JUSTIÇA CRIMINAL AMBIENTAL E IDIOSSINCRASIAS AMAZÔNICAS

JUSTIÇA CRIMINAL AMBIENTAL E IDIOSSINCRASIAS AMAZÔNICAS

1 de março de 2023 Off Por Cognitio Juris

ENVIRONMENTAL CRIMINAL JUSTICE AND AMAZON IDIOSYNCRASIES

Artigo submetido em 14 de fevereiro de 2023
Artigo aprovado em 17 de fevereiro de 2023
Artigo publicado em 01 de março de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 45 – Março de 2023
ISSN 2236-3009

Autores:
Ana Flávia Monteiro Diógenes[1]
Leda Mourão Domingos[2]
Sandro Nahmias Melo[3]
Yury Dutra da Silva[4]

RESUMO: O presente artigo tem como fim abordar o problema conceitual de justiça ambiental, suas formas de implementação e pincelar algumas tentativas de resposta à necessidade de consideração das inúmeras peculiaridades da experiência amazônica em face desse primado e de que forma as instituições oficiais e o Direito enquanto constructo cultural podem realizá-lo de modo efetivo e equânime.

Palavras-chave: Sustentabilidade. Justiça Ambiental. Justiça. Cultura Amazônica. 

RESUME: This article aims to address the conceptual problem of environmental justice, its forms of implementation and to paint some attempts to respond to the need to consider the numerous peculiarities of the Amazon experience in the face of this primacy and how official institutions and Law as a construct culture can do it effectively and equitably.

Keywords: Sustainability. Environmental Justice. Justice. Amazonian Culture.

INTRODUÇÃO

Experienciar a Amazônia é também encarar o grande abismo não entre o ser (Sein) e o dever-ser (Sollen), mas entre o que é e o que poderia ser, entre o que se fez e o que poderia ter sido.

De cidade ilhada em cidade ilhada, a vastidão cultural se mostra em seus mais diversos matizes. Na encosta do rio, no meio dele, ou sobre terras alagadas; na capital e no interior, tenta-se viver ou tão somente existir.

Outrora a borracha, depois as fábricas e, logo após, o limbo. A necessária adaptabilidade dos espíritos por essas bandas demanda almas de palafita, capazes de resistir às cheias e secas do dia a dia. O equilíbrio com o que ainda se faz natural grita mais alto que na maior parte dos outros lugares porque se trata da Amazônia, afinal de contas.

A Justiça dá as caras na forma de aparatos oficiais. Um cara-pálida ali e outro acolá: lembranças das caravelas. Trazem consigo não mais bugigangas materiais, mas artefatos ideológicos fúteis ao indígena, conceitos da mitologia imperialista, os pentes e espelhos da nova colonização. Exigem, por fim, seu fiel cumprimento em mais uma relação de troca, melhor dizendo, de esbulho cognoscitivo.

Fizeram assim com a descrição jurídica de meio ambiente, de desenvolvimento sustentável, de direitos indígenas e de um sem número de fantasias conceituais, pouco representativas aos povos tradicionais, construções individualistas que dialogam com um modo de vida distante e que assim deveria ter se mantido para o bem dos povos em questão. Não se quer dizer com isso que a intersecção cultural é um mal a ser evitado; ao contrário, expõe-se o dano que a dominação travestida de diálogo providencia.

A questão que se coloca nesse contexto de imiscuição – mais uma das tantas já praticadas pela sociedade envolvente – é a definição, a medida, bem como a forma de aplicação do conceito de justiça – em sua faceta ambiental – perante as peculiaridades apresentadas pela Amazônia e as comunidades que alberga.

1.   DO QUE SE PENSA POR JUSTIÇA

Pois bem. Comecemos pelo início, quando Deus fez nascer a luz ou o equivalente para o Direito: a justiça. Assim, o conceito de justo parece vital à discussão genealógica da própria ciência jurídica, embora isso também seja debatível. Em verdade, dificilmente alguma das ideias desenvolvidas ao longo deste estudo goza de unanimidade no meio acadêmico e isso até poderia assombrar, esse panorama de uma ciência com um de seus paradigmas permeado por constantes porfias. Talvez fosse mesmo o caso de repensar a justiça como paradigma do Direito, ao menos no âmbito de uma teoria khuniana (1998), mas esse tópico fugiria demasiadamente ao objeto deste escrito. De tal forma, passemos a uma possível análise não exaustiva acerca desse complexo e problemático instituto.

Dessarte, lugar-comum ao intérprete ocidental, pode-se voltar os olhos aos pensamentos erigidos por Platão em A República (2001). A esse pensador, surge o justo como valor absoluto, irretocável e invariável em sua práxis. A título de exemplo, não pode o “homem” ser justo com seus afetos e injusto com seus desafetos, ao mesmo tempo em que considera-se portador desse valor. Vê-se, pois, em Platão, justiça como predicado aferível material e objetivamente. Demais disso, a justiça não poderia servir ao deleite dos mais fortes, sendo um caracter do sábio, fomentador da harmonia e da felicidade. Eis que aqui uma descrição aparentemente dicotômica nos moldes “justo-injusto e bom-mau” pode ser aferida de seus escritos, de modo tal que os valores positivos a Platão seriam categorias ontológicas; como consectário, os elementos justo, bom, feliz e harmônico caminhariam de mãos dadas e poderiam ser vistos na expressão dos indivíduos dotados desses mesmos atributos.

