SUBTRAÇÃO DE COISA VIGIADA: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA TEÓRICA DO CAPÍTULO VII DA OBRA “O CONCEITO DE DIREITO” DE H. L. A. HART
30 de setembro de 2024THEFT OF MONITORED PROPERTY: AN ANALYSIS FROM THE THEORETICAL PERSPECTIVE OF CHAPTER VII OF H.L.A. HART’S “THE CONCEPT OF LAW”
Artigo submetido em 16 de agosto de 2024
Artigo aprovado em 23 de agosto de 2024
Artigo publicado em 30 de setembro de 2024
Cognitio Juris Volume 14 – Número 56 – Setembro de 2024 ISSN 2236-3009 |
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Autor(es): Ligia Penha Stempniewski[1] |
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RESUMO: A relevância da obra de Herbert Lionel Adolphus Hart (1907 – 1992), um dos principais nomes do positivismo jurídico, é inconteste, sendo suas ideias debatidas em escolas de Direito de todo o mundo. As ideias expostas no Capítulo VII de seu livro “O Conceito de Direito” podem ser aplicadas, inclusive, ao Direito Penal brasileiro. O objetivo principal deste artigo é demonstrar ser a situação de furto em estabelecimento comercial com amplo sistema de vigilância um dos “hard cases” de Hart, pois não há consenso na jurisprudência ou na doutrina acerca de tratar-se, ou não, de caso de crime impossível.
Palavras-chave: Positivismo jurídico. Crime impossível. Furto. Vigilância.
ABSTRACT: The relevance of the work of Herbert Lionel Adolphus Hart (1907 – 1992), one of the main figures in legal positivism, is undeniable, with his ideas being discussed in law schools around the world. The ideas presented in Chapter VII of his book “The Concept of Law” can be applied, even, to Brazilian Criminal Law. The main objective of this article is to demonstrate that the situation of theft in a commercial establishment with an extensive surveillance system is one of Hart’s “hard cases,” as there is no consensus in jurisprudence or doctrine regarding whether it is a case of impossible crime or not.
Keywords: Legal positivism. Impossible crime. Theft. Surveillance.
- INTRODUÇÃO
O filósofo do direito e um dos principais nomes do positivismo jurídico Herbert Lionel Adolphus Hart (também conhecido como H. L. A. Hart ou, simplesmente, Hart) nasceu em 18 de julho de 1907 na Inglaterra. Sua obra “O Conceito de Direito” (“The Concept of Law”, no original), publicada pela primeira vez em 1961, é um marco do pensamento jurídico do século XX, tendo sido Hart um dos responsáveis pela aproximação da filosofia da linguagem com o Direito.
H. L. A. Hart influenciou toda uma geração de juristas e suas ideias ainda são discutidas em escolas de Direito mundo afora – não sendo diferente no Brasil do século XXI.
No Capítulo VII de seu livro “O Conceito de Direito”, “Formalismo e Cepticismo sobre as Regras”, o positivista revelou o seu ponto de vista hermenêutico acerca das normas jurídicas, apresentando o conceito de textura aberta do direito.
O enfoque deste artigo será, justamente, retomar as ideias expostas por H. L. A. Hart no supramencionado capítulo da sua obra mais relevante e demonstrar a sua relevância, ainda hoje, para a análise de situações cotidianas que nos são apresentadas no Direito, especialmente no Direito Penal.
Exemplificativamente, tomar-se-á como situação hipotética o caso de um indivíduo que ingressa em um estabelecimento comercial com a intenção de subtrair produtos das gôndolas e prateleiras, mas é surpreendido pelos seguranças do local logo após passar a linha dos caixas sem pagar pelos objetos, pois fora, o tempo todo, observado pelos funcionários através de câmeras de vigilância.
Até hoje, não há consenso na jurisprudência ou na doutrina pátria acerca de representar tal situação (subtração de coisa vigiada) crime de consumação impossível (artigo 17 do Código Penal) ou tentativa de furto (artigo 155, combinado com o artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal) – ou mesmo crime de furto consumado.
Trata-se, assim, como será demonstrado a seguir, de um “caso difícil” ou “hard case” sob a perspectiva teórica de Hart discutida no Capítulo VII de “O Conceito de Direito”, pois o hermeneuta deverá escolher uma das soluções possíveis para análise da tipicidade material da conduta.
