NATUREZA JURÍDICA DAS CRIPTOMOEDAS E A INTERSECÇÃO COM O CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO
30 de setembro de 2024LEGAL NATURE OF CRYPTOCURRENCIES AND THE INTERSECTION WITH THE CRIME OF MONEY LAUNDERING
Artigo submetido em 15 de agosto de 2024
Artigo aprovado em 23 de agosto de 2024
Artigo publicado em 30 de setembro de 2024
Cognitio Juris Volume 14 – Número 56 – Setembro de 2024 ISSN 2236-3009 |
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RESUMO: Este trabalho visa identificar a natureza jurídica das criptomoedas no mercado econômico global, para uma análise comparativa em relação a legislação brasileira. Começando com definições e características das criptomoedas, é realizada uma análise das legislações pertinentes e sua adequação aos conceitos jurídicos estabelecidos, incluindo o potencial envolvimento no crime de lavagem de dinheiro. A pesquisa da Crypto Crime Report 2024, estudo recente da Chainanlysis, demonstra uma redução de 30% no volume de criptomoedas transacionadas para fins de lavagem de dinheiro, no comparativo entre os anos de 2023 e 2022, foram lavados por criminosos US$ 22,2 bilhões em criptomoedas em 2023, e US$ 31,5 bilhões em 2022, sendo este último considerado recorde histórico. Outrossim, explora-se o conceito de dinheiro e moeda, contextualizando as criptomoedas no sistema financeiro. Aprofunda-se na tecnologia blockchain, revelando suas utilidades além das criptomoedas. A investigação aborda as características específicas e funcionamento das criptomoedas, destacando sua integração ao cenário econômico e jurídico brasileiro, com foco na regulamentação atual e na falta de um regime específico. Contempla-se as implicações legais, incluindo desafios de segurança e privacidade, e seu uso em atividades ilícitas. Conclui-se ressaltando a importância de uma abordagem regulatória equilibrada e adaptável para lidar com a natureza inovadora das criptomoedas, protegendo consumidores e a integridade financeira.
Palavras-chave: Criptomoedas; Natureza jurídica; Regulamentação; Lavagem de dinheiro.
ABSTRACT: This work aims to identify the legal nature of cryptocurrencies in the global economic market, for a comparative analysis in relation to Brazilian legislation. Starting with definitions and characteristics of cryptocurrencies, an analysis of the relevant legislation and its adequacy to established legal concepts is carried out, including the potential involvement in the crime of money laundering. Research by Crypto Crime Report 2024, a recent study by Chainanlysis, demonstrates a 30% reduction in the volume of cryptocurrencies transacted for money laundering purposes, in the comparison between the years 2023 and 2022, US$22.2 was laundered by criminals billion in cryptocurrencies in 2023, and US$31.5 billion in 2022, the latter being considered a historic record. Furthermore, the concept of money and currency is explored, contextualizing cryptocurrencies in the financial system. It delves deeper into blockchain technology, revealing its uses beyond cryptocurrencies. The investigation addresses the specific characteristics and functioning of cryptocurrencies, highlighting their integration into the Brazilian economic and legal scenario, focusing on current regulation and the lack of a specific regime. Legal implications are considered, including security and privacy challenges, and their use in illicit activities. It concludes by highlighting the importance of a balanced and adaptive regulatory approach to dealing with the innovative nature of cryptocurrencies, protecting consumers and financial integrity.
Keywords: Cryptocurrencies; Legal Nature; Regulation; Money Laundering.
INTRODUÇÃO
Este estudo abordou a emergente e complexa esfera das criptomoedas, uma inovação financeira que desafiou as convenções tradicionais de transações monetárias desde sua concepção no século XXI. Com o lançamento do Bitcoin em 2009, as criptomoedas não apenas introduziram um novo meio de pagamento, mas também incitaram debates globais sobre suas implicações econômicas e jurídicas. Este cenário foi particularmente intrigante no Brasil, onde a adoção crescente desses ativos digitais confrontou um ordenamento jurídico ainda não adaptado para abarcar suas especificidades. Este panorama conduziu a uma investigação abrangente, explorando a natureza jurídica das criptomoedas dentro do contexto econômico mundial e específico do Brasil.
Central para a pesquisa foi a questão: Qual é a natureza jurídica da criptomoeda no mercado econômico? Esta indagação ressaltou a relevância do estudo, dado o impacto significativo das criptomoedas nas esferas jurídica e econômica. A investigação foi impulsionada pela necessidade de esclarecer os aspectos legais e econômicos das criptomoedas, considerando o interesse crescente do público e a lacuna de informações confiáveis e regulamentações claras, especialmente em território brasileiro.
A metodologia adotada consistiu em uma pesquisa bibliográfica extensiva e qualitativa, empregando um método dedutivo. A análise centrou-se em fontes acadêmicas, legislações, e estudos de caso pertinentes, visando compreender e interpretar a dinâmica das criptomoedas. A investigação incluiu uma avaliação detalhada do impacto destes ativos digitais no sistema jurídico e econômico, tanto globalmente quanto no contexto brasileiro.
Este artigo está cuidadosamente organizado em quatro seções principais. A primeira explora o surgimento e as características essenciais das criptomoedas dentro do contexto brasileiro, destacando sua evolução e impacto inicial. A segunda seção analisa a natureza jurídica das criptomoedas, investigando como elas se alinham ou desafiam o quadro legal existente. Na terceira seção, é apresentada uma análise detalhada da situação regulatória atual das criptomoedas no Brasil, destacando tanto os avanços quanto os desafios enfrentados. Por fim, a quarta seção investiga a relação entre criptomoedas e crimes financeiros, com ênfase na lavagem de dinheiro, discutindo como as propriedades únicas desses ativos digitais podem ser exploradas em atividades ilícitas e os esforços regulatórios para mitigar tais riscos.
