DA APLICAÇÃO DO PENSAMENTO PRAGMATISTA JURÍDICO NO DIREITO TRIBUTÁRIO

DA APLICAÇÃO DO PENSAMENTO PRAGMATISTA JURÍDICO NO DIREITO TRIBUTÁRIO

30 de junho de 2024 Off Por Cognitio Juris

THE APPLICATION OF LEGAL PRAGMATIST THOUGHT TO TAX LAW

Artigo submetido em 20 de maio de 2024
Artigo aprovado em 29 de maio de 2024
Artigo publicado em 30 de junho de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 55 – Junho de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Caio Maia Bozzo[1]

RESUMO: Esse artigo tem por intuito demonstrar e abordar uma série de temas que possuem grande relevância hodiernamente junto ao direito nacional, mais especificamente a seara do direito tributário, notadamente quanto a possível adaptação dos efeitos e aplicações das normas e suas interpretações à realidade social e econômica do país, assim como as problemáticas lógicas e conceituais dessas modificações e adaptações junto ao mundo fenomênico, tendo em vista a linha filosófica atualmente adotada pelo nosso ordenamento jurídico, qual seja, Positivismo. De forma que será abordado, mais adiante e de forma mais aprofundada, os motivos pelos quais um direito tão dogmático como o direito tributário vem se afastando, em certa medida, do pensamento positivista tão apregoado por Hans Kelsen e se aproximando, mesmo que de forma inadvertida, do pensamento jurídico-filosófico do Pragmatismo de Peirce e outros pensadores ilustres desse movimento, onde a realidade e os efeitos das decisões nessa possuem grande peso e relevância.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Tributário. Pragmatismo Jurídico. Imposição da Realidade

ABSTRACT: The purpose of this article is to demonstrate and address a series of issues that are of great relevance today in national law, more specifically in the field of tax law, especially with regard to the possible adaptation of the effects and applications of rules and their interpretations to the country’s social and economic reality, as well as the logical and conceptual problems of these changes and adaptations to the phenomenal world, in view of the philosophical line currently adopted by our legal system, namely Positivism. The reasons why such dogmatic law as tax law has been moving away, to a certain extent, from the positivist thinking so proclaimed by Hans Kelsen and moving closer, even if inadvertently, to the legal-philosophical thinking of Peirce’s Pragmatism and other illustrious thinkers of this movement, where reality and the effects of decisions have great weight and relevance.

KEY-WORDS: Tax Law. Legal Pragmatism. Imposition of Reality

I – INTRODUÇÃO

Ab initio, cumpre salientar alguns pontos e contornos essenciais do ordenamento jurídico brasileiro atual, assim como alguns dos descritivos conceituais acerca das duas escolas filosóficas aqui tratadas, entre outros pontos essenciais às conclusões aqui expostas – possibilidade de flexibilização da aplicação e interpretação da norma para atingir os fins constitucionalmente estabelecidos à nossa sociedade.

Essa introdução teórica e dogmática tem como objetivo precípuo pautar as resoluções, premissas e eventuais críticas aqui elencadas e, isso se faz necessário, tendo em vista que as referidas conclusões, desse breve estudo, prescindem do conhecimento das referidas temáticas adotadas pelo autor.

II – PECULIARIDADES E PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE A FILOSOFIA-JURÍDICA DO PRAGMATISMO DE PEIRCE E DO POSITIVISMO-JURÍDICO DE HANS KELSEN

O pragmatismo jurídico de Peirce e o positivismo jurídico perpetrado por Kelsen são duas linhas filosóficas que adotam perspectivas distintas ao analisar o direito e as normas que permeiam nossa sociedade, partindo de premissas e balizadores que nem sempre coadunam entre si quando da aplicação deste sistema na resolução de conflitos de uma determinada população ou mesmo quando da interação deste com outros sistemas que compõem nossa sociedade, como o sistema político, sistema ecônomico ou o sistema social.

Neste diapasão, ressalta-se que o juspositivista austriaco Hans Kelsen adota a premissa de que o Direito é definido, majoritariamente, pela edição de uma norma jurídica escrita – positivada – e que não precisa, necessariamente, possuir uma correspondência com um valor moral ou ético, no entanto, deve sempre possuir uma sanção correlata – mesmo que veículada por outra norma escrita -, como se verifica do trecho abaixo citado:

“Na verdade, o conceito de “bom” não pode ser determinado senão como “o que deve ser” o que corresponde a uma norma. Ora, se definirmos Direito como norma, isto implica que o que é conforme-ao-Direito (Das Rechtmässige) é um bem. A pretensão de distinguir Direito e Justiça, sob o pressuposto de uma teoria relativa dos valores, apenas significa que, quando uma ordem jurídica é valorada como moral ou imoral, justa ou injusta, isso traduz a relação entre a ordem jurídica e um dos vários sistemas da Moral, e não a relação entre aquela e “a” Moral. Desta forma, é enunciado um juízo de valor relativo e não um juízo de valor absoluto. Ora, isto significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente da sua concordância ou discordância com qualquer sistema de Moral.” (Kelsen, Hans, Teoria Pura do Direito, 8ª Edição, 10ª Tiragem, Editora WMF Martins Fontes, pg. 75/76)

Percebe-se que Kelsen, desde o início de sua icônica obra, começa a distanciar o seu descritivo conceitual de Direito dos costumes e influências que permeiam uma sociedade. Tratando, efetivamente e de maneira inequívoca, a Ciência do Direito como algo desatrelado e apartado das outras ciências e/ou influências que compôem a coletividade, como a econômia, costumes ou moralidade – essa bastante vinculada a religiosidade de uma nação.

