OS IMPACTOS DA PANDEMIA DA COVID-19 NA RECONFIGURAÇÃO DO CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO

OS IMPACTOS DA PANDEMIA DA COVID-19 NA RECONFIGURAÇÃO DO CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO

1 de junho de 2021 Off Por Cognitio Juris

THE IMPACTS OF THE COVID-19 PANDEMIC ON THE RECONFIGURATION OF THE CONCEPT OF PUBLIC INTEREST

Cognitio Juris
Ano XI – Número 35 – Junho de 2021
ISSN 2236-3009
Autores:
Henrique Alves Pinto[1]
Leandro Ernesto Miranda[2]

Resumo

Diante da abertura semântica oferecida pelo conceito indeterminado de interesse público, são observadas as dificuldades com que vários autores costumam debater esse tema no âmbito do Direito Público. Todavia, por conta dessa maleabilidade conceitual, percebe-se que o interesse público enquanto uma concepção do universo jurídico tem sido constantemente reconfigurado pelo discurso político da atualidade como forma de justificar a tomada de algumas medidas no combate da pandemia provocada pela Covid-19. Após se estudar algumas dessas manifestações,pode-se confirmar que o conceito de interesse público, mesmo diante das manipulações sofridas, ainda permanece em seus aspectos mais essenciais já reconhecidos pela doutrina e pela jurisdição constitucional no Brasil.

Palavras-chave: Interesse público. Pandemia. Covid-19. Direito Público.

Abstract

In view of the semantic openness offered by the indeterminate concept of public interest, the difficulties with which several authors tend to debate this topic within the scope of Public Law are observed. However, due to this conceptual malleability, it is clear that the public interest as a conception of the legal universe has been constantly reconfigured by today’s political discourse as a way to justify taking some measures to combat the pandemic caused by Covid-19. After studying some of these manifestations, it can be confirmed that the concept of public interest, even in the face of the manipulations suffered, still remains in its most essential aspects already recognized by the constitutional doctrine and jurisdiction in Brazil.

Keywords: Public interest. Pandemic. Covid-19. Public Law.

Sumário: 1 Introdução. 2 A natureza conceitual do interesse público. 3 Interesse público e bem comum: uma aproximação. 3.1 O bem comum na Idade Média. 3.2 O bem comum sob a perspectiva do individualismo. 3.3 O bem comum no Estado Social.4 O interesse público em tempos de pandemia. 5 A função política e ideológica do discurso ao redor do interesse público em tempos de pandemia. 6 O interesse público e a sua resistência durante a pandemia da Covid-19.7 Considerações finais. 8 Referências.

1 Introdução

Por se tratar de uma expressão cada vez mais presente nos mais variados discursos políticos, o conceito de interesse público, reiteradamente, vem sendo alvo de críticas e debates, especialmente no Brasil, em face dos impactos proporcionados em escala global pela pandemia da Covid-19[3]. O que se percebe diante de todas essas discussões é que, muitas vezes, apesar de o interesse público se tratar de um sólido conceito de Direito Administrativo, determinados setores da sociedade e da política, que ora se aproximam e ora se antagonizam, tendem a anulá-lo ou até mesmo reconfigurá-lo, de modo a justificar a tomada de determinadas medidas administrativas – que nem sempre acabam se mostrando razoáveis – com o intuito de enquadrá-las nas vertentes do Estado Constitucional de Direito.

O Estado Constitucional de Direito ou Estado Constitucional Democrático se ergueu no curso do século XX, mediante debates filosóficos e teóricos a respeito da dimensão formal e material de dois conceitos centrais: o Estado de Direito e a Democracia. Tais conceitos, num plano administrativo, diante da abertura semântica permitida pela expressão interesse público, têm funcionado como motivação para o desenho de novos arranjos institucionais.

Se, na atualidade, de acordo com o professor Jacques Chevallier (2009), as sociedades pós-modernas e grupos econômicos são compelidos a se apoiarem nas bases dos Estados, e estes, por sua vez, tornaram-se porta-vozes e defensores de agressivos interesses econômicos, ocasionando, paralelamente a esse fenômeno, o enfraquecimento do conceito de soberania estatal, mal poderia ele prever a grande mudança de ares que a sua teoria e o mundo experimentariam diante da disseminação global dessa nova doença, a Covid-19.

Nesse sentido, englobando expressões semelhantes, tais como interesse coletivo, interesse geral, vontade geral, entre outras, este estudo pretende discutir de que maneira o conceito de interesse público busca cumprir a sua tarefa diária enquanto função de motivação e de legitimação da atuação política em virtude dos impactos causados pela pandemia da Covid-19, tendo como referencial teórico o papel do Direito Público nas novas configurações que surgem por meio da interpretação do conceito em questão. Destacam-se as acepções mais aceitas pela doutrina do que pode ser entendido como interesse público, além de suas características mais elementares, que são a sua indeterminação, a sua fluidez e a sua imprecisão, que o colocam em uma posição sujeita a diversas visões.

Este texto tentará demonstrar ainda que, mesmo diante da trágica situação proporcionada pela pandemia da Covid-19 no Brasil, e apesar das várias tentativas de se manipular aquilo que pode ser compreendido por interesse público a fim de extirpá-lo do seu locus comum, que é o Direito Público, tal conceito ainda resiste em sua base mais rudimentar, na medida em que tem se preocupado não apenas com um projeto de poder ou interesses meramente econômicos, mas, sim, com valores substanciais à mais digna existência, que, na atualidade, pode ser traduzido simplesmente como o direito de as pessoas voltarem a viver normalmente.

Efetuadas essas iniciais considerações, passa-se ao enfrentamento do tema.

2 A natureza conceitual do interesse público

Considerando-se que, de acordo com a doutrina majoritária no Brasil, o Direito Administrativo opera por meio do regime jurídico administrativo, que toma como base os princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, desde logo se percebe que não é nada fácil conceituar aquilo que pode ser percebido como interesse público.Para Sabino Cassese (2010, p. 487), o intérprete, quando “na tentativa de definir certos conceitos de direito administrativo, tais como ‘ente público’, ‘serviço público’, entre outros, acaba por desnaturá-los a tal ponto tornando-os indeterminados”. Sem sombra de dúvidas, foi e é exatamente isso o que vem acontecendo com o conceito de interesse público.

De modo geral, conforme apontado por Juliano Heinen (2019, p. 26), em vários trabalhos desenvolvidos no Brasil a respeito do que pode ser compreendido por interesse público, “o conceito sequer parte de uma metodologia que toma por base certos parâmetros, limites e fontes, para, daí, formatar um conceito”. Para Heinen (2019, p. 26), “os autores, em geral, se comportam a partir de conceitos pré-concebidos, como se o interesse público fosse verdadeiro ‘produto enlatado’, entregue em balizas, receita e conteúdo já concebidos”.

Apesar de essa dificuldade constatada ser bastante compreensível, isso especialmente se deve ao fato da expressão interesse público ter, entre seus traços mais marcantes, uma fluidez jurídica e imprecisão terminológica por meio da qual ela é interpretada e aplicada ao ordenamento jurídico, pois se trata de um conceito jurídico indeterminado. De forma assente na doutrina, os conceitos jurídicos indeterminados são aqueles em que o legislador propositalmente não conferiu uma definição mais precisa de seus termos; assim,tais conceitos somente adquirem um determinado sentido após sua interpretação, que deverá levar em consideração as circunstâncias do caso concreto. No caso do Direito Público, trata-se de uma verdadeira delegação da Constituição e das leis aos operadores do Direito, que deverão analisar, no caso concreto, qual é ou seria a medida mais adequada na busca pela efetivação do interesse público.

