O DIREITO SUCESSÓRIO DO EMBRIÃO E DO FILHO CONCEBIDO POR REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM
30 de setembro de 2024THE INHERITANCE LAW OF THE EMBRYO AND THE CONCEIVED CHILDBY POST MORTEM ASSISTED REPRODUCTION
Artigo submetido em 17 de setembro de 2024
Artigo aprovado em 23 de setembro de 2024
Artigo publicado em 30 de setembro de 2024
Cognitio Juris Volume 14 – Número 56 – Setembro de 2024 ISSN 2236-3009 |
.
Autor(es): Leandro da Cunha Nakajo[1] |
.
RESUMO: A reprodução assistida humana é uma técnica que surgiu nos anos de 1960 e muito utilizada para resolver questões ligadas à fertilidade e ao planejamento familiar. No entanto, o direito não foi capaz de acompanhar a evolução da ciência e da sociedade no campo da reprodução assistida, principalmente quando a questão envolve a utilização do material genético congelado post mortem. O presente artigo tem por finalidade trazer uma reflexão sobre as questões sucessórias envolvendo o embrião concebido por reprodução assistida post mortem, considerando que a legislação brasileira ainda não foi capaz de regular essa questão. A metodologia utilizada no presente artigo se baseou na abordagem dedutiva, no método de procedimento histórico e, para subsidiar este estudo, foram realizados levantamento bibliográfico e a análise da legislação e da doutrina referentes aos temas abordados.
Palavras-chave: Reprodução Assistida. Post Mortem. Direito Sucessório. Biodireito.
ABSTRACT: Human assisted reproduction is a technique that emerged in the 1960s and is widely used to resolve issues related to fertility and family planning.However, the law has not been able to keep up with the evolution of science and society in the field of assisted reproduction, especially when the issue involves the use of genetic material frozen post mortem. The purpose of this article is to bring a reflection on succession issues involving the embryo conceived by post mortem assisted reproduction, considering that Brazilian legislation has not yet been able to regulate this issue. The methodology used in this article was based on the deductive approach, on the method of historical procedure and, to subsidize this study, a bibliographic survey and analysis of legislation and doctrine regarding the topics addressed were carried out.
Keywords: Assisted Reproduction. Postmortem. Succession Law. Law. Biolaw.
SUMÁRIO
Introdução
1. A Reprodução Assistida
2. A Reprodução Assistida Post Mortem e o Direito Brasileiro
3. O Direito Sucessório na Reprodução Assistida Post Mortem
Considerações Finais
Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O primeiro bebê nascido por meio da reprodução assistida ocorreu na Inglaterra, no ano de 1978 e, desde então, milhares de pessoas nasceram por meio dessa técnica. Destaca-se que, cada vez mais, as técnicas de reprodução assistida estão sendo procuradas por pessoas que gostariam de ter filhos e que, muitas vezes, por circunstâncias alheias às suas vontades, não são capazes de gerar naturalmente.
No entanto, no Brasil ainda não existe uma legislação específica para tratar da técnica de reprodução assistida, tampouco para assegurar os direitos dos indivíduos envolvidos neste processo.
E diante do número crescente de pessoas que se utilizam dessas técnicas de reprodução assistida, bem como da omissão legislativa, poderá o embrião ou o filho gerado por meio da reprodução assistida post mortem receber a sua parte do quinhão hereditário deixado pelo seu genitor?
Essa é uma questão controvertida na doutrina e na jurisprudência, considerando que, apesar dos avanços obtidos no campo da reprodução assistida, ainda não houve no Brasil um avanço na legislação quanto ao tema, principalmente quanto ao direito sucessório do embrião e do filho concebido por meio da reprodução assistida post mortem.
Desta forma, o presente artigo analisa a questão envolvendo o direito sucessório do embrião e do filho concebido por meio da técnica de reprodução assistida post mortem.
- A REPRODUÇÃO ASSISTIDA
O nascimento de Louise Joy Brown, em 25 de julho de 1978, na cidade de Manchester, na Inglaterra, é considerado pela ciência um marco histórico, pois ela foi o primeiro bebê do mundo concebido por meio da técnica da reprodução assistida.
