REGRA DE JULGAMENTO E DISCRICIONARIEDADE SOB A PERSPECTIVA DE HART NA ANÁLISE DA PRIMEIRA FASE DA DOSIMETRIA DA PENA

REGRA DE JULGAMENTO E DISCRICIONARIEDADE SOB A PERSPECTIVA DE HART NA ANÁLISE DA PRIMEIRA FASE DA DOSIMETRIA DA PENA

10 de março de 2024 Off Por Cognitio Juris

RULE OF JUDGMENT AND DISCRETIONARY FROM HART’S PERSPECTIVE IN THE ANALYSIS OF THE FIRST PHASE OF PENALTY DOSIMETRY

Artigo submetido em 06 de fevereiro de 2024
Artigo aprovado em 16 de fevereiro de 2024
Artigo publicado em 10 de março de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 54 – Março de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Marcelo Henrique Mariano[1]

RESUMO: O artigo correlaciona a dosimetria da pena no direito brasileiro com os principais conceitos apresentados por Hart em sua teoria do direito, especialmente a discricionariedade, destacando a ampla margem decisória delegada ao juiz na individualização da resposta penal, com vistas à repreensão e prevenção de crimes. Para tanto, conceitua as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, a textura aberta do direito e o recurso à discricionariedade, comparados com dados empíricos coletados pelo Conselho Nacional da Justiça (CNJ), a fim de concluir pela existência de atividade criadora na individualização da pena, a qual, caso exercida valendo-se de argumentos expressamente apresentados, é uma importante forma de alcançar a individualização da pena, direito fundamental previsto na Constituição Federal.

Palavras-chave: dosimetria; discricionariedade; margem decisória; textura aberta; atividade criadora.

ABSTRACT: The article correlates the dosimetry of the penalty in Brazilian law with the main concepts presented by Hart in his theory of law, especially discretion, highlighting the wide decision-making margin delegated to the judge in the individualization of the criminal response, with a view to reprimand and crime prevention. Therefore, it conceptualizes the judicial circumstances of art. 59 of the Penal Code, the open texture of the law and the use of discretion, compared with empirical data collected by the National Council of Justice (CNJ), in order to conclude that there is a creative activity in the individualization of the sentence, which, if exercised based on arguments expressly presented, it is an important way to achieve the individualization of the sentence, a fundamental right provided for in the Federal Constitution.

Key words: dosimetry; discretion; decision-making margin; open texture; creative activity.

INTRODUÇÃO

            O art. 68 do Código Penal dispõe sobre os critérios de fixação da pena no direito brasileiro, escalonado por fases. Na primeira fase busca-se o estabelecimento da pena-base. Na segunda, a consideração das agravantes e atenuantes. Por fim, a valoração das causas de aumento ou diminuição.

            O artigo busca analisar a primeira fase da dosimetria a partir dos conceitos apresentados por Hart em seu livro “O Conceito de Direito”, especificamente nos capítulos 5 e 7, quais sejam, “regras de reconhecimento e julgamento”, “textura aberta” e “discricionariedade judicial”.

            Para tanto, no primeiro capítulo são apresentados os critérios de fixação da pena-base previstos no art. 59 do Código Penal, descrevendo e explicando as circunstâncias judiciais nele dispostas.

            No segundo capítulo se destacam os conceitos propostos por Hart nos capítulos 5 e 7 de seu livro, com apresentação do entendimento do autor sobre a discricionariedade judicial e sua relação com a textura aberta do direito.

            No terceiro capítulo são correlacionados os conceitos propostos por Hart e a análise das circunstâncias judiciais, com apresentação de estudo empírico realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano de 2021.

            Por fim, conclui-se no sentido de que, da forma como redigido, o art. 59 do Código Penal deixa ampla margem de discricionariedade ao juiz, o que é salutar e está em consonância com o direito fundamental à pena individualizada, previsto no art. 5º, XLVI, da Constituição Federal, desde que exercido de forma intersticial, isto é, objetivando a solução do caso concreto e com exposição dos fundamentos da decisão.

