AS FINALIDADES DA PENA EM FREDERICK SCHAUER E JEREMY BENTHAM: ANÁLISE A PARTIR DAS TEORIAS DESLEGITIMADORAS

AS FINALIDADES DA PENA EM FREDERICK SCHAUER E JEREMY BENTHAM: ANÁLISE A PARTIR DAS TEORIAS DESLEGITIMADORAS

30 de setembro de 2024 Off Por Cognitio Juris

THE PURPOSES OF PUNISHMENT IN FREDERICK SCHAUER AND JEREMY BENTHAM: ANALYSIS BASED ON DELEGITIMIZING THEORIES

Artigo submetido em 22 de setembro de 2024
Artigo aprovado em 27 de setembro de 2024
Artigo publicado em 30 de setembro de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 56 – Setembro de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Gabriela Faria Mendes da Costa Martins[1]

Resumo: O artigo possui como objetivo principal a análise crítica das obras “A força do Direito”, de Frederick Schauer, e “Teoría de las penas y de las recompensas”, de Jeremy Bentham. Os dois autores percebem que a sanção penal estaria lastreada majoritariamente na teoria da prevenção geral negativa, frontalmente criticada pelos estudos da criminologia crítica e da política criminal redutora. A partir de revisão bibliográfica, serão analisadas as bases de compreensão das teorias propostas, bem como as críticas desenvolvidas a partir delas, considerando, ao final, se há alguma compatibilidade da proposta de Schauer e Bentham com a realidade do sistema penal brasileiro.

Palavras-chave: Frederick Schauer; Jeremy Bentham; prevenção geral negativa; teorias deslegitimadoras da pena; criminologia crítica.

Abstract: The main objective of this article is to critically analyze the works “The Force of Law”, by Frederick Schauer, and “Theory of Penalties and Rewards”, by Jeremy Bentham. The two authors realize that the criminal sanction would be mainly based on the theory of General Negative Prevention, directly criticized by studies of critical criminology and reductive criminal policy. Based on a bibliographical review, the bases for understanding the proposed theories will be analyzed, as well as the criticisms developed based on them, considering, in the end, whether there is any compatibility between Schauer and Bentham’s proposal with the reality of the Brazilian penal system.

Keywords: Frederick Schauer; Jeremy Bentham; General Negative Prevention; delegitimizing theories of punishment; critical criminology.

  1. Introdução

Uma das questões que mais impacta as Ciências Criminais está lastreada no questionamento de por quê (qual motivo) e para quê (qual finalidade) o Estado pune o autor de um delito, aplicando-lhe uma pena. O presente artigo elegeu os autores Frederick Schauer e Jeremy Bentham para a investigação do tema por se tratarem de grandes teóricos sobre o sistema normativo atualmente concebido e, sobretudo, porque trazem à tona aspectos relevantes sobre a relação entre norma e sanção, bem como a função coercitiva do Direito.

O presente artigo tem como objetivo principal analisar e desenvolver de que modo os dois autores reconhecem e fundamentam a finalidade da sanção penal  a partir da teoria da prevenção geral negativa, ou seja, na concepção de que, ao ameaçar punir o autor de um delito com uma pena, o Estado estaria dissuadindo outras pessoas (a coletividade) a não incorrerem na prática delitiva. Também será o escopo principal do artigo analisar criticamente essa posição teórica a partir da criminologia crítica, de modo a compreender em que medida as propostas de Schauer e Bentham se aplicam no sistema penal brasileiro. A metodologia utilizada consiste em revisão bibliográfica, versando tanto sobre as obras dos autores investigados quanto de seus interlocutores.

Após traçar um breve panorama acerca das teorias que tradicionalmente pretendem definir uma (ou mais) finalidade para a pena, passaremos a delinear que tanto Schauer quanto Bentham, inspirados em Feuerbach, percebem que a pena tem o fim precípuo de ameaçar os indivíduos a não praticarem crimes, garantindo a efetividade da norma penal. Para esses autores, a pena funcionaria como um “contra-impulso criminoso”, atingindo o objetivo de assegurar a coerção do Direito e, enfim, prezar pelo bem comum da sociedade. A partir disso, ao confrontar as funções declaradas e as funções ocultas do Direito Penal, o artigo expõe as principais críticas à teoria da prevenção geral negativa, sugerindo que a pena, tal como atualmente idealizada e aplicada, não está apta a produzir quaisquer efeitos sensíveis para a redução da criminalidade, ou seja, para a efetividade da norma jurídica.