Por sua vez, seu discípulo mais famoso, Aristóteles (2022), legou o famigerado “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade” à tradição jusfilosófica. É dele também o ensinamento já bem assimilado pelo Direito ocidental acerca da distinção entre justiça distributiva e justiça corretiva, dentro de sua teorização acerca de justiça particular, afeta, portanto, à divisão e direcionamento dos bens de uma determinada sociedade. No mesmo pensador, é possível ver o justo enquanto virtude cívica (inegavelmente excludente) e de caráter relacional, exercida entre aqueles a quem se conferia a dignidade de cidadão da Pólis.

É basilar, ademais, sua forma de pensar o justo como uma expressão do igual, sendo “todo justo uma forma de igual”, de sorte que, em não sendo respeitada a justiça distributiva ou meritocrática, deve agir a justiça reparadora (ato de justiça). É notória, outrossim, a inclinação de Aristóteles ao expediente da equidade, para corrigir especificidades não cobertas pela universalidade da lei.

O acima ocorreu na Grécia clássica. Até então, o meio ambiente não despontava como uma preocupação inserta à discussão sobre o justo. Não é crível que Platão condicionasse a entrega das adequadas medidas à não nocividade ecológica, que o tratamento equânime levasse em conta a higidez ambiental.

Confúcio (2020), cerca de cinco séculos antes de Cristo, pensou na justiça como elemento de seu esquema de virtudes essenciais, ao lado da humildade, possivelmente mais central ainda, da conduta, sabedoria e sinceridade. Por seu caráter pragmático, sua ideia de justiça pautava-se no cumprimento dos demais elementos de coesão de sua filosofia.

Nietzsche (2009), no âmbito de sua análise acerca da genealogia da moral, via na justiça algo a ser superado enquanto a mera repercussão da vingança, uma pequena reparação ao fraco. Derivada da fonte reativa, a convenção chamada de justiça seria, pois, uma minúscula vitória do oprimido, o ressentido. Importante frisar que se trata de apenas uma das leituras do termo pelo autor o qual, em sua profícua produção, estruturou seu pensamento de justiça também enquanto justa medida, em seu sentido psicológico e em sua versão poética (CARDOSO e ARAÚJO, 2018).

Oportunamente, uma ideia absolutamente perspicaz desse filósofo, não necessariamente nova dentro da Criminologia (BECCARIA, 1999), ao menos no âmbito de sua Genealogia da Moral, foi a do caráter retributivo do castigo, o qual pode ser entendido como sanção em acepção lata. Sendo o castigo uma forma clássica de exercício da justiça, é possível vislumbrar em seu raciocínio uma derivação dessa categoria como a simples reverberação do prazer de ultrajar (a formação da justiça na noção de crueldade).

Um fato que não pode ser desconsiderado é que um outro famoso disruptor alemão do Século XIX, Marx (2005), enxergava a justiça como mecanismo de opressão do mais forte sobre o mais fraco e não o contrário, como Nietzsche. O conceito de justiça nesse autor encontra-se em disputa corrente, não sendo unânime sua concepção, sendo seguro expressar o aqui assentado enquanto uma tradução jurídica da sua análise sobre o Capitalismo, que fugiu a todo custo de valorações.  Comum aos dois, apenas a ideia de que justiça era objeto de constante deturpação e resultado de arbítrio, seja do mais forte ou do mais fraco. É salutar considerar, porém, a distinção conceitual naquele pensador, que abordava o elemento em comento muito mais em nível de instituição jurídico-econômica, um aparato organizado segundo a lógica burguesa, enquanto Nietzsche falava de justiça enquanto conceito amplo, dentro das várias leituras que fez em vida.

Por sua vez, Alexy (2008) admoesta que, diante de certos cenários de injustiça, a lei pode, inclusive, perder seu caráter normativo. Essa ideia possui, aliás, especial relevância dentro de uma discussão mais profunda sobre argumentação corretiva das decisões judiciais.

Dito isso e, para evitar um sem mundo de citações sintéticas e reducionistas de grandes pensadores que já se debruçaram sobre o tema, provavelmente será de bom tom finalizar esta primeira parte da análise com John Rawls e Sandel. Aquele, o precursor de um liberalismo mais humanizado, por assim dizer, com as teses dispostas em sua célebre Uma Teoria da Justiça e Sandel com sua didática memorável, distanciada das paixões, mas considerando uma análise espiritual necessária ao diálogo político.

Rawls (2000), como todo bom liberal (embora inaugure um liberalismo igualitário, verdadeira heresia para alguns de sua classe), acreditava em alguma medida na meritocracia e realmente elucubra justiça na desigualdade, desde que existissem regras de nivelamento. Não tão simples quanto deu-se a entender, em verdade, seu raciocínio se pauta em uma justiça constituída num contexto do que ele alcunhou de “posição original” – em que as pessoas não se dissociariam – propiciadora da criação de normas justas.