- BREVE EXPOSIÇÃO DAS IDEIAS DE H. L. A. HART EM “FORMALISMO E CEPTICISMO SOBRE AS REGRAS” (CAPÍTULO VII DE “O CONCEITO DE DIREITO”)
O propósito do Capítulo VII, inserido na obra O Conceito de Direito”, é encontrar posição intermediária entre o formalismo e o ceticismo, vale dizer, que tanto admita ter a regra aplicação direta e não problemática, para uma maioria de casos repetidos (casos fáceis), quanto conceba que, nos casos difíceis e controversos, a aplicação da regra toma a forma de uma escolha entre alternativas (nestes casos, haverá a discricionariedade do magistrado aplicador da norma).
Para os formalistas, o sistema de regras é completo e plenamente determinado, gerando sempre uma só resposta para cada caso concreto. A tese central do formalismo pode ser resumida, de maneira bastante singela, na seguinte frase: para todo sistema de regras suficientemente desenvolvido, existe uma, e somente uma, resposta correta para cada caso apresentado para decisão, que pode ser determinada pela consulta às regras vigentes e o uso de métodos da ciência jurídica.
Já de acordo com a vertente do ceticismo, as regras são absolutamente indeterminadas, permitindo com que os juízes decidam como bem queiram, sem constrição ou papel central desempenhados pelas regras. Também chamado realismo jurídico norte-americano, com bastante expressão no século XX, a ideia defendida é, principalmente, ser o Direito tudo aquilo que os juízes dizem que ele é. Para os realistas, a ciência jurídica é ciência preditiva, e não descritiva, com foco nas decisões, e não nas regras (afinal, o Direito seria um conjunto de decisões). As regras seriam, assim, infinitamente indeterminadas e os juízes formariam a sua convicção com base em intuições e preferências e, ao final, procurariam uma regra existente no ordenamento jurídico que se encaixasse naquela decisão já tomada pelo magistrado, o que conferiria a ela um verniz de legitimidade.
Hart, por sua vez, ao reconhecer-se em posição intermediária entre os formalistas e os realistas, apresenta o conceito de textura aberta do direito, que parte da ideia de serem necessários padrões gerais para orientar a conduta e culmina na inevitabilidade da discricionariedade.
Para este positivista, na grande maioria das vezes, são utilizados padrões gerais de conduta para influenciar o comportamento das pessoas. São padrões que envolvem uma categoria de pessoas e categoria de ações a que a regra se aplica.
Dois são os expedientes principais para informar padrões gerais de conduta: a legislação, que fixa diretamente a regra que contém o padrão geral de conduta, e o precedente, que se trata de exemplo a partir do qual se extrai uma regra.
Em primeira análise, a determinação da conduta a partir do exemplo pode gerar dúvidas, enquanto a legislação pode parecer mais determinada, por fixar de modo direto a regra. Porém, segundo Hart, essa aparência é enganosa. Isso porque os casos não chegam ao julgador pré-interpretados e as regras não regulam a sua própria aplicação. Para os casos fáceis, a solução será alcançada sem muitas dúvidas; porém, o mesmo não pode ser dito a respeito dos casos difíceis e, em relação a estes últimos, os cânones de interpretação tradicionalmente consagrados não oferecem auxílio.
O filósofo do direito vale-se de um exemplo para melhor esclarecer as diferenças entre casos fáceis e casos difíceis. Suponha haver, no portão de entrada de um parque público, uma placa com os seguintes dizeres: “é proibida a entrada de veículos no parque”. Decerto, não haveria questionamentos acerca da proibição de um automóvel de passeio ingressar no local, tratando-se de um caso (de solução) fácil: a regra, com certeza, aplica-se, e diferentes pessoas que precisassem tomar a decisão chegariam à mesma conclusão. Porém, seria possível que pessoa pedalando uma bicicleta entrasse no parque? E uma ambulância, poderia passar pelo parque? E um carrinho de bebê? Todos estes, para Hart, são casos difíceis, pois pode haver dúvida se a regra se aplica e a solução para todos eles não seria unânime.