2.     A PRIMEIRA FASE DE FIXAÇÃO DA PENA E O ART. 59 DO CÓDIGO PENAL

A aplicação da pena pode ser analisada desde uma perspectiva histórica, iniciando-se na Idade Média, em que não se estabeleciam limites à sanção penal, calcada no arbítrio judicial, evoluindo-se à noção de pena fixa, fundada na ideia de retribuição do mal injusto – do agente -com o mal justo – do Estado -, especialmente no Código Penal francês de 1791, para se chegar à estipulação de limites mínimos e máximos de reposta penal, incumbindo ao julgador a tarefa de realizar a dosagem concreta, como se verifica no Código Penal francês de 1810.

No Brasil, desde o Código Criminal do Império, de 1830, adota-se o último modelo, limitando-se reação estatal com a estipulação de penas mínimas a máximas, o que foi replicado nas codificações subsequentes, até se chegar à atual legislação, de 1940.

A imposição de tais limites visa, a um só tempo, evitar o arbítrio do Estado e individualizar a situação subjetiva do agente, conforme constitucionalmente garantido no art. 5º, XLVI[2].

De acordo com Bitencourt:

[e]ssa orientação, conhecida como individualização da pena, ocorre e três momentos distintos: individualização legislativa – processo através do qual são selecionados os fatos puníveis e cominadas as sanções respectivas, estabelecendo seus limites e critérios de fixação da pena; individualização judicial – elaborada pelo juiz na sentença, é a atividade que concretiza a individualização legislativa que cominou abstratamente as sanções penais, e, finalmente, individualização executória, que ocorre no momento mais dramático da sanção criminal, que é o seu cumprimento (CEZAR ROBERTO BITENCOURT, 2016, p. 774).

A individualização judicial é realizada nos termos do art. 68 do Código Penal, que adota o sistema trifásico, composto por três fases: a fixação da pena-base, com valoração pelo julgador das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal; a análise das circunstâncias atenuantes e agravantes; as causas de diminuição e aumento.

O presente estudo se atém à primeira fase da dosimetria da pena, que delega ao juiz a estipulação da pena-base em atenção a oito circunstâncias, quais sejam, culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do crime e comportamento da vítima.

As circunstâncias são “dados, fatos, elementos ou peculiaridades que apenas circundam o fato principal. Não integram a figura típica, podendo, contudo, contribuir para aumentar ou diminuir sua gravidade” (BITENCOURT, 2016).

Além delas, o legislador expressamente dispõe que a pena-base é estabelecida de acordo com a necessidade e suficiência para a reprovação e prevenção do crime.

A distinção entre circunstâncias e elementares típicas se dá na definição acerca do fato criminoso, pois enquanto as primeiras circundam o fato principal, e implicam carga valorativa externa, as segundas o integram, constituindo pressupostos objetivos à própria existência do delito.

Em relação às circunstâncias previstas no art. 59 do Código Penal, sua definição não consta na legislação penal, tarefa igualmente delegada ao julgador na análise do caso concreto, a despeito de a doutrina fornecer substancial aporte teórico, que veio a ser encampado pela jurisprudência ao longo dos anos de prática penal.

O próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário, elaborou, no ano de 2022, relatório de dosimetria da pena, com vistas à racionalização e segurança jurídica quando da valoração das circunstâncias judiciais (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2022).

Todo crime, quando de sua individualização legislativa, visa à tutela de determinado bem jurídico, atinente à finalidade de preservação “das condições necessárias para uma coexistência livre e pacífica em sociedade, garantindo, ao mesmo tempo, o respeito de todos os direitos humanos” (BITENCOURT, 2016, p. 350).

A valoração legislativa, ao instituir determinado crime e dispor sobre os limites mínimos e máximos de pena, bem como eventuais causas de aumento, já considera a situação genérica, infensa a valorações concretas além daqueles inerentes a todo crime da mesma espécie.

No caso concreto, cabe ao julgador analisar as circunstâncias desde uma perspectiva daquilo que é excedente à hipótese abstrata, valorando em concreto, a fim de permitir ao julgador sua consideração para fixação da pena-base.