As três principais críticas dão conta da seletividade penal estigmatizante, intrínseca às agências punitivas, do receio de se incorrer em um Direito Penal do terror, e da percepção de que os indivíduos nem sempre se comportam de forma racional, perfazendo um cálculo de custo e benefício entre o prazer do crime e a dor da pena. Na concepção do Direito Penal como contenção do poder punitivo do Estado, cujo alicerce teórico consiste no Estado Democrático de Direito, a proposta dos autores pode ser colocada em xeque.

  1. As finalidades da pena: um panorama geral.

Uma das questões que mais impacta as ciências criminais está lastreada no questionamento de por quê (qual motivo) e para quê (qual finalidade) o Estado pune os agentes de um delito, ameaçando-lhes e aplicando-lhes sanções penais. Entender a finalidade da pena implica também compreender o próprio fim do Direito Penal, trazendo à tona implicações filosóficas e sociológicas acerca do funcionamento e da efetividade do Direito como um todo.

As finalidades da pena são tradicionalmente divididas em duas grandes vertentes: as teorias legitimadoras e as teorias deslegitimadoras da pena. As teorias legitimadoras são assim denominadas porque legitimam o emprego da pena como instrumento de controle social. As teorias deslegitimadoras, ao contrário, negam que a pena tenha finalidades legítimas[2].

            As teorias legitimadoras da pena, majoritariamente adotadas pela doutrina penal mundial, podem ser classificadas em três: (i) as teorias absolutas/retributivas; (ii) as teorias relativas/preventivas; e (iii) as teorias mistas/ecléticas[3].

            As teorias absolutas/retributivas percebem a aplicação da pena como uma referência ao passado, ou seja, a pena não tem como objetivo prevenir novos crimes, mas tão somente punir o agente do delito. A partir dessa teoria, a imposição de uma pena ganha, então, diversas justificativas, como a necessidade de vingança, expiação, imperativo de justiça (Kant), retribuição jurídica (Hegel), merecimento coletivo (Paul Robinson), dentre outras.

            As teorias relativas/preventivas visam prevenir novos crimes, tendo como referência o futuro. Podem ser classificadas como “teorias da prevenção geral”, em que o condenado é punido para provocar efeitos na coletividade, ou como “teorias da prevenção especial”, cujo objetivo é atingir o próprio sentenciado.

            Diante do objetivo do presente artigo, mister se faz sintetizar cada uma dessas teorias preventivas. A “prevenção geral negativa” assume que a principal finalidade da pena é servir como um instrumento de intimidação coletiva. Aplica-se a pena ao indivíduo que cometeu o delito para que os outros indivíduos da coletividade sintam-se dissuadidos a cometer o mesmo crime. Assim, a pena assumiria o papel de “contra-impulso” criminoso. A “prevenção geral positiva”, por outro lado, parte da premissa de que a pena tem um objetivo comunicativo, pois seria capaz de comunicar à sociedade sobre a vigência da norma infringida ou, de qualquer forma, serviria como um instrumento de manutenção das expectativas sociais. A “prevenção especial negativa” visa à inocuização ou à intimidação individual do sentenciado, impedindo que reincida na prática delitiva. A “prevenção especial positiva”, por seu turno, tem o escopo de integrar o condenado à sociedade.

            Ao cabo, as teorias mistas podem ser classificadas como aditivas ou dialéticas. Nas teorias aditivas, as finalidades da pena são justapostas, somadas, simplesmente reunidas. Para a doutrina majoritária, a legislação brasileira adotou a teoria mista, com previsão no art. 59 do CP, segundo o qual o juiz deverá fixar a pena suficiente e necessária para “reprovar e prevenir” o crime. Para a teoria dialética, deve ser escolhida uma finalidade preponderante para a pena, e as demais finalidades servirão como limites.

            Uma vez traçado um panorama geral acerca das teorias que pretendem assinalar o objetivo da aplicação de uma sanção criminal, o presente artigo passará a analisar as principais finalidades da pena recepcionadas por Schauer e Bentham.