Embora a técnica de reprodução assistida esteja muito associada à “barriga de aluguel”, termo associado para se referir à técnica de fertilização in vitro, existem outras técnicas de reprodução assistida.
Existem dois tipos de técnicas de reprodução assistida: a fertilização intracorpórea, que é aquela em que a fecundação ocorre dentro do corpo da mulher, caso da inseminação artificial, e a fertilização extracorpórea, hipótese em que a fecundação ocorre em laboratório, como é o caso da fertilização in vitro.
A reprodução assistida consiste em um conjunto de técnicas a partir da manipulação de gametas e embriões com a finalidade de facilitar ou viabilizar a reprodução humana de maneira assistida.
É uma técnica que consiste em unir espermatozoide e óvulo em laboratório e implantar o embrião já pronto no útero da mulher.
Ensina Rolf Madaleno que:
A constante evolução da medicina genética permite a fecundação fora do corpo da mulher e sem a realização da cópula, fecundando in vitro um óvulo extraído de uma mulher, com sêmen do marido ou da pessoa que com ela viva em união estável, ou proveniente da doação de material genético de terceira pessoa. Quando o sêmen é do marido ou companheiro, a inseminação artificial é designada de homóloga; no caso de haver um doador, a inseminação artificial é chamada de heteróloga.[2]
A reprodução assistida tem por finalidade facilitar a procriação de casais inférteis ou homoafetivos, por pessoas que já possuem uma idade avançada, por pessoas que desejam uma gestação independente.
Além disso, a reprodução assistida também pode ser utilizada como método de planejamento familiar para a prevenção de enfermidades genéticas e hereditárias.
- A REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E O DIREITO BRASILEIRO
Uma grande polêmica enfrentada pelo direito e pela bioética é a questão envolvendo a reprodução assistida post mortem, que consiste na inseminação artificial homóloga utilizando-se do material genético de pessoa já falecida[3].
Desta forma, casais que congelam seus materiais genéticos com a finalidade de programar uma gestação futura podem recorrer às técnicas de reprodução assistida após o falecimento de um dos cônjuges?
Ensina Carlos Alexandre Moraes que:
A inseminação post mortem não é proibida no Brasil, e sua técnica é prevista pela Resolução 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina, que exige apenas uma autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado. Assim, é permitido tanto à mulher o direito de se inseminar após o falecimento de seu esposo ou companheiro quanto ao marido ou companheiro se utilizar de maternidade substitutiva – formando dessa maneira a família monoparental, uma das formas de constituição familiar reconhecida no país.[4]
Cumpre destacar que o primeiro caso de que se tem notícia de uma autorização para a realiza[5]ção da técnica de reprodução assistida post mortem ocorreu na França, em 1984, quando Alain Parpalaix, ao descobrir que tinha um câncer no testículo, resolveu depositar seu material genético em um banco de sêmen, com o intuito de poder ter um filho com sua esposa Corie Richard findo o tratamento quimioterápico.
Ocorre que Alain veio a falecer após o casamento e, visando concretizar o desejo de seu esposo, Corie Richard teve que buscar autorização judicial para que o banco de sêmen pudesse entregar o material genético do seu falecido marido.
O banco de sêmen alegava que não havia uma legislação autorizando a inseminação artificial post mortem, tampouco havia uma autorização do falecido marido para a entrega do seu material genético para outra pessoa.
Após uma longa batalha judicial, o tribunal francês condenou o banco de sêmen a entregar o material genético do esposo para um médico designado pela viúva.
No entanto, pela morosidade da ação, a inseminação artificial não foi concretizada, pois o material genético já não estava mais próprio à fecundação.
De qualquer forma, o tribunal francês, pela primeira vez, autorizou a técnica de reprodução assistida post mortem e foi a partir deste caso que abriu-se a discussão em diversos países sobre a destinação do material coletado, principalmente após a morte do titular do material genético.