As contribuições deste estudo foram significativas. Proporcionou insights valiosos para investidores, reguladores e o público em geral, esclarecendo a natureza jurídica das criptomoedas e fomentando um entendimento mais profundo desses ativos emergentes. Além disso, o estudo apontou direções para uma regulamentação mais efetiva e informada no Brasil, contribuindo para o fortalecimento da segurança jurídica e financeira em um mercado cada vez mais dominado por essas inovações digitais.
2 ADVENTO DAS CRIPTOMOEDAS NO BRASIL E SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
O Brasil detém características, em seu âmago, pela cultura da bancarização e da financeirização, o que representa notadamente a interferência das organizações financeiras nas relações econômicas. Espontaneamente, quando se pensa uma articulação econômica social contemporânea, instantaneamente os bancos se colocam no centro da discussão, ao passo que o agente monetário, enquanto norma geral, se insere no sistema bancário (MAMONA et. al, 2019).
Nesse contexto, as relações econômicas são mediadas pelas inúmeras instituições bancárias brasileiras. Os bancos, dessa forma, assumem uma função central na economia: a título de exemplo, acontece episódios em que particulares pretendem desenvolver um negócio, sendo efetivado somente com a aprovação de um banco, uma vez que é neste que o montante é assegurado, investido e negociado. Por sua vez, os bancos são controlados pelo Banco Central do Brasil, que se refere a uma autarquia governamental do Ministério da Economia, onde a moeda oficial brasileira é lançada.
O povo brasileiro está acostumado com a centralização contínua da economia; com o Estado monitorando as relações econômicas; com a burocracia que provoca sentimento de proteção, afinal de contas, tendo uma instituição responsável pela centralização econômica, sabe-se a quem direcionar queixas de fraudes ou ainda de atividades criminosas contra a propriedade privada, ordem econômica, sistema financeiro pátrio, etc.
Entretanto, no ano de 2008, criou-se uma nova tecnologia que, ainda que tenha o objetivo de movimentar a política monetária, não é passível, ao menos por enquanto, de uma fiscalização central: as denominadas criptomoedas, criados por Satoshi Nakamoto.
Com isso, concomitante às ideias de Andrade (2017, p. 125):
As criptomoedas – tais como os conhecidos bitcoins, correspondem a uma espécie de valor virtual, sem garantias em valores reais e desvinculada de qualquer autoridade central, que pode ser utilizada tanto como meio de pagamento ou investimento. Esses ativos virtuais, presentes apenas na rede de computadores, são transacionados mediante registro no blockchain (um banco de dados também virtual, próprio de cada criptoativo, e que armazena publicamente todo o histórico de todas as transações já realizadas com aquele ativo virtual específico), que é composto de códigos de criptografia encadeados, denominados hashes.
Em suma, esta nova tecnologia, que é desarticulada da centralidade governamental, intenciona a promoção da conquista de movimentações financeiras diretas entre os sujeitos, que teriam independência e privacidade para isso. Nesse cenário de revolução, ressaltou-se os bitcoins, que é a criptomoeda mais popular do mundo. Essa criptomoeda tem três particularidades fundamentalmente importantes para esse trabalho, que serão descritas abaixo.
As particularidades dos bitcoins podem ser expressas, conforme Estellita, como: a) descentralização; b) pseudoanonimidade; c) globalidade. A primeira – descentralização, refere-se à probabilidade de movimentações financeiras particulares, sem que haja mediação de uma organização ou governo. Relaciona-se a uma categoria de transação financeira amplamente nomeada de peer-to-peer, isto é, de ponto a ponto, que por conta da simplicidade da transação, por ser diretiva, acarreta certas vantagens, a exemplo da ausência de taxas bancárias (que por vezes são excessivas) e limitação de valores e tempo para negociações (que também são definidas e estabelecidas pelos bancos) (ESTELLITA, 2019).
Para mais, em circunstância da desarticulação normativa da economia tradicional, os bitcoins possibilitam autonomia econômica, uma vez que as quantidades são estabelecidas pelo mercado e, por enquanto, não são fiscalizadas ou mantidas por nenhuma agência da Administração Pública pátria.
A segunda particularidade se refere à privacidade intrínseca às operações que abrangem as criptomoedas. Ao passo que para efetivar movimentações bancárias, em que se utiliza a moeda tradicional, é indispensável abrir uma conta em algum banco, acrescido das documentações necessárias para essa efetivação, como tendo posse de documentos pessoais; já no caso de bitcoins “[…] a pessoa não tem de se identificar e basta o acesso à internet e a um cliente de BTC para gerar um par de chaves e um endereço e ter acesso a transações” (ESTELLITA, 2019, p. 6).
Para tanto, tem-se uma estrutura plenamente anônima, pois um sujeito que tem acesso à internet, pode se apresentar sem necessariamente ter os documentos básicos de identificação, podendo realizar efetivas movimentações utilizando bitcoins caso contatasse outra pessoa utilizando a mesma criptomoeda.
Entretanto, na realidade, não é dessa forma que sucede. Como exposto, todas as movimentações financeiras necessitam de um banco de dados, no caso do nomeado de blockchain, onde todas as ações efetivadas com as criptomoedas são registradas publicamente. Em sua produção, Bortoletto e Freitas (2019, p. 67) apontam que o blockhain:
Pode ser armazenado como arquivo ou banco de dados simples. A Bitcoin, por exemplo, utiliza-se do banco de dados LevelDB do Google. Os blocos são interligados, ou seja, cada bloco se refere ao bloco anterior da cadeia, assim, é frequentemente visualizado como um empilhado vertical, com blocos sobrepostos uns sobre os outros e o primeiro servindo de base. Essa forma de visualização resulta em termos como “altura” para se referir a distância entre o primeiro e o último bloco e “topo” ou “ponta” para se referir aos blocos mais recentes. Essa interligação gera um efeito cascata, o que garante que uma vez que um bloco tenha muitas gerações depois dele, ele não poderá ser alterado sem forçar um recálculo de todos os blocos subsequentes, dessa forma, tal recálculo exigiria uma computação extremamente potente, portanto, a existência de uma longa cadeia de blocos torna o blockchain imutável e, assim, garante a segurança das transações com criptomoedas.
