PRISÃO, ESTIGMA E REINSERÇÃO SOCIAL DO APENADO: A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO CAMINHO PARA A RECONSTRUÇÃO DE VÍNCULOS FAMILIARES E COMUNITÁRIOS

PRISÃO, ESTIGMA E REINSERÇÃO SOCIAL DO APENADO: A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO CAMINHO PARA A RECONSTRUÇÃO DE VÍNCULOS FAMILIARES E COMUNITÁRIOS

30 de agosto de 2025 Off Por Cognitio Juris

PRISON, STIGMA AND SOCIAL REINSERTION OF THE INVITED PEOPLE: RESTORATIVE JUSTICE AS A PATH TO RECONSTRUCTION OF FAMILY AND COMMUNITY LINKS

Artigo submetido em 26 de agosto de 2025
Artigo aprovado em 30 de agosto de 2025
Artigo publicado em 30 de agosto de 2025

Cognitio Juris
Volume 15 – Número 58 – 2025
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Vitória Rayana de Oliveira Taborda[1]
Ester Eliana Hauser[2]

Resumo: O presente artigo discorre sobre a prisão como estratégia punitiva nas sociedades contemporâneas e analisa o impacto do cárcere na vida pós prisão do infrator. Analisa como se dá o processo de estigmatização do apenado e como este afeta a reinserção social do mesmo, avaliando o potencial das práticas de Justiça Restaurativa em contribuir para a superação das marcas provocadas pela prisão e para a efetiva integração social do ex-detento. O método utilizado para a construção do trabalho é o hipotético-dedutivo, a partir de pesquisa exploratória e explicativa. Analisa a ineficácia do sistema penal tradicional frente às demandas de reinserção, buscando responder de que forma a Justiça Restaurativa pode auxiliar na superação dos estigmas e na efetiva reintegração social da pessoa presa. Evidencia-se que a Justiça Restaurativa representa uma alternativa viável e humanizadora, pois valoriza a responsabilização consciente, a reparação dos danos e o fortalecimento dos laços comunitários, atuando como possível catalisadora do processo de redução da reincidência.

Palavras-chave: Prisão. Estigma. Reinserção. Justiça Restaurativa.

Abstract: This article discusses prison as a punitive strategy in contemporary societies and analyzes the impact of prison on the offender’s post-prison life. It analyzes how the process of stigmatization of the prisoner occurs and how it affects their social reintegration, evaluating the potential of Restorative Justice practices in contributing to overcoming the marks caused by prison and to the effective social integration of the former prisoner. The method used to construct the work is hypothetical-deductive, based on exploratory and explanatory research. It analyzes the ineffectiveness of the traditional criminal system in the face of demands for reinsertion, seeking to answer how Restorative Justice can help to overcome stigmas and achieve the effective social reintegration of the imprisoned person. It is clear that Restorative Justice represents a viable and humanizing alternative, as it values ​​conscious accountability, repairing damage and strengthening community ties, acting as a possible catalyst for the process of reducing recidivism.

Keywords: Prison. Stigma. Reinsertion. Restorative Justice.

Introdução:

          A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 3°, inciso IV, o propósito de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. De outra banda, em que pese tal determinação constitucional, é necessário mencionar que, desde os primórdios, presidiários e egressos do sistema possuem seus direitos minimizados, uma vez que no período pós encarceramento e com seu retorno à sociedade, passam a viver à margem do corpo social, devido ao preconceito sofrido pelo seu passado, mas principalmente por serem ex apenados, logo, etiquetados. 

       Com base nessas constatações, o presente estudo tem como objetivo analisar a situação dos apenados no Brasil durante o período de prisão e após a liberdade, além de examinar a relação entre encarceramento, estigma e reinserção social, avaliando as contribuições das práticas de Justiça Restaurativa para o retorno do detento ao convívio familiar e comunitário.

          A sociedade caracteriza-se pela desigualdade, preconceito e estigmatização de ex-presidiários. O não acolhimento desses sujeitos, tende a estigmatizar e reforçar o constrangimento e o senso de não pertencimento, o que impede que o próprio detento se veja como alguém apto a recomeçar a vida fora dos muros da prisão. Assim, é usual que os ex-apenados vivenciem um ciclo sem fim:  execução de um ato ilícito > ser punido > retornar ao convívio social > frustrar a tentativa de retorno > execução de novo ato ilícito.