Essa premissa adotada por Kelsen tem como objetivo final exatamente tratar                 o Direito como um sistema “puro” e efetivamente autopoiético[2], onde todos os eventuais problemas expostos e integralizados a esse sistema devem ser solucionados exclusivamente por meio do uso de seus próprios instrumentos e de seus elementos caracteristicos, possuindo uma certa – e evidente – blindagem quanto aos conceitos e vicissitudes de outras ciências sociais que poderiam intervir nos métodos utilizados à resolução do referido problema ou em suas soluções.

Nota-se, ainda, que a Teoria Pura do Direito – principal obra publicada por Hans Kelsen – tem por pano de fundo e como matéria onipresente em todo o seu livro de filosofia jurídica a distinção entre o Sein (ser) e Sollen (dever-ser) onde a norma jurídica, necessariamente, representa um objetivo social a ser alcançado, no qual resta positivada uma conduta que deve ser reprimida ou incentivada nos cidadãos, como se verifica in verbis:

“Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o termo “norma” se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. (…) Desta forma o verbo “dever” é aqui empregado com uma significação mais ampla que a usual. No uso corrente da linguagem apenas ao ordenar-correspondente um “dever”, correspondendo ao autorizar um “estar autorizado a” e ao conferir um “poder”. (   ) A primeira parte refere-se a um ser, o ser fático do ato de vontade; a segunda parte refere-se a um dever-ser, a uma norma como sentido do ato. ( ) A distinção entre ser e dever-ser não pode ser mais aprofundada. É um dado imediato de nossa consciência. Ninguém pode negar que o enunciado: tal coisa é – ou seja, o enunciado através do quela descrevemos um ser fático – se distingue essencialmente do enunciado: dalgo deve ser – com o qual descrevemos a norma – e que da circunstância de algo ser não se segue que algo deva ser, assim como da circunstância de que algo deve ser se não segue que algo seja.“ (Kelsen, Hans, Teoria Pura do Direito, 8ª Edição, 10ª Tiragem, Editora WMF Martins Fontes, pg. 5/6)

Em vistas do exposto, nota-se que, para Hans Kelsen, o direito é uma ciência que estuda e apresenta o objetivo finalístico de uma sociedade, de maneira que a realidade, efetivamente, tem que se adequar à norma – o dever-ser – e não o inverso, restando evidente, neste interim, que essa linha filosófica se desconecta dos efeitos e produtos do sistema jurídico junto aos outros sistemas que compõem a sociedade.

E são exatamente essas firmes premissas salientadas pela referenciada linha filosófica, fortemente influentes nos desenhos e balizas adotados pelo ordenamento jurídico praticado na terra brasilis, que são criticadas por esse artigo e que vão de encontro com os pressupostos ressaltados pela filosofia jurídica estadunidense do Pragmatismo-Jurídico aplicado por Peirce.

Nesta esteira, quando da análise das obras e pensamentos do influente pensador Charles Sanders Peirce – expoente da linha filósofica do Pragmatismo Jurídico – infere-se que o direito, nada mais é do que uma prática social e cultural reiterada e sua interpretação/concepção deve, necessariamente, ser avalizada no contexto geral de uma comunidade, levando em conta seus valores, crenças e a moralidade genérica que a permeia.

Constata-se, portanto, que essa linha filosófica atribui maior valoração e peso a realidade fática e aos arredores do sistema jurídico, modelando-o, adaptando-o e buscando fundamentos que extrapolam os textos legais, tanto quando da análise das premissas do caso como também nas implicações e efeitos das suas decisões.

Em outras palavras, Peirce trata a realidade e as outras Ciências Sociais – mesmo que sem expressamente assim o dizer – como modeladores e balizadores da Ciência do Direito, e nesta linha filosófica são as normas, seus efeitos e suas interpretações que devem se adequar à realidade fática do caso – raciocínio inverso do praticado por Kelsen.

Em continuidade a esse tema, nota-se, portanto, que o positivismo de Kelsen advoga por uma interpretação mais literal e objetiva da lei, enquanto o pragmatismo jurídico de Peirce sugere uma interpretação mais flexível e que leve em conta e consideração as condições concretas e as necessidades da comunidade como um todo.

Desta maneira, pode-se constatar que o Pragmatismo-Jurídico traz ao sistema jurídico conceitos e influências alheias a juridicidade interpretativa, tornando a interpretação da lei em uma função que prescinde, necessariamente, de uma análise ampliativa da demanda apresentada e, ainda, quando da própria formulação das premissas do julgamento, o exegeta, necessariamente, deve prezar pela ancoragem com a realidade.

Neste sentido, o Pragmatismo de Peirce é bastante permeado e envolvido pela ideia de que a verdade – realidade – e os produtos do sistema jurídico devem ser avaliados em termos de suas consequências práticas e de como elas se revelam nas experiências concretas. Em outras palavras, a melhor resolução de um problema jurídico, aplicação da verdade, só é produzida quando esta for o resultado direto da soma de todos os possíveis resultados e implicações da aplicação e inserção desta na realidade.

Ato contínuo, o que se pode observar com o emprego dessa corrente filosófica é que, através de uma metodologia cientifica de apuração da realidade, se pode alcançar e prestar um melhor serviço jurisdicional, acarretando na elaboração de um “produto” que melhor se amolda às expectativas da sociedade.

