PRIVACIDADE MENTAL E O DIREITO DO CONSUMIDOR NA ERA DIGITAL
22 de setembro de 2025MENTAL PRIVACY AND CONSUMER RIGHTS IN THE DIGITAL ERA
Artigo submetido em 20 de setembro de 2025
Artigo aprovado em 22 de setembro de 2025
Artigo publicado em 22 de setembro de 2025
| Cognitio Juris Volume 15 – Número 58 – 2025 ISSN 2236-3009 |
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| Autor(es): Ana Paula Pinto Prado[1] |
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Resumo: O presente artigo analisa a privacidade mental como um direito emergente na sociedade digital e sua relação com a proteção do consumidor. A economia da atenção, baseada em técnicas de manipulação subliminar, design persuasivo e coleta massiva de dados, afeta diretamente a autonomia da vontade e a liberdade de escolha do indivíduo. Partindo de uma análise teórica e normativa, com referências à Constituição Federal, ao Código de Defesa do Consumidor e à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, o estudo discute a necessidade de reconhecer a privacidade mental como direito fundamental, além de propor o reforço da regulação do marketing digital e do papel das plataformas. O artigo dialoga com experiências internacionais, como o GDPR europeu e o Digital Services Act, e aponta caminhos para a construção de um marco jurídico brasileiro voltado à tutela da dignidade humana na economia digital.
Palavras-chave: Privacidade mental; Direito do Consumidor; Economia da atenção; Autodeterminação informativa; Proteção de dados.
Abstract: This article analyzes mental privacy as an emerging right in the digital society and its relationship with consumer protection. The attention economy, based on subliminal manipulation techniques, persuasive design and massive data collection, directly affects the individual’s autonomy of will and freedom of choice. Starting from a theoretical and normative analysis, with references to the Federal Constitution, the Consumer Protection Code and the General Personal Data Protection Law, the study discusses the need to recognize mental privacy as a fundamental right, in addition to proposing the reinforcement of the regulation of digital marketing and the role of platforms. The article dialogues with international experiences, such as the European GDPR and the Digital Services Act, and points out ways for the construction of a Brazilian legal framework aimed at protecting human dignity in the digital economy.
Keywords: Mental privacy; Consumer Law; Attention economy; Informational self-determination; Data protection.
1. Introdução
O avanço das tecnologias digitais transformou a maneira como indivíduos consomem informação, produtos e serviços. A lógica econômica deixou de se centrar apenas em bens tangíveis para focar na captura da atenção humana como principal ativo de mercado. Nesse contexto, emergem preocupações jurídicas inéditas: a exploração da esfera psíquica, cognitiva e emocional do consumidor.
Se a privacidade tradicional protegia o “direito de estar só”¹ e a privacidade informacional cuidava do controle sobre os dados pessoais², hoje observa-se a necessidade de tutelar a privacidade mental, entendida como a proteção contra manipulações invisíveis que atingem a mente humana e reduzem a autonomia de escolha³. O Direito do Consumidor, diante da vulnerabilidade estrutural do indivíduo frente às plataformas digitais, deve assumir protagonismo nessa nova fase de proteção.
2. Privacidade mental: conceito e fundamentos
A privacidade mental refere-se à proteção da esfera cognitiva e emocional da pessoa contra interferências externas manipulativas. Não se trata apenas de proteger dados pessoais, mas de garantir que o indivíduo não seja transformado em objeto de exploração psicológica contínua.
Autores como Byung-Chul Han alertam para a lógica da psicopolítica, na qual técnicas digitais produzem subjetividades moldadas para o consumo⁴. Shoshana Zuboff, por sua vez, denomina esse fenômeno de capitalismo de vigilância, no qual dados comportamentais são transformados em matéria-prima para prever e induzir comportamentos futuros⁵.
No plano jurídico, a privacidade mental encontra respaldo em três fundamentos centrais:
- Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), como núcleo axiológico da ordem constitucional;
- Direitos da personalidade (arts. 11 a 21 do CC), que asseguram integridade moral e psicológica;
- Autodeterminação informativa, reconhecida pelo STF (RE 638.115/MG), como expressão do poder do indivíduo de controlar os usos de suas informações⁶.
