SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E EQUIPARAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA AO CRIME DE RACISMO: ATIVISMO JUDICIAL OU PROTAGONISMO INSTITUCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO NA DEFESA DE MINORIAS?
1 de março de 2022SUPREME FEDERAL COURT AND EQUALIZATION OF HOMOTRANSPHOBIA TO THE CRIME OF RACISM: JUDICIAL ACTIVITY OR INSTITUTIONAL PROTAGONISM OF THE JUDICIAL POWER IN THE DEFENSE OF MINORITIES?
Cognitio Juris Ano XII – Número 39 – Edição Especial – Março de 2022 ISSN 2236-3009 |
RESUMO
O presente artigo tem por finalidade a análise da decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26 e o Mandado de Injunção n.° 4733, no que se refere à alegação de prática de ativismo judicial. A problemática consiste em analisar se a decisão plenária da Suprema Corte de criminalizar a homofobia e a transfobia, com a sua equiparação ao crime de racismo, infringiu a regra da competência exclusiva do Poder Legislativo para produzir novo tipo penal, ou interpretação judicial para colmatar lacunas e fazer cumprir uma ordem constitucional vigente em defesa de minoria hipervulnerável e sub-representada? Assim, tem-se como objetivo desta pesquisa analisar a atuação do Supremo Tribunal Federal neste caso controvertido e se seu veredito violou o princípio da reserva legal mediante analogia in malam partem e abalou a repartição clássica de poderes, ou atuou na linha contramajoritária para tutela de minoria sem representação política e vítima de opressão, através de interpretação judicial restabelecedora do princípio da igualdade material, com finalidade de correção substancial. A metodologia utilizada é a qualitativa bibliográfica, buscando uma análise do conteúdo e referências publicadas acerca da questão. Quando Poder Judiciário toma decisões mais fortes para proteger minorias (com base no princípio da isonomia e dignidade da pessoa humana) e o procedimento democrático, em tese, sua intervenção se dá a favor ou contra a democracia? Depois da promulgação da Constituição de 1988 e consolidação da democracia e dos direitos fundamentais no Brasil, o Poder Judiciário passou a ser acusado de usurpar competências para criar direitos e normas que não encontrariam fundamento expresso no texto constitucional, e algumas decisões da Suprema Corte em questões morais sensíveis e de alta repercussão têm dividido opiniões entre os juristas. O presente estudo analisa a legitimidade de um posicionamento mais forte do judiciário na defesa das minorias (população LGBT), no caso específico da ADO 26 e do MI n.° 4733.
Palavras-chave: Homofobia. Supremo Tribunal Federal. Ativismo Judicial em favor de minorias.
ABSTRACT
The purpose of this article is to analyze the decision of the Federal Supreme Court, rendered in the judgment of the Direct Action of Unconstitutionality by Omission No. 26 and Injunction No. 4733, regarding the allegation of practice of judicial activism. The issue is to analyze whether the Supreme Court’s plenary decision to criminalize homophobia and transphobia, with its equivalence to the crime of racism, violated the rule of exclusive competence of the Legislative Power to produce a new penal type, or judicial interpretation to fill gaps and enforce a current constitutional order in defense of a hypervulnerable and underrepresented minority? Thus, the objective of this research is to analyze the performance of the Supreme Court in this controversial case and whether its verdict violated the principle of legal reserve by analogy in malam partem and shook the classic division of powers, or acted in the countermajority line for protection of minority without political representation and victim of oppression, through judicial interpretation restoring the principle of material equality, with the purpose of substantial correction. The methodology used is the bibliographic qualitative, seeking an analysis of the content and references published about the issue. When the Judiciary Power makes stronger decisions to protect minorities (based on the principle of equality and dignity of the human person) and the democratic procedure, in theory, does its intervention take place in favor or against democracy? After the promulgation of the 1988 Constitution and the consolidation of democracy and fundamental rights in Brazil, the Judiciary began to be accused of usurping powers to create rights and norms that would not find an express basis in the constitutional text, and some Supreme Court decisions on issues Sensitive and high-impact morals have divided opinions among jurists. This study analyzes the legitimacy of a stronger position of the judiciary in the defense of minorities (LGBT population), in the specific case of ADO 26 and MI No. 4733.
Keywords: Homophobia. Supreme Federal Court. Judicial Activism to minorities.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo analisa os julgamentos proferidos pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, que decidiram pela equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n.º 26 e o Mandado de Injunção (MI) n.º 4733, em decorrência da omissão do Poder Legislativo na produção de lei específica com finalidade de criminalizar condutas homotransfóbicas.
O Poder Judiciário desempenha importante papel na definição de controvérsias sociais e políticas, e a atuação dos juízes e dos tribunais no exercício da jurisdição de interpretar e defender a Constituição provoca interferência na sociedade contemporânea, que pode ser compreendida sob dois aspectos: como judicialização da política ou ativismo judicial.
Existem fatores de fragilidade que atingem direta e especificamente determinados grupos de pessoas, tornando-os vulneráveis e gerando desigualdades no acesso a bens e oportunidades. Essas pessoas são denominadas de minorias, entre as quais, incluem-se as mulheres, as pessoas com deficiência, a população LGTB, os negros e os índios, que demandam uma proteção especial e particularizada, em face de sua própria vulnerabilidade e falta de representação suficiente a defender seus interesses perante setores da sociedade.
Pessoas homossexuais são alvos constantes de preconceito e ódio irracional e lutam incessantemente pelo reconhecimento de seus direitos e pelo fim da opressão. Em 2011, os direitos LGBT foram declarados pela ONU como parte integrante dos Direitos Humanos, no sentido que o país que não velar por seus cidadãos integrantes da minoria LGBT passa a violar diretamente os Direitos Humanos e Tratados Internacionais de Direitos Humanos, devendo também adequar suas legislações para incluir a homofobia e transfobia como crime.
Todavia, o Brasil é campeão em violência contra pessoas integrantes da comunidade LGBT, em flagrante desrespeito e intolerância à diversidade de gênero e de orientação sexual, com posturas omissivas, excludentes e preconceituosas. Somos o país onde mais pessoas desse grupo são assassinadas anualmente, um resultado desastroso para qualquer política de segurança pública que procura alcançar resultados minimamente efetivos no combate à violência contra as minorias, que sofrem um processo histórico marcado por discursos religioso, jurídico e médico, responsáveis por danosos efeitos materiais, como o preconceito, discriminação, opressão e deficit de representatividade existentes até os dias de hoje.
Um discurso ainda vigente e legitimador de hegemonia, que destaca a heterossexualidade como a padrão do comportamento sexual e é capaz de fomentar o preconceito e a violência contra pessoas que não se enquadram nesse padrão comportamental, serve de um poderoso instrumento para perpetuar as hierarquias sociais, morais e políticas.
O poder público passa assim a figurar como o grande violador dos Direitos Humanos LGBT, na medida em que não envida os esforços necessários para uma resposta estatal célere efetiva à proteção desses direitos, de modo que a própria sociedade, representada no Congresso Nacional, contribui para a manutenção da discriminação contra pessoas em razão tão somente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. O Poder Judiciário tem o dever de proteção dessas minorias, mas qual seria a medida adequada? Qual seu limite de atuação? O deficit de representação política do grupo LGBT, aliado ao preconceito irracional, impulsiona essa minoria a uma opressão tamanha que ofende os seus mais elementares direitos fundamentais, e que projeta o Supremo Tribunal Federal a adotar postura proativa em defesa dos mais vulneráveis.