A primeira das circunstâncias é a culpabilidade, relacionada à censurabilidade da conduta do agente. Não se confunde com a culpabilidade necessária à configuração do fato penal, ocasião em que se analisa a imputabilidade do agente (possibilidade de punição), o conhecimento relacionada à ilicitude do fato, e a exigibilidade de comportamento diverso. Há uma dupla análise da culpabilidade, a primeira na definição da conduta criminosa, e a segunda como forma de censurar o comportamento do agente, pautado em juízo de censura, limitador da pena concreta.

Nesse sentido já decidiu o STF, entre outros, no RHC n. 107.213 (BRASIL, 2011), bem como o STJ, no HC n. 382.173/SP (BRASIL, 2017), o qual, inclusive, possui tese jurisprudencial acerca do tema: “A culpabilidade normativa, que engloba a consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa e que constitui elementar do tipo penal, não se confunde com a circunstância judicial da culpabilidade (art. 59 do CP), que diz respeito à demonstração do grau de reprovabilidade ou censurabilidade da conduta praticada” (BRASIL, 2014).

Os antecedentes compreendem fatos pretéritos praticados pelo acusado, seu histórico criminal. Visa demonstrar a maior ou menor afinidade do réu com a prática delituosa (BITENCOURT, 2016, p. 776).

Prevalece na jurisprudência a vedação quanto à utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para valorar negativamente os antecedentes, tanto na jurisprudência do STF (BRASIL, 2015a) quanto na do STJ (súmula 444: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”).

No tocante aos antecedentes penais, o STF, no RE n. 593.818, assentou que:

Não se aplica ao reconhecimento dos maus antecedentes o prazo quinquenal de prescrição da reincidência, previsto no art. 64, I, do Código Penal, podendo o julgador, fundamentada e eventualmente, não promover qualquer incremento da pena-base em razão de condenações pretéritas, quando as considerar desimportantes, ou demasiadamente distanciadas no tempo, e, portanto, não necessárias à prevenção e repressão do crime, nos termos do comando do artigo 59, do Código Penal (BRASIL, 2020).

Desta forma, ainda que a condenação por delito pretérito tenha transitado em julgado ou tenha sido a pena extinta há mais de 5 (cinco) anos, ainda assim poderá ser considerada como maus antecedentes, desde que sua influência na afinidade do acusado com a prática delituosa seja fundamentada na hipótese concreta.

Com relação à conduta social do agente, presta-se a aferir seu comportamento em sociedade. Objetiva analisar seu relacionamento com os pares, temperamento, vícios, sempre em contexto com o delito analisado.

Não se confundem com antecedentes penais, que se relacionam ao passado criminoso do agente, ao passo que a conduta social diz respeito ao seu comportamento em sociedade (ROGÉRIO GRECO, 2022).

Assim como os inquéritos penais e processos penais em andamento não podem ser valorados a título de maus antecedentes, também não se prestam à consideração sobre conduta social do agente.

A esse respeito, o STJ, no tema repetitivo 1077, fixou a seguinte tese jurisprudencial: “Condenações criminais transitadas em julgado, não consideradas para caracterizar a reincidência, somente podem ser valoradas, na primeira fase da dosimetria, a título de antecedentes criminais, não se admitindo sua utilização para desabonar a personalidade ou a conduta social do agente” (BRASIL, 2021).

A personalidade corresponde a características próprias do agente, que influenciam seu comportamento, suas qualidades morais e sociais, “um todo complexo, porção herdada e porção adquirida, com o jogo de todas as forças que determinam ou influenciam o comportamento humano” (ANÍBAL BRUNO, 1984, p. 154).

A despeito de alguns doutrinadores, como Rogério Greco (GRECO, 2022, p. 625), excluírem a personalidade da esfera de apreciação do julgador, dada sua ausência de capacitação técnica, inerente aos  profissionais de saúde, bem como por encampar a ideia de direito penal do autor, rechaçada pelo ordenamento penal vigente, afinado a um direito penal do fato, a jurisprudência do STJ já assentou que “Para valoração da personalidade do agente é dispensável a existência de laudo técnico confeccionado por especialistas nos ramos da psiquiatria ou da psicologia” (BRASIL, 2014).