  1. As finalidades da pena em Frederick Schauer

Em que pese Schauer não trate especificamente e diretamente das finalidades da sanção criminal na obra “A força do Direito” – até porque não se trata do objetivo precípuo da obra -, é possível apreender sua posição sobre o tema em algumas passagens bastante emblemáticas.

Ao tratar da coerção direta, nota-se que Schauer absorve tanto a teoria absoluta (retributiva) quanto a teoria relativa da prevenção especial negativa (inocuização do indivíduo) como aptas a impedir que o agente de um delito volte a infringir a norma penal:

“E, na medida em que a incapacitação é, na prática e muitas vezes na teoria, um dos objetivos da punição criminal, podemos ver o preso não apenas como alguém que foi punido no sentido retributivo, mas também como alguém que é diretamente impedido por muros, guardas, barras e arame farpado de fazer o que ele gostaria de fazer, incluindo, e assim sustenta a teoria da incapacidade, a prática de crimes que ele ainda estaria disposto a cometer”[4].

É bem verdade que Schauer não assume uma única finalidade da pena, mas reconhece, ao longo da obra, uma das teorias tradicionais como preponderante sobre as demais, qual seja, a teoria da prevenção geral negativa, que, como antes dito, está arrimada na concepção de que a pena visa dissuadir a sociedade, pois serviria como um aviso, uma ameaça aos demais cidadãos, evitando que estes pratiquem a conduta sancionada.

No Capítulo 9, Schauer sintetiza a ideia trazida durante toda a obra quanto à finalidade preventiva da sanção penal, afirmando veementemente que “a ameaça de consequências desagradáveis se o sujeito não se comportar de maneira específica ainda é a principal arma do arsenal coercitivo do direito[5]. Tal assertiva sugere que a pena – uma das principais formas de coerção – encontra-se lastreada fundamentalmente na ameaça. A lógica consiste em ameaçar a coletividade com a pena, garantindo que os indivíduos ajam sempre conforme o Direito. Nesse sentido, Schauer explicita que:

“O aspecto dissuasor das punições criminais graves opera de maneira semelhante, pressupondo que a ameaça de sanções após o ato impeça, em primeiro lugar, as pessoas de se envolverem em atos proibidos.”[6]

Possível perceber que tal concepção encontra inspiração imediata na teoria de Anselm Feuerbach, segundo o qual o Estado pune com o fim de garantir a efetividade da ameaça da pena. Mais importante que a pena em si, é a ameaça que ela é capaz de provocar na sociedade, agindo como um “contra-estímulo criminoso”[7].

Nota-se que, para os dois autores, a aplicação da pena estaria fundada em um objetivo meio, cujo fim consiste em garantir a legalidade e a certeza do Direito. A pena deve ser aplicada em razão da necessidade de conferir seriedade à ameaça contida na norma, a partir da positivação de consequências efetivas. Ambos defendem que é a ameaça da sanção que propicia a efetiva coação do Direito. Assim, se o objetivo é fazer com que os indivíduos ajam conforme o Direito, a coletividade deve se sentir coagida a assim agir, e tal coação apenas se consolida a partir de sanções (psicológicas ou físicas, estatais ou sociais, etc) – que, no Direito Penal, serão sempre penalidades jurídicas (pressuposto da pena).

  1. As finalidades da pena em Jeremy Bentham

Analisar o que Bentham denominou de Princípio da Utilidade – uma das teses desenvolvidas ao longo de seus escritos – é fundamental para traçar sua compreensão acerca da finalidade da pena. O Princípio da Utilidade parte da premissa de que os seres humanos sempre agem por determinação da dor ou do prazer. Este é o pressuposto firmado na obra “Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação”:

A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada, por uma parte, a norma que distingue o que é reto do que é errado, e, por outra, a cadeia das causas e dos efeitos[8].

Segundo o autor britânico, o Princípio da Utilidade deve balizar a construção das normas pelo legislador. Partindo da ideia de que os seres humanos tendem inerentemente a buscar o prazer e a felicidade, caberá ao Estado, como guardião desses indivíduos e do consenso social, garantir que todos ajam de forma “correta” (em busca do prazer), e não de forma “incorreta” (causando dor). Surge, então, a necessidade de positivar condutas (normas jurídicas) com diretrizes do que se espera de cada indivíduo e do que se reputa indesejável[9].