Aqui no Brasil, o primeiro caso de reprodução assistida post mortem ocorreu na cidade de Curitiba, em 2011, com o nascimento da bebê Luiza Roberta. A mãe da criança, Katia Lenerneier, obteve autorização da Justiça em maio de 2010 para a realização da inseminação artificial com a utilização do sêmen do marido, falecido em fevereiro do mesmo ano.
A questão foi também foi judicializada, pois a clínica de fertilização onde o sêmen estava congelado e o Conselho Regional de Medicina não autorizaram a reprodução assistida post mortem, sob o argumento de que não havia o consentimento prévio do falecido marido.
No entanto, o Judiciário entendeu pela presunção de vontade do marido, considerando que antes do óbito ficou comprovada as diversas tentativas de inseminação artificial.
Desta forma, tem-se aqui o primeiro caso de reprodução assistida post mortem no Brasil.
Apesar da técnica de reprodução assistida ter sido criada nos anos de 1970, no Brasil ainda não há uma legislação disciplinando essa questão. Silvio de Salvo Venosa explica:
Advirta-se, de plano, que o Código de 2002 não autoriza nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata lacunosamente a existência da problemática e procura dar solução ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por um estatuto ou microssistema. Com esses dispositivos na lei passamos a ter, na realidade, mais dúvidas do que soluções, porque a problemática ficou absolutamente capenga, sem a ordenação devida, não só quanto às possibilidades de o casal optar pela fertilização assistida, como pelas consequências dessa filiação no direito hereditário. É urgente que tenhamos toda essa matéria regulada por diploma legal específico. Relegar temas tão importantes aos tribunais acarreta desnecessária instabilidade social.[6]
Alguns projetos de lei estão em tramitação no Congresso Nacional para regulamentar o tema.
O projeto de lei nº 7701/2010, em tramitação na Câmara dos Deputados, de autoria da então deputada Dalva Figueiredo, dispõe sobre a utilização post mortem do sêmen do marido ou companheiro, para acrescer ao Código Civil o art. 1.597-A, com a seguinte redação:
Art. 1.597-A. A utilização de sêmen, depositado em banco de esperma, para a inseminação artificial após a morte do marido ou companheiro falecido, somente poderá ser feita pela viúva ou ex-companheira com a expressa anuência do marido ou companheiro quando em vida, e até trezentos dias após o óbito.
O projeto de lei nº 4.892/2012, de autoria do então deputado Eleuses Paiva, tem por finalidade instituir o Estatuto da Reprodução Assistida, para regulamentar a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais.
O projeto de lei busca, ainda, regulamentar a reprodução assistida post mortem.
Art. 35. É permitido o uso de material genético de qualquer pessoa, seja óvulo, espermatozoide ou embrião já formado, após a sua morte, desde que haja manifestação específica, em documento escrito, dado por ela em vida, para o uso do seu material biológico criopreservado, descrevendo:
I – a pessoa que deverá gestar o ser já concebido, em caso de embrião;
II – a quem deverá ser destinado o gameta, seja óvulo ou espermatozoide, e quem o gestará após a concepção.
Parágrafo único. A pessoa escolhida como destinatária deverá dar sua anuência ao documento.
Art. 36. Não serão permitidas a coleta e a utilização de material genético daquele que não consentiu expressamente, ainda que haja manifestação uníssona de seus familiares em sentido contrário.
Além disso, o projeto de lei nº 4.892/2012 garante o direito sucessório do descendente advindo de fecundação post mortem.
Art. 59. Tratando-se de fecundação post mortem, garantir-se-á o direitosucessório do descendente, caso a gravidez ocorra em até 3 anos da abertura da sucessão do genitor que autorizou expressamente a utilização de seu gameta ou embrião criopreservado.
§ 1º As partes que se submeterão aos procedimentos de reprodução assistida serão informadas clara e expressamente quanto à condição apresentada no caput, no termo de consentimento informado, antes de se submeterem ao tratamento.
§ 2º Caso haja material genético congelado de pessoa que tenha deixado autorização expressa para sua utilização, nos termos desta lei, será aberta sucessão provisória ou condicional até que transcorra o prazo de 3 anos ou que, dentro desse período, se constate a gravidez do descendente biológico da pessoa falecida.