Exige-se que sua valoração esteja em consonância com elementos concretos do processo, produzidos sob o crivo do contraditório na ação penal.

Os motivos determinantes da ação são as razões antecedentes à prática do crime, inerentes ao indivíduo, o móvel propulsor da sua vontade.

As circunstâncias do crime compreendem os elementos acidentais externos ao tipo penal, que influenciam a valoração da pena.

De acordo com o STJ, no AgRg no REsp 1.965.389/SC:

As circunstâncias da infração podem ser compreendidas como os pormenores do fato delitivo, acessórios ou acidentais, não inerentes ao tipo penal. Sendo assim, na análise das circunstâncias do crime, é imperioso ao magistrado sentenciante apreciar, com base em fatos concretos, o lugar do crime, o tempo de sua duração, a atitude assumida pelo agente no decorrer da consumação da infração penal, a mecânica delitiva empregada, entre outros elementos indicativos de uma maior censurabilidade da conduta (BRASIL, 2022a).

Referida circunstância judicial se relaciona ao modus operandi do agente, incumbindo ao julgador sua a partir dos fatos apresentados no caso concreto.

Com relação às consequências do crime, também não se confundem com o resultado naturalístico da conduta, mas àquilo que é externo ao delito, sobressaindo à normalidade.

Na doutrina podem ser citados os seguintes exemplos: a morte de pessoa casada, com filhos menores, de cujo trabalho todos dependiam para sobreviver, bem como o atropelamento que causa a perda dos movimentos do corpo (ROGÉRIO GRECO, 2022).

Na jurisprudência citam-se os casos em que o delito gerou expressivo prejuízo aos cofres públicos (BRASIL, 2015b), bem como o prejuízo econômico considerável nos crimes patrimoniais (BRASIL, 2022b).

Por fim, o comportamento da vítima é entendido como circunstância neutra na valoração da pena, não utilizado para prejudicar o acusado, senão para aferir a contribuição do ofendido para o cometimento do crime.

Na jurisprudência colhe-se o seguinte excerto: “O comportamento da vítima é circunstância judicial que nunca será avaliada desfavoravelmente – ou será positiva, quando a vítima contribui para a prática do delito, ou será neutra, se não houver colaboração” (BRASIL, 2019).

3.     A REGRA DE RECONHECIMENTO, MODIFICAÇÃO E JULGAMENTO, A TEXTURA ABERTURA E A DISCRICIONARIEDADE

Em sua obra, Hart apresenta teoria de direito que se pretende geral e descritiva, ou seja, que não se vincula a nenhum sistema, mas busca descrever o direito como instituição social e política dotada de um aspecto regulatório moralmente neutro.

O autor alerta distinguir de Dworkin, que apresenta teorização avaliativa e justificatória, dirigida a determinada cultura jurídica específica, em que a tarefa centra é interpretativa, e busca princípios que melhor se adequem ao direito estabelecido (H. L. A. HART, 1961, p. 309-311).

No capítulo 5 do livro, Hart introduz a distinção entre regras primárias e secundárias. As primeiras são as regras de obrigação, que impõem ações ou abstenções. As segundas são regras sobre regras, e se prestam a esclarecer como as regras primárias são identificadas, modificadas ou observadas.

Com relação às primárias, tece três objeções às sociedades organizadas exclusivamente sob tal tipo de comando.

Inicialmente, argumenta que certas condições devem ser satisfeitas para que seja possível a convivência sob o manto exclusivo de tais regras. A primeira é a restrição ao uso gratuito da violência, ao roubo e à trapaça. Em segundo, apesar da possibilidade tensões entre aqueles que aceitam ou rejeitam as regras, os últimos não podem ser maioria, pena de impor à força o seu descumprimento.