Muito embora não diferenciáveis entre si, para esse pensador, os indivíduos poderiam gozar de distintas virtudes e ocupar diversos espaços na sociedade em função de seus predicados, predileções e escolhas. Sua tese nuclear sobre justiça engloba uma dúplice principiologia: 1. direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas e 2. ordenamento das desigualdades sociais de modo a garantir o maior benefício possível para os menos favorecidos, com a disposição de posições sociais abertas a todos, em igualdade de condições e oportunidades. Ou seja, Rawls realiza sua justiça econômica num equacionamento de desigualdades minimizante dos infortúnios dos menos favorecidos, tenta, pois, compatibilizar uma política redistributiva com o primado da cumulação justa.

É possível atribuir a Rawls, ainda, a noção de que o Estado deve assegurar bens primários aos seus cidadãos a fim de que os mesmos façam bom uso de suas liberdades (num aspecto positivo), sendo um terceiro elemento apto a condicionar as duas premissas levantadas anteriormente.

Num cenário mais contemporâneo, Michael Sandel (2011) faz uso do confronto entre as ideias utilitaristas de Bentham (e também Mill) e dos imperativos categóricos, da razão e moral kantiana, bem como convoca a uma volta ao telos de Aristóteles a fim de propor uma justiça pautada no resgate à virtude cívica; não se furta, portanto, a uma análise moral e espiritual (expressão do próprio) da política enquanto instrumento para a realização do elemento em disputa (o justo).

De tudo isso, parece extraível como estrutura comum, a justiça enquanto produto de seu tempo. Mais do que isso, como verdadeiro constructo. A noção de justiça, ademais, avulta como uma tópica coletiva; é dizer, só se pensa em justo a partir de um exercício de comparação com outrem ou através de um imaginar-se em igualdade num determinado grupo. Esse pensamento não é tão novo. Kelsen (1998) já pensava em Moral e Justiça em termos de alteridade.

Na condição de ser isolado, acaso fosse possível, a justiça não possuiria ao humano conotação (ou as conotações principais) que a ela são atribuídas, sendo possivelmente associada à interação com outras entidades não anímicas (a justiça do universo ou das coisas perante o ser ou em contato com o ser): daí que a justiça também pode (ou mesmo deve, dentro do interesse jurídico) ser lida enquanto artefato coletivo.

Tal cenário desvela um provável relativismo do conceito e o discernimento acerca da coexistência de diversas justiças, igualmente legítimas. A crise da justiça, assim, acompanha-a desde seu berço. Ter perdurado por tanto tempo como objeto relevante de estudo pode indicar, inobstante, sua relevância. Talvez o trajeto de exploração e possível esgotamento de alternativas gerais de sua aplicação imponham a oportunidade ou premência de construção de uma novel categoria, para além do justo, mas isso pode muito bem ser um equívoco e talvez sua sina de disputa seja seu próprio trunfo conformador. Porém, é importante voltar os olhos também ao que há de mais consolidado.

Na ciência jurídica, portanto, é clara a ideia de que a justiça muito improvavelmente será um conceito pacífico. Apesar disso, parece prudente para o desenvolvimento deste estudo adotar uma concepção moral de justo, entendendo-o por termos de convenção, que se concretiza nas instituições e atos de uma sociedade, conforme seus valores, mais ou menos cristalizados em suas normas com maior fôlego de vida.

Nessa perspectiva não naturalista, mesmo que se recorra a um pensamento de que, uma vez estabelecido, o Direito não mais recorre à moral, ainda assim esta variável terá exercido papel fundamental em sua conformação (sendo paradigma de sua estrutura em diferentes locais e momentos), de modo tal que a visão de justiça resultante terá inexoravelmente sofrido a influência dessa moralidade que lhe serviu de espeque.

É assim que a justiça enquanto prática material somente faz sentido acaso recortada geográfica e temporalmente. Portanto, a única forma de encarar honestamente tal conceito seria por meio da aceitação de que jamais ter-se-á em todos os locais, ao menos durante a permanência dos Estados soberanos, A Justiça, mas tão somente as justiças.

A que avulta como uma das melhores tentativas de legitimá-las representa a observação dos processos de pressão coletiva, ou seja, como produto cultural, a origem comunitária convoca à sua legitimação pelo mesmo grupo que comunga de sua existência, em dado momento e local. A vocação democrática da justiça, ademais, é provavelmente uma decorrência dos influxos das práticas ocidentais sobre o pensar socialmente, mas não deixa de fazer sentido no terreno desta análise.

Operacionalizam essa legitimação, com inúmeras limitações factuais, as teorias pluralistas (WOLKMER, 2014), que concebem uma normatividade para além do arquétipo estatutário, bem como a noção de jusdiversidade (MARÉS, 2013), que atesta a realidade de que ordenamentos florescem e se estabelecem nem sempre sob o olhar atento e ubíquo do estado.