§ 3º Transcorrido o prazo previsto ou nascido o filho a sucessão passará a ser definitiva.
§ 4º O previsto neste artigo não exclui o direito de petição de herança, nos termos do Código Civil.
Por fim, há ainda em tramitação na Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 9.403/2017, de autoria do então deputado Vitor Valim, que tem por finalidade modificar o art. 1.798 do Código Civil, legitimando para suceder os filhos gerados por meio de inseminação artificial após a morte do autor da herança.
Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão bem como os filhos gerados por meio de inseminação artificial após a morte do autor da herança, desde que:
I – os cônjuges ou companheiros expressem sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dados aos embriões, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los, através:
a) Testamento público; ou
b) Testamento particular; ou
c) Documento assinado em clínica, centros ou serviços de reprodução humana, serviços médicos hospitalares, todos devidamente cadastrados e reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina ou Conselhos Regionais de Medicina.
II – nos casos de necessidade de gestação em útero diversos a um dos cônjuges, será obedecido o disposto na legislação vigente ou na Resolução do Conselho Federal de Medicina ou determinação judicial.
O projeto de lei nº 9.403/2017 foi apensado ao projeto de lei nº 7.591/2017, de autoria do deputado Carlos Bezerra, que tem por finalidade acrescentar o parágrafo único do art. 1.798 do Código Civil, para conferir capacidade para suceder aos concebidos com o auxílio de técnica de reprodução assistida após a abertura da sucessão.
No entanto, todos esses projetos de lei encontram-se em análise na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.
Diante do entrave enfrentado pelo Congresso Nacional para aprovar uma lei regulamentando a reprodução assistida, bem como a questão envolvendo o direito sucessórios dos embriões criopreservados, atualmente a matéria tem sido regulamentada por meio de resoluções do Conselho Federal de Medicina.
A Resolução CFM nº 2.320/2022, que adota normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, admite a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização prévia específica da pessoa falecida para o uso do material biológico criopreservado.
Já o Provimento nº 63 do CNJ dispõe no art. 17 que para o registro e emissão da certidão de nascimento nos casos de pessoa nascida por meio da reprodução assistida post mortem é necessária a apresentação do termo de autorização prévia específica da pessoa falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida.
Por fim, o Superior Tribunal de Justiça também enfrentou a questão da reprodução assistida post mortem, ao julgar o Recurso Especial nº 1.918.421/SP, em 08/06/2021, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão. No julgamento deste recurso especial foi firmado o entendimento de que não é possível a viúva implantar o material genético do marido com base em contrato de prestação de serviço firmado por ambos com a clínica de fertilização. Segundo o voto do Ministro, o cônjuge falecido deveria ter deixado uma autorização expressa para que o seu material genético fosse utilizado para uma reprodução assistida post mortem.
Desta forma, diante de uma omissão legislativa sobre a questão envolvendo a reprodução assistida post mortem, as Resoluções do Conselho Federal de Medicina e do Conselho Nacional de Justiça, bem como a jurisprudência, tem firmado o entendimento sobre a necessidade de autorização expressa da pessoa sobre o desejo da utilização do seu material genético após a sua morte, ressaltando que esta autorização tem que ser formalizada expressamente em documento próprio para esta finalidade, seja em documento público ou particular.
- O DIREITO SUCESSÓRIO NA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM
A reprodução post mortem pode ocorrer através da utilização do material genético homólogo ou através do embrião in vitro do material genético homólogo do falecido.
O art. 1.798 do Código Civil dispõe que são legitimas à sucessão as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. No entanto, mencionado dispositivo nada dispõe sobre a legitimidade da sucessão nos casos de reprodução assistida post mortem.
Já o art. 1.597 do Código Civil dispõe que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos (i) havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, (ii) havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga.
Assim, uma corrente defende a legitimidade para sucessão dos embriões, uma vez que foram concebidos na constância do casamento e, portanto, antes da abertura da sucessão.
Carlos Roberto Gonçalves explica:
Não há como esquivar-se, todavia, do disposto nos arts. 1.597 do Código Civil e 227, § 6º, da Constituição Federal. O primeiro afirma que se presumem “concebidos” na constância do casamento “os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido” (inciso III). O segundo consagra a absoluta igualdade de direitos entre os filhos, proibindo qualquer distinção ou discriminação.