Conclui que apenas uma pequena comunidade unida por laços de parentesco ou sentimentos e convicções comuns poderá conviver em um sistema organizado sob tal sistemática, na medida em que não há sistematização, e em caso de dúvidas sobre sua essência ou âmbito de aplicação, não haverá procedimento para sanear a incerteza.

Em segundo, destaca a estaticidade das regras primárias, cuja modificação seria lenta e pautada no processo de adoção de costumes como fonte de obrigação, ou seja, demandaria a evolução de determinada conduta/abstenção de padrão opcional para padrão obrigacional, sem meios de adaptação deliberada das regras.

Por fim, pontua a ineficiência da pressão difusa como forma de manutenção das regras, a fim de analisar se houve violação de uma regra aceita. Ainda, a punição decorrente da infração à regra não é realizada por instância especial, mas deixada a cargo dos indivíduos e grupos, aos quais incumbe capturar e punir os infratores, dando margem a toda sorte de vinganças.

O autor sugere suplementar as normas primárias de obrigação com normas secundárias, instituídas para corrigir os defeitos mencionados, o que representaria uma etapa de transição de um modelo pré-jurídico ao jurídico.

À incerteza acerca da essência ou do âmbito de aplicação é instituída a regra de reconhecimento, a qual “especifica as características que, se estiverem presentes numa determinada norma, serão consideradas como indicação conclusiva de que se trata de uma norma do grupo, a ser apoiada pela pressão social que este exerce” (HART, 1961, p. 122).

Em sistemas mais evoluídos, sua identificação pode se dar fato de terem sido aprovadas por um órgão, por sua longa prática consuetudinária ou por sua relação com decisões judiciais. Inclusive, são estabelecidas por ordem de primazia a fim de, em casos de se identificarem mais de um critério de identificação, ser possível estabelecer qual deles prevalece no caso.

As regras de reconhecimento introduzem a noção de sistema jurídico unificado, relacionado com a autoridade, e possibilitam a certeza acerca de qual direito é aplicável a determinada situação jurídica.

À estaticidade são instituídas regras de modificação, que outorgam poderes relacionados com a atividade legiferante.

À ineficiência são instituídas regras de julgamento, responsáveis por identificar os indivíduos que devem julgar, bem como os procedimentos a serem adotados. Conferem poderes (e não deveres) e status especial às decisões judiciais.

Hart ressalva que “um sistema que dispõe de normas de julgamento está também inevitavelmente comprometido com uma norma de reconhecimento de caráter elementar e imperfeito. Isso porque, se os tribunais tiverem o poder de determinar peremptoriamente que uma norma foi desrespeitada, seus pronunciamentos não poderão deixar de ser considerados determinações autorizadas sobre a natureza das próprias normas. Assim, a norma que conferir jurisdição será também uma norma de reconhecimento, que identificará as normas primárias por meio dos julgamentos dos tribunais, e esses julgamentos se tornarão ‘fonte’ do direito” (HART, 1961, p. 126).

Após introduzir o direito como um sistema composto pela união de regras primárias e secundárias no capítulo 5, Hart apresenta o conceito de textura abertura no capítulo 7.

Esclarece que em um mundo com características finitas, não haveria espaço para escolhas adicionais, já que a normatização abrangeria todas as hipóteses existentes.

Os legisladores não têm conhecimento de todas as hipóteses de incidência de determinada regra, a demandar escolhas adicionais de acordo com o surgimento de novos problemas em novos casos concretos, inerentes à prática social ao longo do tempo.

Desta forma, conscientizando-se de tal constatação fática (a impossibilidade de o direito regulamentar integralmente todas os comportamentos da vida humana e modificação do âmbito de aplicação de certas regras a partir das práticas em sociedade), delega-se às autoridades administrativas ou judiciais a busca de equilíbrio entre interesses contrastantes.

De acordo com André Coelho, cada regra tem uma zona de foco e uma zona de penumbra. A primeira é composta pelos casos fáceis, incontroversos. A segunda são os obscuros, que suscitam dúvidas.  Segundo o autor: “Zona de foco e zona de penumbra não têm conteúdos fixos, e sim móveis. Um caso que antes estava na zona de foco pode passar à de penumbra, e vice-versa; um caso que antes não era abarcado pela regra pode passar a ser, e vice-versa” (ANDRÉ COELHO, 2016).