2.     A JUSTIÇA, SUA BOCA E A HERMENÊUTICA DO JUSTO CONCRETO

Traçada essa premissa, é preciso considerar que, para fins de segurança jurisdicional, a melhor ideia de justiça será aquela que se coaduna com as regras e princípios derivados das fontes jurídicas. Decerto que algum parâmetro precisa ser convencionado a fim de que certo nível de justiça consensual se opere, porém os casos concretos e a realidade dinâmica da vida social confrontam o intérprete com uma desconcertante realidade: a de que a previsão de justiça (normativa) passada, para além de eventualmente arbitrária, defasa-se no tempo, devendo o próprio Direito cuidar de mecanismos de autocorreção, os quais são implementados por meio de técnicas de julgamento idôneas a compatibilizar a norma de base com a situação concreta não concebida pela fonte. Excepcionalmente, conforme a lógica do ordenamento brasileiro, a própria compreensão inaugural da norma, seu significante imediato, pode ser negada a partir de um juízo concreto de justiça, com o devido ônus argumentativo e enfrentadas todas as dificuldades conceituais prefacialmente expostas alhures.

Existem nesse particular espaço, duas formas diametralmente opostas de enxergar a atividade jurisdicional: como mero mecanismo de aplicação da lei ou como legítima fonte criativa de normas, ainda que normas in concretum.

Objetivamente, é possível verificar na prática jurídica brasileira uma tendência à aceitação da atividade jurisdicional como instância criadora de normas (CAPPELLETTI, 1999), fato verificável, por exemplo, no advento da Lei nº 13105/2015, que erigiu um profícuo sistema de formatação de precedentes vinculantes internos e externos à função judicante. No mínimo uma ordem normativa menor, por assim dizer, pode ser aferida dessa realidade; é dizer, os precedentes em questão vinculam prioritariamente as próprias instâncias de julgamento, sendo secundários em relação à lei em sentido material. Inobstante, inegável sua repercussão na concretização dessas mesmas leis, uma vez que o filtro interpretativo-julgador pode conferir uma roupagem absolutamente distinta à norma inicialmente construída pela função legiferante. Ademais, seus pronunciamentos não raro gozam de repercussão para além da instância judicial, como ocorre nos casos de edição de Súmulas Vinculantes.

Considerada essa vertente, torna-se mais deglutível a ideia de um juiz atuando por equidade, entendida esta como a já conhecida justiça do caso concreto. Mas, antes de serem exemplificados alguns casos em que a ideia de justiça do avaliador prevaleceu sobre a disposição literal da lei, refira-se que, a nível de processo civil, por exemplo, estabelece o art. 140 do CPC que, muito embora o juiz não possa deixar de julgar com base na alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento, somente poderá decidir por equidade nos casos previstos em lei.

Traga-se à baila, porém, a comezinha premissa de que um devido processo deve ser adequado e justo e, como visto, a previsão legal jamais comportará todas as idiossincrasias dos casos concretos gerados pelos imbróglios sociais, do que decorre a conclusão de que seu ideal de justiça precisa ser reajustado constantemente à realidade. Em diversos casos essa adequação é operada pela autoridade jurisdicional.

No contexto criminal, diferentemente, a ideia de equidade aplicada no processo parece mais penetrável, sobretudo porquanto prevaleça a cânone da proteção precípua do investigado ou réu. O pensamento contrário poderia advir do mesmo fundamento (leitura antagônica ou paradoxal de premissas), uma vez que um melhor processo ao réu seria aquele sem grandes intervenções valorativas do magistrado (esses caminhos parecem ter sido trilhados em alguns momentos de reforma do CPP, como a mais recente que diminuiu sobremaneira a ingerência do magistrado por ocasião da determinação de prisão preventiva, que não pode mais se dar de ofício, ainda que na fase judicial, positivada via Lei nº 13.964/2019).

É possível advogar, apesar disso, que, pelas repercussões deletérias que esse sistema (o criminal) pode infligir ao jurisdicionado, a leitura de legalidade e suas funções deve servir à evitação de flagelos desnecessários e indesejados, limitando e guiando a atividade do juiz quando da perscrutação de casos que possam envolver infrações de ordem penal, inclusive as de ordem ambiental.

Para completar o ciclo teorético, voltem-se os olhos ao arquétipo jurídico que se impõe à materialidade histórica brasileira, qual seja a de um necessário filtro constitucional de tudo que se faça, pense ou respire dentro do Direito. É disso que deriva o entendimento de que todo juiz, em todos os casos, faz um controle de constitucionalidade da norma aplicável, visto aqui não como um controle propriamente dito (com as pompas da declaração), mas sim como uma apuração, ainda que preambular e tácita, da compatibilidade da norma aplicada com o parâmetro de topo. O controle propriamente dito é, ademais, autorizado pela natureza híbrida do sistema adotado no Brasil.

Outrossim, ao pensar uma norma como injusta, o juiz o faz voltado ao caso que julga, sob pena de se imiscuir nas vezes de legislador, função para a qual não possui legitimidade, tampouco atribuição. Superado esse introito, é preciso ter em mente uma concepção de norma injusta acaso aplicada ao caso concreto e semelhantes, posto que do caso deflui a necessidade de aferição de justiça pelo magistrado; não de forma abstrata, mas vinculada aos termos do processo. Isso porque não se nega uma norma ao tê-la por inconstitucional, antes reanima-se um sistema constitucionalmente vinculante, dado que a negativa fora feita pela própria norma ao ser confeccionada de maneira incompatível com o topo do ordenamento. A partir disso, pode-se estruturar-se mais adequadamente uma teorização de hipóteses de análise de justiça que neguem a aplicabilidade do texto legal.