Nos casos difíceis, existe conflito de razões, pois a sua solução envolve a escolha entre alternativas, necessariamente, ou seja, privilegiar-se-á uma razão em detrimento às demais. Tomando como exemplo a questão da bicicleta: uma razão defende a proibição da sua entrada, pois é veículo; outra razão pende para a autorização, pois dificilmente arriscaria a segurança dos frequentadores do local e é objeto comumente utilizado em momentos de lazer em parques públicos. Para solucionar este “hard case”, deverá ser feita uma escolha, privilegiando uma razão ou a outra.
Ou seja, para H. L. A. Hart, não em todos os casos (afinal, os casos fáceis são, e devem ser, a maioria), mas nos difíceis, há conflito de razões que abre alternativas e nenhuma alternativa é determinada pela regra – deverá ser feita, necessariamente, uma escolha, sendo inevitável a discricionariedade do juiz.
Daí origina-se o conceito de textura aberta do Direito, que é produto da linguagem humana e do fato de os termos gerais serem indeterminados. Trata-se da possibilidade de indeterminação diante dos casos fronteiriços ou difíceis. Em outras palavras, é a indeterminação potencial que todo enunciado dotado de termos gerais carrega consigo. É importante ressaltar que, diferentemente do célebre positivista Hans Kelsen, Herbert L. A. Hart não considera serem as normas, sempre, indeterminadas. Ele entende terem as normas textura aberta, ou seja, serem os enunciados potencialmente indeterminados. Nos casos fáceis, porém, mostram-se determinados e levam a solução única, não havendo, nestes casos, discricionariedade. Em suma: a indeterminação leva à multiplicidade de alternativas e, esta, leva à discricionariedade.
Qualquer critério utilizado pelo intérprete para escolher uma solução ao invés de outra será, necessariamente, extrajurídico, ou seja, critério não estabelecido pela própria regra e, consequentemente, não obrigatório. Assim, o modo como se aplica uma regra em um caso difícil, de incerteza, não pode ser determinado pela própria regra. Diante disso, o juiz tem duas alternativas: criar uma regra para aquele caso ou escolher uma possível interpretação da regra existente. Existe, neste caso, autorização para a utilização de critérios extrajurídicos de escolha inevitáveis. Qualquer uma das soluções alcançada pelo magistrado será válida perante o Direito.
Por mais incômoda que possa parecer a ideia de inevitabilidade da discricionariedade do juiz, para Hart, é impossível a existência de uma legislação completa e onisciente, pois existe uma relativa ignorância de fato para legislar para casos futuros e relativa indeterminação de propósito (ou finalidade). Ou seja, em sistemas e em períodos diversos, os seres humanos engajam em atitudes diferentes em relação à necessidade de escolha.
A textura aberta, portanto, é uma característica tanto da aplicação do precedente quanto da aplicação da legislação. Nos casos difíceis, o juiz é forçado a fazer uma escolha, revestindo-se, assim, de função criativa, em razão da indeterminação dos termos gerais e da multiplicidade de alternativas. À tal função criativa é dado o nome de discricionariedade: a autorização para escolher entre alternativas de sentido e de solução.
Os cânones de interpretação, sozinhos, não podem solucionar os casos difíceis porque eles próprios contêm termos gerais e indeterminados.
- A TEORIA DE H. L. A. HART APLICADA AO CASO DE FURTO DE COISA VIGIADA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
As ideias de H. L. A. Hart sobre a interpretação das normas pode ser servir como perspectiva teórica para a análise de inúmeras situações encontradas, diariamente, na hermenêutica das regras do Direito brasileiro, inclusive no Direito Penal.
Em razão dos estreitos limites deste trabalho, nos limitaremos à análise de um dos exemplos possíveis: a problemática de ser, ou não, crime impossível (artigo 17 do Código Penal) a subtração de produtos em lojas (normalmente, em supermercados) que contam com amplo sistema de vigilância.
Breve contextualização faz-se necessária para que, depois, entenda-se os motivos pelos quais este caso pode ser considerado um “caso difícil”, segundo os critérios hartianos.
“Crime impossível”, segundo o Código Penal brasileiro vigente, é aquele que não chega, e nunca chegaria, a se consumar devido à ineficácia absoluta do meio ou à impropriedade absoluta do objeto. Na hipótese de crime impossível, o indivíduo que cometeu o “quase-crime” não é responsabilizado penalmente pelos seus atos, nem pela tentativa, ainda que sua intenção tenha sido, de fato, cometer o delito.