Se, assim, na sucessão legítima, são iguais os direitos sucessórios dos filhos, e se o Código Civil de 2002 trata os filhos resultantes de fecundação artificial homóloga, posterior ao falecimento do pai, como tendo sido “concebidos na constância do casamento”, não se justifica a exclusão de seus direitos sucessórios. Entendimento contrário conduziria à aceitação da existência, em nosso direito, de filho que não tem direitos sucessórios, em situação incompatível com o proclamado no art. 227, § 6º, da Constituição Federal.[7]
Nesse sentido, Caio Mario da Silva Pereira explica que:
Na hipótese de pessoas nascidas do desenvolvimento de embriões excedentários (Código Civil de 2002, art. 1.597, nº IV), deve prevalecer o entendimento de que têm legitimação para suceder, em virtude de já estarem efetivamente concebidas ao tempo do óbito do de cujus (permitindo, por isso, a incidência da regra do art. 1.798 do Código Civil de 2002).[8]
Para complementar, Maria Helena Diniz ensina que:
Se, por ocasião do óbito do autor da herança, já existia embrião crioconservado, gerado com material germinativo do de cujus, terá capacidade sucessória, se, implantado num útero, vier a nascer com vida e, por meio de ação de petição da herança, que prescreve em dez anos após a sua maioridade (18 anos), poderá pleitear sua parte no acervo hereditário.[9]
No entanto, outra corrente defende que o termo “concebido” deve ser interpretado como “nascituro”. Assim, o embrião excedentário seria aquele ainda não concebido, inseminado ou implantado no ventre materno, e que, portanto, não possui legitimidade sucessória. Desta forma, para essa corrente doutrinária as pessoas havidas por reprodução assistida post mortem não teriam legitimidade de suceder.
O art. 1.799 do Código Civil, que trata da sucessão testamentária, permite que os filhos ainda não concebidos, de pessoa indicada pelo testador, sejam chamados para suceder, desde que esta esteja viva no momento da abertura da sucessão.
Neste sentido, Maria Helena Diniz ressalta que são absolutamente incapazes para adquirir por testamento:
O indivíduo não concebido (nondum conceptus) até a morte do testador, salvo se a disposição testamentária se referir à prole eventual de pessoas designadas pelo testador, desde que estejam vivas, ao abrir-se a sucessão (CC, art. 1.799, I). Para receber herança ou legado será preciso que o beneficiado seja nascido ou esteja ao menos concebido por ocasião do óbito do disponente (CC, art. 1.798). Mas a lei permite que se contemple prole futura de um herdeiro instituído (CC, art. 1.799, I) e, em substituição fideicomissária (CC, art. 1.952), pessoa ainda não concebida. Assim sendo, se o herdeiro nomeado existir por ocasião da abertura da sucessão, o legado estará assegurado ao filho que futuramente vier a ter. A expressão prole eventual só compreende os filhos e não os netos da pessoa indicada pelo testador (…). O futuro genitor, indicado no testamento, precisa estar vivo à época da abertura da sucessão. Se não estiver, não poderá conceber, e a disposição caducará.[10]
Considerando que a lei nada dispõe sobre a legitimidade da sucessão nos casos de reprodução assistida post mortem, poderá o doador do material genético consignar em testamento, como manifestação de última vontade, que o seu material genético, guardado em uma clínica de fertilização, seja utilizado post mortem para a geração do seu herdeiro?
Através de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, os filhos gerados post mortem através da técnica de reprodução assistida devem ser considerados como legítimos para suceder.
No entanto, é preciso que em vida o de cujus deixe uma autorização expressa em documento público ou particular para que seu material genético seja utilizado pelo cônjuge ou companheiro sobrevivente. O ideal é que a manifestação de vontade seja feita por instrumento público e por meio de um testamento, uma vez que referido documento possui fé pública e confere uma maior segurança jurídica.