3. Direito do consumidor e vulnerabilidade psíquica
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), desde 1990, reconhece a vulnerabilidade do consumidor como princípio estruturante (art. 4º, I). Tradicionalmente, essa vulnerabilidade era entendida em dimensões técnica, jurídica e econômica. Contudo, na era digital, impõe-se o reconhecimento da vulnerabilidade cognitiva e mental, diante de técnicas que exploram vieses psicológicos para induzir escolhas.
O STJ já reconheceu a figura do consumidor hipervulnerável, especialmente em casos envolvendo idosos e doentes⁷. A doutrina propõe expandir essa categoria para abarcar consumidores expostos a manipulações subliminares de atenção, como no caso de dark patterns, gamificação e notificações constantes⁸.
A publicidade digital baseada em influenciadores e algoritmos de segmentação apresenta riscos específicos:
- Publicidade encoberta, que viola o dever de informação;
- Indução de crianças e adolescentes, altamente suscetíveis à influência emocional;
- Superendividamento, provocado por compras impulsivas geradas por estímulos persuasivos.
O CDC, embora aplicável, ainda não possui dispositivos específicos para enfrentar plenamente esses fenômenos.
4. Regulação internacional e comparada
A União Europeia desponta como vanguarda, com o GDPR e, mais recentemente, o Digital Services Act, que impõe limites a padrões de design manipulativos e aumenta a transparência algorítmica⁹. O Reino Unido também inovou com o Age Appropriate Design Code, que protege crianças de técnicas abusivas¹⁰.
Já os Estados Unidos mantêm modelo fragmentado, com normas setoriais como a COPPA (para crianças) e legislações estaduais como a CCPA da Califórnia. O Canadá avança com a PIPEDA e discussões sobre IA, enquanto a China adota regime rígido de controle estatal sobre dados. A Austrália, por sua vez, combina regras de privacidade com políticas de concorrência e segurança online.
Essas experiências demonstram a tendência global de enfrentar não apenas a coleta de dados, mas a manipulação da atenção e da subjetividade.
5. Perspectivas para o direito brasileiro
O Brasil já dispõe de instrumentos relevantes: a Constituição, o CDC e a LGPD. Contudo, ainda falta uma regulação específica para a economia da atenção e o marketing de influência. Caminhos possíveis incluem:
- Reconhecimento expresso da privacidade mental como direito da personalidade;
- Atualização do CDC, com dispositivos sobre publicidade digital, dark patterns e proteção de crianças;
- Integração entre CDC e LGPD, criando um marco normativo unificado para o ambiente digital;
- Reforço da fiscalização pela ANPD, Procons e Ministério Público, com sanções proporcionais ao poder econômico das plataformas;
- Investimento em educação digital, fortalecendo a autonomia crítica dos consumidores.
Essas medidas podem colocar o Brasil em posição de liderança na proteção jurídica da dignidade humana no ambiente digital.
6. Conclusão
A privacidade mental representa um novo desafio para o Direito do Consumidor na era digital. Se antes a preocupação era garantir informação adequada e transparência contratual, hoje é necessário proteger a mente do consumidor contra técnicas de manipulação invisíveis que corroem a autonomia de escolha.
A Constituição, o CDC e a LGPD oferecem bases principiológicas para essa tutela, mas é urgente avançar para uma regulação específica, inspirada em experiências internacionais. O reconhecimento da privacidade mental como direito fundamental e a criação de mecanismos de transparência e responsabilização das plataformas digitais são passos essenciais para garantir a centralidade da dignidade humana na economia da atenção.
Referências
WARREN, Samuel; BRANDEIS, Louis. The Right to Privacy. Harvard Law Review, v. 4, n. 5, 1890.
WESTIN, Alan. Privacy and Freedom. New York: Atheneum, 1967.
FLORIDI, Luciano. The Ethics of Information. Oxford: Oxford University Press, 2013.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2015.
ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism. New York: PublicAffairs, 2019.
STF, RE 638.115/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 11.03.2015.
STJ, REsp 1.199.782/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.03.2011.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2016.
EUROPEAN COMMISSION. The Digital Services Act package. Brussels, 2022. ICO – Information Commissioner’s Office. Age Appropriate Design Code. London, 2020.
[1] Doutoranda FADISP. Professora Universitária e Advogada.