A partir dos julgamentos proferidos nas ações acima especificadas, o Supremo Tribunal Federal enquadrou a homofobia e a transfobia como crimes de racismo, determinando a aplicação da Lei 7.716/89, que disciplina os delitos resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. A Corte considerou, por maioria e segundo o voto do Relator, a existência de graves ofensas aos direitos fundamentais da minoria LGBT em razão da superação irrazoável do lapso temporal para implementar a criminalização da homotransfobia.
Contudo, muito se questiona se houve acerto do Supremo Tribunal Federal em expandir sua atuação para criminalizar a homofobia e a transfobia, ao argumento de invasão de competências e atuação fora de seus limites legais da Constituição Federal.
Nesse contexto, a problematização da presente pesquisa analisa a competência originária do Supremo Tribunal Federal para criminalização da homotransfobia, tendo em vista a previsão constitucional que compete ao Poder Legislativo editar as leis em matéria criminal e os princípios constitucionais da legalidade, da reserva legal, da proibição de interpretações extensivas ou analogias in malam partem, em confronto com a mora legislativa em produzir diplomas legislativos necessários a punir atos discriminatórios em razão de orientação sexual ou identidade de gênero da vítima, e o dever constitucional da Corte na guarda e defesa de direitos e garantias fundamentais dos integrantes de minorias vulneráveis,
Ao mesmo tempo, agita a discussão do limite para o ativismo judicial e chama atenção para os avanços democráticos necessários para se acompanhar uma sociedade que se transforma celeremente e necessita de mudanças estruturais à renovação social. Diante disso, impera a seguinte indagação: poderia o Judiciário agir de forma proativa e expansiva para criminalizar uma conduta sem que o poder competente editasse lei específica para o caso?
Para defender a argumentação arguida, serão utilizados os posicionamentos dos julgadores das ações (ADO n.º 26 e MI n.º 4733), assim como são cotejados os argumentos de doutrinadores como Appio (2008), Dworking (2011) e dos Ministros do Supremo Tribunal Federal que participaram do julgamento, bem como o posicionamento de penalistas renomados Nucci (2013) e Bitencourt (2020), além de outros trabalhos e artigos variados, a fim de se verificar se é possível o Poder Judiciário criminalizar condutas sem a edição de leis específicas pelo poder competente.
Trata-se da mais intensa interferência do Judiciário na sociedade contemporânea, onde os juízes são trazidos para o primeiro plano da vida pública, elevados a um verdadeiro palanque jurídico, onde o protagonismo do Poder Judiciário, gerado pelo significativo aumento da judicialização da política, opera o efeito do ativismo judicial.
Contudo, o ativismo também pode ser encarado como uma ferramenta extremamente útil para promover mais rapidamente a democracia ao provocar mudanças estruturais, em proteção a valores sensíveis da comunidade na defesa de minorias hipervulneráveis, uma vez que o Congresso não atua em tempo razoável, de forma a fomentar calorosos debates e reação contrária a essa interferência de um poder em outro, com argumentos fundados na representação popular e na separação dos poderes, em que se defende uma postura de contenção e deferência, já que os juízes não retiram sua legitimidade das urnas e não poderiam invalidar atos estatais decorrentes da vontade de membros governamentais eleitos democraticamente pela população.
Quando as minorias não se encontram suficientemente representadas no Poder Legislativo e no Executivo, é no Poder Judiciário que encontram guarida para proteção de seus direitos e depositam suas esperanças na luta pela erradicação de práticas discriminatórias. Mas qual seria o limite de atuação dos juízes?
2 DIREITOS HUMANOS LGBT
Atualmente, a versão mais completa da sigla para os diversos tipos de orientação sexual é LGBTPQIA+, que compreende as iniciais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, pansexuais, queer, intersex, assexuais e o +, como sinal utilizado para incluir pessoas que não se sintam representadas por nenhuma das outras sete letras, mas que se identifiquem com as orientações sexuais minoritárias e manifestem identidade de gênero divergente do sexo biológico, assim como os simpatizantes (FERRAZ, 2017).
Todavia, neste trabalho, será utilizada a sigla padrão internacional LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) como englobante de todos os atores envolvidos no estudo, sendo esta também a denominação constante nos documentos da ONU e outras organizações internacionais, como a Anistia Internacional.
Em 2011, os direitos LGBT foram declarados pela ONU como integrantes dos Direitos Humanos, mediante afirmação expressa da Resolução nº A/HRC/17/L.9, do Conselho de Direitos Humanos, no sentido de que o país que não velar por seus cidadãos LGBT estará em desacordo com o dever de respeito aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, ou seja, passa a violar diretamente os Direitos Humanos e Tratados de Direitos Humanos. A Resolução da ONU de 2011 também foi bastante clara em sinalizar aos Estados-partes que alterem suas legislações para incluir a homofobia como crime (GENERAL ASSEMBLY, 2011).
Dessa forma, o direito à vida, à vida sexual, à intimidade, à liberdade na orientação sexual e identidade de gênero, à livre manifestação sexual e o direito básico à felicidade constituem princípios basilares dos Direitos Humanos LGBT e são fundamentais ao desenvolvimento da pessoa humana, com a percepção que a sexualidade faz parte da essência do indivíduo, mesmo que seja divergente do padrão, de modo que qualquer empecilho a uma pessoa expressar livremente os sentimentos de sua sexualidade diversa da heteronormalidade constitui afronta ao direito fundamental à vida, já que impede o desenvolvimento livre das relações homoafetivas e torna o ser humano incompleto.
Ao assinar e se tornarem partes de tratados internacionais, os Estados assumem deveres e obrigações sob a lei internacional de respeitar, proteger e cumprir os direitos humanos. A obrigação de respeitar significa que os Estados devem se abster de interferir ou cercear o gozo dos direitos humanos; a obrigação de proteger impõe que os Estados protejam os indivíduos e grupos contra violações de direitos humanos por terceiros; e a obrigação de cumprir significa que os Estados devem tomar medidas para facilitar o gozo dos direitos humanos básicos. Através da ratificação de tratados internacionais de direitos humanos, os governos se comprometem a adotar medidas e criar uma legislação nacional compatível com as obrigações decorrentes desses tratados (UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS, 2020).
Em termos de Direito Internacional, a Resolução passa a ter força obrigatória, após aceitação expressa ou tácita pelo Estado, e, no caso da Resolução citada, o Brasil foi um dos países propositores originais, razão pela qual presume-se a aceitação tácita pelo Estado brasileiro (GORISGH, 2014).
Diversos projetos de leis, envolvendo interesses da comunidade LGBT, tramitam há décadas no Congresso Nacional brasileiro sem andamento regular, muitas vezes, em razão da influência das bancadas conservadoras e religiosas no Parlamento. A aplicação da Resolução L9 da ONU vem sendo ainda aplicada timidamente no Brasil, devido a alguns obstáculos políticos e religiosos, mesmo em se tratando de uma nação laica.