Vale recordar considerar-se consumado o crime quando houver total e completa subsunção do fato ao tipo abstratamente previsto. Trata-se da verificação da plenitude do tipo penal; há a presença, na situação fática, de todos os seus elementos. Na tentativa criminosa, por sua vez, a consumação é não ocorre por circunstâncias alheias à vontade do agente. Ou seja, é do desejo do agente que o resultado seja produzido, porém isto não acontece devido a circunstâncias fora de seu alcance.
Fernando Capez explica existirem diversas teorias relativas à punibilidade ou não do crime impossível. Segundo a teoria sintomática, se o agente demonstrou periculosidade, deve ser punido. De acordo com a teoria subjetiva, como o indivíduo demonstra vontade de delinquir, igualmente deve ser punido. Ambas ignoram o fato de o resultado jamais poder ocorrer e mantêm o seu foco no agente. Já a teoria objetiva defende a impossibilidade de punição do indivíduo, porque, objetivamente, não houve perigo para a coletividade. Esta teoria desdobra-se em duas subteorias: a objetiva pura e a temperada. Segundo a primeira, sendo a ineficácia ou a impropriedade absolutas ou relativas há crime impossível. Para a segunda, no entanto, só é crime impossível se forem absolutas – no caso de relativas, haveria a tentativa (artigo 14, inciso II, do Código Penal).
A teoria adotada pelo Código Penal é a objetiva temperada. O que é relevante para a classificação de crime impossível é a conduta, e não a intenção do agente.
Segundo Christiano Jorge Santos, há ineficácia absoluta do meio quando “o instrumento empregado para a consecução da infração penal jamais possibilitará a ocorrência do resultado almejado pelo autor”[2]. Ou seja, o meio utilizado para a prática delitiva, por alguma razão, nunca conseguiria alcançar o objetivo intencionado. É o caso de um indivíduo que, para assassinar um conhecido, desavisadamente usa arma “municiada” de balas de festim. Ainda que a sua intenção seja a de matar outra pessoa, uma vez que o instrumento utilizado nunca, em hipótese alguma (é uma ineficácia absoluta) conseguiria dar cabo à vida de um ser humano, ele não será punido.
No caso de impropriedade absoluta do objeto, falta àquilo ou àquele sobre o qual recai a conduta criminosa a sua essência, impossibilitando a consumação do delito. Segundo Luiz Regis Prado, “ocorre impropriedade absoluta do objeto quando este não existe ou, nas circunstâncias em que se encontra, se torna impossível a consumação”[3]. Alguém que dispare arma de fogo contra um cadáver, sem saber que a pessoa já está morta, com intenção de matá-la, comete crime impossível, já que o objeto material do delito (que neste caso se confunde com a vítima) é absolutamente impróprio. De maneira alguma o delito se consumaria.
Não há como versar sobre o crime impossível e deixar de mencionar os flagrantes esperados e provocados. No flagrante esperado, a polícia recebe a informação de que um delito será cometido e apenas aguarda, preparada, o início da conduta dos agentes delitivos para realizar a prisão em flagrante. Esta maneira de flagrante é válida, uma vez que em nenhum momento os policiais incitaram o cometimento do crime. Já no flagrante preparado, ou provocado, o delito apenas começa a acontecer porque alguém, por vezes um policial, provocou o agente a cometer a prática delitiva. De acordo com o enunciado de súmula nº 145 do E. Supremo Tribunal Federal, este tipo de flagrante é equiparado ao crime impossível, ou seja, o agente não será punido. Isso porque o delito, na realidade, não passou de uma simulação na qual o agente, sem perceber, foi o protagonista. Não há qualquer possibilidade de se consumar.
Christiano Jorge Santos atenta para o fato de a situação do furtador de supermercado vigiado por câmeras e por agentes de segurança não necessariamente classificar crime impossível.