Dessa forma, a adoção deste pensamento jurídico auxilia na criação de um sistema jurídico mais flexível, adaptável ao contexto que está inserido e mais voltado às necessidades da sociedade, se desvinculando do uso imperativo da forma sobre o conteúdo.

III – DIREITO TRIBUTÁRIO – DEFINIÇÕES E CARACTERÍSTICAS

Expostas e sedimentadas as principais caracteristicas das escolas jurídico-filosóficas citadas acima, cumpre trazer à baila um pequeno excerto doutrinário acerca da dinâmica e definição do direito tributário pátrio, assim como, seus contornos caracteristicos, como se pode verificar in verbis nas palavras do ilustre doutrinador Renato Lopes Becho, em sua obra, Lições de Direito Tributário – Teoria Geral e Constitucional:

“O direito tributário pode ser definido como “o ramo do direito público que rege as relações jurídicas entre o Estado e os particulares, decorrentes da atividade financeira do Estado no que se refere à obtenção de receitas que correspondam ao conceito de tributos” (SOUSA, 1975, p.40), assim como “a disciplina da relação entre fisco e contribuinte, resultando da imposição, arrecadação e fiscalização dos impostos, taxas e contribuições” (NOGUEIRA, R.B., 1993, P. 30). Essas definições são, além de didáticas, interessantes, pois consideramos digno de nota os autores destacarem o aspecto pessoal do direito tributário, que está na relação entre os particulares e o Fisco, e não apenas o objeto da liame, que é o tributo.”[3]

Em sentido bastante similar ao exposto acima, quando da elaboração de sua descrição conceitual acerca do direito tributário, se encontra o doutrinador brasileiro Luciano Amaro, que vai além neste descritivo conceitual e acopla a discrepância de tratativa entre as partes envolvidas nessa relação jurídica, como se verifica dos excertos abaixo citados:

“Preferimos, por amor à brevidade, dizer que o direito tributário é a disciplina jurídica dos tributos. Com isso se abrange todo o conjunto de princípios e normas reguladores da criação, fiscalização e arrecadação das prestações de natureza tributária.

As definições do direito tributário, insistem, com frequência, na tônica de que o objeto desse setor do ordenamento jurídico são as relações entre o Estado (credor) e os particulares (como devedores). Veja-se, por exemplo, o conceito dado por Rubens Gomes de Sousa, para quem direito tributpario é o “ramo do direito público que rege as relações jurídicas entre o Estado e os particulares, decorrentes da atividade financeira do Estado no que se refere à obtenção de receitas que correspondam ao conceito de tributos”.”[4]

“Não obstante sejam de imprecisa demarcação as fronteiras que apartam os campos do direito público e do direito privado, e admitindo a sobrevivência dessa antiga mas contestada subdivisão, a classificação do direito tributário como ramo do direito público não se questiona. A preponderânica do interesse coletivo no direito dos tributos é evidente, daí derivando o caráter cogente de suas normas, inderrogáveis pela vontade dos sujeitos da relação jurídico-tributária.

Se é verdade que o direito privado se tem “publicizado” em vários de seus setores, deve apontar-se, como nota característica desse ramo jurídico (se não quisermos afirmar a preponderância do interesse dos indivíduos participantes da relação jurídica), pelo menos a necessária subjacência do interesse individual, nesta espécie de relações.” [5]

Como se pode observar da simples leitura das referidas descrições conceituais supramencionadas, essa subdivisão do direito nacional tem um caráter proeminentemente regulador e trata especificamente, mas não somente, da relação pecuniária – tributária – entre o Estado[6] e seus Contribuintes, abrangendo, portanto, tanto o objeto transferido – pecúnia – como também as partes envolvidas.

Nota-se, ainda e em complemento ao descritivo conceitual citado, que a referida transferência forçada de valores é justificada pela preponderância do interesse público em detrimento do interesse individual e pela necessidade de se propiciar e assegurar – financeiramente e materialmente – a atuação Estatal.

Em outras palavras e de forma conclusiva, o que se tem como direito tributário, é que ele trata da área do direito público atinente as relações que envolvam o intercâmbio de valores entre o ente tributante e o contribuinte e que, concomitantemente, tenha como objetivo a concessão dos valores pecuniários ou materiais necessários à viabilização da atuação Estatal.

Em decorrência do exposto se pode constatar que o Direito Brasileiro e ainda mais o Direito Tributário possui um inerente caráter instrumental, como se pode, inclusive verificar junto à ilustre obra de Geraldo Ataliba, Hipótese de Incidência Tributária, in verbis:

“3. Caráter instrumental do direito

3.1. Consiste o caráter instrumental do direito nesta qualidade que todos reconhecem à norma jurídica de servir de meio posto à disposição das vontades para obter, mediante comportamentos humanos, o alcance das finalidades desejadas pelos titulares daquelas vontades. Aos objetivos que dependem de comportamentos humanos podem ter no direito excelente instrumento de alcance. (…)

4.1 O direito é, pois, um instrumento para a obtenção de finalidades e objetivos que só podem ser alcançados mediante comportamentos humanos.