          Logo, a principal justificativa deste estudo é fomentar uma reflexão sobre estratégias capazes de interromper esse ciclo, promovendo uma reinserção social efetiva e evitando que o apenado retorne ao mundo do crime. Por fim, a problemática que norteia a pesquisa emerge da realidade operacional do sistema penal tradicional, marcada pelo evidente fracasso das promessas de reinserção social pela via do encarceramento e, paralelamente, pelos fenômenos da estigmatização e reincidência amplamente verificados em seu seio. Diante disso, o estudo busca responder à seguinte indagação: de que forma a Justiça Restaurativa poderá contribuir para a superação dos estigmas da criminalização e para a efetiva reinserção social da pessoa presa?

Processos de criminalização, etiquetamento social e a prisão como pena

          O convívio social expõe os indivíduos a conflitos, tornando necessária a implementação de estratégias de controle social. Contudo, o estudo dos processos de criminalização, do etiquetamento social e da prisão como pena, desenvolvidos pela da criminologia crítica, revela a face seletiva e excludente do sistema penal contemporâneo. Esses fenômenos não se limitam à simples aplicação da lei penal, mas estão diretamente relacionados à forma como a sociedade define, rotula e controla determinados grupos sociais, em especial aqueles em situação de maior vulnerabilidade. (Barata, 2002)

          Nesse contexto, o etiquetamento social transforma indivíduos em “criminosos” aos olhos da coletividade, reforçando estigmas que dificultam a reinserção social.

          O processo de criminalização é muito complexo, podendo ser dividido em criminalização primária e secundária. Baratta (2002) indica que esse processo ocorre em duas fases distintas: a criminalização primária, que corresponde à criação da norma penal incriminadora pelo legislador, e a criminalização secundária, que se concretiza na aplicação seletiva da lei penal pelos órgãos de persecução penal e pelo Judiciário. A seletividade manifesta-se na escolha dos alvos da repressão, recaindo predominantemente sobre os indivíduos oriundos das camadas sociais mais vulneráveis.

          Para que se possa entender estes institutos de forma mais completa, menciona-se o artigo 5° da Carta Constitucional Brasileira, o qual dispõe que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Neste sentido, entende-se por criminalização primária todo o processo de criação das leis, ou seja, é neste momento em que o Estado estabelecerá os bens jurídicos a serem tutelados, definindo as condutas criminosas e as respectivas sanções a serem aplicadas aos autores de violações de tais bens.

          Por outro lado, a criminalização secundária refere-se à atuação do Estado na identificação, imputação e julgamento de indivíduos que transgridem a lei penal. Neste aspecto, é fundamental destacar que a criminalidade não constitui atributo inerente ao sujeito, mas resulta de condições socialmente estabelecidas por meio das normas jurídicas. Nesse sentido, não existem condutas intrinsecamente criminosas, tampouco indivíduos naturalmente criminosos; existem, sim, processos de criminalização que estruturam o etiquetamento de determinadas ações e a designação de sujeitos como criminosos.

          O processo de criminalização primária, ao eleger os bens jurídicos tutelados penalmente, e de criminalização secundária, ao selecionar quem será efetivamente punido, evidenciam que o sistema de justiça não atua de maneira neutra, mas dentro de uma lógica estrutural de poder. (Barata, 2002)

          Neste ponto, vem à tona indicar  que o processo de criminalização secundária é altamente seletivo e discriminatório, tendo em vista que nem todos os indivíduos que cometem crimes, são efetivamente punidos. Isso pois, nem todos os delitos que são cometidos chegam até as autoridades e passam pelo devido processo legal. Conforme menciona Thompson (2007) “Apenas uma reduzida minoria das violações à lei criminal chega à luz do conhecimento público”.       Para o autor, esse fenômeno é conhecido como “cifra negra da criminalidade”, oportunidade em que ele se refere à lacuna encontrada entre os crimes cometidos e os que são registrados (Thompson, 2007).