Ou seja, quaisquer movimentações que circundam a moeda digital são registradas de modo público, encontram-se dispostas para a identificação de qualquer sujeito em um sistema permanente e, com isso, é favorecida de transparência e privacidade. Não se efetiva, entretanto, como um sistema puramente anônimo, visto que, com movimentações financeiras frequentes, é permitido identificar quais são os usuários pertencentes a elas através do cruzamento de dados (ANDRADE, 2017).
Há possibilidade de cruzamento de dados, principalmente por meio da Exchange, que se refere a uma corretora de valores em criptomoedas. Nestas, há o lançamento do sistema utilizado pelo sujeito que deposita ou saca dinheiro nas agências, responsáveis por converter os valores de bitcoins na moeda brasileira (ANDRADE, 2017).
Finalmente, a terceira característica dos bitcoins diz respeito à globalidade. Isto é, qualquer sujeito em qualquer lugar do mundo pode fazer transações com os bitcoins, não tendo limite de usuários com entrada no sistema nem mesmo do local em que se acessa (a não ser, obviamente, a indispensável inclusão no sistema mundial de computadores). As movimentações econômicas com bitcoins são mais rápidas e de custo reduzido, sem encontrar obstáculos intrínsecos aos bancos nacionais.
Portanto, a partir desse percurso histórico, em que se dedicou a enfatizar os principais conceitos e elementos pertinentes a este trabalho, pretende-se, posteriormente, desenvolver sobre os esforços para se normatizar as criptomoedas, em especial os bitcoins, no cenário social brasileiro.
3 NATUREZA JURÍDICA DAS CRIPTOMOEDAS
As recentes inovações tecnológicas têm apresentado múltiplos desafios aos sistemas jurídicos ao redor do mundo, sendo particularmente complexo o desafio imposto pelas criptomoedas. Esses ativos virtuais possuem características únicas, não se limitando apenas à emissão de novas unidades de moeda virtual. Cada criptomoeda pode ter um propósito distinto, variando de um meio de pagamento até um elemento vital para blockchains voltados a soluções empresariais. Desde o surgimento do primeiro Bitcoin em 2009, no bloco inicial, tem havido debates globais acerca da natureza jurídica dessas moedas virtuais (OLIVEIRA, 2021).
Além disso, Oliveira (2021) ressalta que diferentes nações têm abordado a questão das criptomoedas de maneiras diversas, identificando-se principalmente três abordagens. A primeira é a postura mais permissiva, exemplificada pelos Estados Unidos, com estados como Nova Iorque e Califórnia na vanguarda da legislação de criptomoedas. A segunda é a postura mais conservadora e proibitiva, adotada por países como Rússia e China. Por fim, há uma abordagem mais aberta ao debate, que reconhece a necessidade de maior atenção por parte do poder público. Esta última perspectiva é observada em países como Argentina, Reino Unido, Canadá, França e Austrália, que estão mais abertos à discussão sobre o tema.
As criptomoedas se configuram enquanto um acontecimento atual no campo jurídico. Seu alto enredamento e a importância de articulação com a economia, tecnologia e criptografia tornam-nas temáticas quase intangíveis aos juristas. As ínfimas legislações sobre o assunto são, na realidade, embaraçadas e tímidas. Ainda que em um padrão nacional, não há um consenso sobre a natureza jurídica das criptomoedas. A nível nacional, é fundamental compreender as moedas virtuais frente a defesa das leis presentes, resultado de sua ampliação extensa dos últimos tempos.
Para enfatizar a integração da nova tecnologia financeira no sistema jurídico brasileiro, é interessante pensar, inicialmente, sobre as categorizações que se articulam a natureza jurídica, evidenciando principalmente as questões indiscutíveis e frente a isso, adotando uma postura crítica e analítica das problemáticas a respeito do tema.
Maria Helena Diniz (2005, p. 221) determina que natureza jurídica é a “[…] afinidade que um instituto jurídico tem, em diversos pontos, com uma grande categoria jurídica, podendo nela ser incluída a título de classificação”. Com isso, o diálogo sobre a natureza jurídica das criptomoedas se torna imprescindível para sua categorização. Esta possibilitará a compreensão fundamental no campo jurídico, articulado a investigação histórica e econômica, fixando essa tecnologia financeira precisamente.
Valendo-se da sua categorização jurídica incontroversa como bem incorpóreo, móvel, fungível, inconsumível e divisível, seria adequado considerar as moedas virtuais como mercadorias ou commodities. Parte-se de uma investigação histórica do desenvolvimento das moedas para consolidar nessa classificação jurídica. Com isso, as criptomoedas se configuram enquanto moedas-commodities em desenvolvimento.
Ainda que as moedas possam ser classificadas como commodity, esta categorização ainda padece de imprecisão, mesmo que englobando o instrumento de pesquisa, é necessário identificar se é permitido incluí-las em outra subcategoria mais clara, que possibilita sua integração nas regras do direito do Brasil.
Posteriormente, identificar-se-á se na natureza jurídica das moedas virtuais, elas podem ser encaixadas dentro do ordenamento jurídico pátrio. Para que isso aconteça, as moedas precisam passar pelo filtro de condições legais para uma moeda, tornando-se fundamental a existência de dois elementos: o poder liberatório e o curso legal forçado.
Por meio do vocabulário do Banco Central do Brasil, o poder liberatório refere-se à capacidade da moeda, de liberar débitos e realizar pagamentos. Nesse sentido, pode-se afirmar que as criptomoedas são limitadas quanto ao poder liberatório ilimitado e precisa da livre negociação entre os agentes econômicos. Milton Barossi Filho e Rachel Sztajn (2015, p. 683) enfatizam o perigo provocado por essa limitação que desenvolve suas atividades sem o monitoramento de quaisquer autoridades monetárias:
Se as pessoas, livremente, ajustam entre si que determinado bem tem poder liberatório, serve para liquidar obrigações, embora de circulação restrita, pode-se pensar em riscos que cada uma das partes aceita e assume. Os riscos são alocados pelo contrato. Se, porém, a circulação se expande, a falta de controle ou fiscalização pode facilitar o aumento exponencial dos riscos até que se atinja o limite da incerteza.