Para Fernando Sainz Moreno, autor espanhol que contribuiu na análise dos conceitos indeterminados, se tem a percepção de que

a vaguidade ou indeterminação dos conceitos utilizados na linguagem cotidiana não é um defeito que se deva corrigir, mas é uma nota característica que desempenha funções positivas. Na indeterminação, a aplicação do conceito a seu objeto move-se entre dois limites: um, de certeza positiva, marca a ideia nuclear do conceito; outro, de certeza negativa. Entre ambos os limites existe uma zona de dúvida (halo de conceito). (MORENO, 1976, p. 29).

Em outros termos, diante de uma expressão tão imprecisa e plurissignificativa como é o conceito de interesse público, afirma-se que as normas que o prescrevem não descrevem um certo agir positivo ou negativo por parte da Administração, mas, sim, um conjunto de parâmetros que servem como ponto de referência interpretativo,“oferecendo ao hermeneuta critérios axiológicos e os limites para aplicação das demais disposições normativas” (TEPEDINO, 2002, p. 19).

No Brasil, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 59), que também admite a figura dos conceitos jurídicos indeterminados, o interesse público deve ser conceituado como o “interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”.Para Mello (2000), contrariamente ao posicionamento adotado pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, o jurista Eros Roberto Grau[4], colhe-se o seguinte entendimento:

a imprecisão, fluidez, indeterminação, a que se tem aludido residem no próprio conceito, e não na palavra que os rotula. Há quem haja, surpreendentemente, afirmado que a imprecisão é da palavra e não do conceito, pretendendo que este é sempre certo, determinado. Pelo contrário, as palavras que os recobrem designam com absoluta precisão algo que é, em si mesmo, um objeto mentado cujos confins são imprecisos. Se a palavra fosse imprecisa – não o conceito – bastaria substituí-la por outra ou cunhar uma nova para que desaparecesse a fluidez do que se quis comunicar. Não há palavra alguma (existente ou inventável) que possa conferir precisão às mesmas noções que estão abrigadas sob as vozes ‘urgente’, ‘interesse público’, ‘pobreza’, ‘velhice’, ‘relevante’, ‘gravidade’, ‘calvície’ e quaisquer outras do gênero. A precisão acaso aportável implicaria alteração do próprio conceito originalmente veiculado. O que poderia ser feito, evidentemente, seria a substituição de um conceito impreciso por um outro conceito – já agora preciso, portanto um novo conceito –, o qual, como é claro, se expressaria através da palavra ou das palavras que lhe servem de signo. (MELLO, 2000, p. 20-21).

Nos termos das precisas observações de Emerson Gabardo e Maurício Côrrea de Moura Rezende a respeito da acentuada divergência entre o aporte conceitual proposto por Celso Antônio Bandeira de Mello e por Eros Roberto Grau, a existência do que a doutrina juspublicista num geral chama de “‘conceitos jurídicos indeterminados’ não é irrelevante, apenas merece uma denominação mais apropriada, capaz de circunscrever as idiossincrasias relativas à categoria jurídica que insta analisar” (GABARDO; REZENDE, 2017, p. 275).

Daí que, para Grau (2005, p. 202), onde a doutrina brasileira erroneamente acredita existir um conceito indeterminado, há, na verdade, uma noção: “E a noção jurídica deve ser definida como ideia que se desenvolve a si mesma por contradições e superações sucessivas e que é, pois, homogênea ao desenvolvimento das coisas”. Assim sendo, o “conceito” seria atemporal, enquanto a “noção” significaria uma ideia historicamente alocada, de acordo com valores e condições sociais de quando é aplicada – passível, assim, de interpretação (GRAU, 2005). À vista disso, nos termos da discussão em questão, “o interesse público seria uma noção, uma vez que não possui um conteúdo determinado e, ao contrário, apresenta-se como uma ideia sincrônica com a realidade de seu tempo, com conteúdo mutável de situação em situação” (GABARDO; REZENDE, 2017, p. 276). Como se pode perceber, essa concepção não é contraditória com o que foi descrito até agora, pois revela e reforça a fluidez que recebe a expressão interesse público, que pode “ser modificada, por exemplo, de acordo com as etapas do Estado de Direito, seja para abster-se da vida dos cidadãos, seja para nela intervir; seja para representar as maiorias apenas, seja para resguardar as minorias” (GABARDO; REZENDE, 2017, p. 276-277). Seja como for, deve-se aceitar, por imposição lógica, que, mesmo sendo vagos, imprecisos ou fluidos, alguns conceitos utilizados no pressuposto normativo ou em sua finalidade terão algum conteúdo minimamente indiscutível, que se torna o ponto comum de partida de todas as indagações que deles derivam.

Como tudo depende do critério a ser adotado, o que aqui se pretende discutir é a maneira como o interesse público, por ser um termo indutor de plurissignifcação, vem sendo utilizado como um discurso justificador de tomada de medidas políticas e jurídicas diante do novo cenário descortinado pela Covid-19.

3 Interesse público e bem comum: uma aproximação

Embora possa parecer que o interesse público foi um conceito cunhado no cerne do Direito Administrativo, na verdade ele antecede em vários séculos o surgimento desse segmento do Direito, que somente começou a se formar enquanto ramo autônomo ao final do século XVIII, com a formação do Estado de Direito. Por certo, a ideia da existência de interesses gerais distintos dos interesses individuais remonta suas origens na antiguidade greco-romana.

A ideia do primado do público, desenvolvida como forma de reação contra a concepção liberal do Estado, e que se apoia sobre a concepção da irredutibilidade do bem comum à soma dos bens individuais, pode assumir várias formas “segundo o diverso modo, através do qual é entendido o ente coletivo – a nação, a classe, a comunidade do povo – a favor do qual o indivíduo deve renunciar à própria autonomia”. Em todas essas formas, “é comum a ideia que as guia, resolvível no seguinte princípio: o todo vem antes das partes” (BOBBIO, 1987, p. 24-25). Para Norberto Bobbio (1987. p. 25), o entendimento desse quadro reflete

uma ideia aristotélica e mais tarde, séculos depois, hegeliana (de um Hegel que nesta circunstância cita expressamente Aristóteles); segunda ela, a totalidade tem fins não reduzíveis à soma dos fins dos membros singulares que a compõem e o bem da totalidade, uma vez alcançado, transforma-se no bem das suas partes, ou, com outras palavras, o máximo bem dos sujeitos é o efeito da não perseguição, através do esforço pessoal e do antagonismo, do próprio bem por parte de cada um, mas da contribuição que cada um juntamente com os demais dá solidariamente ao bem comum segundo as regras que a comunidade toda, ou o grupo dirigente que a representa (por simulação ou na realidade), se impôs através de seus órgãos autocráticos ou órgãos democráticos.

Na lição de Bobbio, para Aristóteles, no momento em que a identidade do indivíduo se afirmava na comunidade política, os interesses individuais passaram a ser alinhados com o bem comum, perdendo o significado de direitos individuais, já que a instância privada não era digna de atenção para se postular a sua autonomia, ao estabelecer uma relação dicotômica entre o indivíduo (privado) e o Estado (público). Assim, se os homens se realizam na e pela polis, é “porque querem viver bem, e, para que alcancem esse objetivo, é necessário que os cidadãos visem o interesse comum, ou em conjunto ou por intermédio dos seus governantes” (BOBBIO, 1976, p. 50).

Sob esse aspecto, tanto o interesse particular quanto o bem comum são buscados por pessoas concretas (cidadão ou governante). E, mesmo que o interesse privado, assim como o público, pareçam estar desviados do autêntico bem comum, ainda assim se teria um aperfeiçoamento pessoal ou social da coletividade. Daí a possibilidade de existir conflito entre o interesse privado e o bem comum quando algum membro daquela comunidade deixa de captar o seu verdadeiro bem particular ao buscar outro que não o satisfaz e que nem corresponde à sua natureza própria.

