades esportivas, uma vez que, a despeito de proteger a ordem esportiva do intervencionismo dos poderes Executivo e Legislativo, ela se tornaria vulnerável a incursões indevidas do braço jurisdicional do Leviatã.

O professor Rafael Fachada destaca o risco à autonomia das entidades esportivas ao se preocupar exclusivamente com incursões do Poder Executivo, notadamente em governos autocráticos, já que existem diversas formas de minar a autonomia, in verbis:

Desde Getúlio, o esporte vive contra o leviatã estatal uma constante guerra de dominação e libertação. Embora este estudo se atenha a exemplos de governos ditatoriais por serem de mais fácil percepção, não se deve crer que apenas deste modelo de governo surgem movimentos intervencionistas. Tampouco se pode acreditar que a previsão constitucional é suficiente para garantir a autonomia prática. Em um país onde o Estado exerce tamanha força econômica como no Brasil, é preciso que a preocupação não resida apenas na intervenção política, de fácil percepção e de cristalina proteção. A grave preocupação dos estudiosos da autonomia desportiva deve residir hoje principalmente nas ferramentas econômicas que podem permitir uma interferência. Essa intervenção indireta pode se dar a partir da contratação de patrocínios, através dos quais empresas públicas ou de economia mista passam a patrocinar determinadas equipes ou eventos e, em contrapartida, exigem uma ingerência na administração do patrocinado. A intervenção também pode ocorrer pela forte posição de credor que o Estado brasileiro tem em relação a muitas entidades. Nesse sentido, ao se deparar com uma renegociação de dívidas, também deve ser entendido como medida interventiva a requisição de mudanças estatutárias ou a exigência de investimentos que não guardam relação com o pagamento das dívidas ou com justas demandas de melhoria de governança em sentido amplo. Nessas situações, o interesse do Estado deve equivaler ao de qualquer outro credor: criar ferramentas capazes de fazer o devedor cumprir a obrigação assumida. Assim, impossibilitado de fazer valer algumas de suas ideias de organização interna por via direta (intervenção política), é imaginável que o Estado busque criar uma máscara que se aproveita da situação financeira debilitada das instituições para exigir-lhes tais mudanças (intervenção econômica).[7]

Assim, havendo diversas formas de intervenção nas entidades esportivas, inclusive a econômica, citada por Rafael Fachada, o princípio da autonomia das entidades esportivas deve protegê-las de todo tipo de intervenção indevida do Estado, como a revisão do mérito das decisões da Justiça Esportiva pelo Poder Judiciário.

Outrossim, para além da defesa da Justiça Esportiva com base no princípio da autonomia das entidades esportivas, deve-se ter em conta os fatores funcionais que levaram à sua criação, entendendo-se que seria mais eficiente e atenderia à necessidade de celeridade das demandas esportivas estruturar uma Justiça própria em vez de outorgar à Justiça Comum a competência para sua apreciação. Dentre eles, podemos citar a questão de ser uma matéria específica, fora da grade regular da maioria dos cursos de direito no país, o que demanda profissionais especializados; o congestionamento do Poder Judiciário, que impede que os processos sejam julgados com a celeridade que o dinamismo do esporte exige; e a questão das liminares, incompatíveis com o citado dinamismo do esporte.

Destarte, com o intuito de se preservar a autonomia das entidades esportivas e a eficiência das demandas esportivas, entendo que a revisão de decisões da Justiça Esportiva pelo Poder Judiciário deve se limitar a questões formais/processuais, de controle de legalidade estrita, como a análise de observância do devido processo legal e do oferecimento de oportunidade do exercício de ampla defesa e contraditório.

Conclusão

Após percorrer a história da regulamentação estatal do esporte no Brasil, destacando-se o seu forte caráter intervencionista, verifica-se que o princípio da autonomia das entidades esportivas representou uma grande conquista ao esporte, protegendo a seara esportiva de ingerências estatais indevidas, como ocorrera em outrora. 

Tal proteção se dá não apenas em relação aos poderes Executivo e Legislativo, mas também em relação ao Poder Judiciário, razão pela qual, em virtude desse princípio, não se pode tolerar incursões judiciais no mérito das questões esportivas. 

Ademais, como abordado alhures, as demandas esportivas exigem alguns elementos que somente a justiça esportiva pode lhes conferir, como maior celeridade e especialização técnica, razão pela qual ela possui uma maior adequação para resolver tais questões que o Judiciário. 

Assim, defendeu-se no presente trabalho a tese de que a atuação do Poder Judiciário na apreciação de questões relativas à disciplina e às competições esportivas limita-se ao controle de legalidade estrita, analisando-se apenas os aspectos formais/processuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 20 dez. 2024.

DAVIS, Timothy. What is Sports Law?. Marquette Sports Law Review. 2001.

FACHADA, Rafael Terreiro. Direito Desportivo: uma disciplina autônoma. São Paulo: Autografia, 2021. Edição do Kindle.

LYRA FILHO, João. Introdução ao Direito Desportivo. Rio de Janeiro: Pongetti, 1952

MELO FILHO, Álvaro. O Desporto na Ordem Jurídico-Constitucional Brasileira. São Paulo: Editora Malheiros, 1995.

MELO FILHO, Álvaro. Principiologia Constitucional do Desporto e os Princípios Juslaborais Típicos das Relações Trabalhistas Atleta-Entidade Desportiva. In:  BASTOS, Guilherme Augusto Caputo; BELMONTE, Alexandre Agra; MELLO, Luiz Philippe Vieira de (Orgs.). Os Aspectos Jurídicos da Lei Pelé frente às Alterações da Lei n. 12.395/2011. São Paulo: Ltr, 2013. p. 22-32.

VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da; SOUSA, Fabrício Trindade de. A Evolução do Futebol e das Normas que o Regulamentam: Aspectos Trabalhista-Desportivos. São Paulo: LTr, 2013.


[1] Advogado (OAB/GO 46.948), formado em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG), especialista em Direito Constitucional pela Unibf e em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Damásio de Jesus.

[2] VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da; SOUSA, Fabrício Trindade de. A Evolução do Futebol e das Normas que o Regulamentam: Aspectos Trabalhista-Desportivos. São Paulo: LTr, 2013. P. 32.

[3] LYRA FILHO, João. Introdução ao Direito Desportivo. Rio de Janeiro: Pongetti, 1952.p. 121.

[4] MELO FILHO, Álvaro. Principiologia Constitucional do Desporto e os Princípios Juslaborais Típicos das Relações Trabalhistas Atleta-Entidade Desportiva. In:  BASTOS, Guilherme Augusto Caputo; BELMONTE, Alexandre Agra; MELLO, Luiz Philippe Vieira de (Orgs.). Os Aspectos Jurídicos da Lei Pelé frente às Alterações da Lei n. 12.395/2011. São Paulo: Ltr, 2013. p. 22-32.

[5] FACHADA, Rafael Terreiro. Direito Desportivo: uma disciplina autônoma. São Paulo: Autografia 2021. Edição do Kindle. p. 94.

[6] MELO FILHO, Álvaro. O Desporto na Ordem Jurídico-Constitucional Brasileira. São Paulo: Editora Malheiros, 1995. p.82.

[7] FACHADA, Rafael Terreiro. Direito Desportivo: uma disciplina autônoma. São Paulo: Autografia 2021. Edição do Kindle. p. 94-96.