E mesmo com a declaração incontroversa pela ONU que os direitos LGBT são Direitos Humanos, o Brasil é campeão em violência contra pessoas integrantes dessa comunidade, em flagrante desrespeito e intolerância à diversidade de gênero e de orientação sexual, com posturas omissivas e preconceituosas.
3 VIOLÊNCIA CONTRA A COMUNIDADE LGBT
Segundo Ronald Dworkin (2011), existem duas formas de discriminação: aquela em que o grupo pode ser tão marginalizado social, financeira e politicamente, que lhe faltem meios de chamar a atenção dos políticos e de outros eleitores para os seus interesses, de modo que não detém esse grupo poder nas urnas ou de alianças e barganhas com outros agrupamentos, como é o caso dos negros; e aquela outra forma de discriminação em que uma classe de pessoas é vítima de vieses, ódios, preconceitos ou estereótipos tão graves que fazem com que a maioria queira reprimi-la ou puni-la por esse motivo, mesmo quando essas repreensões não sirvam a nenhum outro interesse maior de outros grupos, como ocorre com os homossexuais. São classes que sofrem de deficiências sistêmicas (DWORKIN, 2011).
O Brasil apresenta uma lamentável estatística: lidera o ranking mundial de violência contra transgêneros, cuja expectativa média de vida é de 35 anos no país, em contraposição aos quase 80 anos de vida do brasileiro médio, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (CNJ, 2020).
Em 2020, nosso país permaneceu no pódio como o país onde mais pessoas LGBT são assassinadas em todo o mundo, um resultado desastroso para qualquer política de segurança pública que procura alcançar resultados minimamente efetivos no combate às violências contra as minorias, que sofrem um processo histórico marcado por discursos religiosos, jurídicos e médicos responsáveis por efeitos materiais existentes até os dias de hoje e que resultaram em acentuada subalternização e deficit de cidadania, além da privação de direitos elementares que deveriam ser assegurados a toda população em um Estado Constitucional Democrático de Direito (GONÇALVES; SPINELLI; FERRAZZO et al., 2020).
Segundo Sepulveda A., e Sepulveda D., (2006), as condutas atribuídas aos homossexuais são baseadas em concepções políticas de cunho conservador, levando-se a um discurso de hegemonia que destaca a heterossexualidade como a padrão do comportamento sexual e é capaz de gerar preconceitos contra aquelas pessoas que não se encaixam nesse padrão comportamental, e que serve de um poderoso instrumento para perpetuar as hierarquias sociais, morais e políticas.
Judith Butler (BUTLER, 2021) assevera que as performances de gênero são desempenhadas como estratégias de sobrevivência em sistemas compulsórios com consequências punitivas para aqueles que não encarnam corretamente o seu gênero, com o estratégico objetivo de manter o gênero preso em sua estrutura binária.
Define-se por LGBTfobia como todo e qualquer tipo de conduta decorrente de aversão à identidade de gênero e/ou orientação sexual de alguém que possa gerar dano moral ou patrimonial, lesão ou qualquer tipo de sofrimento físico, psicológico e/ou sexual ou morte. A criminalização de atos LGBTfóbicos foi consolidada em 2019, com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26/DF, pelo Supremo Tribunal Federal, que determinou seu enquadramento como crime de racismo, nos termos da Lei nº 7.716/89, até a promulgação de lei específica para criminalização da conduta pelo Congresso Nacional. Ademais, o STF assentou que, em casos de homicídio doloso, a identificação de LGBTfobia deve ser considerada circunstância qualificadora do crime, por configurar motivo torpe (GONÇALVES; SPINELLI; FERRAZZO et al., 2020).
Com efeito, em 13 de junho de 2019, no Supremo Tribunal Federal (STF), foi concluído o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733, em que, por maioria, o plenário da Corte votou pela equiparação da LGBTfobia ao crime de racismo até que o Congresso Nacional venha a legislar sobre a matéria. Apesar de o tema instigar debates acalorados e controvérsias até mesmo quanto à competência da Suprema Corte para avaliar a questão e o aspecto punitivista de sua tratativa na seara penalista, a omissão institucional quanto a condutas LGBTfóbicas é constantemente denunciada pelo movimento LGBT brasileiro, com dados preocupantes apresentados acerca da violência perpetrada contra esse público.
Um estudo divulgado em 2019 pela ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais) analisou a legislação de 193 países e mostrou que, em 70 deles, a prática homossexual ainda é crime, punível, inclusive, com pena de morte, apedrejamento público, chicotadas ou prisão perpétua. Dos 70 países analisados, em 26 deles, é crime somente se os atos forem praticados entre homens; em outros 44, a punição tanto vale para homens quanto para mulheres. A pesquisa esclarece que a homofobia é chancelada pela legislação nacional, em geral, ao fundamento de “proteger a família tradicional”, impedir o avanço da “ideologia de gênero” e promover a liberdade religiosa (UOL, 2019).
A existência de leis que criminalizem conduta homossexual ou que deixem de criminalizar a homofobia encorajam a população a agir de forma discriminatória contra aqueles que não encenam seu gênero segundo uma estrutura binária prevalecente, e o Estado passa então a figurar como grande violador dos Direitos Humanos LGBT, uma vez que não envida esforços para uma atuação estatal célere e efetiva à proteção desses direitos, de modo a fomentar índices elevados de impunidade e desemparando vítimas e familiares.
Uma recente pesquisa sobre “Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil – intolerância e respeito às diferenças sexuais”, realizada em 25 estados da Federação e 150 municípios, apresentou dados estarrecedores sobre a existência de homofobia de forma escancarada, pois 92% dos entrevistados creem haver preconceito contra gays e lésbicas no Brasil, enquanto que 96% se assumiram preconceituosos contra gays e 97% contra lésbicas (VENTURI, G.; BOKANY, 2011). O Brasil garante assim sua vergonhosa posição de primeiro colocado no ranking mundial de assassinatos homofóbicos, concentrando o percentual de 44% do total de execuções de todo mundo. Nos Estados Unidos, que possui 100 milhões a mais de habitantes que nosso país, foram registrados nove assassinatos de travestis em 2011, enquanto, no Brasil, foram executados noventa e oito. O risco de um homossexual ser assassinado no Brasil é cerca de 800% maior que nos Estados Unidos.
Em 2019, somente no período compreendido entre janeiro a 15 de maio, o Brasil registrou 141 mortes de pessoas LGBT, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), sendo 126 homicídios e 15 suicídios, o que representa a média de uma morte a cada 23 horas (G1, 2019). Tem-se ainda uma carência de dados governamentais acerca da violência LGBTfóbica no Brasil, o que impede um diagnóstico satisfatório a respeito do tema.
O Boletim de junho de 2020 da ANTRA apontou que, durante o período de pandemia, 70% das LGBT cumprindo isolamento social junto a familiares foram vítimas de algum tipo de violência, sem ter espaço ou a quem recorrer com medo do agravamento da situação de violência ou de serem expulsos de casa (PINTO, 2020).