3.1 O bem comum na Idade Média

Sob a inspiração de Santo Tomás de Aquino e por influência do cristianismo, a ideia de bem comum desenvolveu-se na Idade Média. De acordo com Santo Tomás de Aquino (2005, v. 4), na sua Suma Teológica, “o bem comum é tudo aquilo que o homem deseja, seja de que natureza for: bem material, moral, espiritual, intelectual”. E por ser o homem um ser social, ele procura não só o seu próprio bem, mas também aquele do grupo ao qual pertence. Se um grupo tem o seu próprio bem comum, ao Estado cabe persegui-lo sob dois aspectos:

a) para os particulares, o bem comum é a causa, ou seja, é o conjunto das condições comuns próprias à organização e à conservação de seus bens; bem do todo (formalmente distinto de cada uma das partes), ele é, portanto, ao mesmo tempo, bem próprio de cada pessoa;

b) para a sociedade, ele é um fim, porque determina a orientação dos indivíduos na sociedade, mas também os unifica; dir-se-á que ele é ao mesmo tempo fim e forma.(DI PIETRO, 2010, p. 87).

Pela doutrina tomista, a lei é chamada a encarnar-se no agir moral de cada pessoa, na medida em que esta é membro de uma comunidade. O destino fundamental do humano, mesmo que apresentando um caráter único e singular, é devotado e exprime uma comunidade entre homens. É como se estivesse, dentro de cada indivíduo, a estrutura da universalidade que a comunidade imprime em cada um de nós. É justamente no âmbito dessa estrutura universal que se destaca a singularidade de cada pessoa. E uma das primeiras instaurações da lei, como forma de agir, é o estabelecimento desse universalismo comunitário que viabiliza a comunicação, as trocas e, principalmente, o amor entre todos os seres humanos.

 Assim, percebe-se que a maneira pela qual se constitui uma comunidade é o bem comum, compreendido como o conjunto de condições gerais que tornam possíveis a vida em comum e que propiciam a cada indivíduo a busca de sua própria realização, ao criar, entre todos, uma real solidariedade na efetivação de um ideal comum. Concluindo, o bem comum tomista resulta da contribuição de todos os membros ou comunidades inferiores (família, clãs, tribos) subordinados essencialmente a uma lei geral diante de uma certa renúncia aos bens particulares (AQUINO, 2005).

Com uma concepção similar – de que os homens se unem para conseguir o bem comum –, Jean Bodin, no século XVI, ao conceituar a República, conferiu a ideia do que pode ser considerado o fim principal e o meio de alcançar o reto governo. Para ele, “República é um reto governo de muitos lares, e do que lhes é comum, com poder soberano” (BODIN, 2011, p. 71). Nesse sentido, ao falar em “muitos lares”, Bodin está se referindo ao aspecto orgânico da sociedade, à comunidade política como um todo, cuja finalidade principal é a consecução de um reto governo, isto é, aquele que proporciona não só bens materiais, mas também a realização de valores como razão, justiça e ordem e cuja tarefa de administrar uma comunidade política incumbe ao poder soberano.

3.2 O bem comum sob a perspectiva do individualismo

Com o surgimento das teses contratualistas e liberais ao final do século XVII e início do século XVIII, logo se percebeu que a concepção não só de bem comum, como também de interesse público, seria alterada.

Após a Revolução Francesa, apogeu do individualismo, a doutrina passou a reconhecer a existência de direitos indissociáveis do homem–e, por isso mesmo, inalienáveis e imprescritíveis –, que inspiraram a criação de postulados básicos como a igualdade e a liberdade, que permearam a criação do Direito em geral durante o século XVIII.

Por essa nova concepção, a ideia de solidariedade social deixa de ser vista como causa de união dos homens em sociedade. A ideia de bem comum de Tomás de Aquino e Jean Bodin já não mais atendia aos anseios que a nova ordem do poder demandava. A partir de agora, o único fim passa a ser o de assegurar a liberdade natural do homem, e a lei como expressão da vontade geral não poderia ser mais um instrumento de opressão, mas, sim, de garantia dessa liberdade[5].

Com isso, o bem comum medieval perde toda a sua significação, pois a sociedade deixa de ser um todo orgânico tendente à conversão do bem. A sociedade agora é vontade soberana e absoluta e nenhuma de suas finalidades poderiam advir de um elemento exterior. Aqui não haverá mais nenhuma lei obrigatória fundamental para a coletividade, nem mesmo um contrato social. A vontade individual é a fonte da soberania, e o bem comum – que até então era impregnado de altas doses morais e ideológicas – deixa de ser o núcleo da ordem social, sendo substituído por uma ideia utilitarista: a de que homens deveriam se unir por meio do contrato em prol do interesse geral.

Para Maria Sylvia Zanella di Pietro (2010, p. 89-90),

A consequência desse tipo de colocação, incorporada na Declaração de 1789, é que, sendo o interesse geral o fundamento do Poder estatal, este passa a encarnar a vontade de todos; o consentimento passa a ser a fonte de legitimidade do Poder. A vontade geral é manifestada através da lei; esta deriva da natureza das coisas e encontra seu fundamento na razão, segundo pensamento de Rousseau. Precisamente por ser a expressão da vontade geral, a lei adquire um caráter sagrado, incontestável, inteiramente desvinculado de qualquer conteúdo axiológico; ela vale por si mesma. Idealizada como instrumento de proteção das liberdades individuais, acaba por colocar em risco essas mesmas liberdades, tornando-se instrumento de opressão.

Assim, se a lei tem fundamento na vontade geral, só ela é que deve contar; quando o Estado a cria, é porque ele quer manter a sociedade, devendo fazer o mínimo possível para atingir essa finalidade sem ofender a tão cara liberdade do indivíduo.

3.3 O bem comum no Estado Social

Diante da emergência das máximas do Estado Liberal, a liberdade de uns gerou consequentemente a opressão de outros. Essa situação se agravou com a Revolução Industrial, que, após ter provocado o aumento da desigualdade social, implicou a discussão de novos modelos políticos com o intuito de alterar a realidade que se consolidara.

A mudança da concepção utilitarista do bem comum proposta pelo liberalismo começou a mudar no final do século XIX por meio de uma luta pelo social. Foi a partir da doutrina social da Igreja que o Papa Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum de 1891, começou a retomar a ideia de que, na sociedade, os patrões e os empregados são destinados a se unirem harmoniosamente na busca de um equilíbrio perfeito. Já em 1941, sob a inspiração de Tomás de Aquino, o Papa Pio XII atribuiu ao Estado a proteção dos direitos da pessoa humana, devendo esse ente político proporcionar meios para a realização de uma vida digna, regular e feliz, segundo as leis de Deus.

Pela concepção impulsionada pelos trabalhos da Igreja Católica, o interesse público perde o seu caráter utilitarista, voltando a se revestir de aspectos axiológicos. Como visto, essa nova concepção preza pela dignidade da pessoa humana, que, após a Segunda Grande Guerra Mundial, foi alçada à condição do núcleo fundamental dos direitos mais básicos da humanidade.

Entre as características mais conhecidas a respeito do bem comum no Estado social, destaca-se a sua fundamentação na natureza humana, pautada num modelo universal que considera o conjunto de valores humanos, feitos de direitos e deveres, em que algumas pessoas não podem ser privilegiadas em detrimento de outras. Além disso, por ser o bem comum social superior ao bem individual, deve ele ser adaptável segundo o progresso da época, dotado de dinamismo e com os olhos voltados ao futuro, enquanto se enraíza no concreto, oferecendo aos indivíduos valores de ordem e justiça.