O curso forçado, nos parâmetros do Banco Central do Brasil se compreende a condição disposta na lei que torna obrigatória a aceitação da cédula ou moedas nacionais nas transações efetuadas no país. No caso brasileiro, esta moeda é o real, com início na Lei nº 9.069/1995, que já no seu primeiro artigo estabelece que o real se torna, a partir do dia 1º de julho de 1994, a moeda oficial do Brasil.
Ante ao exposto, é possível aferir que as criptomoedas possuem uma natureza jurídica semelhante à das commodities, devendo ser examinadas como tal para efeitos de categorização e aplicação das regras vigentes do sistema jurídico brasileiro. A classificação enquanto bem, mercadoria ou commodity, para além de ser legalmente permitida, possibilita uma flexibilidade ainda mais ampla na consolidação de regras, condizendo com a natureza tecnológica, que mesmo não tendo se firmado substancialmente, já exprime seu caráter potencializador e inovador no contexto financeiro e social.
No Brasil, o Banco Central emitiu o comunicado nº 25.306/2014 em 2014, visando esclarecer sobre os riscos relacionados à aquisição e ao uso das denominadas moedas virtuais ou criptografadas. Este comunicado diferenciou tais moedas das “moedas eletrônicas” definidas na Lei nº 12.865/2013, que são recursos armazenados em sistemas eletrônicos permitindo transações de pagamento em moeda nacional (SOUZA, 2018). O Banco Central reafirmou esta posição em 2017, através do Comunicado nº 31.379/2017, mantendo a mesma linha de pensamento desde então.
De acordo com Souza (2018), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) também se pronunciou sobre o assunto, declarando que as criptomoedas não se classificam como valores mobiliários ou ativos financeiros, conforme estabelecido no artigo 2º, inciso V, da Instrução CVM nº 555/14. Em 2018, a CVM emitiu dois Ofícios Circulares, que autorizam investimentos indiretos em criptomoedas, incluindo a aquisição de cotas de fundos e derivativos em mercados estrangeiros regulamentados.
A Receita Federal do Brasil, em seu Manual de Perguntas e Respostas sobre a Declaração do IRPF de 2017, categorizou as “moedas virtuais, bitcoins” como ativos financeiros, devendo ser incluídos na declaração de renda de pessoas físicas (SOUZA, 2018). Posteriormente, em maio de 2019, a Receita Federal divulgou a Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019, estabelecendo a obrigatoriedade de informar operações com criptomoedas (OLIVEIRA, 2021).
O Poder Judiciário brasileiro tem se mantido reservado quanto à classificação jurídica das criptomoedas. Em um caso criminal envolvendo evasão de divisas e lavagem de dinheiro com bitcoins, o Superior Tribunal de Justiça não classificou as criptomoedas como ativos financeiros ou valores mobiliários, excluindo a operação da regulação do Banco Central. Isso indica uma incerteza quanto à disciplina jurídica das criptomoedas no Brasil, sugerindo que a falta de regulamentação pode ser o caminho mais apropriado no momento (HARO e ROSSIGNOLI, 2022).
Internacionalmente, países como Canadá, Estados Unidos, Japão e União Europeia têm avançado na discussão sobre criptomoedas. Como Souza (2018) observa, esses países adotam três abordagens principais na definição da natureza das criptomoedas: os propósitos de uso, a comparação com conceitos jurídicos existentes nos respectivos ordenamentos jurídicos e a natureza e finalidade econômica idealizada por seus desenvolvedores. Segundo Haro e Rossignoli (2022) e Souza (2018), existe uma tendência em classificar as criptomoedas como ativos financeiros, commodities, bens imateriais e, em alguns casos, como moeda.
4 PANORAMA DA REGULAMENTAÇÃO DAS CRIPTOMOEDAS NO BRASIL
A inserção das criptomoedas no sistema econômico global é um fenômeno que reflete a evolução das finanças e a busca por maior autonomia transacional fora do espectro tradicional bancário. À medida que esses ativos digitais conquistam maior relevância, surgem questões pertinentes sobre a melhor forma de integrá-las aos sistemas financeiros nacionais sem comprometer a segurança jurídica e a estabilidade econômica. Este é um desafio particularmente premente para o Brasil, onde a adoção de criptomoedas tem avançado rapidamente, exigindo uma resposta regulatória à altura das complexidades que acompanham a tecnologia blockchain e suas aplicações.
Como já exposto, os bitcoins emergiram como componente de um sistema que, inicialmente, foi cogitado pelos sujeitos como uma oportunidade frente ao domínio dos governos, principalmente das organizações bancárias no cenário financeiro habitual.
Nesse sentido, gradativamente, uma vez que essa criptomoeda ganha espaço no cenário de relações financeiras, em que os sujeitos se interessam cada vez mais em utilizá-la, os governos começaram a se dedicar a construir meios de normatização dos bitcoins. Isso é, ao sentir a ameaça frente à falta de orientação e fiscalização direta da Administração Pública, diferentes alternativas foram criadas para que essa nova tecnologia se inserisse no sistema financeiro habitual.
Nas palavras de Andrade (2017, p. 220):
O reconhecimento do uso dos bitcoins tem sido um processo crescente em diversos países, especialmente alavancado pela rapidez e virtualização dos procedimentos. Nos Estados Unidos, cada Estado possui autonomia para regulação e estabelecimento de legislação financeira, e cada um aborda o uso de bitcoins de forma diferente. Os Estados da Califórnia e Nova York têm sido particularmente agressivos na busca de organizações relacionadas com os bitcoins; enquanto Carolina do Sul e Montana não regulam as empresas de transmissão de dinheiro. Na União Europeia, por exemplo, há uma iniciativa de enquadramento da criptomoeda na modalidade Eletronic Money Directive (2009/110/EC), Payment Services Directive (2007/64/EC).