Apesar desses dados serem obtidos a partir de relatos de vítimas em redes de apoio ou serem frutos de pesquisa em jornais, o que leva a subnotificação de casos e torna mais difícil apurar a realidade da dimensão da LGBTfobia no Brasil, as informações coletadas demonstram uma situação preocupante e necessidade imperiosa de incrementação na coleta de dados oficiais e maior suporte às iniciativas públicas e cidadãs que atuem nessa área, pois a violência contra a população LGBT deve ser enfrentada de modo transversal e ainda se encontra sub-representada nas esferas políticas (VOTE LGBT, 2021).
A homofobia e a transfobia não se encontram formalmente inseridas na legislação penal brasileira, ao contrário de outros tipos de crimes resultantes de discriminação ou preconceito por raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Contudo, a criminalização dessas condutas é uma das principais lutas de ativistas dos direitos LGBT no país, e a matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio de duas ações, movidas pela ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos e pelo PPS – Partido Popular Socialista, em 2012 e 2013, respectivamente, ao argumento que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 proíbe qualquer “discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, e que o Poder Legislativo se omitia em editar lei criminalizadora de práticas homofóbicas (BBC NEWS, 2019).
Não há dúvidas que a solução ideal seria a edição de lei específica sobre a matéria, entretanto, essa produção legislativa não sai do papel, e outros meios próprios para fazer avançar a discussão sobre o tema são obstaculizados e rechaçados, razão pela qual o tema foi levado ao STF, na expectativa de combater a violência e proteger os direitos fundamentais de uma minoria vulnerável e que não consegue se fazer ouvir.
4 JULGAMENTO DA ADO 26 E MI 4733
Em 13 de junho de 2019, no Supremo Tribunal Federal, foi concluído o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733, em que, por maioria, o plenário da Corte votou pela equiparação da LGBTIfobia ao crime de racismo até que o Poder Legislativo edite ato normativo sobre a matéria. Apesar de o tema instigar debates acalorados e controvérsias até mesmo quanto à competência da Suprema Corte para examinar a questão e o aspecto punitivista na esfera penal, a omissão institucional quanto a condutas LGBTfóbicas é diuturnamente denunciada pelo movimento LGBT brasileiro, e os dados apresentados sobre a violência sofrida por esse público são alarmantes.
O Supremo Tribunal declarou então inconstitucional a omissão por parte Congresso Nacional quanto à mora na criação de lei para criminalização da homofobia, apesar de haver em tramitação vários projetos legislativos sobre a matéria, todavia, a omissão legislativa perdurou até a data do julgamento, sem impulso suficiente a colmatar a lacuna legal.
Houve o reconhecimento expresso pela maioria do Plenário da Corte acerca da necessidade de proteger os direitos de uma minoria estigmatizada e vítima de violência institucional, diante da demora do Poder Legislativo em incriminar os atos de homofobia e transfobia, considerada essa omissão como ofensa a direitos e garantias fundamentais dos integrantes da comunidade LGBT, razão pela qual os Ministros Celso de Mello, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes votaram pela equiparação da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/89) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria. Por outro lado, os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, vencidos no julgamento, afirmaram que os atos discriminatórios contra grupos LGBT somente poderiam ser punidos por meio de leis específicas aprovadas pelo Poder Legislativo. O ministro Marco Aurélio votou pelo não reconhecimento da mora legislativa (STF, 2019d).
A decisão inédita teve ampla repercussão midiática e acendeu calorosos e controvertidos debates acerca do papel exercido pelo STF no julgamento em epígrafe.
Na conclusão, por maioria, o Plenário do DTF aprovou a tese proposta pelo relator da ADO, ministro Celso de Mello, formulada em três pontos: o primeiro prevê que, até que o Congresso Nacional edite lei específica, as condutas homofóbicas e transfóbicas se enquadram nos crimes previstos na Lei 7.716/2018 e, no caso de homicídio doloso, constitui circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe; no segundo ponto, a tese impõe que a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe o exercício da liberdade religiosa, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio; e, por fim, a tese estabelece que o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis. Ficou vencido o ministro Marco Aurélio (STF, 2019d).
Do voto do Relator, restou consignado de maneira veemente que os integrantes do grupo LGBT nascem iguais em dignidade e direitos a qualquer pessoa e possuem igual capacidade de autodeterminação quanto às suas escolhas pessoais em matéria afetiva e amorosa, especialmente no que concerne à sua vivência homoerótica, e ninguém pode ser privado de seus direitos (entre os quais o direito à busca da felicidade e o direito à igualdade de tratamento que a Constituição e as leis da República dispensam às pessoas em geral) ou sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero (STF, 2019c).
O acórdão elencou os inúmeros projetos de lei em tramitação e de interesse do público LGBT e que não apresentavam impulso suficiente a um desfecho final, dentre os quais proposições que remontavam os anos de 2001, 2002, 2003 e 2004, como o PL Nº 5003/2001, PL Nº 6840/2002, PL Nº 6186/2002, PL Nº 5/2003 e PLS Nº 309 de 2004 (STF, 2019c).
O ministro Celso de Mello ressaltou as inúmeras dimensões do conceito do racismo, que não se restringe a aspectos tão somente fenotípicos, mas representa manifestação de poder que, ao se justificar na desigualdade, oportuniza a dominação de em grupo majoritário sobre minorias vulneráveis, instaurando, através de inferiorização inaceitável e odiosa, situação de exclusão de ordem política e de natureza jurídico-social. Segue o Relator, explicitando que o conceito de racismo ultrapassa aspectos puramente biológicos ou fenotípicos, pois decorre de construção histórico-cultural instituída para justificar a desigualdade e “destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável”, conduzidos à condição de marginais do ordenamento jurídico, por não integrarem o estamento hegemônico da sociedade, expostos à odiosa inferiorização e estigmatização, o que leva a uma situação de exclusão do sistema geral de proteção de seus direitos (STF, 2019c).
O relator apresenta então as soluções possíveis para a colmatação da mora inconstitucional do Congresso, como dever do Estado de proteção e tutela para preservar a integridade de direitos e de liberdades fundamentais, sobretudo de grupos vulneráveis, sob pena de essa inércia do Poder Público viole o princípio que veda a proteção deficiente: ( a) cientificação do Congresso Nacional, para que adote, em prazo razoável, as medidas necessárias à efetivação da norma constitucional (CF, art. 103, § 2º, c/c Lei nº 9.868/99, art. 12-H ,”caput”); ou, então , ( b) reconhecimento imediato, por esta Corte, de que a homofobia e a transfobia, quaisquer que sejam as formas pelas quais se manifestem, enquadram-se, mediante interpretação conforme a Constituição, na noção conceitual de racismo prevista na Lei nº 7.716/89, em ordem a que se tenham como tipificados, na condição de delitos previstos nesse diploma legislativo, comportamentos discriminatórios e atentatórios aos direitos e liberdades fundamentais do grupo vulnerável LGBT (STF, 2019c).