O Princípio da Utilidade consubstancia, portanto, um instrumento para que o legislador, atento à relação entre normas e sanções, esteja apto a produzir normas que obriguem os indivíduos a seguí-las, sob pena de serem sancionados. Assim, norteado pelo Princípio da Utilidade, o legislador deverá sempre prever uma sanção para cada conduta infringida, de modo que a sanção servirá como um mecanismo necessário de dissuasão dos indivíduos, obrigando-os a obedecer às leis e, em última instância, a atingir o máximo prazer social. Enfim, o reconhecimento deste princípio nos levaria a “construir o edifício da felicidade através da razão e da lei[10].

No que tange exclusivamente à sanção criminal, Bentham partilhava do posicionamento inaugurado por Beccaria de que as normas penais devem ser sempre precisas e compreensíveis, de modo que a aplicação da pena exige a estrita legalidade e a proporcionalidade entre o ato e a sanção imposta[11].

Embora crítico à aplicação despótica e irracional da pena, Bentham ainda legitimava sua aplicação em um espectro (que se pretende) democrático, vislumbrando a pena como meio para se atingir o bem estar coletivo, a efetividade do Direito e a manutenção do status quo, defendendo, no mesmo sentido de Schauer, mas seguindo lógicas diversas, a teoria da prevenção geral negativa.

Interessante notar que a concepção da finalidade da pena concebida por Bentham também está estritamente atrelada àquela defendida por Feuerbach. Ao cotejar sua premissa dos sentimentos humanos (“dor x prazer”) com a imposição da pena como garantia das normas jurídicas, Bentham declara que a sanção criminal somente será efetiva quando a certeza da dor da pena for maior que o prazer do crime. Feuerbach, do mesmo modo, defende que o agente que infringe uma norma penal não o faz racionalmente, mas de forma instintiva, na busca por um prazer maior. Cabe, então, ao Estado, impor uma coerção psicológica na coletividade, instalando a ideia de que o suplício da pena gerará tanta dor que o prazer de se cometer o delito não compensará a dor que lhe será imposta em decorrência do ilícito.

Com efeito, tanto Schauer quanto Bentham, orientados pelas ideias de Feuerbach, percebem a pena como um “contra-impulso criminoso”. Os três autores entendem que a punição deve ser aplicada, principalmente, como forma de dissuasão da coletividade, que verá a ameaça da pena como um desprazer indesejado, não restando outra alternativa senão o cumprimento da norma, efetivando a coerção do Direito.

  1. Crítica à teoria da prevenção geral negativa à luz das teorias deslegitimadoras

            Uma vez exposta e brevemente desenvolvida a trajetória teórica explorada por Schauer, Bentham e Feuerbach quanto à teoria da prevenção geral negativa da pena, mister analisar criticamente a perspectiva desses autores sob a óptica das teorias deslegitimadoras da pena, quais sejam, a teoria agnóstica, cujo maior interlocutor é o autor argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, e a teoria materialista dialética, desenvolvida no Brasil por Juarez Cirino dos Santos.

Nas últimas décadas, os teóricos da criminologia crítica vêm empenhando esforços para demonstrar, cientificamente, que a pena não cumpre as finalidades legitimadoras da pena, inclusive a prevenção geral negativa. A crítica criminológica evidencia que o sistema punitivo é estruturalmente seletivo e, por consequência, estigmatizante.

Como as agências punitivas não possuem a capacidade material de criminalizar todas as condutas tipificadas em lei, acabam selecionando as condutas praticadas pelos indivíduos mais vulneráveis do tecido social[12]. Nosso sistema vivencia, então, um grande contingente de atos delitivos que compõem a “cifra oculta”, ou seja, de delitos que são praticados, mas não criminalizados[13], de modo que, na operacionalidade penal, o crime é a regra e a criminalização, a exceção.

Como consequência, partindo de uma análise planificada da realidade, evidencia-se que a pena não se dirige a todos os cidadãos, invariavelmente, de forma a garantir uma suposta retribuição e prevenção de crimes, cumprindo apenas com a função de reafirmar o estereótipo de criminoso, atribuído aos alvos preferenciais do Direito Penal, e a inscrevê-los em um ambiente criminógeno e degradante. Portanto, não há como garantir que a pena prestará quaisquer das finalidades declaradas, apenas que ela se propõe, de forma oculta, a garantir as estruturas de poder da sociedade capitalista, como propõe a teoria materialista dialética[14], ou, na melhor das hipóteses, que não é capaz de gerar, por si só, quaisquer efeitos sensíveis para a redução da criminalidade, conforme prescreve a teoria agnóstica da pena.