Nesse sentido, o bem comum social impacta diretamente na concepção social de interesse público, pois este deixa de ser um elemento apropriado pelo Estado, visto que cada sujeito e cada pessoa jurídica passam a ter sua parcela de responsabilidade social. Nessa concepção de bem comum, a sociedade não é mais considerada como um sujeito à parte, que, por mera determinação, será a cumpridora dos desejos da coletividade; aqui, por se supor um verdadeiro bem de conteúdo moral, e não meramente utilitário, a tarefa é distribuída ao coletivo, evitando que este adoeça pelas mazelas do egoísmo.

Esse bem comum é, ao mesmo tempo, o fundamento e a limitação do poder político. Explica-se: é fundamento porque o poder se prepara e se organiza para atingir o bem comum; é limitação porque, tendo como elemento externo a persecução daquilo que atende aos interesses da pessoa humana, o Estado só deve interferir na esfera das liberdades públicas se respeitar o equilíbrio que deve existir entre a liberdade do indivíduo e a autoridade do Estado. O bem comum está previsto na lei e pode se realizar pelo seu aspecto negativo como também positivo.

Como foi dito brevemente, essa é a ideia que está presente na Constituição Federal do Brasil de 1988, que adota os princípios do Estado Social de Direito, fundado na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. O art. 3° confirma essa concepção ao atribuir à República, entre outros objetivos, o de garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.Além disso, o Título VIII coloca a Constituição como base da ordem social, o primado do trabalho, com o objetivo de bem-estar e justiça social.

Sob tal perspectiva, observa-se que o bem comum do Estado Social estaria muito mais conectado à satisfação das necessidades sociais do que aos fins do Estado que se ligam ao interesse público. Todavia, independentemente do acerto ou desacerto desse modelo teórico, o certo é que tanto o bem comum social quanto o interesse público, na condição de conceitos que ora se aproximam, apesar de pretenderem alcançar certas finalidades do Estado, não podem se desvincular por completo dos indivíduos, pois eles estão ligados aos objetivos estatais e aos direitos fundamentais enquanto categorias definidoras do que pode ser considerado como a área pública.

4 O interesse público em tempos de pandemia

Sem sombra de dúvidas, em face da pandemia provocada pela Covid-19, pode-se dizer que a humanidade, até agora, neste século XXI, enfrenta a sua pior crise sanitária. Essa pandemia teve seus primeiros casos registrados na província de Wuhan, na República Popular da China, cuja população é de aproximadamente 11 milhões de habitantes. De lá, propagou-se para outros países do mundo, colocando em xeque alguns dos sistemas de saúde mais eficientes do mundo, como os da Itália, Espanha e dos Estados Unidos, e alarmando os demais países, especialmente aqueles que se encontram em condições economicamente precárias, como os países africanos e latino-americanos.

A pandemia gerou uma crise não apenas nos sistemas público e privado de saúde, como também causou significativos impactos econômicos, sociais e culturais em todos os setores da sociedade. Ainda que as pessoas não sejam efetivamente contaminadas, acabam sofrendo indiretamente as consequências impostas pelo novo modo de vida decorrente da pandemia, incluindo as medidas de isolamento, voltadas a evitar a propagação da doença de forma tão rápida.

Para piorar a situação, apesar de campanhas de vacinação contra a doença já terem sido iniciadas em vários locais do mundo, o vírus continua se espalhando com muita facilidade por meio de mutações inéditas, não apenas na variante brasileira como também na britânica, o que pode dificultar ainda mais a imunização se o Poder Público, de uma maneira geral, não tomar uma providência complementar mais ágil e efetiva.

Com certeza, é por esse atual quadro em que se encontram as populações mundiais, em especial a brasileira, que os mais variados setores da sociedade têm se movido, na tentativa de estancar essa ferida aberta – que, infelizmente, não está dando sinais de que irá fechar tão cedo – e na construção de uma política pública voltada à concretização do que hoje se entende por interesse público.

O problema é que, em algumas ocasiões, sob a justificativa de que a Administração Pública está agindo em prol do interesse público, algumas medidas desastrosas vêm sendo praticadas, o que acaba colocando o Brasil alguns passos atrás nessa corrida, cuja linha de chegada ninguém conseguiu enxergar até agora. Triste exemplo disso foi um episódio envolvendo o Governo Federal e o estado de São Paulo, em que este celebrou um contrato com uma indústria de fornecimento de seringas e agulhas para seu programa de vacinação contra a Covid-19, mas foi comunicado pela União, por meio do Ministério da Saúde, que o poder público federal havia requisitado à indústria todo o estoque de agulhas e seringas que a empresa tinha. Em razão dessa requisição, a empresa informou ao estado que não poderia cumprir mais o contrato e que não iria entregar as agulhas e seringas[6].

Se, tradicionalmente, o Direito Administrativo, na tentativa de cumprir seu papel maior – que é o da realização do interesse público em detrimento do interesse particular –, apresenta um repertório importante para conter as situações de crise[7], na atual situação provocada pela pandemia, é justificada, com maior razão, a adoção de medidas restritivas e urgentes, necessárias à contenção da propagação da Covid-19, que tem colocado em risco a saúde pública. Não obstante a legislação vigente já autorizasse a adoção de medidas excepcionais para garantia da saúde pública, optou-se pela promulgação de legislação específica para fixação de normas sobre o enfrentamento à Covid-19. Com efeito, a Lei n° 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, fixou normas sobre as medidas emergenciais para o enfrentamento da pandemia. Trata-se de lei temporária, que tem a sua vigência restrita à duração do estado de emergência internacional causada pela Covid-19 e iniciada em 2019, cabendo ao Ministério da Saúde a edição de atos normativos voltados à sua regulamentação e operacionalização. Na época da edição dessa lei, os problemas causados pelo vírus ocorriam em outros lugares do mundo, e a doença ainda não havia chegado no Brasil.

Entre os aspectos mais importantes da Lei n° 13.979/2020, está o art. 3º, no qual são previstas oito medidas que poderão ser adotadas pelo poder público no combate à Covid-19. No caso, trata-se de um rol exemplificativo, em que o governo estaria autorizado a adotar outras medidas, caso julgasse necessário. O rol do art. 3° da lei sofreu uma atualização provocada pela Lei n° 14.035, de 2020[8].Contudo, em março de 2020,os primeiros casos começaram a acontecer no Brasil, e, com o objetivo de tentar conter o avanço da Covid-19 em nosso país, alguns prefeitos e governadores editaram decretos restringindo a entrada e a saída de pessoas nos seus territórios. Foi o caso, por exemplo, do Decreto nº 46.980, de 19 de março de 2020, do Governo do Estado do Rio de Janeiro, que assim dispôs em seu art. 4º, incisos IX e X:

Art. 4º De forma excepcional, com o único objetivo de resguardar o interesse da coletividade na prevenção do contágio e no combate da propagação do coronavírus, (COVID-19), diante de mortes já confirmadas e o aumento de pessoas contaminadas, DETERMINO A SUSPENSÃO, pelo prazo de 15 (quinze) dias, das seguintes atividades: […] IX – a partir da 0h (zero hora) do dia 21 de março de 2020, a circulação de transporte interestadual de passageiros com origem nos seguintes Estados: São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Distrito Federal e demais estados em que a circulação do vírus for confirmada ou situação de emergência decretada. Compete à Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT ratificar esta determinação até o início da vigência do presente dispositivo; X – a partir da 0h (zero hora) do dia 21 de março de 2020, a operação aeroviária de passageiros internacionais, ou nacionais com origem nos estados São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Distrito Federal e demais estados em que a circulação do vírus for confirmada ou situação de emergência decretada. A presente medida não recai sobre as operações de carga aérea. Compete à Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC ratificar esta determinação até o início da vigência do presente dispositivo. O Estado do Rio de Janeiro deverá ser comunicado com antecedência nos casos de passageiros repatriados para a adoção de medidas de isolamento e acompanhamento pela Secretaria de Estado de Saúde. (RIO DE JANEIRO, 2020)