Com isso, cada nação regulamenta as criptomoedas de forma diferente, no caso dos Estados Unidos, por exemplo, cabe aos estados esse tratamento. Já em Bangladesh, Bolívia, Afeganistão e Equador, a prática das criptomoedas é tida como ilegal; contrário da Holanda, onde os bitcoins não são só legalizados como também incentivados pelo Estado, por meio da Bitcoin City Initiative, que determinou a elaboração de caixas eletrônicos das criptomoedas em Amsterdã (ANDRADE, 2017).
Existem duas propostas legislativas na Câmara dos Deputados, ambas de iniciativa do deputado Aureo Ribeiro, que estão em processo de avaliação conjunta – são os projetos de lei número 2303/2015 e 2060/2019. No Senado Federal, há três propostas correlatas sob exame, identificadas como PL 3825/2019, 3949/2019 e 4207/2020, todas apensadas para análise em maio de 2021 e que compartilham textos similares.
Na exposição de motivos do PL 2303/2015, o referido deputado destaca o tratamento das criptomoedas enquanto arranjos de pagamento, semelhante às milhas aéreas, por meio da seguinte justificativa:
Em certa medida acreditamos que tanto o Banco Central como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) os órgãos do consumidor já tem competência para fiscalizar e regular moedas virtuais. No entanto, entendemos que as legislações que conferem tais atribuições podem ser mais transparentes em relação a tais atribuições, o que evita desnecessários questionamentos judiciais. (BRASIL, 2015)
De outro modo, o relator, em sua exposição, apresentou que, já que as criptomoedas são descentralizadas, ou seja, não são produzidas pelo Banco Central, que é responsável pela produção de moedas no Brasil, regulamentar seu uso no contexto nacional seria o mesmo que facilitar atividade ilegal, a exemplo da lavagem de dinheiro. Para isso, o deputado se assenta na declaração de Joseph Stiglitz, que recebeu o Prêmio Nobel da Economia, à BBC, afirmando que “se as moedas virtuais (digitais ou criptomoedas), se estivessem sujeitas às mesmas regras de transparência aplicáveis ao setor financeiro simplesmente deixariam de existir” (BRASIL, 2015).
Tais projetos de lei atualmente em deliberação no Congresso Nacional têm o objetivo de incorporar ao ordenamento jurídico brasileiro normas pertinentes ao setor de criptomoedas, tendo em vista o desafio que o fenômeno das criptomoedas representa, tanto em termos de segurança quanto de regulamentação econômica. A abordagem proposta nos projetos de lei em questão tende a dissociar o conceito de moeda da classificação das criptomoedas, tratando-as em vez disso como ativos financeiros com potencial de valorização (WANDSCHEER, 2022).
Destaca-se nos textos legislativos a consideração da escassez como uma característica intrínseca das criptomoedas, uma vez que a limitação na oferta é um dos fatores que contribui para sua valorização no contexto econômico global. Esta valorização é avaliada como um indicativo da relevância e do potencial desses ativos digitais em alcançar reconhecimento de mercado. Neste sentido, a proposta legislativa defende que as criptomoedas, que são negociadas em ambientes de livre mercado, devem ser reconhecidas pela sua capacidade de representar valor e não necessariamente pela sua equivalência a moedas convencionais (WANDSCHEER, 2022).
No ano de 2019, foi apresentado um novo projeto de lei com o intuito de estabelecer regulamentos específicos para as criptomoedas. Esse projeto, identificado como PL 2060/2019, propõe que tais ativos digitais passem a ser regulados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), evidenciando a necessidade de uma legislação que também aborde a esfera da responsabilidade civil no contexto criptoativo (WANDSCHEER, 2022).
Em 4 de abril de 2019, o representante do estado do Rio de Janeiro e membro do partido Solidariedade, Deputado Federal Aureo Ribeiro, submeteu à Câmara dos Deputados o referido projeto de lei 2060/2019. Esse projeto tem a finalidade de conferir um enquadramento jurídico distinto às criptomoedas, diferenciando-os dos instrumentos monetários tradicionais em circulação legal. Atualmente, o projeto está sob análise do plenário da casa, conforme determina o artigo 151, III, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) (WANDSCHEER, 2022).
As primeiras versões do projeto de lei classificam as criptomoedas não apenas como uma forma de pagamento ou reserva de valor, mas também como títulos mobiliários. Além disso, o projeto de lei visa a abordagem de questões penais, como por exemplo, a proposta de agravamento das penas para crimes financeiros associados a esquemas de pirâmide, e outras fraudes vinculadas ao uso indevido de criptomoedas (WANDSCHEER, 2022).
Na seção conclusiva do projeto de lei em debate, é apresentada uma exposição justificativa que sublinha a importância da regulamentação das criptomoedas no país. O documento enfatiza que os avanços tecnológicos têm o potencial de criar um ambiente financeiro mais avançado e eficiente, graças à adoção da tecnologia blockchain, que promove maior velocidade e transparência no âmbito do Sistema Financeiro Nacional. De forma concisa, a proposição legislativa é vista como uma solução econômica às expectativas da sociedade (WANDSCHEER, 2022). O projeto também destaca uma variedade de vantagens que a regulamentação das criptomoedas e tokens digitais pode trazer:
Os benefícios da regulação para utilização das Criptomoedas e Tokens Virtuais são diversos. Essencialmente segura, a tecnologia, quando fomentada em ambiente regulado, constitui elemento instrumental à redução de fraudes nas relações comerciais, dada a imutabilidade de sua cadeia de blocos de dados. Serve, ademais, por seu caráter público, ao combate à lavagem de dinheiro e à corrupção, utilidade que se mostra premente no atual contexto brasileiro (PL 2060/2019).