Aqui é possível uma ligeira digressão. É que, no controle difuso de constitucionalidade, até pode-se, conforme a doutrina clássica, assinalar que o magistrado avalia a constitucionalidade como questão incidental – em regra, claro -, mas é inegável que sua concepção de injustiça da norma permeará toda a sua atuação, culminando numa ampliação em potencial a todos os casos a ele submetidos dessa mesma noção construída a partir de um caso particular; ao fazê-lo, poderá o juiz dizer, inclusive, “tal norma é inconstitucional em todas as suas hipóteses de incidência”, contudo, a repercussão de sua decisão limitar-se-á às partes e objeto alinhavados na ação. Portanto, o juiz em controle difuso pode aferir a adequação total da norma (vinculada aos termos da demanda) e isso necessariamente implicará a determinação de justiça ou não da mesma: uma justiça de índole constitucional, porém.

Destarte, uma primeira conclusão seria o de que o juiz sempre avalia a justiça da norma incidente, por decorrência do sistema constitucional adotado no Brasil, podendo deixar de aplicá-la caso a considere inconstitucional, ocasião em que também terá a norma por injusta, de modo que toda subsunção – ao  dialogar com os termos da CRFB/88 – revelará, embora contraintuitivamente, análise de justiça (que os positivistas não ouçam esta heresia).

Mas, para além disso, existem algumas outras tessituras de análise. A primeira diria respeito ao interessante recurso decisório alemão conhecido por “declaração de nulidade sem redução de texto”, que incide, assim como no caso da interpretação conforme à Constituição, sobre normas polissêmicas. Contudo, não se cuida da inadequação das interpretações em si, mas sim das hipóteses de incidência da norma, podendo essa questão repercutir sobre o modelo interpretativo adotado (afinal, determinadas interpretações incluem ou afastam hipóteses de incidência). Assim, recaindo sobre uma hipótese de incidência da norma inconstitucional, não se erradica a norma, mas a referida hipótese. Então, como segunda hipótese, entendendo o juiz ser a norma injusta a uma determinada categoria de aplicação, pode o mesmo proceder à declaração de nulidade da mesma, sem a redução do texto normativo de base, ou seja, sem a declaração de sua inconstitucionalidade.

Em resumo, o julgador, com essa técnica, elenca as hipóteses de incidência constitucionais e as demais são presumidamente nulas, ao passo que na interpretação conforme, não há declaração de nulidade de interpretações, mas apenas a determinação de uma que seja a mais compatível com os ditames da CRFB. Assevera a doutrina que, como técnicas de decisão judicial, possuem o mesmo resultado prático (Marinoni, 2021), diferenciando-se mais explicitamente quando manuseadas como princípios interpretativos.

Não se enxerga qualquer óbice à aplicação dessa teoria ao contexto das normas de proteção ambiental, podendo eventual hipótese de incidência afastada ser exatamente aquela que diz com as peculiaridades da Amazônia.

Um outro recurso hermenêutico refere-se à adoção da teoria da derrotabilidade das normas jurídicas de Herbert Hart (1986). O jurista inglês propunha que, diante de um hard case, determinada norma jurídica poderia ser afastada ou ter sua aplicação negada, desde que se estivesse diante de excepcional e relevante exceção. A norma é válida, portanto, assim como nos casos da interpretação conforme e da não redução de texto. De tal forma, todo texto normativo (de regra ou princípio) possuiria uma cláusula implícita (“a menos que”) que autorizaria o afastamento ou a negativa de sua aplicação típica.

Nesse sentido, segundo bem advoga Vasconcellos (2009), todas as normas infraconstitucionais seriam derrotáveis. Mas não tão genérico, é preciso o cumprimento de requisitos formais e materiais e o enquadramento em uma das quatro hipóteses fundamentais autorizativas da derrotabilidade: 1. problemas de interpretação; 2. de provas; 3. de qualificação ou 4. de pertinência. Parece seguro, nessa quadra, afirmar que problemas de interpretação podem conduzir à percepção de injustiça, tornando a tese da derrotabilidade um terceiro caso paradigmático de negação ao texto da lei.

Em resumo, de forma ampla, é possível vislumbrar algumas possibilidades de afastamento de uma norma tida por injusta (ainda que não declarada inconstitucional), de modo a ter sua aplicabilidade negada por aquele que outrora fora visto como mera “boca da lei”:

  1. decisão por equidade (com todas as críticas aplicáveis);
  2. interpretação conforme (que não conduz propriamente ao afastamento da norma, mas à definição da melhor hermenêutica aplicável a ela), nos casos de polissemia;
  3. declaração de nulidade sem redução de texto;
  4. derrotabilidade das normas jurídicas.

Performadas essas linhas de análise, é interessante mencionar que, na prática, não são tão raros os casos em que as normas são derrotadas por representarem casuisticamente injustiças. Um exemplo interessante, por possuir repercussão erga omnes, é o caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal no bojo da ADPF 54 (interrupção de gravidez de feto anencéfalo), em que a corte suprema afastou a incidência do tipo penal de Aborto considerada a injustiça de aplicá-lo ao contexto desse específico tipo de gestação. Perceba-se, a norma não fora declarada inconstitucional, tampouco havia polissemia envolvida, o que existia era verdadeiro hard case que desafiava a justiça da incidência do mandamento legal.