A lei (expressão mais eminente e solene do direito) é o instrumento da vontade do estado que obriga os comportamentos humanos a realizarem os objetivos visados por aquela vontade: tanto comportamentos de agentes seus quanto os de terceiros sujeitos a seu poder.”[7]

O caráter eminentemente instrumental do direito tributário – e as consequências lógicas deste atributo -, inclusive, é adotado como verdade por outros autores pátrios – mesmo que de forma reflexa – onde trazem, ainda, maior especificidade e bases às conclusões posteriormente elencadas neste artigo, como se verifica abaixo:

“A questão a ser colocada, então, deve ser: qual a finalidade do direito tributário? Qual deve ser o conteúdo do elemento teleológico da legislação tributária? A doutrina no início do tratamento acadêmico do direito tributário, afirmava que era a necessidade de dinheiro do Estado. Assim, a interpretação econômica era a principal, pois a razão teleológica para o direito tributário é a arrecadação. Nesse sentido é a lição de Rubens Gomes de Sousa (1975, p.79) e de Amílcar Falcão (1999, p. 76)[8]

Diante dessas definições, considerações e da efetiva aplicação desse ramo do direito no desenvolvimento do sociedade, temos que o mesmo vem sendo historicamente caracterizado por um certo apego à dogmática e apresso as formas expostas na lei, caracteristicas essas que são bastante evidentes junto ao Positivismo de Hans Kelsen.

IV – DA CARACTERIZAÇÃO PORMENORIZADA DO PRAGMATISMO-JURÍDICO E DE SUA NECESSÁRIA APLICAÇÃO NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO

Neste momento, vale salientar que o Brasil – e toda a sociedade mundial na realidade – vem se desenvolvendo de forma bastante célere, tanto no ramo tecnológico[9] quanto social[10]. E os referidos avanços acabam por tornar antigos preceitos, incluindo os jurídicos, inócuos e bastante incongruentes com as mudanças que se avizinham e modelam a sociedade atual.

Diante disso, as prévias necessidades coletivas e/ou econômicas de uma sociedade se tornam antiquadas de forma bastante rápida e as soluções anteriormente perfeitas e/ou adequadas às resoluções daqueles problemas se viram como instrumentos incapazes de apaziguar os anseios presentes e, por vezes, até intensificam situações desagradáveis quando aplicadas com soluções antigas.

E é neste cenário de convulsão social que a filosofia jurídica marca mais uma vez sua estada e pode nos auxiliar nas resoluções dos desafios que são colocados diante de nosso ordenamento jurídico e das novas dinâmicas tributárias necessárias ao amparo dessas inusitados pleitos sociais.

Como restou exposto junto ao capítulo II deste artigo, o Pragmatismo-Jurídico, a meu humilde entender, se torna a mais adequada linha filosófica capaz de lidar com esse tipo sociedade por duas de suas mais basilares caracteristicas, quais sejam: antifundacionalismo e contextualização das decisões com o ambiente em que são emitidas.

Diante do alegado, cumpre trazer à baila uma breve e brilhante descrição conceitual dos principais e mais importantes pilares de sustentação do Pragmatismo, que foram elaborados pela pesquisadora Margarida Lacombe Camargo no trecho de sua obra: “O Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal”, com transcrito abaixo:

“Antifundacionalismo – A perspectiva antifundacionalista mostra que a verdade não se encontra em princípios e conceitos dados ou previamente construídos. Os conceitos, advindos da experiência pretérita, constituem-se em hipóteses a serem confirmadas na prática. Portanto, um pensamento aberto, sempre sujeito à verificação. Não se trata de um pensamento fechado, condicionado à subsunção do fato concreto a uma verdade anteriormente dada. Nesse aspecto o pragmatismo jurídico negará uma vinculação necessária com a dogmática, abrindo-se para o consequencialismo.

O antifundacionalismo, de alguma maneira se confunde com o anti-essencialismo, porque o mundo dos valores, dos universais e das essências não diz muito ao pragmatista, que se ocupa dos desafios que a prática apresenta.

Contextualismo – Considerando que o conhecimento parte de hipóteses a serem confirmadas na prática, a força do contexto sobressai. Assim, a pressão das circunstâncias passa a melhor dimensionar do problema. E visto o Direito como prática social, o pragmatismo jurídico assume uma dimensão tópica, pois as questões de ordem prática é que nortearão a interpretação e aplicação da norma. E a partir do problema então que a busca da solução se dá. O Direito é dinâmico, voltado para questões práticas. Portanto, Direito construído antes nos Tribunais, do exclusivamente no Poder Legislativo.

Instrumentalismo – Já que o pensamento se volta para conseqüências de ordem prática, o Direito, neste aspecto, assume uma postura construtiva, vez que interfere efetivamente na realidade. Trata-se de um poderoso instrumento de orientação da conduta social, conformada pelos possíveis resultados que provoca na sociedade, cujo alcance extrapola as partes em conflito. O aspecto instrumental, nesse aspecto, aponta para o viés político do Direito.

O instrumentalismo, neste aspecto, possui alcance sistêmico.

Consequencialismo – Essa característica do pragmatismo mostra que o conhecimento acompanha o dinamismo da vida. Volta-se para o futuro, na medida em que se pauta nas conseqüências da ação. A decisão sobre a melhor conduta, nesse aspecto, é aquela que se pauta na consideração dos efeitos de um e de outro comportamento: “Se eu agir assim, ocorrerá isso; se agir de outra maneira, os resultados serão outros”. Portanto, as conseqüências possíveis de serem antevistas norteiam a tomada de decisão, e assim não se tem compromisso com princípios e valores.

Logo, o pragmatista procura estar bem informado sobre a operacionalidade dos fatos, suas propriedades e prováveis efeitos causados por alternativos cursos de ação.

Interdisciplinariedade – A abertura para as várias áreas do conhecimento que melhor possam informar sobre os efeitos da ação também é um desdobramento do pragmatismo. O conhecimento especializado, de natureza científica, tem o condão de tornar previsíveis os efeitos da ação, possibilitando o seu melhor dimensionamento.”