A parcial incompletude/indeterminação do direito é solucionada com recurso à discricionariedade, por meio da qual o juiz cria direito novo e aplica o direito estabelecido, o que simultaneamente lhe outorga o poder de legislar e restringe esse poder (HART, 1961, p. 351).

Ressalta que tal poder não se confunde com um poder legiferante, na medida em que sujeitos a limitações (as quais o legislativo não está) e com vistas à solução de um caso concreto, entendendo-se se tratar de uma atuação intersticial.

Porém, nos casos em que o direito não aponta uma solução, caberá aos juízes o exercício de uma atividade criadora, que não se trata de arbítrio, na medida em que sempre deverá justificar sua decisão.

Mais que um poder, Hart entende que o juiz tem o direito de seguir padrões não impostos por lei, os quais podem ser distintos dos adotados por outros juízes.

Daí porque a grande – e talvez a principal – divergência teórica com Dworkin, para quem a visão positivista acerca da discricionariedade ignora a ideia de princípios implícitos, os quais permitiriam a busca de uma solução sistêmica sem lançar mão da atividade criadora do julgador, sempre antidemocrática – porque não eleito – e injusta – porque criada ex post facto­ (H. L. A. HART, 1961).

4.     A PRIMEIRA FASE DE DOSIMETRIA À LUZ DOS CONCEITOS DE HART

A partir do apresentado no capítulo anterior sobre os conceitos introduzidos por Hart de regras de reconhecimento (para sanear a incerteza), modificação (para sanear a estaticidade) e julgamento (para sanear a ineficiência), constata-se que no direito brasileiro, por adotar uma tradição de regras escritas, não há maiores dificuldades e incerteza sobre aquilo que “é direito”, na medida em que o sistema pátrio possui uma  Constituição analítica, que disciplina diversos temas da vida pública (entre outros, organização dos estados, administrativa, dos poderes da República) e privada (entre outros, casamento e culto).

            Também se destaca o sistema pátrio pelas codificações, entre outras, no direito civil, consumerista, tributário e penal.

            Apesar da certeza na identificação, sempre haverá uma zona de penumbra, inalcançada com recurso às fontes, incumbindo a tarefa de complementação/elucidação ao julgador, com recurso à discricionariedade.

            É justamente o que ocorre no âmbito da dosimetria da sanção penal, pois cada caso possui particularidades que apenas o juiz é capaz de ponderar, a fim de individualizar a pena às vicissitudes em concreto.

            As oito circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal não têm conteúdos fixos, e a atividade interpretativa deve sempre ter vista tanto o caso concreto quanto as finalidades traçadas pelo legislador, quais sejam, a suficiência para a prevenção e reprovação do crime.

            Ao longo dos anos, os tribunais vêm interpretando e criando definições acerca dos conceitos, os quais, atualmente, são relativamente estáveis quanto à sua definição, conforme analisado no capítulo anterior. Ainda assim haverá zona de penumbra e espaço para a atividade interpretativa do julgador, com recurso à discricionariedade.

Isso porque, tirante as decisões estabelecidas como súmulas ou teses, de observância obrigatória por todos os juízes (conforme art. 927 do Código de Processo Civil), as demais, embora de recomendável observância, em atenção à necessidade de manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente (art. 926 do Código de Processo Civil), não são vinculantes, cabendo à atividade decisória a definição dos conceitos no caso concreto.

Além da indefinição do conteúdo das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, há uma ponderação adicional relacionada com a quantidade de pena aplicável nos casos em que determinada circunstância for considerada mais grave que o delito abstrato, na medida em que o legislador se limitou a prever os mínimos e máximos de pena, bem como a finalidade de sua aplicação (prevenção e reprovação do crime).

A prática forense tradicionalmente utiliza a fração de 1/6 para cada circunstância judicial negativa, a qual, no entanto, não constitui imposição, pois não prevista em lei nem em precedente vinculante.