Mello acolheu o parecer da Procuradoria-Geral da República, no sentido de:
(…) conferir-se interpretação conforme a Constituição ao conceito de raça previsto na Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, a fim de que se reconheçam como crimes tipificados nessa lei comportamentos discriminatórios e preconceituosos contra a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros). (…)” (grifei), havendo a eminente Chefia do Ministério Público da União tido o cuidado de assinalar que sua proposta não traduz aplicação “de analogia ‘in malam partem’”: “III.1 HOMOFOBIA COMO CRIME RESULTANTE DE DISCRIMINAÇÃO OU PRECONCEITO DE RAÇA O constituinte originário, fundado na metanorma da dignidade do ser humano, dedicou-se especificamente à erradicação de práticas discriminatórias. São exemplos de normas voltadas a essa finalidade o princípio da igualdade, inscrito no art. 5º, ‘caput’, da Constituição da República, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, como objetivo fundamental da República, insculpido no art. 3º, IV, da CR. Além disso, conferiu à lei a função de punir discriminação atentatória de direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI, CR) e definiu o racismo como crime inafiançável e imprescritível. Condutas contrárias à liberdade de orientação sexual possuem nítido caráter discriminatório e violador da dignidade do ser humano, em patente confronto com esse conjunto de normas constitucionais. A homofobia decorre da mesma intolerância que suscitou outros tipos de discriminação, como aqueles em razão de cor, procedência nacional, religião, etnia, classe e gênero (STF, 2019c, p. 69-70).
Ainda nos termos do parecer, em obediência ao princípio da igualdade, consignou-se que os crimes previstos pela Lei 7.716/89 devem abarcar as condutas homofóbicas, ou seja, os atos de discriminação em virtude de orientação sexual, sem que haja ofensa ao princípio da legalidade. O conceito de raça sob o viés biológico é obsoleto e deve sua interpretação ser conferida de acordo com o princípio da dignidade do ser humano e o Estado Democrático de Direito. Na realidade, a definição de raça e racismo é construída de acordo com o contexto histórico e se altera conforme o tempo e o local. Em outras palavras, o conceito de raça é fluido, tornando possível o surgimento de novos grupamentos considerados raças e o desaparecimento de outros grupos racializados. Uma interpretação atualizada da Constituição da República, fundada nos princípios da igualdade e da dignidade do ser humano, evidencia que a Lei 7.716/1989 abrange atos discriminatórios praticados e motivados por orientação sexual e/ou identidade de gênero (STF, 2019c).
O julgamento da ADO 26 representou um marco histórico na defesa das minorias, na luta pela defesa incondicional dos direitos fundamentais da comunidade LGBT e pela defesa intransigente da Constituição Federal e seus valores mais sublimes de igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana, com o objetivo de erradicar práticas discriminatórias e punir atos que atentem contra direitos e liberdades fundamentais.
5 PRINCÍPIO DA RESERVA LEGALIDADE E ANALOGIA IN MALAM PARTEM
As principais críticas da decisão proferida na ADO 26 e MI 4733 invocam ofensa ao princípio da reserva legal e analogia in malam partem.
No Direito Penal, o Princípio da Legalidade representa um controle ao poder público punitivo, limitando sua aplicação e afastando a possibilidade de toda arbitrariedade e excesso de punição. Trata-se de um imperativo previsto na Constituição Federal, em seu art. 5°, XXXIX: “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, de modo que a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, que deve definir o delito e sua penalidade de forma precisa e cristalina. Por sua vez, o princípio da reserva legal assevera que a regulação de determinadas matérias, dentre elas a esfera penal, deve ser, necessariamente, feita através de lei formal e seguindo as previsões constitucionais a respeito. E o art. 22 do Texto Maior dispõe que compete à União, privativamente, legislar sobre Direito Penal (BITENCOURT, 2020, p. 58-59).
Todavia, também segundo Bitencourt (2020), o Direito vive em constante transformação, pois evolui com a sociedade, e nenhuma legislação, por mais completa e abrangente que se apresente, é capaz de abarcar todas as hipóteses da nossa complexa vida social. O ordenamento jurídico positivo sempre apresentará alguma lacuna, e a analogia é uma forma de aplicação da norma legal, com função integrativa, procurando aplicar um preceito ou princípios gerais de direito a um caso não previsto no texto legal.
O princípio da reserva legal (nullum crimen, nulla poena sine lege) impede que a norma penal tenha lacunas colmatadas pela analogia. Dessa forma, mesmo diante de omissões ou lacunas legislativas, não se admite solução interpretativa que conduza o autor do fato punível a uma situação que lhe seja desfavorável, de modo que a ampliação no sentido de situações não previstas em lei infringe os princípios da legalidade e reserva legal.
Esse é o entendimento de Guilherme Nucci (2013, p. 62): “A analogia, por sua vez, é um processo de autointegração, criando-se uma norma penal onde, originalmente, não existe. Nesse caso, não se admite a analogia in malam partem, isto é, para prejudicar o réu”.
No mesmo sentido, tem-se o doutrinador Greco (2010, p. 42):
Quando se inicia o estudo da analogia em Direito Penal, devemos partir da seguinte premissa: é terminantemente proibido, em virtude do princípio da legalidade, o recurso à analogia quando esta for utilizada de modo a prejudicar o agente, seja ampliando o rol de circunstâncias agravantes, seja ampliando o conteúdo dos tipos penais incriminadores, a fim de abranger hipóteses não previstas expressamente pelo legislador […].
Entretanto, tem-se que a interpretação judicial da Constituição Federal e do ordenamento positivo não se confunde com o processo de produção normativa. E em se tratando de matéria de direitos humanos, a interpretação jurídica há de levar em conta as regras e cláusulas do direito interno e do direito internacional.
Durante o julgamento da ADO 26, o relator ministro Celso de Mello esclareceu a impossibilidade jurídico-constitucional de o Supremo Tribunal Federal tipificar delitos e cominar sanções de direito penal para suprir a inércia legislativa, em obediência ao princípio nullum crimen, nulla poena sine praevia lege e clara transgressão ao postulado constitucional da separação de poderes e do princípio da reserva legal, de modo que a lei interna é a única fonte formal direta legitimadora da regulação normativa concernente à tipificação penal.
Com efeito, destacou o relator que a definição típica das condutas delituosas está subordinada ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei formal (CF, art. 5º, XXXIX), o que rechaça qualquer pleito que venha a infringir essa garantia fundamental, segundo a qual não há crime nem pena sem lei anterior que os defina, afastada, assim, a possibilidade de utilização de provimento jurisdicional como sucedâneo de norma legal, eis que, em matéria penal, prevalece, sempre, o postulado da reserva constitucional de lei em sentido formal, que também encontra reconhecimento expresso na Convenção Americana de Direitos Humanos e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, atos de direito internacional público a que o Brasil efetivamente aderiu (STF, 2019c).
O acórdão deixou claro que não criava novo tipo penal, nem aplicava analogia in malam partem, mas que a homofobia e a transfobia enquadram-se, mediante interpretação conforme a Constituição, na noção conceitual de racismo prevista na L. nº 7.716/89, como comportamentos discriminatórios e atentatórios aos direitos e liberdades fundamentais do grupo vulnerável LGBT.
6 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO PROTAGONISTA DO PODER JUDICIÁRIO E O ATIVISMO JUDICIAL
O Supremo Tribunal Federal é o órgão máximo do Poder Judiciário, o guardião e o intérprete oficial e exclusivo da Constituição, que, em razão da crescente judicialização da política e fomento das relações sociais, bem como da omissão do Congresso Nacional para alguns casos sensíveis, é posto no centro jurídico-constitucional do Estado contemporâneo.