Como se pode claramente observar quando da leitura das principais características do pensamento filosófico Pragmatista-Jurídico, acima pormenorizadas, temos que essa filosofia jurídica trata o Direito como um efetivo “instrumento social” – assim como o direito tributário – que observa não somente o passado de forma atenta e criteriosa como também os eventuais resultados futuros do presente escolhido.

Em outras palavras, o Pragmatismo-Jurídico propõe que o hermeneuta do direito deve sempre observar os conceitos anteriormente formulados de forma crítica e antidogmática, além de contemplar – com especial atenção – às consequências não somente jurídicas de suas interpretações como também sociais e econômicas, de maneira a atingir, sempre que possível, uma interpretação harmônica para com toda a sociedade.

Neste diapasão, podemos verificar que diante das características precípuas do Pragmatismo Jurídico como da: (i) Antifundacionalismo; (ii) Contextualismo; (iii) Instrumentalismo; (iv) Consequencialismo; e (v) Interdisciplinariedade, todas as eventuais modificações sociais e/ou econômicas poderão ser levadas em conta quando da data do julgamento de determinada demanda, não havendo uma discrepância – que hoje é bastante corriqueira – da norma pensada com a cabeça do passado para resolução de uma lide presente com consequências futuras.

Em outras palavras, o Antifundacionalismo auxiliará o interprete do direito a questionar efetivamente – pelo método cientifico de fixação de crenças – as bases e descritivos conceituais anteriormente estabelecidos para a resolução de problemas similares, não se deixando, assim, se levar por deduções simplórias e inadvertidas.

Já o Contextualismo o auxiliará quando da análise pormenorizada do ambiente e condições que originaram e possibilitaram o referido problema jurídico, concedento ao hermeneuta uma maior e melhor visão dos fatos que compõem essa lide, aumentando, ainda, a possibilidade da decisão exarada ser mais ponderada e adequada com a realidade.

Quanto aos “princípios” do Instrumentalismo e o Consequencialismo, esses atuarão de forma conjunta e complementar, visto que o primeiro adota a premissa maior de que o Direito é – na prática – um instrumento social para atingir determinado ponto e o consequencialismo “obriga” a utilização desse instrumento com o fito nas consequências de seu uso.

Assim, tanto o instrumentalismo quanto o consequencialismo se voltam a análise e viabilização de uma determinada mudança e/ou estabilização no contexto social, não se limitando – necessariamente – ao sistema jurídico unicamente, podendo se sobressair e se atentar às outras ciências e componentes sociais.

Por fim, mas não menos importante, a Interdisciplinaridade auxiliará em muito o desenvolvimento de nossa sociedade, uma vez que essa característica possibilita o intercâmbio de informações e influências de outros sistemas sociais que compõem nossa sociedade e que fatalmente afetam e são afetados por determinadas decisões judiciais, especialmente, mas não se limitando, as que tratam da seara tributária.

E é diante dos desenhos atuais de nossa sociedade e das caracteristicas do Pragmatismo-Jurídico que se pode notar que a segurança jurídica rígida e imutável – tão ambicionada pelo positivismo clássico – não consegue mais entregar uma prestação de serviços jurisdicionais que atenda a todas as novas ambições sociais e nem mesmo pode resolver de forma minimamente satisfatória e completa a lide que lhe é proposta, uma vez que se limita a uma crença estabelecida a  priori e não aos outros efeitos globais da decisão.

Ato contínuo, ainda e especialmente neste ponto, que apesar do recorrente realce realizado por Kelsen quando da necessidade da manutenção da diferenciação do sistema jurídico e da ciência do Direito em face as outras ciências sociais, cumpre salientar que referido entendimento, com a máxima vênia, é impróprio e ignora a realidade fática.

Como muito bem apontado por Peirce em suas obras e por diversos Pragmatistas Jurídicos, se faz mais do que necessária a ancoragem do Direito e de sua ciência com a realidade, e esse raciocínio Pragmatista vai de encontro à “pureza” cientifica adotada por Kelsen, uma vez que – para Kelsen – os efeitos de uma decisão não poderiam – sob nenhuma hipótese – levar em conta os efeitos econômicos e/ou sociais da mesma, devendo ela se atentar exclusivamente ao que esta estabelecido pela norma e se encontra dentro do sistema jurídico.

Por corolário lógico de todo o exposto, nota-se que o Pragmatismo se mostra muito mais adequado para lidar com as mudanças sociais e para conceder uma melhor prestação jurisdicional, visto que possibilita a mudança nas decisões e na interpretação das normas em vistas aos novos momentos, sempre com o olhar presente para o futuro e não com o olhar passado para o presente.

V – DA APLICAÇÃO DO PRAGMATISMO NO DIREITO TRIBUTÁRIO

Em vistas das considerações supramencionadas, já se observa, no judiciário brasileiro notadamente junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), uma mudança considerável na interpretação concedida às normas e principalmente na atenção do julgador às consequências extrajuridicas e repercussões de suas decisões.

Esse intercâmbio interpretativo da corte suprema de nosso pais se deu não somente pela atual incompatibilidade do Positivimo Jurídico com a realidade dos fatos ou em virtude de sua incapacidade em prover um produto jurisdicional compatível com as demandas atuais, mas também se deu pela abertura legislativa para tais interpretações e adoção das mesmas nas decisões recentes.