O trecho do acórdão proferido pelo STJ no AgRg no REsp 2.030.307/PA bem revela o ora exposto: “O legislador não estabeleceu nenhum critério matemático para a fixação da pena na primeira fase da dosimetria. O critério de 1/6 por cada vetorial negativa, embora utilizado como referência em alguns precedentes desta Corte Superior, não traduz imposição. Cabe a este Tribunal apenas o controle de legalidade do critério eleito pelo Juízo a quo, de modo a averiguar se a pena-base foi estabelecida mediante o uso de fundamentação concreta” (BRASIL, 2023).

O aresto clarifica o que foi dito até aqui: a atividade interpretativa/criadora incumbe ao juiz do caso concreto, que valorará as circunstâncias judiciais, fixando a quantidade de pena que entender adequada, sempre de forma fundamentada, conforme, inclusive, exige-lhe a Constituição Federal em seu art. 93, X, recuperando-se, aqui, a ideia de discricionariedade intersticial apresentada por Hart, a qual imprescinde de fundamentação e é destinada um caso concreto.

No ano de 2021, o CNJ realizou pesquisa empírica com 1.732 magistrados, em sua maioria da Justiça Estadual (85,9%), e apresentou questionamentos relacionados à dosimetria da pena e às frações aplicadas (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2022).

Questionados sobre a utilização de frações para valorar negativamente as circunstâncias judiciais, 56% dos juízes responderam que sempre usam, 25% usam-nas frequentemente, 12,4% nunca usam, e 6,6% raramente.

Com relação àqueles que não utilizam frações (12,4%), ao serem perguntados sobre o porquê, responderam: a) tenho total discricionariedade para valorar cada vetor (circunstância judicial), sem vinculação a critérios meramente matemáticos (133 juízes); b) reputo burocrático e trabalhoso realizar operações matemáticas na dosimetria (26 juízes).

Também há divergência quanto à fração utilizada, tendo 28,2% dos entrevistados respondido que utilizam 1/6 como regra, ao passo que 50,3% disseram utilizar 1/8.

Dentre aqueles que utilizam frações, os magistrados responderam que não as utilizam de forma fixa. A título exemplo, dos que utilizam 1/8 por circunstância judicial, em 30,4% das vezes aplicam fração distinta, a depender do caso concreto.

Por fim, também há divergência sobre a base de cálculo para incidir a fração de pena. Enquanto 50,7% dos julgadores responderam aplicar a fração ao mínimo de pena cominada pelo legislador, 44,6% aplicam-na sobre o intervalo entre o mínimo e o máximo previsto pelo legislador.

O CNJ destaca que: “pragmaticamente, cumpre assentar, de forma resumida, que a segunda opção (sobre o intervalo) vai resultar em penas mais altas somente quando a diferença entre a pena máxima e a pena mínima for superior a pena mínima” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2022, p. 21).

O critério de 1/8 possui respaldo na jurisprudência do STJ, conforme se vê do trecho a seguir transcrito: “considerando que a instância ordinária utilizou de fundamentação idônea para aumentar a pena e aplicou um critério dentro da discricionariedade vinculada que lhe é assegurada pela lei – 1/8 do intervalo entre as penas mínima e máxima do delito de roubo (6 anos) -, não há falar em violação do art. 59 do Código Penal” (BRASIL, 2023).

A apresentação da pesquisa realizada pelo CNJ teve por finalidade ressaltar, com dados, que o art. 59 do Código Penal constitui zona de penumbra, com indefinição – embora tangenciada pela jurisprudência das Cortes Superiores – quanto ao conteúdo dos conceitos, bem como da quantidade de pena aplicável, destacando-se o enfoque na discricionariedade intersticial do julgador, que não se descura do ônus da fundamentação, sob pena de incorrer em arbítrio.

5.     CONCLUSÃO

A carência de densificação presente no art. 59 do Código Penal demonstra que, a um só tempo, o legislador reconheceu a existência de uma zona de penumbra, dada a impossibilidade de lançar mão de conceitos fechados, aplicáveis a todos os casos, bem como enalteceu a atividade do julgador, a quem incumbirá a valoração concreta.