O Governo Federal, todavia, entendeu que tais medidas não poderiam ser adotadas pelos prefeitos e governadores e, por meio da Medida Provisória (MP) 926/2020, alterou a Lei nº 13.979/2020 para deixar expresso que somente por ato do Poder Executivo federal seria possível a restrição da locomoção interestadual e intermunicipal. Com a nova redação, o art. 3° da Lei n° 13.979/2020 e seu inciso VI, ficaram da seguinte maneira:

Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes: VI – restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do País; e b) locomoção interestadual e intermunicipal. (BRASIL, 2020a)

Além disso, a MP 926/2020 acrescentou os §§ 8º a 11 ao art. 3º da Lei nº 13.979/2020:

§ 8º As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais. § 9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º. § 10. As medidas a que se referem os incisos I, II e VI do caput, quando afetarem a execução de serviços públicos e atividades essenciais, inclusive as reguladas, concedidas ou autorizadas, somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que em articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizador. § 11. É vedada a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, definidas nos termos do disposto no § 9º, e cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população. (BRASIL, 2020a).

Em resposta à edição dessa medida provisória pelo Governo Federal, foram propostas duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI): a ADI 6341, ajuizada pelo Partido Democrático Brasileiro, e a ADI 6343, distribuída pelo partido Rede Sustentabilidade. As duas ações diretas, apesar de terem como objeto a mesma medida provisória, impugnavam pontos diferentes e foram julgadas separadamente pelo Supremo Tribunal Federal. Na ADI 6341, julgada no dia 15 de abril de 2020, o Plenário, por maioria, referendou a medida cautelar, deferida pelo ministro Marco Aurélio (relator),para “tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente” (BRASIL, 2020b).Em outros termos, as providências adotadas pelo Governo Federal “não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito Federal e Município, considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior” (BRASIL, 2020b).Além disso, foi dada interpretação conforme a Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979/2020, a fim de explicitar que o Presidente da República pode dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais; no entanto, esse decreto deverá preservar a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição Federal.

Quanto ao julgamento da medida cautelar proposta na ADI 6343, julgada no dia 6 de maio de 2020, após sua concessão parcial, ficaram estabelecidos os seguintes pontos: a) a suspensão parcial, sem redução de texto, do disposto no art. 3º, VI, “b”, e §§ 6º e 7º, II, da Lei nº 13.979/2020, a fim de excluir estados e municípios da necessidade de autorização ou de observância ao ente federal; e b) conferir interpretação conforme aos referidos dispositivos no sentido de que as medidas neles previstas devem ser precedidas de recomendação técnica e fundamentada, devendo ainda ser resguardada a locomoção dos produtos e serviços essenciais definidos por decreto da respectiva autoridade federativa, sempre respeitadas as definições no âmbito da competência constitucional de cada ente federativo.

Para o Supremo Tribunal Federal (STF), o que fica claro é que estados e municípios não precisam de autorização da União para adotar as medidas necessárias ao combate ao coronavírus; logo, as exigências dessa natureza foram consideradas incompatíveis com a Constituição e, por isso, foram suspensas. Afinal, se todas as entidades federativas (no caso, estados-membros e municípios) tivessem que solicitar autorização do governo federal para a tomada de providências emergenciais no combate à pandemia, isso seria uma afronta direta ao princípio da eficiência (art. 37, CF/88), além de outros direitos fundamentais previstos na Carta Magna, por impor uma burocratização desnecessária e sem sentido em detrimento daqueles que realmente precisam dessas práticas governamentais. Além disso, o STF estabeleceu que a União não deve ter o monopólio de regulamentar todas as medidas que devem ser tomadas para o combate à pandemia. Mesmo que o Governo Federal tenha o papel primordial de coordenação entre os entes federados, a autonomia destes deve ser respeitada, pois é impossível que o poder central conheça todas as particularidades regionais e locais.

Diante de tantos dilemas a serem enfrentados pela crise da Covid-19, deverá a Administração Pública, por meio de suas prerrogativa se sujeições, ter habilidade suficiente para lidar com a autonomia privada e a liberdade individual na busca pela identificação e prevalência do interesse público, ainda que diariamente se assista à edição de vários decretos estaduais e municipais cujo conteúdo é flagrantemente inconstitucional. Como em qualquer interferência nos direitos fundamentais, não se pode descuidar da Constituição, a despeito da urgência das providências a serem tomadas: “estas não podem se dar ao luxo de serem demasiadas ou mesmo insuficientes, razão pela qual, reitere-se, sobreleva a importância do Direito Administrativo para atendimento ao interesse da coletividade em sentido amplo” (OLIVEIRA, 2020). A escassez impõe a alocação ótima de recursos nas mais diversas áreas, apesar de alguns gestores públicos assim não compreenderem, ao tomarem medidas destituídas de parâmetros legais e científicos e implementarem políticas emergenciais que dialogam apenas com determinados setores da sociedade, contrárias à vontade geral. 

Mais do que nunca, se faz necessária uma ação coordenada entre os governantes e autoridades federadas, devendo-se abandonar por completo disputas próprias do campo ideológico e partidário. A politização de medidas interventivas na vida dos cidadãos retarda cada vez mais a possibilidade de as pessoas voltarem a viver a sua vida normalmente, porque coloca o federalismo cooperativo numa posição meramente retórica, retirando os entes regionais e locais legitimamente investidos do poder-dever de empreender as medidas necessárias de combate à Covid-19. O desafio é gigantesco, até mesmo porque, como visto até agora, o interesse público, enquanto algo a ser buscado pela Administração Pública, revela-se algo fluido e impreciso, mas que não pode ser reduzido ou deixado de lado pela vontade política da ocasião.

5  A função política e ideológica do discurso ao redor do interesse público em tempos de pandemia

Conforme anteriormente discutido, diante da fluidez e da imprecisão terminológica do conceito de interesse público, em um Estado plural e democrático como é o brasileiro, neste triste momento de pandemia surgem alguns sujeitos sociais veiculando novos argumentos, que tendem a justificar o porquê da tomada de algumas medidas governamentais em prol do atendimento ao interesse da coletividade. Nesse sentido, umas das grandes questões que se pretende responder em virtude da nova dinâmica social provocada pela Covid-19 é a seguinte: é realmente possível harmonizar ou acomodar interesses tão divergentes com o mínimo de desatenção aos valores democráticos e aos direitos fundamentais de todas as pessoas?

Obviamente, essa questão não pode ser respondida de forma precisa por conta das variáveis e vertentes que podem ser utilizadas para respondê-la. O fato é que, segundo a lição de Willis Santiago Guerra Filho (2003, p. 272), para se ter uma resposta que inicialmente siga um caminho mais adequado, só haverá uma solução minimamente aceitável se houver um “respeito simultâneo aos interesses individuais, coletivos e públicos, desde que haja o maior atendimento possível de certos princípios – onde esses interesses se traduzem em valores –, com a mínima desatenção dos demais”. Como, nos dias de hoje, muito se fala do interesse público numa condição quantitativa que nem esconde mais a carga ideológica do discurso, deve o observador mais atento não ser seduzido pela armadilha da instrumentalização da retórica a respeito do interesse geral.