Nesse particular, é possível encontrar leituras jurídicas do caso como sendo verdadeiro ponto de inflexão jurisprudencial representativo de declaração de nulidade sem redução de texto ou mesmo exemplo de aplicação da tese da derrotabilidade das normas jurídicas; numa leitura ou noutra, sendo técnicas decisórias, o resultado prático é o mesmo: a incidência de dispositivo legal consentâneo com as diretrizes constitucionais fora obstada, em determinado contexto, a fim de evitar-se injustiça.

Há ainda diversos casos em que tipos penais não são aplicáveis sob a chancela do princípio da insignificância, verdadeira situação de afastamento da tipicidade material. Trata-se de primado autorizativo de leituras casuístas (muito embora submetido a alguns requisitos aparentemente redundantes) de justiça (HCs 123108, 123533 e 123734).

Em nenhum caso de reconhecimento de atipicidade por insignificância há declaração de inconstitucionalidade do tipo penal, mas simples identificação de que o tipo delitivo, se aplicado ao agente, representará injustiça. Evita-se, assim, o sancionamento de delitos inexpressivos, de bagatela, sem a potencialidade de malferir o bem jurídico tutelado pela norma.

É nesse sentido que, com alguma frequência, crimes ambientais, sob o viés formal, praticados em contextos amazônicos (peculiaridades da região), que envolvam modos de vida estabelecidos por processos culturais específicos, casuisticamente demonstrados, sem repercussão profunda e elevado grau de reprovabilidade social (culpabilidade estrita), são afastados da esfera punitiva do Estado. A esse respeito, são elucidativos os paradigmas jurisprudenciais concernentes à pesca de espécimes em período de defeso (HC 112563). Eis uma grata produção jurídica, que implementa valores bioculturais e ratifica uma agenda de valorização de diferentes culturas. Não se olvida, porém, que com regra, pela natureza difusa do bem ambiental, torna-se desaconselhada a aplicação do princípio da insignificância aos delitos dessa estirpe, o mesmo ocorrendo aos casos de reiteração.

Interessante questão avulta nessa quadra, dizendo respeito a uma leitura de sustentabilidade endógena, qual seja aquela não simplesmente imposta por uma interpretação oficial de órgãos e entidades públicas, a partir de processos dialógicos que desconsideram a cosmologia de seus destinatários, mas que, superando essa defasagem, traz e legitima a definição desse postulado por parte daqueles de quem se cobra sua obediência.

  • 3.       DA JUSTIÇA AMBIENTAL

Não é demandado grande esforço para o entendimento de que a disciplina jurídica é essencialmente voltada à organização de um grupo social, determinando e vinculando comportamentos, de modo que a noção de um Direito que milita em prol do interesse do povo, à forma equânime, demonstra-se construção bastante recente, que interage com as modernas democracias, não sendo qualquer coisa próxima da natureza dessa ciência, mas antes uma decorrência de contingências e influxos político-sociais.

No mesmo sentido, o postulado de uma dignidade (ou direito à dignidade) inata a todo humano não andou pari passu com as normas das primeiras comunidades de que se tem registro. Mesmo antes de Sófocles já havia Direito na Grécia e nem por isso natural. Corrobora de forma desconcertante essa ideia os registros antiquíssimos de práticas que hoje seriam claras ofensas a esse axioma por povos dos mais variados lugares do mundo, a exemplo da escravidão (ainda que de guerra) e dos atos de desposamento coletivo por ocasião de invasão territorial, sendo, outrossim, notório que os sistemas de castas prevaleceram durante boa parte da história das civilizações. Nenhum desses fenômenos escaparia ao crivo da moralidade ocidental contemporânea, contudo, sua sondagem em termos atuais seria um claro exercício de anacronismo. Os fenômenos culturais, e o direito é um deles, são um espelho de seu tempo e isso deve ser levado em conta na sua análise.

Apesar disso, há uma recorrente mítica de que a justiça, moral que é, para que tenha algum sentido científico (numa leitura restritiva do conceito envolvido), precisa gozar desse predicado inato, universal, pretendido pelo jusnaturalismo. Contudo, os fatos contradizem essa necessidade, descortinando um sem número de leituras contraditórias entre si acerca do justo, dando alguma razão lógica ao argumento da separação positivista.

Inegável, porém, que a imposição do justo ou a construção particularmente localizada de justiça forneceu substrato persuasivo a diversas sociedades. Em discursos políticos, é lugar-comum o Direito como realizador de justiça, mas nem por isso lugar primeiro. Portanto, alegar ser a justiça sua função precípua e natural demonstra-se desconectado do processo histórico, sobejamente o ocidental, e extremamente problemático.

Isso conduz à percepção de que a ideia de justiça como função precípua do Direito (numa perspectiva historicista) deve ser vista como tese, não superior à que vincula a estrutura jurídica a fins sistêmicos, ou seja, aquela que trata o fenômeno jurídico como mecanismo de manutenção da viabilidade de uma vida em comunidade, definindo comportamentos e prevendo sanções aos que ponham em risco o desenvolvimento, perenidade e prosperidade de um dado grupo de pessoas, em prol de uma específica concepção de ordem.