Dentro dos limites mínimo e máximo previstos nos tipos penais, caberá ao magistrado, valorando as circunstâncias judicias, dosar a pena concreta, de acordo com a necessidade e suficiência para a reprovação e prevenção do crime.

Cuida-se de atividade tipicamente discricionária, na medida em que lhe incumbirá densificar o conceito das circunstâncias, reputando-as normais ou excedentes à figura abstrata e, caso as entenda excedentes, exasperar a pena dentro do interstício legal.

É certo que ao longo dos anos de prática forense, os tribunais vêm, a partir do texto legal, disciplinando o que se insere na definição das circunstâncias judiciais, como forma, inclusive, de autocontenção da atividade discricionária.

Ainda assim, há ampla margem de criação ao juiz, que, atento às nuances do caso concreto, disporá sobre a pena-base do delito a partir da ponderação sobre o conteúdo e consequência das circunstâncias judiciais, esta relacionada à quantidade de pena aplicável na hipótese.

Em conformidade com a referida ideia está a teoria do direito de Hart, que ao discorrer sobre regra de reconhecimento e julgamento, permite seja reconhecida a fonte e o órgão responsável pela aplicação, o qual, em razão da textura aberta do direito, detém discricionariedade para dispor sobre a regra aplicável no caso concreto.

A delegação de atividade interpretativa é salutar ao atual estágio da dogmática penal, que exige a individualização da pena (art. 5º, XLVI, da Constituição Penal), restringindo a atividade judicante ao impor o ônus argumentativo, evitando-se, desta forma, que discricionariedade se converta em arbítrio, o que, segundo Hart, entende-se por discricionariedade intersticial.

6.     REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRÉ COELHO. Filósofo Grego. Disponível em: <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2016/09/textura-aberta-das-regras.html>. Acesso em: 20 jun. 2023.

ANÍBAL BRUNO. Direito Penal. Forense, 1984. v. 3.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 107.213/RS. Rel. Min. Carmen Lúcia. 2011. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=624404>. Acesso em: 20 jun. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses. Edição 26.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 104.266/RJ. Rel. Min. Teori Zavascki. 2015a. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=8556756>. Acesso em: 20 jun. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 128.446. Rel. Min. Teori Zavascki. 2015b. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=9475685>. Acesso em: 20 jun. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 382.173/RJ. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. 2017. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=72579949&num_registro=201603256330&data=20170524&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 22 jun. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.711.709/PA. Rel. Min. Rogério Schietti Cruz. 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.593.818/SC. Rel. Min. Roberto Barroso. 2020. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754448246>. Acesso em: 20 jun. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.794.854/DF. Rel. Min. Laurita Vaz. 2021. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=127471759&num_registro=201900355571&data=20210701&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 22 jun. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.965.389. Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro. 2022a. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=143908752&num_registro=202103297468&data=20220225&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 20 jun. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Habeas Corpus n. 723.349. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. 2022b. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=146239802&num_registro=202200402210&data=20220314&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 20 jun. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 2.030.307/PA. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. 2023. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=5&documento_sequencial=190667727&registro_numero=202203116660&peticao_numero=202300332064&publicacao_data=20230526&formato=PDF>. Acesso em: 20 jun. 2023.

CEZAR ROBERTO BITENCOURT. Tratado de Direito Penal. 22. ed. São Paulo: 2016. v. 1.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório GT Dosimetria da Pena. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/relatorio-gt-dosimetria-da-pena-v5.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2023.

H. L. A. HART. O Conceito de Direito. 1. ed. WMF Martins Fontes Ltda., 1961. ROGÉRIO GRECO. Curso de Direito Penal . 24. ed. Grupo GEN, 2022. v. 1.


[1] Mestrando de Pós-Graduação em Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (“PUC-SP”). Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (“PUCCAMP”).

[2] Art. 5º, XLVI, da Constituição Federal: a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.