          Nessa linha, Zaffaroni e Pierangeli (1999) salientam que o sistema penal é estruturalmente seletivo e opera como mecanismo de poder destinado a manter a ordem social estabelecida, atingindo em especial aqueles que já se encontram em situação de marginalização. A criminalização, portanto, não é fenômeno neutro, mas vinculado a interesses econômicos, políticos e sociais.

          A teoria do etiquetamento, conforme aludem Silva e Cury (2021), traz a ideia de que a criminalidade é resultado de um processo de imputação, permitindo que os tidos como criminosos sejam “etiquetados”. Neste ponto de vista, para Silva e Cury (2021), a teoria do etiquetamento criminal distingue-se pelo relativismo jurídico e moral, resultante da intensificação do pluralismo cultural e pela clara inclinação em favor das minorias socialmente marginalizadas.

          No mesmo sentido, Becker (2008) desenvolve a teoria do etiquetamento, segundo a qual a criminalidade não reside no ato em si, mas na reação social que o define como desviante. Assim, o indivíduo rotulado como delinquente passa a carregar um estigma, que condiciona sua identidade e afeta diretamente suas relações sociais, dificultando a reintegração e ampliando as barreiras de exclusão.

          A teoria supracitada evidencia que, mais do que punir a conduta, o sistema penal cria identidades desviantes, reforçando a marginalização. Uma vez rotulado, o indivíduo passa a ser visto e tratado como criminoso em todas as esferas sociais, o que acaba por retroalimentar o ciclo da criminalização

          A pena de prisão, nesse contexto, apresenta-se como o principal instrumento de controle social formal do Estado. Entretanto, sua legitimidade e eficácia como meio de prevenção e ressocialização são amplamente questionadas pela criminologia crítica. Foucault (1987), ao analisar o nascimento da prisão moderna, demonstra que ela se insere em uma lógica disciplinar de vigilância e controle, mais do que em uma proposta efetiva de reabilitação.

          A prisão, por sua vez, constitui o principal instrumento formal de controle social; contudo, sua eficácia no cumprimento das funções declaradas de ressocialização e prevenção é amplamente contestada pela criminologia crítica, uma vez que tende a reproduzir exclusão e desigualdades, em vez de promover a integração social.

          Segundo Foucault (1987), a prisão constitui tecnologia de poder que busca normalizar os corpos e comportamentos, operando como espaço de disciplinamento. Contudo, longe de ressocializar, a prisão acaba reforçando estigmas, acentuando desigualdades e perpetuando a exclusão social.

          Ademais, é importante destacar que a prisão cumpre também funções simbólicas, ao oferecer à sociedade uma falsa sensação de segurança e de justiça, enquanto oculta as reais causas estruturais da criminalidade, ligadas à desigualdade, pobreza e exclusão.        Como afirma Wacquant (2001), o encarceramento em massa constitui resposta punitiva a problemas sociais que deveriam ser tratados por meio de políticas públicas de inclusão. Portanto, os processos de criminalização e de etiquetamento social, associados à prisão como pena, revelam que o sistema penal atua como mecanismo seletivo e excludente, que estigmatiza determinados grupos sociais e reproduz desigualdades históricas. Em vez de promover a reinserção, a prisão aprofunda o ciclo da criminalização, dificultando ainda mais a reintegração do egresso e reforçando o estigma que recai sobre o ex-apenado.”

          O impacto da prisionalização na pessoa do apenado não diz respeito apenas à perda de liberdade, mas envolve transformações psicológicas, sociais e comportamentais que influenciam negativamente a reintegração do apenado. O cárcere, marcado por superlotação, violência e condições precárias, gera estigmatização e isolamento social, dificultando a reconstrução da identidade do egresso e perpetuando ciclos de reincidência.

          Para além dos processos de prisionalização e criminalização, existe a construção da imagem do apenado como inimigo da sociedade. Sob a perspectiva deste viés, Alvino Augusto de Sá (2012, on-line) aponta que “entre inimigos não existe ruptura; existe exclusão, na medida em que as partes inimigas não fazem parte do mesmo todo”. Por conseguinte, Sá (2012, on-line) assevera que:

[…] ele passa a sentir como inimiga a sociedade, o grupo social de que não se sente partícipe e, por consequência, passa a se definir como inimigo. O grande desafio da execução penal é o enfrentamento desses processos migratórios de criação do inimigo, pelo menos no sentido de não se deixar compatibilizar com tais processos.