Finalmente, é reconhecido que o esforço de regulamentação das criptomoedas está sendo considerado por diversos países e requer uma abordagem supranacional devido às limitações de uma regulação que seja apenas nacional, considerando o escopo e a natureza internacional dessas operações. A regulação interna não pode, isoladamente, endereçar o uso crescente da tecnologia e seu aspecto transfronteiriço, que são marcas distintivas das criptomoedas e da atração de investimentos e atividades financeiras internacionais além das tradicionais (CVM) (WANDSCHEER, 2022).
No ano de 2021, o Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, Arthur Lira (PP-AL), consolidou a unificação dos projetos de lei sobre criptomoedas (Projeto de Lei 2303/2015 e Projeto de Lei 2060/2019) sob sua autoridade, conforme estabelecem os artigos 142 e 143, II, b, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021). No Senado Federal, o Senador Flávio Arns (REDE/PR) introduziu um novo projeto de lei, o número 3825 de 2019, que propõe normas para os serviços relativos a transações realizadas com criptomoedas, especialmente em plataformas eletrônicas de negociação.
O escopo do projeto de lei mencionado abrange três áreas principais: primeiramente, a regulamentação do mercado de criptomoedas; em segundo lugar, a implementação de um sistema de licenciamento para as plataformas de negociação de criptomoedas, conhecidas como exchanges; e, por fim, a instituição de medidas para o combate à lavagem de dinheiro e outras atividades ilícitas associadas à gestão fraudulenta de criptomoedas (WANDSCHEER, 2022).
Avançando para 2019, o Brasil contava com aproximadamente 35 exchanges, com um incremento de 23 empresas do gênero em apenas um ano. Tais entidades estavam expandindo suas atividades sem supervisão ou fiscalização governamental explícita (PL 3825, SENADO FEDERAL, 2021). Adicionalmente, em 2019, o Senador Styvenson Valentim apresentou o Projeto de Lei nº 3949, que visa a regulamentação de transações com moedas virtuais e alterações regulatórias para as exchanges de criptomoedas no mercado de capitais (WANDSCHEER, 2022).
Este projeto também aborda questões legais relacionadas à lavagem de dinheiro e crimes financeiros associados às exchanges, conforme estabelecido em várias leis nacionais (Lei n. 9.613/98; Lei n. 6.385/76; e Lei n. 7.492/86). O projeto estipula dois eixos principais: a regulamentação das moedas virtuais e o funcionamento de empresas intermediárias (WANDSCHEER, 2022).
Em 2020, novamente foi apresentado no Senado Federal Projeto de Lei com o fito de regular a matéria. O Projeto de Lei nº 4207, de iniciativa da Senadora Soraya Thronicke (PSL/MS), conforme ementa dispõe sobre os ativos virtuais e sobre as pessoas jurídicas que exerçam as atividades de intermediação, custódia, distribuição, liquidação, transação, emissão ou gestão desses ativos virtuais, sobre crimes relacionados ao uso fraudulento de ativos virtuais, bem como sobre o aumento de pena para o crime de “pirâmide financeira”, e altera a Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998 (WANDSCHEER, 2022, p. 166).
Além disso, na Câmara dos Deputados, existem dois projetos de lei de autoria do deputado Aureo Ribeiro que foram juntados para análise em conjunto (PL 2303/2015 e PL 2060/2019). No Senado Federal, três projetos de lei que tratam da mesma temática (PL 3825/2019, 3949/2019 e 4207/2020) também foram apensados desde maio de 2021 para possibilitar uma avaliação e discussão integradas entre as duas casas legislativas, Câmara dos Deputados e Senado Federal (WANDSCHEER, 2022).
No Brasil, a recente promulgação da Lei 14.478/22 constitui um marco legal para a regulação dos ativos virtuais, incumbindo o Banco Central do estabelecimento de diretrizes e prazos para que as entidades do setor se adaptem às novas normativas. Esta legislação visa equilibrar o campo de atuação entre as plataformas de negociação as criptomoedas, conhecidas como exchanges, e outras entidades financeiras, como bancos, que buscam inserir-se no ambiente de mercado das criptomoedas (BRASIL, 2022).
A legislação enfatiza a necessidade de padronizar as políticas a serem seguidas pelas autoridades regulatórias, buscando assim uma maior coerência no tratamento do setor. Além disso, inova no aspecto penal, introduzindo no Código Penal brasileiro uma nova figura delituosa relacionada a condutas ilícitas envolvendo criptomoedas.
De acordo com a nova legislação, o artigo 171-A do Código Penal brasileiro estipula que será punível a conduta de estruturar, administrar, ou intermediar transações com ativos virtuais com o objetivo de obter benefícios indevidos para si ou para outrem, causando prejuízo a terceiros, por meio de indução a erro ou qualquer forma de engano. A pena estabelecida para tal infração varia de quatro a oito anos de prisão, além de multa (BRASIL, 2022).
Portanto, a trajetória regulatória das criptomoedas no Brasil demonstra a tentativa de equilibrar inovação tecnológica com segurança e estabilidade financeira. Os esforços legislativos buscam não apenas salvaguardar o consumidor e o investidor mas também fortalecer a integridade do sistema financeiro contra práticas ilegais. Ao prosseguir neste caminho, o Brasil avança na definição de um marco legal que poderá servir de referência para outros países que enfrentam desafios semelhantes na regulamentação de ativos digitais, marcando uma nova era na gestão financeira e na governança econômica.
5 CRIPTOMOEDAS E O CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO
As criptomoedas comportam particularidades que as afastam da pressuposição habitual de economia bancarizada, podendo evidenciar o fato de serem descentralizadas; por serem pseudoanônimas, não precisando de alicerce nem identificação para transação; e por serem globais, sendo operadas em todo o mundo, sem uso de tarifas bancárias.
Nesse sentido, se por um lado o uso dos bitcoins favorece as transações financeiras entre os sujeitos, acrescido de ser com mais agilidade e economia, as transações que empregam as moedas digitais inquietam o governo, por se sentirem fora do controle, uma vez que, pela primeira vez, não são responsáveis pelo controle e monitoramento.