O doutrinador explica que muitos julgados reconhecem que, quando os vigilantes veem alguém ocultando, de qualquer maneira, bens de pretensa subtração e prendem tal indivíduo após a passagem pelos caixas, o que existe, na verdade, é uma farsa. Neste caso, existiria o crime impossível uma vez que os bens patrimoniais que o(s) agente(s) pretendia(m) furtar nunca teriam estado em perigo de fato, uma vez que estavam sempre sendo vigiados por funcionários responsáveis pela segurança do estabelecimento. Deste modo, o meio absolutamente insuficiente impediria a consumação do delito. É a posição de André Luís Callegari, que ensina que, com a adoção da teoria objetiva, a situação do agente previamente vigiado desde o início da sua conduta deve ser reapreciada, pois para essa teoria a razão da punibilidade está no perigo próximo da realização do resultado típico. O citado autor destaca que somente o juiz poderá avaliar o caso concreto verificando a ineficácia ou impropriedade absoluta do objeto, e conclui:
Logo, nos casos em que a conduta do agente é previamente vigiada, é dizer, desde o início é controlada, por exemplo, por agentes de segurança de um estabelecimento comercial, torna-se impossível a consumação do delito (…)[4].
No entanto, é crescente o entendimento de que não necessariamente o delito seria de consumação impossível. Muitas vezes, sua consumação é apenas muito difícil. Ou seja, caso haja a menor possibilidade de o delito ser consumado (por exemplo, se o agente conseguir se desvencilhar dos vigilantes no momento da abordagem), o meio já não é mais absolutamente ineficaz. A relativa ineficácia do meio não caracteriza crime impossível – neste caso, de haver, ainda que remota, possibilidade de consumação do delito, o agente deveria ser punido pela sua tentativa.
A grande maioria dos doutrinadores partilha desta opinião. É o caso de Fernando Capez, que diferencia os casos de crime impossível e tentativa de furto da seguinte maneira:
Loja com sistema antifurto ou com fiscalização de seguranças: indivíduo que se apodera de mercadorias de um supermercado e as esconde sob as vestes, mas, ao sair, desperta suspeitas no segurança, que o aborda; agente que, ao realizar a apreensão de mercadorias, tem a sua ação desde o início acompanhada pelos seguranças do estabelecimento; sujeito que se apropria de mercadorias com etiqueta antifurto. Em todas essas hipóteses, há tentativa de furto[5].
Rogério Sanches Cunha, por sua vez, defende a opinião de dever ser cada caso concreto considerado separadamente para averiguação da absoluta ou relativa ineficácia do meio. O doutrinador também entende que afirmar que qualquer furto em estabelecimento com câmeras de vigilância seria equiparado a crime impossível representaria uma ameaça à segurança, pois agentes delitivos se valeriam desta afirmação para cometer crimes patrimoniais:
Pensar que o sistema de vigilância, por si só, exclui o crime, é fomentar a sorte dos delinquentes que farão desses locais seus preferidos para a prática da subtração, pois, na pior das hipóteses, terão que devolver o que apoderado antes de sair do estabelecimento (eis o castigo …)[6].
Já Luiz Flávio Gomes assemelha a situação ora descrita à de um flagrante esperado. De fato, por muitas vezes os vigilantes receberam informações da Central de Segurança de que um delito aconteceria. Pode-se defender a posição de que apenas aguardaram o momento mais propício para realizar a abordagem, conforme se demonstra a seguir:
Não se trata de hipótese de crime impossível, seja porque o agente desenvolve um meio eficaz, seja porque o objeto existe. A vigilância eletrônica facilita a prisão em flagrante (é flagrante esperado), mas nesse caso não há que se falar em flagrante preparado ou provocado (porque inexiste a figura do agente provocador). Não se pode eliminar a possibilidade, de outro lado, de aplicação do princípio da insignificância (caso a lesão pretendida ao bem jurídico seja ínfima). (…) Conforme as circunstâncias do caso concreto, não sendo o caso de aplicação do princípio da insignificância, deve o juiz analisar concretamente a dispensa da pena (por força do princípio da irrelevância penal do fato (…)[7].
Pessoalmente, partilha-se da posição de que a mera existência de câmeras de vigilância, conjugada com a conduta de seguranças do estabelecimento, não resulta em absoluta ineficácia do meio. Isso porque o crime pode ser consumado, por existir a possibilidade de o furtador desvencilhar-se dos seguranças do estabelecimento e fugir com os bens subtraídos. Portanto, ainda que a consumação do delito seja muito difícil, ela é possível.
Independentemente da solução escolhida pelo intérprete, não há como negar ser o caso apresentado um “hard case”, ou caso difícil, na perspectiva hartiana. Afinal, o artigo 17 do Código Penal, que define o conceito de crime impossível, está eivado de termos gerais e indeterminados: “Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”. Quando deparado com o caso concreto de subtração de objeto de loja que conta com amplo sistema de vigilância, o hermeneuta deverá escolher uma das possíveis interpretações da norma, valendo-se de critérios extrajurídicos, havendo, portanto, inevitável discricionariedade.