Ensina Gustavo Tepedino, em sua obra Fundamentos do Direito Civil, que
Caso o testador pretenda beneficiar o próprio filho a ser havido post mortem, mediante implantação do embrião in vitro ou uso do sêmen criopreservado, releva ter em consideração a controvérsia existente a respeito da legitimidade sucessória a fim de melhor precisar sua vontade testamentária. Mostra-se de grande importância que reste expressa a disposição testamentária no sentido de trazê-lo como beneficiário em igualdade de condições com os demais irmãos eventualmente existentes, na hipótese de ser esta a sua intenção. Isso porque, prevalente o entendimento de que teria legitimidade sucessória na vocação legítima, com o testamento poderia cumular a sucessão legítima e testamentária. Assim, nesses casos o uso de testamento se apresenta valioso, a precisar os contornos do direito sucessório do filho proveniente de reprodução post mortem e, inclusive, limitando no tempo a autorização para a utilização do material genético criopreservado.[11]
Assim, a existência de um testamento faz com que, no momento da abertura da sucessão, os atos de disposição de última vontade do falecido sejam observados e cumpridos.
Desta forma, se o testador deixou autorizado expressamente o desejo que o seu material genético seja utilizado pelo seu cônjuge ou companheiro para a geração de uma prole eventual, os filhos gerados por técnicas de reprodução assistida post mortem são legitimados à sucessão.
Cumpre destacar que a Constituição Federal assegura no seu art. 5º, XXX, o direito à herança a todos os cidadãos. Assim, não se pode afastar a legitimidade da sucessão aos filhos nascidos por técnicas de reprodução assistida post mortem, desde que tenha sido expressamente autorizado pelo de cujus a utilização do seu material genético para a geração de prole eventual para depois de sua morte.
Dimas Messias de Carvalho considera que:
(…) havendo ou não testamento, devem ser reservados os bens dessa prole eventual, posto que, por força de resolução do Conselho Federal de Medicina, o autor da herança manifestou sua vontade e consentimento no banco de sêmen, evitando-se futuro litígio ou prejuízo ao direito constitucional da herança.[12]
Além disso, o art. 226, § 7º da Constituição Federal, ao tratar da família, assegura que o planejamento familiar é livre decisão do casal. Valendo-se da prerrogativa do planejamento familiar, se o casal celebrou um contrato de prestação de serviço com a clínica de reprodução assistida, fornecendo o material genético para a formação de um embrião, e um deles deixou uma autorização expressa para o uso do meu material genético pelo cônjuge/companheiro sobrevivente para depois de sua morte, não há impedimento algum para que a prole nascida por técnicas de reprodução assistida post mortem sejam incapazes para suceder.
No entanto, vale ressaltar que o art. 1.800, § 4º do Código Civil prevê que, se decorrido o prazo de 02 anos da abertura da sucessão, não for concebido herdeiro, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos.
Ensina Maria Helena Diniz que:
Essa estipulação de um prazo razoável evita que a situação se perpetue, aguardando o nascimento do sucessor do de cujus. Esse prazo de espera para que o herdeiro seja concebido, sob pena de perda do benefício testamentário, justifica-se plenamente, pois a deixa foi feita sub conditione. Nem se poderia nomear herdeira, ou legatária, a prole eventual de pessoa que não possa conceber antes de dois anos, contados do falecimento do autor da herança.[13]
Segundo o doutrinador Gustavo Tepedino:
O prazo legal se impõe por razões de segurança jurídica, a fim de não deixar em aberto a sucessão hereditária à espera da prole futura. Desse modo, a concepção que deve ocorrer dentro do prazo legal é a intrauterina, de modo que nos casos de filiação por meio das técnicas de reprodução humana, a implantação do embrião ou do sêmen há de ocorrer durante esse período, com resultado positivo, sob pena de ineficácia da deixa.[14]
Desta forma, o cônjuge ou companheiro sobrevivente tem o prazo de 02 anos após a abertura da sucessão para valer-se das técnicas de reprodução assistida para que o herdeiro esperado seja concebido e nasça com vida, exceto se o testador dispuser o contrário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reprodução assistida é uma técnica, criada nos anos de 1970, tem como finalidade facilitar a procriação de casais inférteis ou homoafetivos, por pessoas que já possuem uma idade avançada, por pessoas que desejam uma gestação independente, até mesmo utilizada com a finalidade de planejamento familiar.