Os empreendimentos de normatização emergiram como possibilidade de monitorar as transações, impedindo, com isso, que os bitcoins sejam empregados em práticas de crimes. Passado esse primeiro momento, serão evidenciadas agora quais são as relações entre a utilização das moedas digitais e o crime de lavagem de dinheiro.
O surgimento da tecnologia das criptomoedas pressionou o mercado a se ajustar à nova realidade, que se apresenta na maioria das vezes enquanto benéfica, uma vez que não são cobradas taxas bancárias, que podem ser desvantajosas e abusivas para os clientes, provocando um lucro maior nas transações financeiras.
Dentre as transgressões penais que mais afetam as autoridades administrativas está o crime de lavagem de dinheiro. Este presume a condição de transgressão penal, determinado como relevante, por estar incluso na economia habitual em três etapas – colocação, ocultação e integração, de forma a suprimir a origem ilegal do referido montante. Nesse sentido, problematiza-se, enquanto objeto deste estudo, se a atividade de lavagem de dinheiro, determinada em suas três etapas, sendo compatível a partir da utilização de criptomoedas, principalmente de bitcoins. (BADARÓ; BOTTINI, 2016)
Em concordância com os estudos de Bortoletto e Freitas (2019, p. 225):
Pode-se afirmar que os bitcoins são aferíveis em valores relevantes economicamente, na medida em que consistem em moeda passível de troca em transações financeiras diversas (como compra e venda), podem ser objeto de investimento e, até mesmo, podem ser trocados – através da intermediação de exchanges, por exemplo, que são as corretoras de bitcoins – pelas moedas tradicionais.
Para além, a Receita Federal do Brasil, por meio da Instrução Normativa de 1.888/2019, determina que, para fins tributários, as criptomoedas – e os bitcoins – são conceituados como ativos econômicos, tornando-se fundamental a declaração para a Autoridade Fazendária, das transações ocorridas.
Ainda que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tenha se colocado enquanto contrária a essa posição, tanto o Banco Central do Brasil, como a Receita Federal – mesmo que não claramente, também induzem a percepção de que as moedas digitais tem um valor economicamente importante, uma vez que se considera transações internacionais de valores por meio de bitcoins, enquanto operações de câmbio propriamente ditas (BORTOLETTO; FREITAS, 2019).
Em síntese, Estellita (2019, p. 5) descreve que:
[…] o reconhecimento do valor economicamente relevante dos criptoativos já se impõe ao menos frente à Receita Federal, e, no caso da tecnologia envolvida no BTC, esses valores são individualizáveis e passíveis de domínio exclusivo por parte do detentor da chave privada. Com isso, parece não haver óbice a considerar as BTCs como valores para fins de que componham o objeto das condutas de lavagem de dinheiro definidas no art. 1º da Lei 9.613/98.
Admitido o valor economicamente importante dos bitcoins, pressuposição estudada para que sejam objetos do crime de lavagem de dinheiro, interessa-se a investigação dessa tecnologia, que detém particularidades, e pode ser adaptável às etapas do crime estabelecido no artigo 1º da Lei nº 9.613/1998, que são: a) colocação; b) ocultação; c) integração (BRASIL, 1998).
Na primeira etapa, como exposto no capítulo anterior, estabelece-se o crime no sistema econômico. A articulação dessa etapa com o sistema de bitcoins pode se apresentar de inúmeras formas, a exemplo da compra de bitcoins com a renda obtida por meio da atividade ilegal, podendo acontecer de forma direta com o sujeito que tem a criptomoeda ou até mesmo por meio de outro instrumento, como a Exchange; como também, por meio do provento do infrator direto com os bitcoins.
Na segunda etapa também é possível identificar a relação com as criptomoedas: as particularidades de descentralização e pseudoanonimidade, característica dos bitcoins, podem facilitar a ocultação do objeto ilícito. Nessa situação, Estellita (2019, p. 7) apresenta que existem métodos simples e complexos de ocultação e dissimulação:
Os simples relacionam-se à possibilidade de que uma mesma pessoa possa gerar infinitas chaves públicas, mudando o endereço das BTCs sem que o usuário perca o controle sobre elas. Também se pode usar os endereços BTCs de terceiros ou mesmo de agentes financeiros.
Nesse ponto, a descentralização e a pseudoanonimidade dos bitcoins possibilitam que sujeitos não identificados possam suprimir a origem da renda para obter as criptomoedas, obstaculizando o mapeamento da prática ilegal pelas autoridades competentes.
De outro modo, ainda que todas as transações virtuais sejam compiladas nos blockhains, de forma que o sistema seja transparente (por isso o termo pseudoanonimidade), a criptografia das transações inviabiliza significativamente que os sujeitos sejam identificados, facilitando a ocultação dos benefícios de crime anterior.
Por fim, não se apresentam obstáculos no contexto sistemática de bitcoins para o desenvolvimento da etapa de integração do benefício do crime antecedente, e, consequentemente, para a aplicação do delito de lavagem de dinheiro. A entrada do dinheiro no mercado formal pode ser facilitada pela peculiaridade da globalização das criptomoedas, uma vez que o suspeito da lavagem de dinheiro poderá obter bens utilizando-se dos bitcoins, ou até mesmo pela permuta por moedas tradicionais, tanto no contexto brasileiro como em outras nações com leis mais brandas.
A atividade de lavagem de dinheiro é, por isso, condizente com a tecnologia inserida pelos bitcoins, das quais as características das criptomoedas podem favorecer, com intensidade maior ou menor, a prática da atividade ilegal; motivando a inquietação do governo frente à tentativa de criar meios legais para normatizar o uso das moedas digitais.
Entretanto, visto que há uma instabilidade quanto à regulamentação concreta desse campo, o poder judiciário brasileiro esbarra em obstáculos para investigação de crimes de lavagem de dinheiro exercidos por intermédio de bitcoins. Bortoletto e Freitas (2019, p. 71) afirmam que:
A grande dificuldade é o rastreamento dos fluxos de caixa na modalidade criptografada, pois o fato de usar modo anônimo restringe a possibilidade de ligar pessoas reais a contas de moedas virtuais, o uso de misturadores de criptografia e a possibilidade de criação de um número ilimitado de contas.