          Conforme Sá (2012) menciona, o primeiro processo migratório da construção da imagem do apenado, hostis judicatus, passa de inimigo da vítima para inimigo da coletividade, formalizando a degradação da pessoa do preso. Outrossim, Sá (2012) traz a definição do segundo processo migratório para a criação do inimigo, chamado de hostis alienígena, que, segundo o autor, é o processo em que a sociedade passa a ver o indivíduo criminoso como um ser estranho, como um alienígena, que pertence a outro grupo de seres, como uma ameaça, ou seja, faz-se a transição do hostis judicatus para o hostis alienígena.

          Por fim, diante dos processos supracitados, o indivíduo criminoso, uma vez rejeitado e visto como um inimigo do coletivo, passa a transformar a sua própria imagem, inclusive alterando a sua percepção e análise de si próprio, constituindo o seu Self, destruindo seu senso de pertencimento à sociedade.

Justiça Restaurativa e reinserção social

          A Justiça Restaurativa apresenta-se como um novo paradigma de tratamento dos conflitos, contrapondo-se ao modelo retributivo que caracteriza o sistema penal tradicional. Conforme aponta Achutti (2016), a Justiça Restaurativa emergiu e se desenvolveu em resposta à insatisfação social com o sistema de justiça criminal tradicional, diante de sua incapacidade de lidar eficazmente com a crescente violência e criminalidade, mostrando-se insuficiente no cumprimento de suas promessas e funções declaradas.

          Diferentemente do sistema penal convencional, que se concentra na punição e no isolamento do indivíduo, a Justiça Restaurativa enfatiza o diálogo, a mediação e a reconstrução de vínculos sociais, oferecendo caminhos para a reinserção social do apenado. Nesse contexto, a prática restaurativa assume papel central na mitigação do estigma associado à criminalidade, contribuindo para que o egresso do sistema prisional retorne ao convívio familiar e comunitário de forma efetiva, fortalecendo laços sociais e promovendo a inclusão.

          Seu foco recai não sobre a punição do infrator, mas sobre a reparação dos danos, a restauração dos vínculos rompidos e a promoção de uma cultura de paz. Assim, mais do que identificar culpados e aplicar sanções, a Justiça Restaurativa procura compreender as causas do conflito e construir, de forma coletiva, caminhos para sua superação.

          Segundo Zehr (2008), um dos principais teóricos da Justiça Restaurativa, o crime não é simplesmente uma violação da lei, mas um dano causado a pessoas e comunidades. Nessa perspectiva, o processo restaurativo envolve vítima, ofensor e comunidade em um esforço conjunto para decidir como reparar os prejuízos decorrentes da infração. Esse modelo busca promover a responsabilização ativa do infrator, estimular a empatia e assegurar à vítima espaço de escuta e participação.

          Para elucidar de forma mais aprofundada os aspectos conceituais e os princípios da Justiça Restaurativa, Pallamolla (2009) apresenta três concepções elaboradas por Johnstone e Van Ness, cada uma delas destacando propósitos distintos no âmbito da prática restaurativa.

          A primeira é a concepção do encontro, segundo a qual vítimas, ofensores e membros da comunidade devem dispor de uma oportunidade de se reunir em um ambiente menos formal e menos controlado por especialistas, diferentemente do que ocorre em fóruns e tribunais (Pallamolla, 2009). Esse espaço propicia, por meio de um diálogo qualificado, uma compreensão mais aprofundada dos fatos, de suas consequências e de suas implicações.

          O segundo conceito refere-se à concepção da reparação, que sustenta que, no âmbito da Justiça Restaurativa, os danos causados à vítima devem ser adequadamente reparados. Conforme Pallamolla (2009, p. 57), “Adeptos dessa tendência afirmam que a reparação é suficiente para que exista justiça, sendo desnecessário infligir dor ou sofrimento ao ofensor”. Nesse sentido, Zehr (p. 175) ressalta que, diante de um dano, “a questão central não deveria ser “O que devemos fazer ao ofensor?” ou “O que o ofensor merece?”, mas sim “O que podemos fazer para corrigir a situação?”.