Sabe-se que o poder político é o detentor da elaboração e condução das políticas públicas[9]. Dentro desse contexto, um dos aspectos que se destaca é o modo de gestão dos negócios públicos, pois, a depender da ocasião, se for necessário, tanto a sanção quanto a coerção poderão ser utilizadas. Para que esse uso seja legítimo, deverá se analisar na prática se ele atendeu aos valores e aspirações gerais da comunidade.

Todavia, em algumas ocasiões, o que se vê é que o próprio Estado, monopolizador do uso da força, acaba se tornando, infelizmente, o reprodutor de relações discrepantes sob a utilização da retórica de que se atuou amparado por conceito vago e polissêmico, como é o caso do interesse público. Triste exemplo disso é uma mentalidade que tem ganhado corpo nos últimos meses e que, no início da pandemia, por incrível que pareça, acabou conquistando mais adeptos à sua tese, que é o movimento antivacinação. Uma das causas que demonstram o fortalecimento dessa mentalidade nos mais variados setores da sociedade é a propagação das fake news pela rede mundial de computadores.Por esse meio, vídeos usam argumentos dos mais diferentes tipos, que colocam em dúvida a segurança das vacinas, na tentativa de colocar em evidência outros métodos considerados mais naturais como uma alternativa ao combate de doenças.

Um estudo feito por pesquisadores da Universidade de Campinas (Unicamp) e da Universidade de Berkely, na Califórnia, publicado na revista Frontiers in Comunication em 26 de outubro de 2020, demonstrou que canais do YouTube são um dos grandes veiculadores dessas mensagens (MACHADO; SIQUEIRA; GITAHY, 2020). Nessa pesquisa, os estudiosos localizaram 158 vídeos sobre vacinas com mais de 10 mil visualizações, interações e conexão com outros vídeos da rede. Apesar de o estudo ter ocorrido um pouco antes das discussões a respeito da vacina da Covid-19, percebeu-se que oito dos vinte canais que disseminam essas informações falsas têm o selo de conta verificada pelo YouTube e pertencem a companhias ou a promotores de serviços de saúde alternativa. No material veiculado, três argumentos se destacam: a existência de ingredientes perigosos nas vacinas (em 53% dos vídeos), a defesa da liberdade de escolha (48%) e a promoção de serviços de saúde alternativa (42%).

De acordo com Dayane Fumiyo Tokojima Machado, doutoranda no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp e uma das autoras do estudo, apesar de não existirem, até o presente momento, pesquisas específicas que relacionem a causalidade entre a circulação de desinformação e a queda na cobertura vacinal no país, “o que temos são pesquisas indicando que a exposição excessiva à desinformação e a teorias da conspiração variadas podem influenciar na tomada de decisão das pessoas, inclusive sobre se vacinar ou adotar um calendário vacinal alternativo” (MADEIRO, 2020).

Segundo Natália Pasternak, doutora em microbiologia e presidente do Instituto Questão de Ciência, ouvida por Carlos Madeiro (2020),

deixar de se vacinar ou de vacinar seus filhos não tem efeito solitário como muita gente pensa, porque a vacina não é uma decisão individual que o sujeito pode tomar e que não vai ter consequências para a sociedade. Vacina é um ato de saúde coletiva. Porque quando você deixa de se vacinar, deixa de gerar imunidade de rebanho, que é o que protege as pessoas vulneráveis. Quando você tem uma boa parte da população vacinada, a doença para de circular, e daí aquelas pessoas que por algum motivo não podem se vacinar – ou porque são imunocomprometidas ou porque são bebês muito pequenos – ficam protegidas.É assim que a doença não tem como chegar nas pessoas vulneráveis”. Há no Brasil um crescimento preocupante desse desse sentimento antivacina. Ele vem de um movimento que é muito influenciado pelo movimento natural, de curas naturais, de uma vida livre de química – como se isso fosse possível. É um apelo de que tudo que é natural é melhor, e como vacinas não são naturais, são ruins. Isso é misturado com um outro apelo desse movimento de que, se você tiver uma vida saudável, uma alimentação saudável, você não precisa de vacinas, o seu sistema imune dá conta.

Diante desse cenário, como se não bastasse, a situação ainda não tem apresentado melhoras, porque,no dia 17 de dezembro de 2020, mais uma vez, o STF teve que ser provocado para decidir nas ADIs 6586 e 6587 que a União,estados, Distrito Federal e municípios, observadas as respectivas esferas de competência, poderão estabelecer medidas indiretas para implementação da vacinação compulsória contra o coronavírus e definir restrições a quem desobedecer.De acordo com a Suprema Corte brasileira,

No caso do enfrentamento à pandemia causada pela COVID-19, a previsão de vacinação obrigatória, excluída a imposição de vacinação forçada, afigura-se legítima, desde que as medidas a que se sujeitam os refratários observem os critérios que constam da própria Lei 13.979/2020 (art. 3º, § 2º, I, II e III) (2), a saber, o direito à informação, à assistência familiar, ao tratamento gratuito e, ainda, ao “pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas”. E, assim como ocorre com os atos administrativos em geral, essas medidas indiretas precisam respeitar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a não ameaçar a integridade física e moral dos recalcitrantes. A vacinação universal e gratuita pode ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes. Essas medidas devem (i) ter como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, (ii) vir acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, (iii) respeitar a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; e (iv) atender aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

O resultado, lamentavelmente, foi criticado pelo atual Presidente da República, que disse publicamente que não irá se vacinar e pretende exigir termo de responsabilidade de quem tomar vacina. Mais uma vez, ao invés de termos uma fala mais confiante e coerente com as premissas que a ciência diz e aponta, temos um atropelamento das evidências por uma retórica retrógrada que satisfaz apenas uma parte sectária da sociedade brasileira. Retomando Guerra Filho (2003), só haverá uma solução minimamente aceitável se houver um respeito simultâneo aos interesses individuais, coletivos e públicos, desde que haja o maior atendimento possível de certos princípios – com tradução desses interesses em valores –, com a mínima desatenção dos demais. No entanto, esse princípio vem se invertendo por completo, ou seja, desatende-se otimizadamente os interesses da coletividade para dialogar diretamente com alguns interesses altamente questionáveis da sociedade em prol de um projeto político, e não de um projeto de nação.

Essa carga ideológica acaba se aproveitando do rótulo proporcionado pela concepção de interesse público porque se relaciona com outra noção também genérica, que é a de ser humano, ao negligenciar as necessidades e as particularidades dos sujeitos concretos que historicamente sempre foram localizados em determinadas classes sociais. Por esse ângulo, são perspicazes as lições de Agustín Gordillo (2013, p. 11) a respeito da concepção de Estado ou de Administração:

como agentes del “bien común” o el “interés público” dada como abstracción permanente y generalizada (todo Estado sirve siempre al bien común) es una idea que no puede aceptarse axiomática o dogmáticamente, como tampoco puede serlo la contraria de que el Estado sirve siempre a los intereses de la clase dominante: Habrá que analizar qué intervenciones realiza o deja de realizar, qué modalidades adopta, a qué intereses sirve, para poder evaluar –realistamente y sin preconceptos ideológicos– en cada caso el tipo de intervención o abstención. En otras palabras, es siempre necesario someter las hipótesis o teorías a la prueba de los hechos.[10]

Nesse sentido, fica claro que o atual discurso do governo federal a respeito do interesse público é um discurso demasiadamente ideológico, uma vez que esconde, com falsos significados, uma política pública totalmente deficitária no combate à pandemia da Covid-19. Daí a necessidade de se pôr à prova quais os grupos que efetivamente serão favorecidos ou prejudicados com esse tipo de discurso.