Não há solução certa para tal questão, sendo todas elas aceitas pelo Direito. É, de fato, o que tem acontecido na jurisprudência pátria, havendo decisões pela existência de crime impossível nestes casos e tantas outras defendendo a existência do crime de furto (tentado ou consumado, a depender do caso).
Em 02 de setembro de 2009, por exemplo, a Colenda 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu pela absolvição de ré denunciada por tentativa de furto, por entender ter havido crime impossível.
O acórdão restou assim ementado:
FURTO TENTADO. CRIME IMPOSSÍVEL. SUSPEITA. VIGILÂNCIA PERMANENTE SOBRE A ACUSADA. INEFICÁCIA ABSOLUTA DO MEIO. ATIPICIDADE. ABSOLVIÇAO MANTIDA. RECURSO MINISTERIAL IMPROVIDO. (BRASIL. TJRS. Matéria Penal. ACR n. 70027892116/Porto Alegre RS, 5ª Câm. Criminal, Relator: Des. Aramis Nassif, j. 02.09.2009, v.u. Boletim AASP, n. 2658, 14 a 20 de dez. de 2009, p. 5411-5413).
A síntese dos fatos é a seguinte: a ré e sua comparsa tentaram subtrair 103 (cento e três) peças de bijuterias, avaliadas em R$ 1.582,90 (mil, quinhentos e oitenta e dois reais e noventa centavos) de determinada loja, localizada dentro de um shopping center. Após se apossarem da “res furtiva”, colocaram-na sob as suas vestes, saindo do local. A conduta criminosa foi notada por meio do sistema de câmeras de vigilância da loja e foi despachado um fiscal para deter as ladras, que só as alcançou quando elas já se encontravam na via pública, prestes a consumar a infração penal.
A sentença julgou improcedente a ação penal para absolver a ré com fulcro no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal. O Ministério Público interpôs recurso de apelação; porém, a C. 5ª Câmara Criminal do E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou provimento ao apelo ministerial e confirmou a decisão do magistrado sentenciante.
Do voto do Relator Desembargador Aramis Nassif destaca-se:
(…) a decisão monocrática, ao reconhecer a excludente de tipicidade do Crime Impossível, observou atentamente os preceitos legais do Direito Penal Mínimo e Democrático. (…) trata-se de conduta atípica decorrente da absoluta ineficácia do meio. (…) Diante das declarações da única testemunha ouvida em juízo, parece incontestável que o ilícito de furto, em face da permanente vigilância promovida pelo sistema de segurança, jamais se consumaria. Logo, trata-se da figura penal do Crime Impossível, prevista no art. 17 do CP, também denominada tentativa inidônea em virtude da inexistência de qualquer risco ao bem jurídico tutelado. (…) Assim, os bens em questão nunca saíram da esfera de vigilância da vítima, que poderia, a qualquer momento, impedir a consumação final do ilícito.
Porém, solução diametralmente oposta para caso praticamente idêntico foi alcançada pela C. 15ª Câmara de Direito Criminal do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em caso de relatoria da Desembargadora Gilda Alves Barbosa Diodatti.