É uma técnica de concepção artificial que vem crescendo anualmente, porém ainda não existe uma legislação específica sobre o assunto. O que existe são resoluções editadas pelo Conselho Federal de Medicina que trazem normas sobre a reprodução assistida.
Assim, as resoluções editadas pelo Conselho Federal de Medicina e pelo Conselho Nacional de Justiça, bem como a jurisprudência, tem admitido a reprodução assistida post mortem, desde que a pessoa falecida tenha deixado uma autorização expressa para que o seu material genético fosse utilizado para uma reprodução assistida após a sua morte.
Já quanto aos direitos sucessórios do embrião, apesar da legislação brasileira não tratar dessa questão, tem sido firmado o entendimento de que embrião crioconservado, gerado com material genético da pessoa falecida, tem direito ao acervo hereditário, se implantado no útero e vier a nascer com vida.
No entanto, é preciso que em vida o de cujus deixe uma autorização expressa em documento público ou particular para que seu material genético seja utilizado pelo cônjuge ou companheiro sobrevivente.
Contudo, como já mencionado anteriormente, esse entendimento foi firmado com base em resoluções de Conselhos e da jurisprudência.
Desta forma, é necessária a edição de lei específica para regular a matéria para assegurar o direito sucessório os embriões e dos filhos nascidos a partir da técnica da reprodução assistida post mortem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 19.06.2023.
BRASIL, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 19.06.2023.
BRASIL, Conselho Federal de Medicina. Resolução 2.121/2015. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Disponível em https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2015/2121_2015.pdf. Acesso em 18.06.2023.
BRASIL, Conselho Federal de Medicina. Resolução 2.294/2021. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Disponível em https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2021/2294_2021.pdf. Acesso em 18.06.2023.
BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Provimento 63/2017. Dispõe sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2525. Acesso em 17.06.2023.
CARVALHO, Dimas Messias. Direito das sucessões: inventário e partilha. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023.
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. v.6. 37ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023.
DUARTE FILHO, Oscar Barbosa, YAMAKAMI, Lucas Yugo Shiguehara, ALVARENGA, Conrado e TOMIOKA, Renato Bussadori. Condutas práticas em infertilidade e reprodução assistida: mulher. 1ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier. 2017.
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direito das sucessões. v.7. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. v.7. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, 2023.
MADALENO, Rolf. Sucessão Legítima. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
MORAES, Carlos Alexandre. Responsabilidade Civil dos Pais na Reprodução Humana Assistida.1ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito das Sucessões. v.6. 28ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética, biodireito e o Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Sucessões. v.6. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.
TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do direito civil: direito das sucessões. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Família e Sucessões. v.5. 23ªedição. Rio de Janeiro: Forense, 2023.
[1] Leandro da Cunha Nakajo. Advogado. Mestrando em Direito Civil Comparado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
[2] MADALENO, Rolf. Sucessão Legítima. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 104
[3] Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
[4] MORAES, Carlos Alexandre. Responsabilidade Civil dos Pais na Reprodução Humana Assistida.1ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. p. 82.
[5]https://ibdfam.org.br/artigos/1863/Reprodu%C3%A7%C3%A3o+assistida+post+mortem%3A+uma+an%C3%A1lise+sobre+os+aspectos+%C3%A9ticos+e+jur%C3%ADdicos
[6] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: família e sucessões. 23ª ed. Barueri: Atlas, 2023. p. 238.
[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. v. 7. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023. p. 30.
[8] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil – Direito das Sucessões. v. 6. 28ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 44.
[9] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. v.6. 37ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023. p. 22.
[10] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões (v.6). 36ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022. p. 73.
[11] TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do direito civil: direito das sucessões. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 32.
[12] CARVALHO, Dimas Messias D. Direito das sucessões: inventário e partilha. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023. p. 27.
[13] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões (v.6). 36ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022. p. 73.
[14] TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do direito civil: direito das sucessões. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 66.