O estudo da interpretação judicial das leis e da Constituição é de fundamental importância para a democracia. Para as correntes doutrinárias que buscam justificar a interpretação judicial, o objetivo principal é a questão da legitimidade dos juízes, e não a justiça das decisões. Mas, no Brasil, a atividade judicial é considerada exercício de poder estatal, cuja legitimidade decorre diretamente da Carta Maior. Juízes sustentam que seus mandatos vitalícios foram outorgados pelo constituinte de 1988, uma legitimidade originária constitucional que supera o impasse em volta de sua competência legal (APPIO, 2008).
Atualmente, o protagonismo institucional do Poder Judiciário é relacionado ao “quadro de valorização do papel do juiz”, por José Ribas Vieira; “protagonismo judicial-processual”, por Lenio Luiz Streck; ou “nova ideia de direito, com o juiz como figura principal” (VIEIRA, 1996; STRECK, 2009; LEITE, 2019).
Esse protagonismo institucional do Poder Judiciário pode ser verificado, sobretudo, em decisões acerca de temas polêmicos, sensíveis, que envolvem questões controvertidas na sociedade ou aspectos morais instáveis socialmente, onde o Judiciário para a ser palco jurídico, mediante o deslocamento de conflitos de interesse de seara política.
Da mesma forma, como astro do processo de interpretação da Constituição, o Supremo Tribunal Federal brasileiro enfrentou questões polêmicas, como a união estável entre pessoas do mesmo sexo, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 132/RJ; a antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 54/DF; as ações afirmativas raciais no acesso às instituições de ensino superior públicas, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 186/DF; a fidelidade partidária dos detentores de mandatos eletivos, no Mandado de Segurança no 26.602/DF; o cultivo, industrialização e comercialização de organismos geneticamente modificados, na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3.035/PR; o uso de celulas-tronco embrionárias em pesquisas, na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3.510/DF; a progressão de regime prisional em crimes hediondos, no Habeas Corpus no 82.959/SP.
6.1 Ativismo Judicial
A definição de ativismo judicial não é uníssona. Pode ser compreendido como participação mais acurada do Poder Judiciário na materialização dos valores constitucionais ou como maior interferência do Judiciário na esfera de atuação dos outros Poderes do Estado, ao argumento de corrigir o mau funcionamento do processo democrático tradicional.
Para Eduardo Appio, “ativismo é uma ferramenta que promove a democracia, nos casos em que a Suprema Corte compreende seu papel histórico, dispondo de credibilidade política suficiente para contrariar a vontade da maioria do Congresso ou quando protege direitos fundamentais”. Mas o autor adverte que a técnica do ativismo enfraquece o princípio democrático ao se isolar em um universo de valores próprios que não correspondam aos valores comunitários, notadamente com a pluralidade cultural. (APPIO, 2008, p. 309).
Segundo Barroso (2008, p. 6), o ativismo judicial é considerado: ‘‘Participação mais ampla e intensa do Poder Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois poderes’’. Por sua vez, Lênio Streck (2011, p. 589), leciona que “um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a partir de argumentos de política, de moral, enfim, quando o direito é substituído pelas convicções pessoais de cada magistrado”; e, por sua vez, a judicialização se refere a um “fenômeno que exsurge a partir da relação entre os poderes do Estado (pensemos, aqui, no deslocamento do polo de tensão dos Poderes Executivo e Legislativo em direção da justiça constitucional”.
A judicialização da política pode gerar o ativismo judicial, diante da adoção de condutas cada vez mais proativas dos magistrados, mas são definições distintas, já que a judicialização é um fato decorrente do panorama institucional, que reflete as competências e poderes conferidos ao Poder Judiciário, ao ser acionado para decidir as controvérsias do Executivo; enquanto o ativismo representa um comportamento de juízes e tribunais, quando proferem seus julgamentos, extrapolando os limites de sua atuação.
Uma crise da democracia faz com que aumentem as questões a serem deslindadas pelo Judiciário, judicializando-se a política e favorecendo o surgimento do protagonismo e do ativismo judicial. Por outro lado, a judicialização da política é possível sem que venha a ocorrer o ativismo judicial, caso o Poder Judiciário opere a autocontenção em matérias trazidas da arena política. Todavia, quanto mais alto o grau de judicialização da política, maior a probabilidade de incidência do ativismo judicial.
Conforme Appio (2008), o ativismo judicial pode ser se apresentar sob duas formas: uma versão mais restrita, em que os juízes têm poder de alterar a vontade de representantes eleitos pela população, nos casos de violação ao tratamento isonômico entre cidadãos, para assegurar o direito a igual consideração e respeito por parte do Estado; e o enfoque mais amplo, pelo qual os juízes podem substancializar mandamentos constitucionais genéricos, atuando em substituição dos demais poderes, principalmente nos casos de omissão, quando cria uma regra de direito dotada de coercibilidade, em detrimento de uma regra particular, sempre que aquela decorra de interpretação de cláusulas mais amplas da Constituição. Dessa forma, o juiz decide matéria afeta a outros Poderes da República e passa a executar políticas públicas decorrentes da decisão proferida (APPIO, 2008).
Appio (2008), sustenta que o ativismo judiciário se justifica como um instrumento democrático para proteção dos direitos fundamentais das minorias, em razão de uma discriminação histórica e de sua reduzida capacidade de mobilização política e econômica, cabendo ao Judiciário garantir quais direitos são considerados fundamentais e que o limite para sua regulação estatal com razoabilidade.
O autor legitima o ativismo judiciário no cariz contramajoritário e aponta precedentes da Suprema Corte estadunidense, com a ressalva que, em respeito ao princípio da separação dos poderes, somente é admissível para proteger as minorias. Sustenta que o Supremo Tribunal pode decidir casos sensíveis como aborto e união afetiva entre pessoas do mesmo sexo, sempre que envolver a tutela de minorias sub-representadas e vítimas de opressão injustificada, na busca da interpretação judicial que restabeleça o princípio da igualdade material ao caso concreto, haja vista que as teorias tradicionais não apresentam critérios para as decisões judiciais alcançarem correções substanciais nessas hipóteses, limitando-se a questões de legitimidade e repartição clássica de poderes e deixando de lado os valores (substantivos) constitucionais materiais.
E conclui Appio (2008, p. 371):
O STF assume como sua mais importante missão proteger minorias, já que não são adequadamente representadas na esfera política tradicional (Congresso Nacional e Presidência da República). O Supremo tem a capacidade de deflagrar o debate político em torno de questões morais da mais alta importância, mas que comumente se encontram no subterrâneo da política comum do dia-a-dia, mais preocupada com a prática de atos de governo e as CPIs. O ativismo judicial é uma importante ferramenta que deve ser utilizada no momento certo, sob condições incomuns de crise dos poderes representativos, quando então a Corte detém a certeza de que suas decisões serão avaliadas (pela comunidade) como corretas. O Supremo Tribunal Federal deve saber identificar quando estas condições estão presentes, ou seja, quando o País está pronto para uma mudança que representa uma aguda alteração de sua estrutura constitucional.