          A terceira concepção é a da transformação, que postula que o objetivo central da Justiça Restaurativa é promover a mudança nas pessoas e na forma como elas compreendem a si mesmas e seus relacionamentos (Pallamolla, 2009). Diferentemente das concepções anteriores, esta perspectiva entende a Justiça Restaurativa como uma filosofia de convivência, fundamentada em relações mais democráticas e equitativas, com a finalidade de suprimir qualquer forma de hierarquia entre os indivíduos e entre estes e o ambiente em que vivem.

          O olhar retributivo não atende, deste modo, as necessidades de vítimas e ofensores e por isso, abriu espaço para uma nova abordagem, uma nova visão sobre a transgressão, os transgressores e os transgredidos. Conforme Zehr (2008, p. 183):

A perspectiva faz muita diferença. Como interpretaremos os acontecimentos? Quais os fatores relevantes? Que reações são possíveis e apropriadas? A lente através da qual enxergamos determina o modo como configuramos o problema e a “solução”. Precisamos olhar não somente para as penas alternativas e as alternativas à punição.

          No ambiente prisional, a implementação de práticas restaurativas revela-se de grande importância, pois oferece condições para que o apenado desenvolva consciência crítica sobre sua conduta e seus efeitos, além de contribuir para a reconstrução de sua identidade social. Os círculos de diálogo, conferências restaurativas e encontros entre vítima e ofensor são exemplos de instrumentos que possibilitam a ressignificação da experiência da prisão e favorecem a preparação para a reinserção social.

          A reinserção social sob a ótica restaurativa ultrapassa a ideia de mero retorno físico à comunidade após o cumprimento da pena. Trata-se, na verdade, de um processo de reconstrução do indivíduo como sujeito de direitos, marcado pelo reconhecimento de sua dignidade e por oportunidades concretas de transformação pessoal e social. A Justiça Restaurativa, ao priorizar a reparação dos danos e a restauração dos laços, atua como instrumento eficaz de enfrentamento ao estigma e à exclusão que recaem sobre o egresso do sistema penitenciário.

          Além disso, diversos estudos apontam que a aplicação de práticas restaurativas contribui para a redução da reincidência criminal, justamente porque promove a responsabilização consciente, a valorização das relações interpessoais e o fortalecimento dos vínculos comunitários. Nesse sentido, a Justiça Restaurativa constitui não apenas uma alternativa ao encarceramento, mas também uma estratégia para construir sociedades mais inclusivas e menos punitivas.

Contribuições das práticas restaurativas no processo de reinserção social do apenado

          Em primeiro lugar, vem à baila indicar que, conforme ensina Zehr (2012), a Justiça Retributiva e a Justiça Restaurativa possuem respostas diferentes para as mesmas perguntas. Para aquela, o crime é visto como uma violação da lei e do estado, gerando culpa e impondo a punição/sofrimento aos ofensores que deverão receber, de acordo com essa visão, o justo castigo (Zehr, 2012).

          Assim, Toews (2019) indica que a JR é uma forma de viver e que, na verdade, não é o único elemento para a mudança social. Por conseguinte:

Viver de forma restaurativa na prisão – como a justiça restaurativa na sociedade como um todo – vai na contramão da cultura vigente. Ainda assim, optar por viver de forma restaurativa tem o potencial de influenciar os outros na prisão, bem como a cultura prisional em si. Tais mudanças, do lado de dentro, podem, por sua vez, influenciar a comunidade do lado de fora (Toews, 2019, p. 105).

          Neste viés, as práticas restaurativas têm se consolidado como ferramentas fundamentais na promoção de uma justiça mais humana, inclusiva e transformadora. Ao contrário do modelo penal tradicional, centrado na punição e na exclusão, a abordagem restaurativa propõe a responsabilização ativa do ofensor, a reparação dos danos causados à vítima e o fortalecimento dos vínculos comunitários. Trata-se de um paradigma que coloca em primeiro plano as necessidades das pessoas envolvidas no conflito e busca soluções que realmente contribuam para a pacificação social.