Assim restou ementado o acórdão:
FURTO SIMPLES. APELAÇÃO DEFENSIVA. ABSOLVIÇÃO POR CRIME IMPOSSÍVEL. IMPOSSIBILIDADE. EFICÁCIA DO MEIO EMPREGADO PELO AGENTE. CONDENAÇÃO MANTIDA. Representante da empresa vítima, após visualizar pelo monitoramento o apossamento de carnes pelo réu e a passagem pelos caixas sem proceder ao pagamento delas, deteve o réu na saída do supermercado, na posse da res. Policiais militares, acionados, compareceram ao local e depararam-se com o réu detido em poder da res. Acusado, silente na fase policial, confessou em juízo o cometimento do furto. Provas harmônicas e robustas. Sistema de monitoramento que, por si só, não assegura a ineficácia absoluta do meio empregado pelo agente, que, no caso dos autos, foi detido do lado externo do estabelecimento. Monitoramento eletrônico que pode não alcançar todo espaço do estabelecimento e tampouco é ininterruptamente acompanhado. Súmula 567 do STJ. Condenação mantida. PENAS. Base fixada em 1/4 (um quarto) acima do mínimo legal, ante os maus antecedentes do réu, aos quais não se aplica o período depurador previsto no artigo 64, I, do Código Penal, e que se mostram relevantes (condenações por crimes contra o patrimônio) e referem-se à data não muito longínqua dos fatos criminosos (02/07/1999, 07/11/2002 e 29/05/2007). Na segunda etapa, ante a preponderância da múltipla reincidência específica do réu (oito condenações) sobre a confissão espontânea, afigurou-se correto o aumento das penas, cujo percentual de acréscimo adotado na origem (dobro) fica reduzido para 2/3 (dois terços), mais proporcional ao caso; na terceira e última fase, à míngua de minorantes e majorantes, as penas consolidam-se em 2 (dois) anos e 1 (um) mês de reclusão e 20 (vinte) dias-multa mínimos, sem reconhecimento da tentativa, porquanto o réu inverteu para si a posse das mercadorias e deixou o local, sendo detido no lado externo do estabelecimento. Aplicação da teoria da “amotio” ou “apprehensio”. Penas reduzidas. BENEFÍCIOS LEGAIS E REGIME PRISIONAL. As circunstâncias judiciais desfavoráveis do réu e sua múltipla reincidência em crime doloso, específica inclusive, impedem a aplicação de penas alternativas, a concessão do sursis penal e a incidência do privilégio, justificando a fixação do regime inicial fechado, ainda que considerado o período de prisão cautelar do acusado, que não altera as circunstâncias subjetivas do agente (artigos 33, §§ 2º e 3º, 44, II e III, 77, I e II, e 155, § 2º, todos do Código Penal, e Súmula 269 do STJ, contrario sensu). Regime prisional mantido. Apelo defensivo provido em parte, para redimensionar as penas do réu Francisco Lopes Freire para 2 (dois) anos e 1 (um) mês de reclusão e 20 (vinte) dias-multa mínimos; mantida, no mais, a r. sentença, com determinação e expedição de ofício de recomendação[8].
Destaca-se o seguinte trecho do v. acórdão supramencionado:
E, com a devida vênia à douta Defesa, não há que se falar em absolvição por atipicidade material da conduta, ante o alegado crime impossível (CP, art. 17). Isso porque, no caso dos autos, não restou comprovada a ineficácia absoluta do meio empregado pelo agente. Ao revés, a prova coligida bem demonstrou o efetivo risco ao bem jurídico tutelado pela norma penal patrimônio, tanto é que o réu, passando-se por cliente, ingressou no supermercado, apossou-se de peças de carne, acondicionou-as em sacola que trazia consigo, pegou alguns pacotes de pão e, então, passou pelos caixas, efetuando o pagamento somente destes últimos, ao que fora detido do lado externo do estabelecimento, na posse da res furtiva, graças à diligente ação de um dos funcionários da empresa-vítima. Ora, não fosse a pronta reação do funcionário, a res furtiva não teria sido recuperada. Ademais, como bem destacado pelo r. Juízo a quo e pela douta Procuradoria-Geral de Justiça (fl. 253), a existência de monitoramento eletrônico, por si só, não atesta a ineficácia absoluta do meio empregado pelo agente (Súmula 567 do STJ).
Inúmeros outros exemplos podem ser encontrados na jurisprudência pátria, tanto de reconhecimento de atipicidade material da conduta de subtrair bens de estabelecimento com amplo sistema de vigilância em razão de tratar-se de crime impossível (de furto), quanto de rejeição da tese do crime impossível ante o entendimento de ser eficaz o meio empregado pelo agente, condenando-se o agente ou confirmando tal condenação.
Para Hart, estamos diante de um “caso difícil”, ou “hard case”, de modo que ambas as soluções, ainda que antagônicas, são válidas perante o Direito, pois o intérprete da norma vale-se de elementos extrajurídicos para escolher uma das interpretações possíveis da regra a ser aplicada (no caso, o artigo 17 do Código Penal brasileiro), quando cotejada com o caso de subtração de coisa vigiada.
- CONSIDERAÇÕES FINAIS
O positivista e professor H. L. A. Hart, em sua obra “O Conceito de Direito”, especialmente no Capítulo VII (“Formalismo e cepticismo acerca das regras”), expõe a sua preocupação com o significado das expressões que povoam o universo dos juristas, colocando em relevo o papel central atribuído à linguagem do Direito.