Abertura legislativa essa que se teve como ponto exordial e fundamental a edição da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) sob o nº 4.657/42, notadamente com relação ao seu art. 21, que trouxe a necessidade de se analisar sistemas alheios ao jurídico quando da prolação de uma decisão judicial, como se pode observar no trecho legal transcrito abaixo:

“Art. 21.  A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

Parágrafo único.  A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.”

Referida normativa, apesar de pouco conhecida ou mesmo utilizada quando da prolação de decisões, tanto administrativas quanto judiciais, soluciona – em parte – uma eventual incongruência do pensamento positivista com fatos alheios ao sistema jurídico na resolução de problemas jurídicos, uma vez que condensa, em forma lei, uma eventual atenção a outros elementos anteriormente adotados como não-jurídicos.

Ou seja, esssa norma efetivamente incorpora ao sistema jurídico outros sistemas e elementos caracteristicos destes ao processo de resolução de problemas apresentados ao judiciário – o que, até então, eram legalmente e formalmente excluídos.

Ato contínuo, após a edição deste balizador interpretativo, o legislador nacional entendeu por bem, editar uma das principais – e talvez mais controversa – legislações que abre, em igual medida, o sistema jurídico à aspectos que não lhe são naturais, qual seja, a que instituiu da modulação de efeitos quando do julgamento de eventuais Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) e/ou Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), como se verifica no art. 27 da Lei nº 9.868/99, trecho abaixo citado:

“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

Com vistas a essa norma, nota-se que há uma abertura legislativa, clara e evidente, para que o julgador possa limitar os efeitos de sua decisão, desde que a referida restrição, acarrete quando da análise dos resultados dessa decisão no mundo fenomênicos em insegurança jurídica e/ou no tolhimento excepcional do interesse social.

Ora, nada mais pragmatista que a referida norma referenciada acima, a modulação dos efeitos de uma determinada decisão proferida com efeitos erga omnes pelo STF corresponde à consolidação e consagração de uma série de pontos pragmatistas, como do contextualismo, consequencialismo e interdisciplinariedade, uma vez que claramente deixa entrar no sistema jurídico e no processo decisório elementos de outras ciências e áreas do conhecimento humano, como econômia, política, gestão-pública, entre outros, tudo isso em nome do interesse público e segurança jurídica.

Como se pode constatar, notadamente com relação ao limitador interpretativo do “interesse público” citado na norma, esse poderá ser avalizado, quando da modulação dos efeitos da decisão do Supremo, pela utilização de premissas e problematicas não necessariamente tratadas ou oriundas do sistema jurídico, podendo o Supremo avocar parâmetros econômicos, sociais e/ou políticos, como usualmente o são, para limitar efeitos.

E é neste ponto que excepcionalmente o direito tributário – por sua caracteristica instrumental e viabilizadora do interesse público em geral – que tem sido alvo de inúmeros julgados que possuem elementos “estranhos” ao ordenamento jurídico para limitação dos efeitos das decisões exaradas pelo STF.

Nesta esteira, vale ressaltar a modulação de efeitos concedida no famoso caso que tramitava junto a nossa Suprema Corte acerca da exclusão do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da base de cálculo do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS)[11], onde restou decidido pela impossibilidade relativa dos contribuintes se pleitearem restituição tributária dos valores irregularmente recolhidos, trecho transcrito in verbis:

“Decisão: O Tribunal, por maioria, acolheu, em parte, os embargos de declaração, para modular os efeitos do julgado cuja produção haverá de se dar após 15.3.2017 – data em que julgado o RE nº 574.706 e fixada a tese com repercussão geral “O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da COFINS” -, ressalvadas as ações judiciais e administrativas protocoladas até a data da sessão em que proferido o julgamento, vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Marco Aurélio. Por maioria, rejeitou os embargos quanto à alegação de omissão, obscuridade ou contradição e, no ponto relativo ao ICMS excluído da base de cálculo das contribuições PIS-COFINS, prevaleceu o entendimento de que se trata do ICMS destacado, vencidos os Ministros Nunes Marques, Roberto Barroso e Gilmar Mendes. Tudo nos termos do voto da Relatora. Presidência do Ministro Luiz Fux. Plenário, 13.05.2021 (Sessão realizada por videoconferência – Resolução 672/2020/STF).”

Cumpre inicialmente frisar, que não se pretende debater o tema 69 a fundo ou mesmo a modulação dos efeitos que foi consagrado especificamente neste caso, mas tão somente a sua dinâmica jurídica e clara influência econômica em um tema eminentemente jurídico.

Exposto isso, da perfunctória análise dessa emenda, esse limitar gera não somente uma certa estranheza como até indignação aos hermeneutas mais acostamos com a seara tributária, uma vez que o judiciário declarou efetivamente, inequivocamente e de maneira ampla que a inclusão dos valores recolhidos à título de ICMS nas bases de cálculo do PIS e da COFINS não deveriam existir, em vistas da sua clara incompatibilidade constitucional.

Entretanto, mesmo com a declaração da referida inconstitucionalidade, eventuais recolhimentos – agora considerados irregulares e inconstitucionais – efetuados pelos contribuintes não poderiam ser pleiteados junto ao judiciário ou de forma administrativa, como meio de preservação da supremacia do interesse público e dos problemas econômicos nas contas públicas que poderiam ser causados em virtude dessa declaração.

Em outras palavras, os contribuintes desavisados – aqueles que não ingressaram com uma demanda judicial antes do julgamento de mérito deste tema – tiveram seu direito declarado pela corte constitucional do país como certo e válido, mas, os efeitos práticos – diga-se, econômicos – dessa decisão e direito não poderiam subsistir.