          De acordo com Zehr (2008), a Justiça Restaurativa promove a corresponsabilidade, estimulando que todos os atores envolvidos, vítima, ofensor e comunidade participem do processo de resolução. Esse caráter dialógico representa um diferencial importante, uma vez que permite a construção de soluções mais efetivas e legitimadas socialmente.

          No contexto prisional, as práticas restaurativas desempenham papel fundamental na superação do estigma e na redução das barreiras que dificultam a reinserção social do apenado. Por meio de círculos restaurativos, conferências e encontros entre vítimas e ofensores, cria-se um espaço de diálogo que permite ao infrator compreender as consequências de seus atos, assumir responsabilidades e desenvolver novas perspectivas de vida. Simultaneamente, a vítima dispõe de um ambiente no qual pode expressar suas dores e necessidades, sentindo-se efetivamente ouvida e reparada.

          Em consonância com Toews (2019), tem-se 3 níveis de práticas restaurativas, sendo elas: 1) socialmente restaurativa; 2) relacionalmente restaurativa; e 3) individualmente restaurativa.

          A primeira, conforme indica Toews (2019, p. 81) “não apenas respondem às necessidades dos participantes com uma resposta de justiça específica, mas também criam oportunidades para que se possa lidar com questões sociais mais amplas relacionadas ao crime”. A segunda, Toews (2019) indica o envolvimento da família, a comunidade, vítima e ofensor, com encontros, grupos de apoio, tomadas de decisão em conjunto, grupos de diálogo e encontros Vítima-Ofensor, visando resgatar os laços interindividuais rompidos ou afetados com a prática da infração.

          Por fim, a terceira, aponta-se o nível individualmente restaurativo, buscando atender as necessidades das pessoas diretamente envolvidas no conflito, isto é, as necessidades da vítima, necessidades da família do ofensor e necessidades do ofensor. (Toews, 2019)

                    Para compreender de forma mais aprofundada a potencialidade das práticas restaurativas no contexto prisional, é necessário analisar os elementos que constituem as práticas circulares de construção de paz, detalhando suas características já mencionadas anteriormente.

          Em primeiro lugar, sentar todos os participantes em um círculo é de suma importância. Essa forma de organização permite que cada um enxergue a todos os outros, dando enfoque na igualdade entre os participantes e maior conexão (Pranis e Watson, 2025).

          O momento meditação ou MINDFULNESS, conforme citam Pranis e Watson (2025, p. 47), é um elemento importante das práticas pois permite que os participantes se esqueçam das distrações externas e se concentrem na prática circular. As autoras observam que “Pode-se usar foco na respiração por um momento, ou foco em um som ou tom agradável para criar essa quietude desejada.” .

          De praxe os círculos possuem cerimônias de abertura e encerramento, ou então de check-in ou check-out, pois “é extremamente importante marcar claramente o início e o final do Círculo”. Uma vez iniciado, todos passam a estar cientes que poderão deixar suas máscaras e proteções do dia a dia de lado, apresentando seu verdadeiro eu (Pranis e Watson, 2025).

          Segundo Wright (2010), a adoção de práticas restaurativas gera impactos positivos na redução da reincidência, justamente porque não se limita a punir, mas atua na reconstrução dos laços sociais rompidos com a prática do delito. Ao promover a autorresponsabilização e a empatia, cria-se um ambiente favorável para a transformação pessoal do apenado e para a prevenção de novos delitos.

          Outro elemento central das práticas circulares é o “objeto da palavra”, que, segundo Pranis e Watson (2025, p. 48), ‘serve para regular o diálogo dos participantes’. Esse objeto circula entre os presentes de forma ordenada, garantindo maior tranquilidade e oportunidades equitativas de fala, uma vez que somente quem o estiver portando tem a palavra, enquanto os demais permanecem em escuta ativa.

          É importante referir também que, outro elemento importante das práticas circulares é a figura do facilitador. O facilitador auxilia “na criação e na manutenção de um espaço coletivo no qual cada participante se sinta seguro o suficiente para falar honesta e abertamente sem desrespeitar ninguém” (Pranis e Watson, 2025, p. 50).

          Ademais, outro aspecto relevante é o potencial das práticas restaurativas para transformar a cultura institucional. Em espaços marcados por relações hierarquizadas e pela violência estrutural, como o sistema prisional, a introdução de metodologias restaurativas possibilita novas formas de convivência e de gestão de conflitos, contribuindo para ambientes mais colaborativos e menos violentos.