Tendo isso em conta e a possível insolubilidade da questão, qual seja a definição da função inicial do Direito onde primeiro se revelou, é preciso caminhar no curso da história e assentar que esse constructo social (o Direito) se tornou realidade. Não é o escopo deste ensaio problematizar o próprio conceito da disciplina e sua suposta universalidade, enquanto corolário inexorável da existência em grupo, dizendo se o mesmo é inafastável e se faz presente em todas as civilizações. Essa informação não é crucial para uma análise construtivista sobre justiça ambiental em terras amazônicas e sobre ela já se debruça a Antropologia Jurídica há boas décadas (Malinowski, 1961).

Menos problemática, mas ainda assim querelosa, a justiça ambiental, enquanto plexo de instituições voltadas à proteção do equilíbrio entre humano e ecossistema, possui uma finalidade própria e serve a fins pré-concebidos, embora de difícil detalhamento, a exemplo da sustentabilidade e equidade social.

Como visto, os órgãos e agentes dessa justiça, quando situados na Amazônia, encontram realidades e discussões atípicas, muitas delas decorrentes da singularidade dos processos histórico-culturais experienciados pelos povos da região. É nesse contexto que a própria instalação de um aparato de aplicação de justiça representa um certo nível de agressão, porquanto, assim como os conceitos aqui tratados, cristalizam construções externas a esses povos, sem seu aceite expresso ou participação elaborativa.

A própria concepção do justo, tão cara ao homem capitalista moderno, é, no mais das vezes, quando implementada no âmbito das experiências dos povos tradicionais, prática dominativa, que desconsidera a história, cultura e instituições e que, não raro, antecedem as trazidas pela tradição poente. Não é demasiado lembrar que a instalação de um estado-nação no norte do Brasil – ofertada de forma duplamente tardia, uma vez que sequer compunha originariamente a colônia – não se deu por ocasião da “descoberta” de terras nuas, o que, aliás, pouco representa a performance abstrativa em referência. Com efeito, tratou-se de mais um erigir do que a doutrina alcunha de estados secundários, ou seja, fincados sobre terras pré-ocupadas, com povos estabelecidos e culturas em curso prático, submetidas a uma uniformização artificial que ainda gera tensões, cisões e guerras até os presentes dias.

Tomando como exemplo os crimes e infrações ambientais dispostos na Lei nº 9605/98, na esteira do brevemente abordado em tópico anterior deste escrito, é adequado afirmar que as práticas dos povos tradicionais que habitam a Amazônia, incluídas as extrativistas, ritualísticas e bioculturais, frequentemente evidenciam lacunas ontológicas, ou seja, com fraca ou inexpressiva eficácia do escopo normativo e, mais vinculadas a este escrito, lacunas de natureza axiológica (DINIZ, 2002), na medida em que, acaso aplicadas sem maiores ponderações, representam injustiças concretas à visão que mais importa: a de seus destinatários.

Portanto, assim como os demais elementos exógenos historicamente impostos aos povos que vivem sob a proteção do bioma amazônico, sejam os tradicionais ou não, a justiça praticada e vivida por essa parcela da população brasileira deve ser lida à luz de sua cosmologia, valores e considerados os inúmeros desafios próprios da socialização.

Nesse cenário, existem dois grupos gerais que compartilham as vicissitudes da vivência amazônica: os tradicionais e os não tradicionais, sendo este relacionado às populações, sobretudo interioranas, que aplicam a lógica da sociabilidade hegemônica em seu espaço. Apenas esse recorte já sustentaria um sem número de avaliações e substratos antropológicos, dado que, mesmo os não tradicionais, sofrem os influxos da pujança do bioma em questão, seguindo a coerência da biocultarilidade (em que humano e ecossistema se implicam reciprocamente).

Tal complexidade é ainda ampliada, e muito ampliada, quando se considera que os povos tradicionais se subdividem em inúmeros outros, sendo de realce no contexto deste estudo os indígenas – os quais, por sua vez, sofrem uma série de repartições étnicas próprias. Há que se destacar, ainda, os quilombolas e os conhecidos ribeirinhos, com expressivas populações no norte do país e modos de existir não alinhados com os da sociedade envolvente, tampouco chancelados pelo seu direito leviatanesco.

Não é razoável que se pretenda aplicar a normatividade oficial no contexto desses povos pelo exercício clássico da subsunção positivista, com sua modelagem eurocêntrica, processada e erigida por forças dominantes autopoiéticas. A limitação dessa linha teórica, em especial na sua corrente estatutária, encontra em cenários tais a barreira titânica da Jusdiversidade (MARÉS, 2021).

Ademais, diferentemente do que apregoava Kelsen e outros brilhantes teóricos positivistas, a realidade dos fatos convoca o direito a se expressar sobre termos de justiça. É certo que aqueles não negavam a moral ou o justo enquanto variáveis influenciadoras do direito, como mitologicamente se crê (VALADÃO, 2022), apenas deslocando sua discussão a outra seara, marcadamente a política, concretizando um ideal cientificista estrito à prática jurídica.