Referida modulação dos efeitos da decisão se deu em virtude do pedido formulado pela Procuradoria Nacional, posteriormente acatado pelo tribunal, que trouxe – exclusivamente – argumentos econômicos, como se observa do pequeno excerto abaixo citado:

“Requer a modulação dos efeitos da decisão para que produza “efeitos gerais, após o julgamento dos presentes Embargos de Declaração e da definição de todas as questões pendentes, supra expostas”, evitando-se assim, com base nos princípios da isonomia e da capacidade contributiva, alegada nociva “reforma tributária com efeitos retroativos”.

Aponta matéria jornalística publicada no Valor Econômico sobre as consequências do julgamento, em que se teria divulgado que a “decisão, nos termos em que foi proferida (i) atinge profundamente o sistema tributário brasileiro, podendo alcançar um sem número de tributos; (ii) provocará uma mudança dos preços relativos da economia (beneficiando os maiores contribuintes do ICMS); (iii) impõe uma reforma tributária (sem garantias que se crie um sistema melhor que o sistema atual, mas aquele que for possível); (iv) possibilita restituições que implicarão em vultosas transferências de riqueza dentro da sociedade”.

Assevera gravoso impacto no equilíbrio orçamentário e financeiro dos Estados e assinala que os “riscos fiscais para o ano de 2015, exclusivamente no que diz respeito a incidência do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS – excluído portanto o potencial da tese adotada impactar em outras controvérsias –, chegou aos seguintes valores, com base em informações da Receita Federal do Brasil, para as possíveis restituições: R$ 250.294,05 milhões, até 2015. Tais números, no que tange às perdas, se repetiram na LDO de 2017”.

Nota-se, portanto, que o pleito para modulação dos efeitos se utilizou de elementos eminentemente econômicos  para efetivamente vedar o direito de restituição dos contribuintes e não efetivamente juridicos, visto que se observasse a dinâmica exclusivamente legalista/Kelseniana, esses acarretavam no inequívoco direito a restituição pelos contribuintes.

Essa especial atenção do STF aos temas econômicos – de interesse público – quando da elaboração de uma decisão judicial de grande magnitude demonstra a aplicação do pensamento filosófico do Pragmatismo-Jurídico – mesmo que incipiente – na prática e a maior integração do sistema jurídico com as outras ciências sociais.

Nota-se que o referido julgado e entendimento não se encontra desacompanhado junto às cortes excepcionais do país, como se verifica pela modulação de efeitos da decisão proferida junto à Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49, com trechos abaixos citados:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS- ICMS. TRANSFERÊNCIAS DE MERCADORIAS ENTRE ESTABELECIMENETOS DA MESMA PESSOA JURÍDICA. AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE DO ICMS . MANUTENÇÃO DO DIREITO DE CREDITAMENTO. (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA AUTONOMIA DO ESTABELECIMENTO PARA FINS DE COBRANÇA. MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS DA DECISÃO. OMISSÃO. PROVIMENTO PARCIAL.

1. Uma vez firmada a jurisprudência da Corte no sentido da inconstitucionalidade da incidência de ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica (Tema 1099, RG) inequívoca decisão do acórdão proferido.

2. O reconhecimento da inconstitucionalidade da pretensão arrecadatória dos estados nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma pessoa jurídica não corresponde a nãoincidência prevista no art.155, §2º, II, ao que mantido o direito de creditamento do contribuinte.

3. Em presentes razões de segurança jurídica e interesse social (art.27, da Lei 9868/1999) justificável a modulação dos efeitos temporais da decisão para o exercício financeiro de 2024 ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito. Exaurido o prazo sem que os Estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, fica reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos.

4. Embargos declaratórios conhecidos e parcialmente providos para a declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do art. 11, § 3º, II, da Lei Complementar nº87/1996, excluindo do seu âmbito de incidência apenas a hipótese de cobrança do ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos de mesmo titular. (…)

A gravidade das consequências desse cenário evidenciam excepcional interesse social de pacificação pelo Poder Judiciário das relações jurídicas tributárias, que ensejam a excepcional aplicação do instituto da modulação do efeitos temporais da decisão para que os estados da federação empreendam esforços perante o Congresso Nacional e o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) para melhor conformação do esquadro legal do ICMS.

12. Além disso, o abalo à segurança jurídica e o excepcional interesse social, que justificariam a modulação, estariam evidenciados pelo seguinte: (a) haveria uma “profunda modificação da sistemática de apuração do ICMS”, de modo a elevar a carga tributária devida pelos contribuintes – o que é incompatível com o princípio da não surpresa e da anterioridade tributária – e a reduzir a arrecadação de alguns Estados; (b) os Estados concederam inúmeros benefícios fiscais relativos às saídas para estabelecimentos de mesmo titular; e (c) os Estados precisam “discu[tir] e uniformiz[ar] [a] interpretação, para fins de aplicação da legislação pertinente a outros fundamentos […]: a anulação do crédito do imposto relativo às operações anteriores […]; a eventual possibilidade de apropriação do crédito da origem pelo destino e os casos de diferimento do imposto nas operações internas anteriores às transferências interestaduais”. A não modulação, na visão da embargante, implicaria a natureza indevida dos pagamentos, o cabimento da repetição do indébito tributário e o estorno dos créditos respectivos.” (g.n.)

Em igual medida ao julgado anterior, mais uma vez o eventual impacto econômico nas contas públicas foi utilizado como baliza para tolhir os efeitos integrais de uma decisão judicial, ou seja, um aspecto anômico e proveniente de um outro sistema social influenciou diretamente na formulação e repercussão de um ato eminentemente jurídico.