Segundo Barroso (2008), nos últimos anos, uma crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo fomentou a expansão do Judiciário, que, em nome da defesa da Constituição, passou a prolatar decisões em suprimento a omissões dos outros Poderes e, por vezes, a inovar na ordem jurídica, com caráter normativo geral, de modo que o ativismo judicial ocorre no desvio da função jurisdicionale se apresenta nas seguintes condutas: (i) a aplicação direta da Constituição Federal a situações não previstas expressamente em seu texto e sem que haja manifestação do legislador ordinário a respeito; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do Legislativo, com fundamento em critérios menos rígidos do que aqueles que violam claramente a Constituição; (iii) a imposição ao Poder Público de ações ou omissões, sobretudo em matéria de políticas públicas (BARROSO, 2008, p. 6 e 9).
Durante o julgamento da ADO 26, o Ministro Mello destacou caber aos juízes da Corte “o dever de velar pela integridade dos direitos fundamentais de todas as pessoas, o de repelir condutas governamentais abusivas, o de conferir prevalência à essencial dignidade da pessoa humana”, bem como “fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneráveis expostos a práticas discriminatórias e o de neutralizar qualquer ensaio de opressão estatal ou de agressão perpetrada por grupos privados” (STF, 2009c).
Destarte, o Supremo Tribunal Federal é convocado a promover mudanças estruturais na sociedade, em proteção a valores sensíveis da comunidade e na defesa de minorias hipervulneráveis, uma vez que o Congresso não atua em tempo razoável, de forma a fomentar calorosos debates e reação contrária ao ativismo, com argumentos fundados na representação popular e na separação dos poderes, em que se defende uma postura de contenção de deferência, já que os juízes não retiram sua legitimidade das urnas e não poderiam invalidar atos estatais decorrentes da vontade de membros governamentais eleitos pela população.
6.2 Direito das Minorias
Tradicionalmente, a regra da maioria está atrelada à democracia, instituída como mecanismo de solução de conflitos compatível com sociedades homogêneas surgidas na Idade Média, quando eventual proteção de uma minoria não se apresentava fato relevante. Entretanto, na sociedade moderna, essa regra da maioria pode constituir instrumento de opressão ao não atender direitos fundamentais de uma minoria vulnerável no contexto de uma comunidade plural e democrática (APPIO, 2008, p. 37).
A obra de John Rawls, “Uma Teoria da Justiça”, faz surgir o direito como equidade, como uma alternativa filosófica de resposta a essas questões, com base em dois princípios importantes: o da igualdade e o da diferença. De acordo com o princípio da igualdade, todos teriam direito de acesso imparcial a uma lista de liberdades fundamentais, como liberdade política, liberdade de expressão, liberdade de consciência, de proteção da propriedade privada e contra a detenção ilegal; e pelo princípio da diferença, melhores condições podem ser conferidas a pessoas que já se estão em posição favorável, desde que se promovam melhorias nas condições daqueles que se estão em pior situação social. Em ambas as hipóteses, a regra da maioria deve ser observada, pois foram fixadas mediante um acordo imparcial, celebrado sob o manto do “véu da ignorância”, sem que se soubessem as preferências e habilidades dos contratantes originais (APPIO, 2008, p. 37-38).
A estrutura contratual de nossa sociedade assegura a dominância da vontade da maioria por meio da concepção majoritária de democracia, pois, uma vez asseguradas as condições do exercício do direito ao voto, os cidadãos acreditam ter participado, mesmo que de forma indireta, do processo de deliberação coletiva, mesmo que o resultado dessa deliberação venha a desagradar parcela da população – em razão de sua orientação sexual, raça ou gênero. Contudo, esse padrão existencial heteronormativo é incompatível com a diversidade e o pluralismo que caracterizam uma sociedade democrática, levando a práticas de intolerância contra aqueles que não se encaixam no padrão historicamente construído.
O autor americano John Hart Ely, sobre a regra da maioria, defende que a Suprema Corte estadunidense deve proteger a vontade das maiorias, em deferência aos demais Poderes constituídos, mas haveria exceções, nos casos de necessidade de garantir justiça e equidade nos processos deliberativos eleitorais; de proteger a regra da igualdade em favor das minorias; e nas hipóteses que envolvam direitos previstos na Constituição “não usualmente sensíveis ao sentimento da maioria”, inclusive, neste último caso, a Corte estaria autorizada a aplicar a tese não-originalista, segundo a qual o sentido da Constituição pode ser engrandecido mediante interpretação constitucional, inclusive com a adoção de novas normas e valores ao seu texto. (ELY, 1980, apud APPIO, 2008, p. 39).
Appio (2008) afirma que, de fato, sobre o ponto de vista lógico, não há como imaginar uma minoria ditando regra aos legisladores sobre temas importantes como aborto, casamento gay ou outros temas sensíveis, muito menos transferir essa incumbência aos membros do Poder Judiciário, que são vitalícios e não foram eleitos diretamente pelo povo, todavia, a regra da maioria pode, facilmente, se converter em ditadura das maiorias, sobretudo em sociedades pós-modernas, mergulhadas na tecnologia da informação, em que mulheres, gays, negros e outras minorias sofrem de falta de força política suficiente a defender seus direitos e interesses e permanecem reféns da intolerância das massas. Daí, segundo o autor, a necessidade de revisão dessa regra da maioria, na busca pelo pluralismo social, onde o Judiciário tem a missão de preservar a individualidade humana (APPIO, 2008, p. 41).
O STF tem a função de proteger os direitos fundamentais constitucionais, contudo, ao contrário do sistema adotado pela Corte Suprema americana, onde a presunção seria da inconstitucionalidade de leis que limitassem determinados direitos protegidos constitucionalmente, aqui, no Brasil, a presunção é sempre de constitucionalidade das normas, cabendo ao autor da impugnação judicial a prova de que a lei não é razoável (APPIO, 2008).
Mas, em determinados casos, o STF passou a aplicar o princípio da proporcionalidade como fundamento para exercer funções restritas aos outros Poderes da República, sobretudo do Legislativo, cuja responsabilidade brota das urnas e onde são fixadas as regras de convivência para os cidadãos, de modo que, ao pretexto de controle de constitucionalidade das leis, a Corte Maior passa a investigar a própria justiça substancial em algumas hipóteses. Essa intervenção judicial viola o princípio da separação dos poderes, com usurpação da competência de outro Poder, a quem compete a escolha de quando um interesse coletivo deve ser atendido sem ofensa a direito individual fundamental. Nesse contexto, o princípio da proporcionalidade, originalmente com a função de resolver conflitos entre princípios constitucionais de mesma hierarquia no plano da interpretação das leis, finda por se tornar fonte de discricionariedade judicial (APPIO, 2008).
Existe uma minoria desprovida de representação suficiente a fazer valer seus direitos.
A dificuldade contramajoritária é fruto da concepção contratualista tradicional de democracia nos moldes representativos, onde a vontade da maioria guiará os passos do futuro, já que todos têm igual direito de participação, e que injustiças sociais apenas são corrigidas mediante reforço do próprio processo democrático para corrigir e equilibrar o sistema. Porém, Appio sustenta que o Poder Judiciário tem a função política de proteção das minorias, e que o ativismo funciona como ferramenta de exceção para os casos em que o processo de representação política não funciona a contento, ou mesmo quando grupos de indivíduos são historicamente estigmatizados em razão de características pessoais que os singularizam no seio da comunidade (APPIO, 2008).