6 O interesse público e a sua resistência durante a pandemia da Covid-19

Conforme já se apresentou até aqui, várias são as vertentes pelas quais o conceito de interesse público – enquanto um dos elementos centrais do Direito Administrativo – podem aparecer. Tais acepções vão desde o entendimentodo interesse público ligado à concepção de bem comum até um interesse de Estado, uma ideia derivada do regime jurídico administrativo, ao interesse público do civil law ou da common law, ou até mesmo nas suas manifestações da era pós-moderna (HAEBERLIN, 2017).

O fato é que a proposta conceitual trazida com a carga semântica e polissêmica da expressão interesse público é completamente afeta aos interesses de ocasião, que ora tendem a acolhê-la na sua manifestação mais clássica e ora tendem a afastá-la diante das mudanças vivenciadas pela realidade, que a cada instante surpreende até mesmo o mais sensível cientista. Contudo, mesmo diante de toda essa dinâmica do agir humano experimentada constantemente, que foi alterada de maneira completa e repentina pela pandemia da Covid-19, há de se ordenar minimamente, nesse conjunto de fatores, quais foram e quais são os impactos causados por esse vírus para que as estratégias de prevenção e combate ao problema possam ser criadas e implementadas o mais rápido possível. Isso tem sido feito em parte, a exemplo das vacinas, que já foram criadas e já estão sendo utilizadas em escala global.

Já se sabe que o vírus não é um problema apenas da medicina e da microbiologia celular; pelo contrário, o vírus é multidimensional, porque ele afetou e continua afetando todas as áreas da vida humana.Se até um tempo atrás a maioria das pessoas, por exemplo, poderia ter como sonho o simples desejo de ter riquezas ou de encontrar o verdadeiro amor de sua vida, nos dias de hoje, o que mais se realmente quer e habita os pedidos diários de orações, é o de que todas as pessoas possam voltar a viver normalmente, mesmo que antes da pandemia essa vida fosse uma vida de limitações e dificuldades.No final das contas,o dia a dia que se experimenta é o que realmente importa.De acordo com Steven Pinker (2018, p. 75),

a maioria das pessoas concorda que a vida é melhor do que a morte, a saúde é melhor do que a doença, o sustento é melhor do que a fome, a abundância é melhor do que a pobreza, a paz é melhor do que a guerra, a segurança é melhor do que o perigo, a liberdade é melhor do que a tirania, direitos iguais são melhores do que intolerância e discriminação, inteligência é melhor do estupidez, felicidade é melhor do que tristeza e oportunidades de usufruir a família, os amigos, a cultura e a natureza é melhor do que uma labuta incessante e a monotonia.

Apesar de nem todos concordarem com a lista descrita por Pinker (2018), sem sombra de dúvidas existe aí um ponto de partida necessário, porque, de modo geral, os seus itens são um consenso no mundo. Por exemplo, no ano 2000, todos os 189 membros das Nações Unidas, em conjunto com mais de vinte organizações internacionais, concordaram a respeito de oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio[11] para o ano de 2015, que se enquadraram com perfeição na citação acima.

A priori pode parecer um sentimento piegas, mas, na prática, acredita-se que essa percepção da vida tem sido uma sensação recorrente entre as pessoas. De qualquer forma, o mais importante é que essa vontade de voltar a viver normalmente não fique apenas na mão da política e que, mesmo diante da situação limitada em que se vive hoje, provocada pela Covid-19, as instituições democráticas e, principalmente, a sociedade como um todo, não percam de vista o que verdadeiramente significa o atendimento ao interesse público e coletivo.

Mesmo diante dessa necessidade de se atender o interesse público na condição de premissa básica de justificativa das prerrogativas e dos fins estatais, em algumas ocasiões, a atividade estatal ainda atua deliberadamente de forma oligárquica, a ponto de promover uma manipulação a respeito do conteúdo do interesse público em prol de um discurso ideológico. Além disso, o Estado está cercado por interesses de determinados grupos privados que não o incentivam a buscar meios efetivos de acessar alguma espécie de consenso social “acerca do que seja interesse público em determinadas situações concretas, ou mesmo que tal movimento venha de imposições de atores externos ao cenário nacional, tendo em vista a globalização econômica”. (NOHARA, 2010, p. 141). Tudo isso gera um grande desequilíbrio na balança social e mais uma vez a sociedade, agora, mais acuada pelo vírus, acaba pagando um preço muito caro por isso.  

No atual quadro pandêmico, o interesse público deverá refletir algum consenso social, e,nesse caso, percebe-se que esse consenso gira em torno da vacinação em massa da população brasileira contra a Covid-19. Assim, toda e qualquer ação governamental que não concentre os seus esforços na sua mais ágil promoção fatalmente se revelará desastrosa, como na prática tem acontecido: de um lado estão os setores que desejam liberar a atividade econômica do país, que têm sofrido muito com os impactos proporcionados pelo vírus; de outro, existe um sistema de saúde deficitário, que já deu efetivas demonstrações de que não consegue atender à crescente demanda por leitos públicos ou privados de unidade de tratamento intensivo (UTI) aos contaminados pela Covid-19 em sua fase mais aguda. O resultado disso, lamentavelmente, é o considerável aumento do número de mortes noticiado pelo consórcio de imprensa, já que o próprio Governo Federal, em franca violação aos princípios constitucionais da publicidade e da informação, deixou de noticiá-los desde maio de 2020.

Aqui, deve-se ir muito além de uma construção teórica permeada pelas mais variadas vertentes, devendo-se rediscutir a posição governamental diante de sua incapacidade de domesticar politicamente um problema que tem uma única solução viável: a vacinação em massa. Infelizmente, nesse ponto o governo tem colocado uma série de empecilhos à efetivação prática e fática de uma democracia material.

Recentemente, em uma belíssima obra não jurídica, o ministro Luís Roberto Barroso (2020, p. 14) escreveu:

O Brasil vive um momento de refundação. Há uma velha ordem sendo empurrada para a margem da história e uma nova ordem chegando como luz ao final da madrugada. Não me refiro a governos, sejam eles quais forem, mas à cidadania e suas novas atitudes. O dia começa a nascer quando a noite é mais profunda. A claridade, porém, não é imediata. A elevação da ética pública e da ética privada no Brasil é trabalho para mais de uma geração. A notícia boa é que já começou. Mas a história tem seu próprio tempo.

Com certeza, trata-se de uma visão otimista do que a próxima geração pode esperar e que o professor fluminense acredita e torce para que aconteça; todavia, diante de tudo que o país está vivenciando com essa crise provocada pela pandemia da Covid-19, pelo menos por enquanto, ainda não se trata de uma realidade muito plausível. O lado bom da crise é que ela realmente tem demonstrado todos os dias o tipo de pessoas que realmente somos e o tipo de pessoas que efetivamente não desejamos ser. A notícia boa, e aí concorda-se com o ministro, é que isso já começou.

7  Considerações finais

Como se pode perceber, não é tarefa fácil ao estudioso tentar definir,de maneira mais precisa, o que pode ser compreendido por interesse público. Por se tratar de conceito jurídico indeterminado, dotado de uma carga semântica que admite as mais variadas interpretações e visões da doutrina publicista no Brasil e no mundo, acaba se tornando uma concepção altamente modulável pelos operadores do Direito e pela retórica política, que hoje o utiliza para justificar suas tomadas de decisões.

Nesse sentido, tentou-se demonstrar como esse conceito, assim como a retórica do resguardado aos interesses da sociedade, acaba sendo apropriado pelo Governo Federal de modo a justificar a implementação de suas políticas públicas diante da crise multissetorial provocada pelo novo coronavírus. Para isso, demonstrou-se também de que maneira o Poder Judiciário, ao ser provocado pelos demais atores da cena política, tem decidido nesses tempos de crise para fazer valer o respeito aos direitos fundamentais da coletividade, que tendem a ser negligenciados quando os olhos do Executivo se voltam apenas para suas bases de apoio de político.