Percebe-se, mais uma vez, o quanto a articulação entre bitcoins e lavagem de dinheiro pode ser consolidada: a peculiaridade de pseudoanonimidade, própria das criptomoedas, por meio de criptografia, mixing services etc, pode favorecer a impunidade da atividade ilegal, ao dificultar o mapeamento da origem de renda de seu respectivo usuário.
Esse obstáculo é aliviado ainda que de forma primária, por meio da embrionária regulamentação das exchanges, que são obrigadas a identificar os usuários que lhe acessam. Entretanto, mediante a complexidade da temática acerca das criptomoedas, torna-se imprescindível que as autoridades brasileiras e internacionais se dediquem a estudar sobre esse tema, e mais especificamente sobre a dinâmica das criptomoedas.
Em conformidade com pesquisa da Crypto Crime Report 2024, estudo recente da Chainanlysis, apresentou uma redução significativa de 30% no volume de criptomoedas transacionadas para fins de lavagem de dinheiro, no comparativo entre os anos de 2023 e 2022. Em termos comparativos, foram lavados por criminosos US$ 22,2 bilhões em criptomoedas em 2023, em relação ao recorde histórico de US$ 31,5 bilhões de 2022, segundo Abranet (2024).
Pesquisadores da Chainanlysis, responsáveis por rastrear fundos por meio das blockchains, confirmam que as exchanges centralizadas continuam a ser o principal meio de off-ramping (conversão de criptomoedas em moedas fiduciárias tradicionais), em termos percentuais é o destino de 62% de todos os fundos que saem de carteiras ilícitas (ABRANET, 2024).
Investimentos em compliance, incluindo a implementação de medidas rigorosas tais como de KYC (Know your client, ou conheça o seu cliente), e AML (Anti Money Laundering, ou anti-lavagem de dinheiro), as exchanges e as agências regulatórias podem impedir criminosos de sacar o dinheiro, ou seja, em outros termos, as exchanges centralizadas permitem congelar e apreender ativos associados a atividade ilícitas é o que alerta Kim Grauer, diretora de pesquisa da Chainalysis.
No Brasil, a legislação avançou com o Decreto n. 11.563, que regulamenta o Marco Legal das Criptomoedas (Lei n. 14.478/2022), para fins de implementar mecanismos, dispositivos e punições no combate à prática de crimes com criptoativos, incluindo lavagem de dinheiro e pirâmides financeiras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A investigação sobre a natureza jurídica das criptomoedas, em especial no contexto brasileiro, revela um panorama complexo e multifacetado. As criptomoedas, emergindo como uma inovação disruptiva no sistema financeiro global, desafiam as estruturas jurídicas e econômicas tradicionais, exigindo uma abordagem regulatória nova e adaptável. O surgimento do Bitcoin e de outras criptomoedas não é apenas um fenômeno econômico, mas um catalisador para revisões legislativas e adaptações jurídicas. No Brasil, a resposta regulatória tem sido gradual e, em certa medida, cautelosa, refletindo a necessidade de equilibrar inovação com segurança jurídica e proteção ao consumidor.
A classificação das criptomoedas como bens incorpóreos, móveis e divisíveis, e a consequente categorização desses ativos como commodities, demonstram a complexidade de encaixá-las nos sistemas jurídicos existentes. Esta caracterização tem implicações significativas para a regulação e fiscalização desses ativos, influenciando desde a tributação até a aplicação de normas de combate à lavagem de dinheiro. A ambiguidade da natureza jurídica das criptomoedas, no entanto, não diminui a urgência de uma resposta normativa adequada, especialmente considerando a rápida adoção e integração desses ativos na economia brasileira.
A discussão sobre a regulamentação das criptomoedas no Brasil, destacando tanto os progressos quanto os desafios, sublinha a necessidade de uma legislação mais robusta e clara. A postura das autoridades brasileiras, como o Banco Central e a Receita Federal, em diferenciar criptomoedas de “moedas eletrônicas” e classificá-las para fins tributários, indica um movimento em direção ao reconhecimento e à integração desses ativos no sistema jurídico e econômico do país. No entanto, a falta de uma regulamentação específica e abrangente ainda representa um obstáculo significativo para uma adoção mais ampla e segura dessas tecnologias.
O elo entre criptomoedas e crimes financeiros, especialmente a lavagem de dinheiro, é uma questão crítica que merece atenção especial. As características únicas das criptomoedas, como a descentralização e o pseudoanonimato, oferecem novos desafios na prevenção e no combate a atividades ilícitas. A eficácia das medidas regulatórias adotadas até o momento, como a obrigatoriedade de declaração de transações com criptomoedas, precisa ser continuamente avaliada e aprimorada. Essas medidas são essenciais para garantir a integridade do sistema financeiro e proteger os consumidores de práticas fraudulentas.
Este estudo destaca a importância de uma regulamentação equilibrada e adaptável, que reconheça as peculiaridades das criptomoedas enquanto busca mitigar os riscos associados. A evolução contínua desses ativos digitais exige que os legisladores e reguladores se mantenham atualizados e responsivos às mudanças do mercado, garantindo assim um ambiente seguro e fértil para a inovação financeira. A natureza jurídica das criptomoedas, embora ainda em debate, é um campo fértil para futuras investigações e desenvolvimentos legislativos, com potencial para transformar significativamente o panorama financeiro e jurídico no Brasil e além.
REFERÊNCIAS
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[1] Graduado em Direito pela Faculdade Educacional de Medianeira – UDC Medianeira. E-mail: jjcamargo222@gmail.com.
[2] Doutora em Direito pela Universidade de Marília. Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora do Centro Universitário Dinâmica das Cataratas (UDC). E-mail: lucelaine.weiss@udc.edu.br.