No tocante especificamente à teoria da prevenção geral negativa, há três críticas que merecem ser pontuadas e brevemente analisadas. A primeira delas está atrelada ao que foi acima descrito. A prevenção geral negativa depende da certeza da pena, pois os indivíduos somente se sentiriam dissuadidos se não houvesse dúvidas de que, incorrendo no ato ilícito, seriam invariavelmente sancionados. No entanto, tendo em conta a realidade estruturalmente seletiva do Direito Penal, já que uma porcentagem ínfima de delitos são efetivamente descobertos e passam pelo filtro da criminalização secundária, é impossível garantir a efetiva dissuasão da coletividade.

Interessante notar que na primeira nota de rodapé do Capítulo 9, ao tratar do poder dissuasório da pena, Schauer firma duas variantes que condicionariam a eficácia de tal dissuasão, quais sejam, “condições de penalidade severa” e “grande probabilidade de execução”:

“(…) para os nossos fins, tudo o que precisamos aceitar é que, sob condições de penalidade severa (pelo menos em relação aos ganhos potenciais da infração) e grande probabilidade de execução, o aspecto dissuasório do direito é relativa e incontroversamente eficaz. No entanto, debate-se até que ponto as proibições de pequena probabilidade, mas de punição severa, são eficazes como instrumentos de dissuasão.”[15]

Em um país periférico como o Brasil, que conta ainda com uma infinidade de delitos, seria inconcebível assegurar a “grande probabilidade de execução”, tornando ineficaz a teoria defendida por Schauer.

Outra crítica à teoria da prevenção geral negativa é a tendência de levar ao Direito Penal do terror, porquanto a teoria tende a incrementar as penas de forma ilimitada e autoritária, em busca de êxito, com o aumento da ameaça. Isto pode ser observado quando Schauer menciona a necessidade de “penalidades severas” no excerto acima. Nada obstante, a criminologia crítica também tem constatado que incrementar a quantidade da pena e a inflição de dor não acarreta qualquer repercussão prática. A título de exemplo, as estatísticas demonstram que a criação da Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990) no Brasil não impediu que crimes desta natureza continuassem a ser praticados, pelo contrário, a curva desses delitos continuou subindo. Há evidências, portanto, de que uma maior rigidez penal não implica o decréscimo de crimes.

A terceira crítica é que a teoria da prevenção geral negativa parte da premissa de que o ser humano é capaz de calcular custos e benefícios ao praticar um ilícito. Bentham e Feuerbach teorizam, como visto, que o ser humano conseguiria realizar o cálculo “dor x prazer”. A crítica criminológica que se faz é que tal premissa não se sustenta. Na imensa maioria das ações, as pessoas agem por impulso, ou por outros distintos fatores socioeconômicos e psicanalíticos.

Nesse espectro, é possível, inclusive, utilizar-se da crítica que o próprio Schauer faz à ideia do “homem perplexo”, teorizada por Hart[16]. Se as pessoas não agem de acordo com o Direito apenas pela normatividade (porque é o Direito), exigindo-se para tanto uma sanção, e se a pena nem sempre é uma certeza perante a sociedade, então não há como garantir que a totalidade ou a maior parte das pessoas sempre agirá de forma lícita. Portanto, é utópico esperar que os indivíduos sempre determinem seu comportamento pensando em evitar a sanção penal, seja pela seletividade penal intrínseca e estrutural, seja porque os indivíduos nem sempre se comportam de forma racional.

O que de revela, portanto, é a necessidade de construirmos outras alternativas para que a norma penal seja efetivamente cumprida, seja selecionando as condutas que verdadeiramente devem ser tipificadas como crimes, seja repensando outras formas de sanção penal e de prisionalização da população carcerária, que, como são concebidas atualmente, somente tendem a incrementar os índices de reincidência[17]. Daí, a importância de analisar criticamente as teorias legitimadoras atualmente absorvidas pelo sistema de justiça criminal, reformulando nosso sistema de justiça a partir das teorias contramajoritárias (deslegitimadoras), respaldadas na ciência e no Estado Democrático de Direito.