A despeito das limitações deste estudo, acredita-se que, em tempos de pandemia, não há que se falar em outra materialização do interesse público que não seja uma campanha ágil e efetiva de vacinação em massa da população brasileira contra o coronavírus, pois, do contrário, o que se observará será um retrocesso político, econômico, financeiro, cultural e científico nunca antes experimentado em nossa história recente. Para isso, demonstrou-se que a ciência, diante dos frequentes ataques recebidos, ainda se mantém sólida naquilo que diz respeito ao combate da atual crise sanitária. No âmbito do regime jurídico administrativo, apesar dos tristes retrocessos experimentados no combate à pandemia em nosso país, a concepção de interesse público ainda mantém sua carga axiológica protegida por meio da jurisdição constitucional.

Ao se descrever o interesse público como uma espécie de somatório de interesses individuais que convergem em torno de um bem da vida que lhes significa um valor, significa dizer que as decisões administrativas não devam apenas ser tomadas da maneira mais bem fundamentada possível, mas também devam ser demonstradas por uma documentação aberta à fiscalização do público, assegurando a participação de todos os setores da sociedade interessados na sua conformação, implementação e avaliação. Assim, o interesse público, em vez de se comportar como um interesse de ocasião, poderá se tornar um autêntico interesse coletivo, por providenciar o maior atendimento possível de certos direitos fundamentais, com uma mínima desatenção aos demais.

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RIO DE JANEIRO (estado). Decreto nº 46.980, de 19 de março de 2020. Altera a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para dispor sobre procedimentos para a aquisição ou contratação de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial do estado do Rio de Janeiro, Seção 1, Rio de Janeiro, ano XLVI, no. 051-B, p. 1, 19 mar. 2020. Disponível em: https://pge.rj.gov.br/comum/code/MostrarArquivo.php?C=MTAyMjQ%2C. Acesso em: 1 abr. 2021. TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In: TEPEDINO, Gustavo. A parte geral do novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.


[1] Doutorando e Mestre em Políticas Públicas e Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professor Universitário da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Unaí (FACTU). Bacharelando em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia. Advogado. Email para contato: henrikiobrien@hotmail.com. Link para o currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8562146244385242 .

[2] Agente Especial da Polícia Federal. Mestrando em Direito em Políticas Públicas e Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Especialista em Direito Público e Segurança Pública pela Universidade de Brasília (UnB). Extensão em prevenção ao uso indevido de drogas pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e da SENASP/MJ. Ex-Diretor do centro de Estudos e Projetos da Fundação da Polícia Federal – FunPF. Professor universitário. Email para contato: ernesto.lme1@gmail.com .

[3] “AOrganização Mundial da Saúde (OMS)declarou que a Covid-19, causada pelo novo coronavírus, já é uma pandemia. Segundo a organização, pandemia é a disseminação mundial de uma nova doença, e o termo passa a ser usado quando uma epidemia,surto que afeta uma região, se espalha por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa.” (FIOCRUZ, 2020).

[4]Para Grau, não é possível a existência de um conceito indeterminado, pois todo conceito é determinado ou não é conceito, pois “o mínimo que se exige de uma suma de ideias, abstrata, para que seja um conceito, é que seja determinada” (GRAU, 2005, p. 196).Nesse sentido, em aprofundamento do tema, para Grau (2005, p. 148), por ser a linguagem imprecisa, e jamais o conceito, “mais adequado será referir-se a termos indeterminados de conceitos, e não a conceitos (jurídicos ou não) indeterminados, pois ao se admitir a existência de um conceito ‘indeterminado’ – ou seja, cuja significação não é reconhecida uniformemente por um grupo social –, toda a interpretação/aplicação do direito haverá de ser feita à margem da legalidade”.

[5]Pela escola do Direito Natural, base do individualismo, todos os homens nascem livres e iguais, e, se assim é, todos devem ser iguais perante a lei e ter plena liberdade de agir, observando como limite apenas o direito igual de seu semelhante. Isso está previsto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, no seu art. 1°, ao proclamar que “os homens nascem livres” e repetir a conhecida frase de Rousseau em sua obra Contrato Social.

[6]O resultado disso foi que, diante da requisição federal feita à indústria contratada pelo estado de São Paulo, este ajuizou uma ação contra a União Federal perante o STF, requerendo que a ordem dirigida à empresa contratada não abrangesse os insumos já adquiridos e empenhados, tendo em vista que, mesmo não sendo entregues, já seriam bens integrantes do domínio público estadual. Esse caso foi julgado no dia 8 de março de 2021, com o estabelecimento da seguinte tese pelo plenário do STF, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski: É incabível a requisição administrativa, pela União, de bens insumos contratados por unidade federativa e destinados à execução do plano local de imunização, cujos pagamentos já foram empenhados. ACO 3463 MC-Ref/SP.

[7]Exemplificativamente, temos os seguintes e excepcionais instrumentos: a)Desapropriação por necessidade pública (art. 5°, XXIV, da CF/88 e DL 3.365/41); b) Requisição de bens, no caso de iminente perigo público (art. 5°, XXV, da CF/88); e c) Contratação temporária de servidores públicos, sem concurso público, para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, IX, da CF/88).

[8]“Art. 3º. Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: I – isolamento; II – quarentena; III – determinação de realização compulsória de:a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou e) tratamentos médicos específicos; III-A – uso obrigatório de máscaras de proteção individual; (Incluído pela Lei nº 14.019, de 2020) IV – estudo ou investigação epidemiológica; V – exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; VI – restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de: (Redação dada pela Lei nº 14.035, de 2020) a) entrada e saída do País; e (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020) b) locomoção interestadual e intermunicipal; (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020) VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa, e VIII – autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus, desde que: (Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020) a)  registrados por pelo menos 1 (uma) das seguintes autoridades sanitárias estrangeiras e autorizados à distribuição comercial em seus respectivos países: (Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020) 1.  Food and Drug Administration (FDA); (Incluído pela Lei nº 14.006, de 2020) 2.  European Medicines Agency (EMA); (Incluído pela Lei nº 14.006, de 2020) 3.  Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA); (Incluído pela Lei nº 14.006, de 2020) 4.  National Medical Products Administration (NMPA); (Incluído pela Lei nº 14.006, de 2020), b)  (revogada). (Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020).” (BRASIL, 2020a)

[9]Para Maria Paula Dallari Bucci (2006, p. 251), “políticas públicas são programas de ação governamental que visam a coordenação dos meios à disposição do Estado, além das atividades privadas, voltadas à realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Isto é, políticas públicas são metas coletivas conscientes e, como tais, um problema de direito público, em sentido lato”.

[10]“como agentes do ‘bem comum’ ou do ‘interesse público’, tido como abstração permanente e generalizada (todo Estado serve sempre ao bem comum), é uma ideia que não se pode aceitar sua noção contraposta, isto é, de que o Estado serve sempre aos interesses da classe dominante: há que se analisar quais intervenções realiza ou deseja realizar, quais modalidades adota, a quais interesses serve, para que seja analisado, em cada caso, o tipo de intervenção ou abstenção. Em outras palavras, é sempre necessário pôr as hipóteses e as teorias à prova dos fatos.” (tradução nossa).

[11]Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, de acordo com as deliberações das Nações Unidas, são os seguintes: 1. Acabar com a extrema pobreza e a fome; 2. Oferecer educação básica a todos; 3. Promover igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; 4. Melhorar a saúde das gestantes; 6. Combater HIV/AIDS, malária e outras doenças; 7. Garantir sustentabilidade do meio ambiente; 8. Estabelecer parceria global para o desenvolvimento (econômico).