          No Brasil, iniciativas implementadas em alguns tribunais e instituições prisionais têm apontado resultados promissores. A utilização de círculos de construção de paz e encontros restaurativos em comunidades e escolas, por exemplo, têm demonstrado grande potencial de prevenção da criminalidade e de fortalecimento do tecido social. Ainda que os desafios para a consolidação dessa prática em escala nacional sejam muitos, os avanços já verificados apontam para sua relevância como política pública.

          Como forma de demonstrar a aplicação concreta da JR nas casas prisionais, menciona-se o documentário “Justiça Restaurativa: Uma Nova Maneira de Fazer Justiça” (Oliveira, 2025), no qual podem ser vistos os resultados da aplicação das práticas dentro do cárcere. O documentário traz a experiência de práticas restaurativas que ocorrem na unidade prisional de Goianésia, tanto com os agentes prisionais quanto com os detentos.

“No vídeo, os agentes penitenciários destacam a relevância dos círculos de paz, ressaltando que, a partir da participação nessas práticas, os servidores passaram a estabelecer uma comunicação mais assertiva com os apenados, o que resultou em uma resposta positiva por parte dos presos diante dessa mudança.

          Ademais, os policiais penais relataram que, após a participação nos círculos, passaram a se comunicar de maneira mais efetiva tanto entre si quanto com os apenados. Ressaltaram que o ambiente prisional é marcado por grande tensão, e que os círculos representam um espaço de descompressão, no qual podem se reconhecer como pessoas dotadas de sentimentos e necessidades. Nesse sentido, enfatizaram que, por trás da farda, também existem seres humanos com problemas que precisam ser ouvidos. Assim, as práticas restaurativas contribuem para o fortalecimento do trabalho em equipe e para a construção de um ambiente laboral mais saudável, repercutindo positivamente no clima institucional e, por conseguinte, no próprio ambiente prisional.

          Por sua vez, os detentos evidenciam, em seus relatos, como o contato com as práticas restaurativas os auxiliou tanto na vivência dentro do sistema prisional quanto na convivência com os demais presos. As narrativas revelam uma profunda transformação pessoal, marcada pela mudança de perspectiva em relação ao mundo e pela ressignificação de seus comportamentos, uma vez que, por meio dessas práticas, passaram a refletir sobre suas ações e a buscar novos caminhos. Em determinado momento, uma mulher egressa do sistema prisional afirma que, se tivesse tido acesso à Justiça Restaurativa anteriormente, muitas de suas escolhas teriam sido diferentes e determinadas condutas não teriam sido praticadas.

          Portanto, as contribuições das práticas restaurativas vão muito além da resolução de conflitos pontuais. Elas oferecem instrumentos de ressignificação da justiça, de promoção da dignidade humana e de construção de uma sociedade mais inclusiva. Ao substituir a lógica punitiva pela dialógica e reparadora, a Justiça Restaurativa abre caminho para uma reinserção social mais efetiva, para a redução da reincidência e para a transformação cultural de comunidades e instituições.

          Diante do exposto, falar em reinserção social da pessoa presa não significa tratar o apenado como um doente e a pena como um remédio milagroso, mas sim, assegurar um lugar digno para este sujeito quando ele retorna para a sociedade, assegurando um cumprimento de pena digno, responsável e participativo, de forma a auxiliar na reconstrução dos laços sociais e familiares, bem como na superação do estigma.

Considerações Finais

          Diante do exposto, o presente estudo possibilitou refletir sobre a prisão como forma de pena, seus efeitos estigmatizantes e as barreiras que dificultam a reinserção social do egresso. Constatou-se que o sistema penal brasileiro permanece estruturado sob bases punitivas e excludentes, reforçando desigualdades históricas e sociais. Em vez de promover a reintegração, a prisão tem acentuado o processo de criminalização e alimentado o ciclo da reincidência, revelando-se um mecanismo ineficaz para enfrentar as complexas causas da criminalidade.