Ocorre que, especialmente em locais com multiplicidades cosmológicas, tradições e institucionalidades diversas, em que as discrepâncias econômicas e sociais saltam aos olhos e ocupam pauta e discussão frequente, o direito – comumente na figura da função judicante – defronta-se com a necessária análise da justiça do caso concreto ou a justeza da aplicação do enunciado normativo à específica situação posta sob seu escrutínio.

O Direito, numa visão pluralista, não conhece como única fonte de origem o Estado, fornecendo valiosos elementos ao magistrado que se permite a hercúlea missão de filosofar nos autos (DWORKIN, 2007), corolário do pensar a justiça. Isso porque a ingênua universalização do direito enquanto construção unívoca, veiculada exclusivamente pela besta estatal, não se sustenta diante da realidade dos fatos, em que normatividades mil foram produzidas à margem da oficialidade, com tanta ou mais força conformadora e, sobretudo, com superior legitimidade apriorística.

Essa constatação possui uma série de implicações ainda bastante desconsideradas pela prática jurídica da sociedade envolvente, que perpassam o significado e conceito analítico de estado, a conjugação de soberanias e a própria concepção de direito. Tem prevalecido, porém, uma visão universalista do fenômeno jurídico e a larga aplicação do direito oficial com meras pitadas de aceitabilidade de práticas multiculturais não atentatórias ao escopo geral da Constituição Federal, no que mais parece um monismo do que essencialmente um pluralismo jurídico.

A vertente discussão, inobstante, encerra o potencial conflito que marcará cada vez mais as discussões políticas envolvendo a real autonomia de povos tradicionais ou conglomerados com práticas díspares das hegemônicas, sendo de especial relevância a discussão instalada em terras andinas acerca do conceito de plurinacionalidade (MAGALHÃES, 2008).

Em território amazônida, os processos culturais próprios também criaram suas instituições, fincaram costumes e ordens jurídicas distintas. A leitura dessa realidade através das lentes monistas ocidentais não dá conta de sistematizar um entendimento coerente acerca das múltiplas práticas alternativas, sejam jurídicas ou não jurídicas. A própria definição de direito, conceito não necessariamente imprescindível a depender da visão antropológica a ser adotada (Radcliff-Brown, 1933), evidencia um problema de incomensurabilidade (KHUN, 1998), limitando o sucesso da abordagem jurídica clássica sobre o fenômeno multitudinário da criação normativa e dificultando a aplicação do aparato e da ideia de justiça no território amazônico, especialmente quanto aos povos tradicionais.

  • 4.     CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do todo exposto, resta clara a constatação de que os modelos clássicos e desgastados de pensamento jurídico e de aplicação subsuntiva da norma oficial não gozarão de plena efetividade no canto norte do Brasil. As diversas cosmologias e culturas que alicerçam no tempo e espaço as variadas formas de se conceber o justo precisam ser trazidas à discussão do direito prático. Mais que isso, qualquer ordem jurídica só vislumbra ampla penetrabilidade quando produzida – ou quando haja tal sentimento – pelos seus destinatários, direta ou indiretamente, na esteira da ideia de autogoverno (KING, 2012), que foi a mais profícua na história humana a apaziguar diferentes visões de mundo em torno de uma mesma diretriz comportamental.

Enquanto a participação, sobretudo dos povos tradicionais, for deficitária ou inexistente na produção conceitual e das normas a eles direcionadas, o problema da efetividade e da injustiça concreta remanescerá. Ideias que não fazem parte do escopo ideológico dessas comunidades, institutos sem aplicabilidade prática aos mesmos ou proibições que tolhem seu modo de existir ou mesmo sua subsistência continuarão a representar tentativas vãs de a sociedade envolvente deglutir as culturas setentrionais.

É preciso trazer à “oficialidade” as concepções e artefatos culturais desses povos a fim de que a normatividade decorrente seja sinérgica e adequada. No ínterim até o fim dessa antevista longa jornada, o intérprete e aplicador do direito tem opções hermenêuticas – e deve usá-las – para afastar injustiças casuísticas decorrentes do evidente choque entre a produção legal ocidental e os costumes dos povos que existem há séculos ao arrepio dessa presunçosa normatividade e de suas instituições.

REFERÊNCIAS

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VALADÃO, Rodrigo Borges. Positivismo Jurídico e Nazismo: formação, refutação e superação da lenda do positivismo. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022.

VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. O conceito de derrotabilidade normativa. Acervo digital, UFPR. Curitiba: 2009.


[1] Mestranda do Programa de Pós Graduação Strictu Sensu em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Professora efetiva de Direito (EBTT) no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – IFAM. Especialização em Direito Público pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM (2017). Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas. Manaus, Brasil. E-mail: anaflavia.monteirodiogenes@gmail.com.

[2] Mestranda do Programa de Pós Graduação Strictu Sensu em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Advogada. Pós Graduada em Direito Público pela Faculdade Damasio. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas. Manaus, Brasil. E-mail: leda.mourao@gmail.com. 

[3] Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.  Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (Cadeira n.º 20).  Juiz do Trabalho Titular da 11ª Região.  Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 11ª Região (Biênios 2015-2017 e 2019-2021).

[4] Mestrando do Programa de Pós Graduação Strictu Sensu em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Analista jurídico no MPAM. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela UniBras. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas. Manaus, Brasil. E-mail: yuridutrasilva@gmail.com