Para ele, o Direito tem textura aberta, pois os limites naturais da linguagem impedem que o Direito se expresse sempre através de enunciados unívocos, gerando a necessidade de o intérprete buscar a complementação de significado dos termos não claros. Para Hart, portanto, as regras jurídicas são relativamente indeterminadas: para a maioria dos casos, classificados como fáceis, haverá uma única solução; porém, nos casos difíceis, o intérprete deverá selecionar um dos significados possíveis da norma, valendo-se da discricionariedade a ele conferida.
As ideias do positivista inglês podem servir de substrato teórico para a análise de diferentes situações na hermenêutica do direito brasileiro, inclusive no Direito Penal.
Toma-se como exemplo a célebre situação de um indivíduo ingressar em um estabelecimento com o intuito de furtar produtos das prateleiras. No caso concreto, tal estabelecimento conta com amplo sistema de vigilância, com câmeras monitorando o seu interior a todo momento, cujo conteúdo é constantemente assistido e analisado por equipe de segurança. Ainda, há funcionários destacados exclusivamente para patrulhar os corredores e eventualmente abordar pessoas que tentem sair do estabelecimento com bens da loja, sem pagar por eles. Na hipótese de uma pessoa colocar alguns bens dentro de uma bolsa, por exemplo, passar pela linha dos caixas sem efetuar o pagamento e, em seguida, ser abordada por funcionários da loja, que a todo momento a acompanhavam pelas câmeras de segurança, observando sua conduta, que, em tese, subsume-se àquela descrita no artigo 155 do Código Penal, haverá crime impossível?
Esta situação nada mais é do que um “caso difícil” (ou “hard case”) para H. L. A. Hart. O artigo 17 do Código Penal, que define o crime impossível para o Direito Penal pátrio, conta com termos gerais cuja indeterminação se revela na situação hipotética apresentada. O juiz, neste caso, deverá escolher uma dentre tantas interpretações possíveis para os termos “ineficácia absoluta do meio” e decidir se o meio empregado pelo agente poderia ou não resultar na consumação do delito patrimonial.
Frise-se não haver solução correta ou mais adequada a ser utilizada. Sequer a existência do enunciado de súmula nº 567 do E. Superior Tribunal de Justiça (“Sistema de vigilância realizado por monitoramento eletrônico ou por existência de segurança no interior de estabelecimento comercial, por si só, não torna impossível a configuração do crime de furto”) sedimentou a questão, havendo decisões antagônicas proferidas por magistrados de primeiro grau de jurisdição e por desembargadores nos Egrégios Tribunais de Justiça do país.
O trabalho do professor de Teoria de Direito da Universidade de Oxford, de 1952 a 1968, assim, demonstra-se extremamente atual e contemporâneo, podendo servir de substrato teórico para a análise da casuística brasileira.
- REFERÊNCIAS
CALLEGARI, André Luís. Crime impossível: furto em estabelecimento vigiado ou com sistema de segurança. Boletim nº 69 do IBCCRIM. Disponível em: ago. 1998. Acesso em: 10 de novembro de 2023.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2007.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2009.
CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal: parte especial. Vol. 3. São Paulo: RT, 2008.
GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito penal: parte geral. Vol. 2. São Paulo: RT, 2009.
HART, H. L. A. O conceito de direito. Trad. por Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d.
KOZICKI, Katya, PUGLIESE, William. O conceito de direito em Hart. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/137/edicao-1/o-conceito-de-direito-em-hart
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. SANTOS, Christiano Jorge. Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
[1] Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo.
[2] SANTOS, Christiano Jorge. Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. P. 86
[3] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. P. 430.
[4] CALLEGARI, André Luís. Crime impossível: furto em estabelecimento vigiado ou com sistema de segurança. Disponível em: ago. 1998.
[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. 2. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 405-406.
[6] CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal: parte especial. Vol. 3. São Paulo: RT, 2008, p. 120.
[7] GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito penal: parte geral. Vol. 2. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 360.
[8] TJSP; Apelação Criminal 1500814-76.2023.8.26.0536; Relator (a): Gilda Alves Barbosa Diodatti; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Praia Grande – 2ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 08/08/2023; Data de Registro: 08/08/2023