          A análise dos processos de criminalização e de etiquetamento social demonstrou que a aplicação da lei penal não ocorre de forma neutra, mas dentro de uma lógica seletiva que incide, majoritariamente, sobre indivíduos pertencentes às classes mais vulneráveis. O etiquetamento, ao atribuir ao sujeito a condição de ‘criminoso’, compromete sua identidade e suas perspectivas de reinserção, ampliando o estigma que o acompanhará mesmo após o cumprimento da pena.

          Nesse contexto, a Justiça Restaurativa emerge como paradigma alternativo ao modelo retributivo tradicional. Ao priorizar o diálogo, a corresponsabilidade e a reparação dos danos, a abordagem restaurativa oferece caminhos mais eficazes para lidar com os conflitos e seus efeitos. A análise realizada evidenciou que, por meio de práticas como círculos de paz, conferências e encontros entre vítima e ofensor, é possível não apenas responsabilizar o infrator, mas também promover a escuta da vítima e a reconstrução dos vínculos comunitários.

          A Justiça Restaurativa, representa, portanto um paradigma alternativo ao modelo retributivo tradicional. Ao priorizar o diálogo, a corresponsabilidade e a reparação dos danos, a abordagem restaurativa oferece caminhos mais eficazes para lidar com os conflitos e seus efeitos. A análise realizada evidenciou que, por meio de práticas como círculos de paz, conferências e encontros entre vítima e ofensor, é possível não apenas responsabilizar o infrator, mas também valorizar a escuta da vítima e fomentar a reconstrução dos vínculos comunitários.

          A reinserção social, sob a perspectiva restaurativa, deixa de ser compreendida como mero retorno do egresso à comunidade e passa a significar um processo de reconstrução de sua identidade enquanto sujeito de direitos. Esse processo pressupõe o reconhecimento de sua dignidade e a criação de condições que viabilizem o pleno exercício da cidadania. Ao romper com a lógica da estigmatização e da exclusão, a Justiça Restaurativa possibilita que o egresso seja integrado de forma efetiva ao convívio social e familiar.

          Outro aspecto relevante identificado foi a contribuição das práticas restaurativas para a redução da reincidência criminal. Diferentemente do sistema prisional, que reforça a marginalização e aprofunda desigualdades, a abordagem restaurativa estimula a autorresponsabilização e a empatia, promovendo transformações individuais e coletivas. Ao fortalecer vínculos sociais e valorizar o diálogo, contribui não apenas para a prevenção de novos delitos, mas também para a consolidação de uma cultura de paz.

          Embora ainda existam desafios à efetiva implementação da Justiça Restaurativa no Brasil, sobretudo no âmbito prisional, já se verificam iniciativas promissoras. Experiências em tribunais, escolas e comunidades demonstram que a adoção de metodologias restaurativas pode transformar realidades e oferecer alternativas concretas à lógica punitiva. O reconhecimento institucional, materializado pela Resolução nº 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça, representa um passo importante para a consolidação de uma política pública voltada à Justiça Restaurativa.

          Diante disso, conclui-se que a superação do fracasso do sistema prisional e do ciclo de estigmatização exige mais do que reformas pontuais, demandando a adoção de novos paradigmas de justiça. A Justiça Restaurativa apresenta-se como caminho viável e necessário, ao conjugar responsabilização consciente, reparação dos danos e reconstrução de laços sociais. Mais do que um modelo teórico, trata-se de uma prática capaz de transformar relações sociais e de contribuir para a construção de uma sociedade mais inclusiva, democrática e humana.

          Portanto, as reflexões desenvolvidas neste trabalho apontam que a efetivação da Justiça Restaurativa no contexto brasileiro pode representar um marco na forma de compreender e enfrentar a criminalidade. Ao deslocar o foco da punição para a restauração, abre-se espaço para uma justiça que acolhe, integra e humaniza, oferecendo não apenas respostas ao delito, mas também possibilidades concretas de pacificação social e de reinserção digna do apenado.

REFERÊNCIAS:

ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2ª edição. São Paulo. Saraiva, 2016.

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[1]      Graduada em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. E-mail: vitaborda4@gmail.com

[2]      Professora orientadora. Mestre em Direito pela UFSC. Professora do curso de graduação em Direito da UNIJUÍ. Coordenadora do Projeto Cidadania para todos. e-mail: estereh@unijui.edu.br.