Em razão dessa representação política tradicionalmente deficitária, as minorias somente alcançarão oportunidades igualitárias de participação no debate político através de uma proteção preferencial, para usufruírem dos benefícios comunitários a serem partilhados em uma sociedade plural. Mas o ativismo deve se restringir às hipóteses nas quais o processo democrático não funcione adequadamente ou quando alguns grupos de pessoas não recebam tratamento com igual consideração e respeito por parte do estado (APPIO, 2008).
Trata-se assim de uma versão liberal do ativismo judicial, em que o Poder Judiciário, como poder do governo, reforça as bases da democracia substancial, no combate à opressão, mesmo que extrapole os limites de sua função e venha a conflitar com o posicionamento ou omissão de um outro poder, o que não deixa de ser algo paradoxal, pelo fato de juízes não eleitos pela população, nem responsáveis politicamente, ditam as regras de como governar aos legítimos representantes do povo mediante o sufrágio popular.
Não se discute que a população LGBT constitui uma minoria extremamente vulnerável, que sofre, diuturnamente, violação a direitos fundamentais e necessita de real proteção e meios legais para combater os ataques discriminatórios sofridos, inclusive diversos projetos de lei foram apresentados ao Congresso Nacional ao decorrer dos últimos anos, contudo parece não haver muito interesse no andamento desses projetos, que aguardam anos e anos sem sair do papel, corroborando a alegação da classe de excessiva mora e desídia com a causa, que encontra barreiras nas posições religiosas e conservadoras da Casa.
O Supremo Tribunal Federal, como guardião na proteção e garantia dos direitos fundamentais, entendeu por bem dar resposta às vítimas da homofobia e propiciar os avanços necessários em matéria tão sensível e de difícil tramitação nas Casas Legislativas, depois de constatar a necessidade imperiosa de uma legislação que viesse a criminalizar a homofobia e a transfobia, anseio também de grande parte da população que assiste indignada a violência diária perpetrada contra a população LGBT no Brasil e no mundo, mas que não alcança maioria legislativa suficiente a votar e aprovar projetos que defendem a causa LGBT, em busca da concretização de valores constitucionais essenciais à configuração do Estado Democrático de Direito: o respeito à diversidade plural e à tolerância.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estado tem o dever de combater discriminações e violações de direitos, garantindo dignidade, liberdade e igualdade material para todos os cidadãos. Todavia, a população LGBT, em razão apenas de sua orientação sexual ou identidade de gênero, representa um segmento de pessoas estigmatizado e rotulado, alvo constante de preconceito, discriminação, exclusão, violência irracional, formando uma minoria de extrema vulnerabilidade no país, mas que luta incansavelmente pelo fim da opressão e pelo reconhecimento de seus direitos, já declarados pela ONU como Direitos Humanos, de modo que os Estados devem adotar medidas para fazer cessar essa cultura de violência e para superação do preconceito.
Devem assim adequar suas legislações para incluir a homofobia e transfobia como crimes, uma das demandas mais antigas e defendidas por militantes LGBT no Brasil, país campeão em violência e mortes de transexuais no mundo, um resultado desastroso para qualquer política pública que almeja resultados minimamente efetivos no combate à violência contra as minorias, que sofrem um processo histórico marcado por discursos legitimadores do preconceito, discriminação, opressão e deficit de representação existentes até os dias de hoje.
Por sua vez, o Legislativo permanece inerte diante de sua obrigação jurídico-constitucional de agir quanto à produção de provimentos legislativos de proteção aos grupos LGBT, numa posição de inércia que leva a entender tratar-se de uma inação proposital, pois também é uma maneira de (não) agir, interpretada como estratégia política, como se o não decidir fosse também uma decisão dos legisladores, razão pela qual viu-se o Poder Judiciário compelido a fazer cumprir a Constituição e normas internacionais de proteção a essa minoria.
A omissão normativa deliberada operada pelo Congresso Nacional desrespeita a Constituição e ofende direitos fundamentais que nela se sustentam, assim como rechaça a aplicabilidade dos postulados da Lei Fundamental, frustrando sua força normativa e fazendo imperar um padrão heteronormativo incompatível com a diversidade e o pluralismo que caracterizam uma sociedade democrática, além de permitir a manutenção de tratamentos discriminatórios dirigidos a uma minoria vulnerável, fundados em percepções excludentes.
Afastar a tutela judicial no tocante à criminalização da homofobia e da transfobia conduziria o Estado a figurar como o grande violador dos Direitos Humanos LGBT, na medida em que não envida os esforços necessários para uma resposta estatal efetiva à proteção de um grupo de indivíduos oprimidos e contribui para a manutenção da discriminação contra pessoas em razão tão somente de sua orientação sexual ou identidade de gênero e que sofrem profunda marginalização social.
A partir dos julgamentos proferidos na ADO 26 e MI 4733, o Supremo Tribunal Federal enquadrou a homofobia e a transfobia como crimes de racismo, determinando a aplicação da Lei 7.716/89, que disciplina os delitos resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional a atos homotransfóbicos, enquanto não editada lei específica criminalizadora.
A conduta expansiva do STF tem por fundamento que apenas reconhecer a mora não obriga o Poder Legislativo à produção normativa, e como não se pode obrigar o Congresso Nacional a legislar, a própria Corte deve proceder à criminalização da homofobia por meio da equiparação ao crime de racismo, aplicando uma interpretação judicial que não frustre os objetivos perseguidos pelo texto constitucional e com o objetivo de garantir os direitos da personalidade, como dignidade da pessoa humana, e coibir comportamentos abusivos que possam disseminar o ódio público e estimular condutas desviantes contra outras pessoas em razão tão somente de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.
Embora controvertido o tema quanto à atuação proativa do Supremo, verifica-se que o ativismo judicial operado no julgamento da ADO 26 e MI 4733 é voltado para proteção de direitos e garantias fundamentais de um grupo de pessoas hipervulnerável e maior padecedora de violência e discriminação dentre todas as minorias outras, que é sub-representada, oprimida e vítima de preconceito e ódio irracional arraigado na sociedade,
O Judiciário atua então em nome da concretização de valores essenciais à consolidação do Estado Democrático de Direito: o respeito à diversidade plural e à tolerância, rechaçando a violação a direitos humanos essenciais da população LGBT, pois a identidade sexual deve ser vista como essencial ao livre desenvolvimento da personalidade humana. Trata-se da função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe fazer prevalecer, sempre, no exercício irrenunciável da jurisdição constitucional, a autoridade e a supremacia da Constituição e das leis da República.
O ativismo judiciário, nessa hipótese, justifica-se para a defesa de minorias sub-representadas e vítimas de opressão, em busca da interpretação judicial que restabeleça o princípio da igualdade material ao caso concreto, já que as teorias tradicionais não autorizam decisões judiciais que determinem correções substanciais para a tutela da população LGBT, quando se restringem a questões formais de legitimidade e repartição clássica de poderes e obliteram os verdadeiros valores materiais da nossa Constituição.
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[1] Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito e Desenvolvimento Sustentável do Centro Universitário de João Pessoa – UNIPE.
[2] Doutor em Ciências Criminais pela Faculdade de Coimbra. Professor universitário de cursos de graduação, especialização e mestrado.