  1. Considerações finais

A partir das provocações apresentadas por Schauer em “A força do direito”, bem como por Bentham em sua vasta produção bibliográfica, possível perceber a postura obstinada que os autores apresentam sobre a relevância da sanção para a efetividade do Direito, não havendo como negar a relação intrínseca estabelecida entre dever e sanção.

Nada obstante, quando se trata do Direito Penal, é preciso ter cautela para não incorrer em uma simplificação da realidade, buscando por respostas rápidas e populistas, haja vista o grande poder aflitivo da pena, seja pela restrição de liberdade do sujeito, seja pelo caráter estigmatizante daquele que é punido criminalmente.

Respaldar a pena na teoria da prevenção geral negativa é bastante convincente quando se tem em conta uma sociedade igualitária, movida pelo consenso, em que se busca a paz e o bem-estar coletivo. No entanto, ao perceber a realidade material das sociedades erigidas pelo conflito, como a sociedade brasileira, que carrega até hoje os efeitos deletérios do processo de colonização, faz-se necessário perceber que nem sempre aplicar uma pena maior, em condições degradantes, implicará menos criminalidade.

É preciso analisar criticamente a posição da teoria da prevenção geral negativa, defendida por Schauer e Bentham, quando aplicada ao sistema penal, sobretudo periférico. Sob as lentes da criminologia crítica, nota-se como as agências punitivas se comportam nos processos de criminalização, e somente a partir disso, será possível construir propostas realmente efetivas. Insistir na narrativa punitivista, cada vez mais alargada nos discursos político-criminais, somente terá o potencial de gerar mais violência e discriminação, sendo inapta à redução da criminalidade.

Assim, o presente artigo pretende fomentar a necessidade de repensarmos outros paradigmas para as políticas criminais, como a redução de normas penais, a aplicação de uma pena não estatal ou, ainda que o caso, de efetivar a aplicação de penas proporcionais, afastadas da degradação que ainda hoje circunda os presídios do país.

  1. Referências bibliográficas

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Links:

https://josiaslima.jusbrasil.com.br/artigos/295821587/as-teorias-da-finalidade-da-pena

https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/11169/11169_4.PDF

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5618143/mod_resource/content/0/Finalidades%20da%20pena.pdfhttps://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58893/coero-legal-a-construo-de-frederick-schauer-e-os-ilegalismos-brasileiros


[1] Advogada Criminalista. Mestranda em Direito Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pesquisadora no Grupo de Estudos em Sistema Penal Redutor. Coordenadora-adjunta do IBCCrim.

[2] JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; VANZOLINI, Patrícia. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, capítulo 19.

[3] Ibidem.

[4] SCHAUER, Frederick. A força do direito. Tradução André Luiz Freire. 1. ed. São Paulo. Editora WMF Martins Fontes, 2022, p. 192.

[5] SCHAUER, Frederick. A força do direito. op. cit., p. 189.

[6] Ibidem, p. 189-190.

[7] JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Finalidades da pena. Barueri, SP. Editora Manole, 2004, p. 61.

[8] BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo. Editora Abril. 1974, p. 9.

[9] MOTA, Louise Menegaz de Barros. Jeremy Bentham: entre o esquecimento e o retorno das ideias de um visionário. Revista de Informação Legislativa, Cidade, v. 49, n. 196, p. 283-295, out. 2012. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496628/000967070.pdf?sequence=1&isAllowed=y#:~:text=Nesse%20sentido%2C%20o%20princ%C3%ADpio%20da,incorreta%20se%20resultasse%20no%20contr%C3%A1rio.

[10] BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. op. cit. p. 9.

[11] BENTHAM, Jeremy. Teoria das penas legais e: Tratado dos sofismas políticos. Imprenta: São Paulo, Edijur, 2002. p. 41.

[12] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro, Vol. I: Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2017, p. 46-51.

[13]Criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo. op. cit., p. 43.

[14] SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 3. ed. Curitiba. ICPC. Lumen Juris, 2008.

[15] SCHAUER, Frederick. A força do direito. op. cit., p. 302.

[16] Ibidem, p. 74-80.

[17] CAMPILONGO, Celso. DE GIORGI, Raffaele. FARIA, José Eduardo. Estado de Coisas Inconstitucional. São Paulo: Jornal O Estado de São Paulo, n. 44531, Opinião, p. A2. 19/09/2015.