Referidos apontamentos são feitos não somente para comprovar que é possível, mesmo em um sistema tão positivista como o nosso, adotar premissas e validadores externos para a prática do direito nacional, como também para demonstrar o longo caminho que deve ser explorado, visto que a aplicação de tão somente o parâmetro econômico não cumpre para com todos os requisitos mínimos e amplos da Constituição Federal.

E, ainda, demonstra aos novos operadores do direita que a aplicação exclusiva de modulações de efeitos somente quando se trata de potenciais danos ao erário público não é o suficiente ou mesmo atenderia ao espirito das ciências e filosofias aqui tradadas, devendo, essas limitações interpretativas, serem aplicadas em favor do contribuintes.

Assim, para o transcurso desse caminho e empreitada, se faz mais do que necessário aplicar as asserções e princípios do Pragmatismo-Jurídico, uma vez que são com esses parâmetros já experimentados e que por décadas vem sendo burilados, que o sistema jurídico nacional poderá sair de sua clausura purista para um sistema que acolhe o diferente e se adapta ao presente.

VI – CONCLUSÃO

Em conformidade com tudo que foi exposto, pode-se notar que o pragmatismo jurídico de Peirce e o positivismo de Kelsen apresentam concepções e perspectivas diferentes a respeito do direito, da moral e das normas jurídicas e, embora ambas as correntes filosóficas tenham contribuído para a compreensão do direito, suas divergências levam a consequências jurídicas completamente diversas diante de um mesmo problema.

Assim, diante dessas características bastante diversas dessas escolas filosóficas, da composição atual da sociedade e de suas vicissitudes, temos que somente o Pragmatismo-Jurídico está apto a se amoldar aos desafios atuais e efetivamente prestar um serviço jurisdicional correto, justo e contemporâneo.

Tudo isso em virtude do fato de que o Pragmatismo preza em grande medida por uma análise da lide e ancoragem lógica e de raciocínio com a realidade fática dos autos, se afastando, como é proposto pelo Positivismo Clássico, da aplicação independente da norma.

VII – REFERÊNCIA BIBLIOGRAFIA

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 20ª Edição, 4ª Tiragem, Editora Saraiva, 2014;

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência tributária, 6ª Edição, 15ª Tiragem, Editora Malheiros, 2014;

BECHO, Renato Lopes. Lições de Direito Tributário – Teoria Geral e Constitucional, Renato Lopes Becho. 2014, 2ª Edição, Editora Saraiva;

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. O pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro. In BINENBOJM, Gustavo; NETO, Claudio Pereira de Souza; SARNENTO, Daniel. Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris,a 2009, 363/385;

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 8ª Edição, 10ª Tiragem, Editora WMF Martins Fontes, 2009;

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia. Textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. Introdução, seleção e tradução de Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo, Ed. Cultrix, 1972, pgs. 71 a 92;

https://www.conjur.com.br/2022-jan-03/molinari-pragmatismo-tributario- modulacao-efeitos-stf – acesso realizado em 01/10/2023 às 16:00

https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=2365 – acesso realizado em 01/10/2023 às 11:00

https://www.conjur.com.br/2021-set-30/opiniao-modulacao-efeitos-decisoes-materia-tributaria– acesso realizado em 01/10/2023 às 11:00


[1] Advogado junto ao escritório Aranha Ferreira Advogados; Formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pós-Graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET); Mestrando na Pontifícia Universidade Católica.

[2]“Direito constitui um sistema autopoiético de segundo grau, autonomizando-se em face da Sociedade enquanto sistema autopoiético de primeiro grau, graças à constituição autorreferencial dos seus próprios componentes sistêmicos e à articulação destes num hiperciclo.” (Gunther Teubner, O direito como sistema autopoiético, trad. José Engrácia Antunes, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1989 – trecho extraído da obra Direito Tributário, Linguagem e Método, Paulo de Barros Carvalho, 7ª Edição, 2018, Editora Noeses, pg. 229)

[3] Lições de Direito Tributário – Teoria Geral e Constitucional, Renato Lopes Becho, 2ª Edição, Editora Saraiva, página 29;

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[4] Direito Tributário Brasileiro, Luciano Amaro, 20ª Edição, Editora Saraiva, página 24;

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[5] Direito Tributário Brasileiro, Luciano Amaro, 20ª Edição, Editora Saraiva, página 27;

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[6] Palavra utilizada na sua acepção conceitual de estrutura politicamente organizada, abrangendo todos os entes federados – União, Distrito Federal, Estados e Municípios;

[7] Hipótese de Incidência tributária, Geraldo Ataliba, 6ª Edição, pg. 25 e 27, Editora Malheiros;

[8] Lições de Direito Tributário – Teoria Geral e Constitucional, Renato Lopes Becho, 2014, 2ª Edição, Editora Saraiva, página 46

[9] https://www.wipo.int/pressroom/pt/articles/2022/article_0011.html  – acesso em 27/09/2023 às 14:00

https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/inovacao-e-tecnologia/brasil-fica-em-57o-lugar-entre-132-paises-no-indice-global-de-inovacao/ – acesso em 27/09/2023 às 14:00

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[10] https://www.migalhas.com.br/depeso/266215/breve-analise-sobre-os-avancos-sociais-e-politicos-no-brasil–apos-a-promulgacao-da-constituicao-vigente – acesso em 27/09/2023 às 14:00

[11] Tema 69 – Inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS.