
OS BANCOS DE PERFIS GENÉTICOS: SEGURANÇA PÚBLICA E PROTEÇÃO DE DADOS À LUZ DO ESTADO TOTALITÁRIO EM “1984” DE GEORGE ORWELL
9 de novembro de 2022THE BANKS OF GENETIC PROFILES: PUBLIC SAFETY AND DATA PROTECTION IN THE LIGHT OF THE TOTALITARIAN STATE IN 1984 BY GEORGE ORWELL
Cognitio Juris Ano XII – Número 43 – Edição Especial – Novembro de 2022 ISSN 2236-3009 |
RESUMO
O presente resumo tem como objetivo discorrer sobre políticas de segurança pública que preveem a utilização de bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal, tendo em vista a Lei 12.654/2012, a qual instituiu a coleta de perfil genético como forma de identificação criminal, bem como tornou obrigatória a identificação do perfil genético do condenado por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável (Redação dada pela Lei n° 13.964/2019). Nesse sentido, através de um paralelo inicial com a obra “1984”, de George Orwell, utilizada para ilustrar um cotidiano permeado de uma fiscalização do Estado sobre os corpos, busca-se analisar acerca da regulamentação e constitucionalidade da utilização de bancos de perfis genéticos à luz dos direitos humanos.
Palavras-chaves: Segurança Pública. Proteção de dados. Bancos de perfis genéticos. Direitos Humanos.
ABSTRACT
This summary aims to discuss public security policies that provide for the use of genetic profile banks for criminal prosecution, in view of Law 12,654/2012, which established the collection of genetic profiles as a form of criminal identification, as well as making it mandatory to identify the genetic profile of the person convicted of an intentional crime committed with serious violence against the person, as well as for a crime against life, against sexual freedom or for a sexual crime against the vulnerable (Wording provided by Law No. 13.964/2019). In this sense, through a parallel with the work “1984”, by George Orwell, used to illustrate a daily life permeated by a search of the State on bodies, we seek to analyze about the regulation and constitutionality of the use of genetic profile banks in the light of human rights.
Keywords: Public Security. Data protection. Genetic profile banks. Human Rights.
INTRODUÇÃO
Algumas modificações apresentadas pelo século XX, como a captação, manipulação, armazenamento e transmissão de informações, foram importantes marcos em discussões presentes no século XXI, e impactam a vida de pessoas vulneráveis socialmente nos dias atuais. Nos últimos séculos houve um significativo aumento, também, nos meios de comunicação, pois a internet começou a ser usada para compartilhamento de fatos, impulsionando assim diversas mudanças e, induzindo, impactos sociais. Podemos citar a mudança notada pelos estudos sociológicos e geográficos, da sociedade antes muito industrial, para uma nova, denominada “sociedade da informação”, diluindo marcos territoriais e trazendo uma nova visão da produção e utilização das informações.
O marco que impulsionou esse momento de desenvolvimento humano intelectual está entrelaçado com diversos processos, dentre os quais a globalização, pois essa estimulou o pensamento de infraestrutura global de informação, aumentando assim a utilização de telecomunicações. Já que na citada sociedade da informação, os seres sociais interagem e utilizam para os atos da vida cotidiana, da estrutura global de informação, com o seu meio fundamental a internet.
Nesse âmbito, a discussão sobre proteção de dados pessoais é um fator de importância gradativa, pois cada vez mais se utiliza das tecnologias para otimizar a vida humana, principalmente se analisado que tudo na rede mundial são dados. Estes passam pelo processo de coleta, armazenamento, de transformação deles em mercadoria, para a sua futura transmissão.
O estudo de dados pessoais não é novo, já que ele não se relaciona apenas com os processados dentro da internet, mas engloba os cadastros de indivíduos com todas as finalidades. Todavia, a tutela que envolve o processamento e uso desses dados é uma discussão que ganhou maior visibilidade após a criação da Lei Geral de Proteção de Dados. Esta problemática torna-se fatídica justamente pela fluidez dessas informações no meio das redes, tornando-se uma real dificuldade o controle da captação e transmissão desses.
Nesse sentido, o presente artigo objetiva analisar a proteção de dados pessoais no âmbito das políticas de segurança pública e persecução penal, a partir das tecnologias atuais, especialmente com a construção de cadastros de indivíduos com os mais diversos fins, citando aqui os bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal, tendo em vista a Lei 12.654/2012. Tal legislação, a qual instituiu a coleta de perfil genético como forma de identificação criminal, bem como tornou obrigatória a identificação do perfil genético do condenado por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável (Redação dada pela Lei n° 13.964/2019).
No Brasil, a Lei 12.654/2012, com as alterações que trouxe às Leis 12.037/2009 e 7.210/1984, introduziu ao ordenamento jurídico a possibilidade de se utilizar a análise de material genético para identificar a autoria delitiva nas investigações policiais, além de instituir a coleta de perfil genético obrigatória entre os condenados por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável. Portanto, analisando a implementação de referido Banco de Perfil Genético, e a falta de uma regulação mais eficaz do processo de coleta, armazenamento e compartilhamento de dados no Brasil, questiona-se se tais medidas não poderiam significar um indício de um Estado totalitário, tal qual descrito por George Orwell em sua obra 1984.
Desde sua promulgação, o referido mecanismo legal vem sendo debatido quanto à sua constitucionalidade, visto que sua aplicação pode acarretar colisão com o princípio da não produzir provas contra si mesmo, na medida em que estabelece, em algumas situações, a obrigatoriedade do réu a submeter-se à coleta de perfil genético.
Sob a ótica apresentada, entende-se a discussão e construção do presente artigo como relevante para visualizar mais uma das possíveis relativizações dos direitos e garantias individuais em prol do coletivo, tendo em vista que, a inclusão da obrigatoriedade da coleta do material biológico como meio de produção de prova discute o impasse que há entre o dever do Estado de punir e apurar a autoria dos delitos versus a garantia do acusado de não produzir prova contra si mesmo, abarcando ainda outros direitos individuais e garantias, como o direito ao silêncio e o de não colaborar com as investigações.
Em sua construção metodológica, constitui-se em uma pesquisa exploratória, que, segundo Gil (2018), tem como objetivo verificar em que medida a obra consultada interessa à pesquisa, visando ainda, construir uma compreensão mais ampla sobre o assunto. Como método de procedimento utiliza a pesquisa bibliográfica e documental, utilizando a pesquisa bibliográfica para delinear o caminho aos objetivos traçados. Como método de análise será empregado o método dedutivo.
1 – ENTENDENDO A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS, SOB A ÓTICA DE GEORGE ORWELL
“Quanta realidade se encontra nas ficções? E quanta ficção se conforma na nossa realidade?”, a interrogação de Streck e Trindade deve ser pensada nos tempos atuais, principalmente em momentos que situações perigosas para a democracia e o exercício da vida privada, estão cada vez mais perto. E para auxiliar essa discussão, há a obra utópica “1984”, do escritor George Orwell, que mostra um país sem oportunidades do cidadão desenvolver sua vida particular e íntima longe do Estado.
George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, jornalista, escritor e ensaísta político inglês, nasceu em Motihari, na Índia Britânica, e publicou originalmente em 1949 a obra discutida, uma das mais influentes do século XX. Trata-se de uma narrativa sobre um futuro distópico, sendo necessário refletir no livro sobre a essência devastadora de um governo totalitário.
Primeiramente, os acontecimentos literários têm por localidade a cidade de Londres, com o protagonista Winston Smith, em um superestado nomeado como Oceania, governado pelo Partido. Resumidamente, há um líder abstrato conhecido como “Grande Irmão”, controlando totalmente a vida dos cidadãos, eliminando sua privacidade por meio de “teletelas”, ininterruptamente ligadas, que captam todos os passos dos mesmos e divulgam a mídia manipulada do governo.
Outra estratégia influente percebida na obra é o controle de emoções e do pensamento, como também a veiculação de uma nova língua, tornando o vocabulário gradativamente reduzido para destruir a capacidade de criar ideias, de organizar sonhos, havendo uma instituição destinada a esse controle, a Polícia do Pensamento (TOMASEVICIUS FILHO, 2014, p. 131).
O protagonista trabalha no Ministério da Verdade reescrevendo o passado, apagando todas as informações dos fatos narrados na mídia para a inserção de novas referências, corrigindo metas de produtividade econômica não atingidas, para que elas fossem divulgadas como bem sucedidas. Mesmo com toda a repressão, Winston manifesta um ódio interno pelo Partido, e a história se desenrola com a descrição da tentativa dele de libertar-se e viver um romance real com Julia.
Este livro foi escrito entre a Segunda Guerra Mundial, em meio ao nazismo, a guerra fria, momento de fortes impactos e destruição em massa, e o advento de novos meios de mídia comunicativa, como a televisão. A tela na obra é usada como forma de controle, restringindo a privacidade, sendo que uma das grandes preocupações do autor naquele período era o controle do uso da tecnologia em relação ao Estado. Segundo Belleil (2002, p.7), a destruição da vida privada, tem correlação com a economia da informação, como a destruição do ambiente, tem relação com a economia industrial.
A figura do Grande Irmão é uma ficção que amedrontava os cidadãos governados. A tela na obra é usada para o controle, restringindo a privacidade, aumentando a vigilância e dirigindo informações específicas para o controle da massa social. Realmente, o escritor antecipa diversas características das tecnologias atuais de comunicação como a internet, dado que as telas serviam na narrativa tanto para ver, como para serem vistas, para receber, como também para enviar mensagens.
Com os adventos tecnológicos, a problemática da proteção à privacidade começou a abranger diversos “Grandes Irmãos” do Orwell, não sendo mais uma entidade estatal que mantinha o controle, mas sim diversos entes privados. Agravante que, tem como responsável a captura de dados pessoais por diversas empresas, que buscam lucros, coletam, armazenam, processam e transmitem dados de indivíduos. O livro foi amplamente discutido pois seria uma espécie de teoria do totalitarismo ou até uma defesa dos valores humanos, como o amor, a privacidade e a memória versus a tirania.
Jacques Delors, em 1993. presidente da Comissão Europeia, afirmou que o termo “sociedade da informação” pode ser delimitado quando o desenvolvimento da sociedade ocupa-se da aquisição, processamento e transmissão de informações, as quais desempenham um relevante papel para a economia e produção de riqueza (MATOS, 2012). Nessas sociedades, a tecnologia e as informações passam a ser importantes para as decisões políticas, empresariais e pessoais. Negroponte (2003, p. 158) aduz que a mudança entre a era da informação, para a era da pós informação se dá pelos meios de comunicação, pois respectivamente, uma atinge grandes públicos e outra passa a ser direcionada.
Há na internet locais acessíveis para todos os usuários, e locais privados, pois neles há acordos entre servidores, provedores, empresas, anunciantes, entre outros, que usam das possibilidades existentes para coletar informações por meio dos “cookies”, criando assim uma espécie de dossiê de dados. Esta é a problemática que faz relação com a ficção de George Orwell, pois as violações e vigilâncias são tanto realizadas por órgãos estatais, como também por instituições econômicas e privadas.
Castells (2003, p. 143) diz que o fervor com a liberdade trazida pela internet foi tão agravante, que não houve preocupação com a persistência das técnicas de controle e vigilância. Essa indústria que é a internet facilita a circulação e comercialização de dados pessoais, beneficiando alguns setores, mas gerando riscos aos indivíduos, pois os mesmos não têm conhecimento e muito menos consentem no processamento e transferência dos seus dados.
Sabemos que os meios digitais são a principal fonte de informação, que na atualidade chega aos usuários de forma direcionada, conforme os interesses dos mesmos, fundamentando as tomadas de decisões. Essa realidade é alarmante, pois pode alterar de forma agravante como as pessoas lidam com essas informações, podendo afetar a visão política, social, cultural e jurídica dos indivíduos, sendo necessário um instrumento jurídico capaz de regulamentar esses abusos.
Essa realidade é extremamente apreensiva, posto que tem a capacidade de modificar como as pessoas lidam com as informações. Um fato que precisa ser esclarecido, é que os dados podem afetar a capacidade de um indivíduo de se autodeterminar, influenciando o seu modo de consumir, sua visão política, social e cultural, é necessário também citar a possibilidade desses perfis formados com base em dados pessoais serem utilizados para fins discriminatórios.
Nesse contexto, vale lembrar que a Carta Magna Brasileira, texto maior da legislação, grafa a vida particular como um dos fundamentos que devem ser assegurados pela proteção da dignidade humana, no artigo 5°, inciso X, determina que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, e assegura o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de violação desses direitos. Em conjunto, os direitos humanos são produto de reivindicações e lutas, relacionadas fortemente com as necessidades de períodos específicos. Hoje entende-se que a dignidade da condição humana exige respeito a certos bens e valores, mesmo que estes não estejam reconhecidos em documentos legislativos.
Na Constituição Brasileira os direitos e garantias fundamentais previstos no Título II receberam uma atenção especial, quanto à hierarquia normativa superior das normas constitucionais, como também pelo motivo do artigo 5º, §1º adotar que as normas definidoras dos direitos têm aplicabilidade imediata, visto que erigidos à categoria de cláusulas pétreas, integrando assim o rol do artigo 60, §4º, da carta citada.
Warren e Brandeis (1890) apresentaram a doutrina do direito à privacidade no século XIX, onde o desenvolvimento da lei era inevitável, no que tange dar a mesma proteção a bens não materiais, pensamentos e emoções, como é dada aos materiais. A preocupação era com as tecnologias daquela época, jornais, fotografias e demais, que haviam entrado na esfera privada dos indivíduos, como na publicação não autorizada de fotografias, cartas e escritos. Os autores diziam que a proteção desses bens era de competência da privacidade e não da propriedade, que eles definiam, utilizando a expressão cunhada pelo juiz Thomas Cooley, “right to be let alone”, ou seja, “direito de estar só” ou “direito de ser deixado em paz”.
A modificação do conceito de dado privado pode ser vista a partir da década de 70, após a edição de algumas legislações específicas e decisões judiciais em diversos países, como os Estados Unidos e a Alemanha. Houve também a aprovação de acordos internacionais priorizando a proteção de dados pessoais. Assim, todos esses instrumentos compartilhavam o conceito de que os dados pessoais constituem uma projeção da personalidade do indivíduo e que, portanto, merecem maior atenção e tutela jurídica, segundo pensamento de Mendes, 2014.
Os primeiros diálogos legislativos referentes à privacidade, vistos nas cartas internacionais de direitos humanos aludem primeiramente à Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, de 1948, estabelecendo no artigo quinto que toda a pessoa tem direito à proteção contra ataques abusivos à vida particular e familiar. Ademais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada no mesmo ano, trata de forma similar a respeito da privacidade, em seu artigo décimo segundo. Como também a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, denominada de Pacto de San Jose da Costa Rica, que segue a mesma linha, determinando no seu artigo décimo primeiro que ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas no exercício da sua vida privada.
O direito à privacidade é amparado pelo direito fundamental à proteção de dados, regulando assim as informações e comunicações em diversos meios, com o
intuito de equilibrar os interesses de uso e proteção. O bem jurídico desse direito é a integridade física e moral, a personalidade, as liberdades e a igualdade, sendo esses componentes essenciais da dignidade da pessoa humana. Para colaborar com essas esperanças, foi promulgada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, no dia 14 de agosto de 2018. Em seu artigo 5º, há diversos conceitos, como o do dado pessoal, conceituado que toda informação que mantenha relação à pessoa natural identificada ou identificável. Entendendo assim que não é limitado apenas ao nome, idade ou endereço, mas sim incluindo dados de localização, bens, perfis, números de Internet Protocol, históricos, entre outros dados.
A lei veio também para conceituar e regulamentar as discussões acerca dos dados pessoais sensíveis, como aquele sobre origem racial e étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou organização que tenha cunho religioso, filosófico ou político, dados que tenham relação à saúde ou vida sexual, dados genéticos e biométricos.
De outro lado, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n° 13.709/2018) estabelece em seu artigo 2° os seus fundamentos, entre eles estão o respeito à privacidade, à autodeterminação informativa, à liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião, à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, entre outros (BRASIL, 2018). Já o art. 4° traz as causas de não aplicação da referida lei e, entre elas, está o processo de coleta de dados realizados para fins exclusivos de a) segurança pública; b) defesa nacional; c) segurança do Estado; ou d) atividades de investigação e repressão de infrações penais; (BRASIL, 2018). Dessa forma, a coleta de material genético para fins de investigação criminal não está incluída no rol de direitos garantidos pela LGPD, sendo necessária uma legislação específica para regularizar essa conduta por parte do Estado.
Diante dessa lacuna legislativa existente no ordenamento jurídico brasileiro no que se refere a proteção de dados no âmbito da segurança pública, foi instituída por Ato do Presidente da Câmara dos Deputados, em 26 de novembro de 2019, a Comissão de Juristas para estudo e elaboração de anteprojeto de lei que supra esse vácuo jurídico existente após a implementação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
Para tanto, a referida Comissão de Juristas apresentou à Câmara dos Deputados o Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados para segurança pública e persecução penal (LGPD Penal), com a exposição dos motivos que pretendem “demonstrar a necessidade, a estrutura e os principais conceitos da proposta legislativa para regular o tratamento de dados no âmbito da segurança pública e de atividades de persecução e repressão de infrações penais” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2020).
Na exposição dos motivos apresentados no Anteprojeto da LGPD Penal, foram elencadas duas problemáticas centrais as quais se manifesta esse vácuo jurídico brasileiro: o primeiro problema é em relação a própria eficiência investigativa dos órgãos brasileiros tendo em vista a falta de adequação aos padrões internacionais de segurança quanto ao fluxo e tratamento de dados; e o segundo problema está na falta de regulamentações de proteção aos cidadãos sobre a licitude, a transparência ou a segurança do tratamento de dados no âmbito penal (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2020).
De acordo com Laura Mendes e Jaqueline Abreu (2021), no bojo das discussões sobre proteção de dados no contexto criminal, em geral, o paradigma que vem à tona é o contraste entre sigilo e publicidade de dados em investigações. Nas palavras de Daguer, Borri e Soares, (2022, p. 02) na “difícil compatibilização entre intimidade e/ou privacidade e segurança pública, cabe ao Estado estabelecer o equilíbrio para o livre desenvolvimento da sociedade”, sendo indubitável que “as novas tecnologias impactam inúmeros atores sociais como segurança, educação, saúde e outras instituições da vida social” (DAGUER; BORRI; SOARES, 2022, p. 02).
Neste processo de compatibilização entre sigilo e privacidade no campo da segurança pública, Mendes e Abreu (2021) afirmam que o antigo paradigma “sigilo/publicidade” não é passível de abarcar e regular a infinidade de medidas e de operações de tratamento de dados pessoais que se colocam hoje à disposição para investigações criminais e para políticas de segurança pública de forma geral. Isso porque, no contexto atual, tende-se a expandir o ramo da inteligência policial, a criação e integração de bancos de dados, o uso de tecnologias de inteligência artificial alimentadas por grandes volumes de dados, isto é, buscando-se usufruir dos benefícios e do poder da big data. Com isso, afirma-se que “a utilização de algoritmos e grandes montantes de dados para gerir e gerenciar a vida social marca o chamado gerenciamento algorítmico, em que se vigia cada indivíduo, assim como a multidão, os gerenciando na Era Big Data” (AZEVEDO; DUTRA, 2021).
Praticamente todas as atividades de investigação policial da atualidade, da era da big data envolve coleta e uso de dados de forma contínua, cumulativa, de um grande conjunto de pessoas, independentemente de possuírem histórico de condenação ou não. De acordo com Mendes e Abreu (2021), são informações usadas para abrir linhas de investigação, fazer provas pré-constituídas, correlacionar informações, detectar crimes e outras ações que podem ocasionar os mais diversos tipos de abusos e ilegalidades no tratamento de dados. Tais operações de tratamento podem envolver usos indevidos, usos abusivos, usos secundários (diferentes e estranhos à finalidade original), vazamentos, discriminação, erros por conta de dados sem acurácia ou desatualizados.
Nesse contexto, finalizam as autoras (2021) é inevitável e imprescindível a aplicação do direito à proteção de dados pessoais também nas esferas investigativas e da segurança pública, como já se fez com a elaboração de uma lei para o setor privado. Além da importância da proteção de dados pessoais em geral, no âmbito das investigações criminais e da segurança pública, a existência de uma lacuna legislativa sobre o tratamento de dados potencializa a exposição dos titulares de dados pessoais a violações e restrições em liberdades civis fundamentais graves, podendo levar as pessoas a serem indevidamente inquiridas e até mesmo presas.
Portanto, constata-se a necessidade de que o desenvolvimento tecnológico e a utilização de dados pessoais “não podem ser inseridos no funcionamento institucional à margem do Direito, sobretudo tendo em vista o contexto democrático de proteção às garantias fundamentais” (ARRUDA; RESENDE; FERNANDES, 2021, p. 666). O que pressupõe a necessidade da instituição firme de normativas de controle da atividade estatal no acesso e utilização de dados pessoais, na medida em que o acesso a tais dados se torna cada vez mais facilitado pelo desenvolvimento tecnológico, e em um contexto no qual “a simples menção ao interesse público ou à segurança nacional como justificativa para o tratamento de grande volume de dados pessoais pode ser facilmente alvo de abusos por ser extremamente subjetiva” (ARRUDA; RESENDE; FERNANDES, 2021, p. 666).
Por conseguinte, constata-se a existência de uma nítida relação entre os dados pessoais sensíveis, a proteção de dados e a coleta compulsória de materiais genéticos para a constituição de banco de dados para fim de investigação criminal, destacando-se, especialmente, que a falta de contornos legais mais específicos e seguros seja capaz de prejudicar o emprego da técnica em várias vertentes da segurança pública, incluindo-se investigação, processo penal, execução penal, sob o risco grave de promoção de violações de direitos humanos, conforme pode-se verificar na sequência deste artigo.
2- OS BANCOS DE PERFIS GENÉTICOS PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL, ANALISANDO A PROBLEMÁTICA DE DAR AO ESTADO O PODER TOTAL
Durante o século XIX, os tribunais norte-americanos ocupavam-se na reparação de situações de violência ou lides envolvendo a propriedade privada, dessa forma, não constituía um assunto a ser resolvido perante a corte as violações à privacidade dos indivíduos. Na realidade, evitava-se discutir esse tipo de direito, pois havia certo receio de que a proteção a interesses intangíveis, como a tutela da esfera íntima, pudesse levar a uma “inundação de litígios” (JOSINO, 2021).
Se antes o que se tinha era uma sociedade predominantemente rural, é certo que os meios de comunicação de massa ainda não estavam sendo utilizados (jornais, rádios, televisão), sendo assim, pequenos eram os danos provocados por violações à privacidade alheia. O cenário se inverte quando a tecnologia surge e toma grande espaço no cotidiano da sociedade, fazendo com que as informações circulassem com uma abrangência e velocidade cada vez maiores, e é nesse sentido de uma nova forma de sociedade que começam a surgir as primeiras manifestações reclamando os direitos e a proteção jurídica na esfera privada (JOSINO, 2021).
As origens das manifestações acerca da proteção dos direitos da privacidade surgem em um artigo publicado pelos juristas Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis (1890), intitulado The right of privacity, em que é possível encontrar grandes conceitos da autodeterminação informativa, como o direito de aproveitar a vida (right to enjoy life), ou o direito de ser deixado em paz (the right to be let alone).
A obra em questão encontra grande destaque atualmente, pois foi a partir dela que se desenvolveu o pensamento de que o indivíduo teria o direito de decidir sobre as informações privadas que seriam veiculadas e utilizadas por terceiros. A importância do tema foi tão grande que, anos depois, o Tribunal Constitucional Federal alemão definiu tal direito como a “autodeterminação informativa” (RUARO, 2011).
Ao falar em proteção de dados pessoais, fala-se do direito fundamental à privacidade. Ambos são encontrados na Constituição Federal brasileira de 1988, no art. 5º. Incisos X e XII:
“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”
“é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual pena” (BRASIL, 1988)
O primeiro diploma legal brasileiro a fazer menção ao termo “dados pessoais” foi o de nº 8.078/1990, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 43. Destaca Josino (p. 17), conforme citado por Silva (p. 09) que:
Há uma importante correlação entre a proteção do consumidor e a de dados pessoais. Isso pois o tratamento de dados, capaz de ensejar violações à privacidade, por muitas vezes acontece entre empresas, prestadores de serviços de conteúdo e de conexão e outros agentes considerados fornecedores, nos termos do art. 3o do CDC, assim como aquelas pessoas que podem ser enquadradas como consumidoras, conforme o art. 2o do mesmo diploma.
No ano de 2005, o Brasil foi provocado pela Argentina a criar uma lei de proteção de dados, visto que ambos os países realizavam negociações através do Mercosul, sendo necessário uniformizar a legislação sobre o tema. Porém, somente em 2018 houve a sanção da Lei 13.709/2018, a chamada Lei Geral de Proteção de Dados, contudo, em seu artigo 4°, a LGPD traz as causas excludentes de sua aplicabilidade e, entre eles estão os realizados para fins exclusivos de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado ou atividades de investigação e repressão de infrações penais (BRASIL, 2018).
Assim, percebe-se que a Lei Geral de Proteção de Dados não se aplica à esfera penal, sendo assim, há uma grande lacuna legislativa a ser sanada.
Nessa senda, a criação de bancos de perfis genéticos para resolução de crimes é recente, sendo prevista com a Lei n° 12.654/2012, que alterou a Lei n° 12.037/2009, que dispõe sobre a identificação criminal do civilmente identificado, e a Lei n° 7.210/1984, que institui a Execução Penal. A partir de sua entrada em vigor, passou a ser possível a identificação criminal por meio de perfil genético dos investigados quando se fizesse necessário, bem como a obrigatoriedade da coleta entre os condenados por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável. Ainda, o mecanismo legal em questão, determinou que o acesso aos bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal somente pode ocorrer com autorização judicial, uma vez que os dados são sigilosos (BRASIL, 2012).
A regulamentação sobre o funcionamento dos bancos de dados se deu por meio do Decreto n° 7.950/2013, que instituiu o Banco Nacional de Perfis Genéticos e Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, para que fosse possível a comparação entre perfis genéticos existentes nos bancos da União, dos estados e do Distrito Federal (Dec. 7.950/2013). Recentemente, a Lei n° 13.964/2019 trouxe mudanças para a matéria em questão, prevendo, entre outras questões, que o condenado por crimes dolosos praticados com violência grave contra a pessoa, por crimes contra a vida, contra a liberdade sexual e por crimes sexuais contra vulneráveis, que se negar a ceder o seu material genético, incorrerá em falta grave e, ainda, que o prazo para exclusão do perfil genético dos condenados passaria a ser de 20 anos após o cumprimento da pena ou em caso de absolvição (BRASIL, 2019).
Neste processo, necessário ressaltar que, desde sua implementação, o BNPG tem sido alimentado de forma acelerada nos últimos anos, sendo que, no início do ano de 2019, foram coletados sete mil perfis genéticos da população carcerária e, no final do mesmo ano, foram cadastrados 55 mil perfis no banco de dados (BORGES, NASCIMENTO, 2021).
Diante desse panorama, tem surgido muitos questionamentos acerca da constitucionalidade de tais mecanismos legais que versam sobre a coleta obrigatória de material genético, principalmente por violar o direito à não autoincriminação, presunção de inocência, intimidade e esquecimento. Essa discussão foi levada até o plenário do Supremo tribunal Federal (2016), por meio do Recurso Extraordinário n° 973.837, que ganhou repercussão geral, em razão da decisão do seu relator, ministro Gilmar Mendes, o qual entendeu ser necessária a convocação de audiências públicas para ouvir especialistas sobre o tema e subsidiar a decisão da Corte.
Inicialmente, trata-se da violação do princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que a coleta do material genético dos condenados dá acesso ao corpo destes sem a sua autorização e, por mais que esse acesso seja limitado a determinação da identidade a pessoa, seu sexo biológico e suas possíveis relações de parentesco, esse acesso é invasivo e pode desrespeitar sua integridade física e íntima (SCHIOCCHET, 2014). Ademais, a extração compulsória de material genético violaria o direito constitucional de não autoincriminação, pois, ao ter seu DNA extraído sem o consentimento, o condenado estará produzindo provas que podem ser utilizadas contra ele em outros processos criminais, visto que seus dados estarão registrados em um banco por um longo tempo após o cumprimento da pena (BORGES; NASCIMENTO, 2021, p. 06).
No mesmo sentido, é possível pensar no princípio da presunção de inocência. Segundo Moraes (2010), uma vez que a prova genética faz parte de um conhecimento científico e prova inquestionável para os olhos da sociedade, em um caso real, se o material genético coletado na cena de um crime encontrar compatibilidade com dados genéticos armazenados no banco, o indivíduo será considerado o provável autor do delito e restarão atrofiadas as investigações policiais, portanto, a presunção de inocência rapidamente se converteria em presunção de culpa (BORGES; NASCIMENTO, 2021).
Em que pese tais argumentos acerca da inconstitucionalidade da coleta, especialmente compulsória e dúvidas acerca da sua cadeia de cuidados – coleta, tratamento, armazenamento, compartilhamento, descarte – o processo de coleta segue acontecendo. A Resolução nº 11/2019 editada pelo Comitê Gestor da RIBPG
– Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, estabeleceu a possibilidade de retenção e inclusão do perfil genético de pessoas mortas, permitindo que as informações genéticas do condenado morto continuem armazenadas por 20 anos após a sua inserção nos arquivos de restos mortais identificados (BRASIL, 2019). Por sua vez, a Resolução n° 9 do referido Comitê atribuiu ao judiciário a responsabilidade por tomar as medidas cabíveis para a coleta compulsória de material genético (BRASIL, 2018), o que tem levado o STJ a aprovar tais procedimentos, “sob o argumento de que a segurança da sociedade e o combate à impunidade devem estar acima dos direitos de um indivíduo condenado por crimes violentos” (BORGES; NASCIMENTO, 2021, p. 161).
Ao analisar as modificações trazidas pela Lei n° 13.964/2019, verifica-se que não houve alteração na proposta do art. 9° da Lei de Execução Penal, visto que manteve a possibilidade de extração compulsória do DNA de condenados, contudo, a nova legislação, ao estabelecer falta grave quando o condenado não se submeter à extração compulsória do material genético, trouxe dúvidas quanto à obrigatoriedade da coleta em questão, na medida em que prevê uma punição para aquele que se recusar, fazendo com que, de qualquer forma, não haja escolha ao condenado. Ademais, a inserção do art. 7°-A na Lei n° 12.034/2009, agravou ainda mais o direito ao esquecimento quando aumentou o tempo de armazenamento das informações genéticas dos condenados para 20 anos após o cumprimento da pena. Anteriormente, esse prazo se limitava ao prazo prescricional do delito, agora, alcança grande parte da vida do condenado, aumentando a estigmatizarão social, principalmente no que tange à reinserção no mercado de trabalho, sendo algo quase impossível de alcançar a partir desse momento (ZAFFARONI, 2006).
Analisando a eficácia da aplicação da medida no Brasil, Borges e Nascimento (2021) informam que, no relatório da RIBPG referente ao período de maio a novembro de 2019 (BRASIL, 2019) que 62% das coincidências envolvendo vestígios estão relacionadas a crimes sexuais e 34% a crimes contra o patrimônio, no entanto, no que tange as coincidências entre vestígios e indivíduos cadastrados criminalmente, estas são mais comuns em crimes contra o patrimônio (54%) do que em crimes sexuais (42%). Do que as autoras concluem a existência de um “maior impacto dos bancos de dados em crimes patrimoniais” (BORGES, NASCIMENTO, 2021, p. 165), o que pode ser explicado pelo fato de a identidade do suspeito ser frequentemente desconhecida.
Neste sentido, prosseguem as autoras (BORGES; NASCIMENTO, 2021), é preciso considerar que a eficácia do uso dos bancos de perfis genéticos para resolver crimes violentos ou sexuais é questionável, especialmente dado seu alto custo. Segundo as pesquisas apresentadas em seu estudo, especialmente desenvolvidas nos Estados Unidos, a manipulação de perfis genéticos demonstra ser extremamente custosa para o Estado, de tal modo que o custo benefício não se justificaria uma vez que têm servido essencialmente para resolver crimes patrimoniais, em quantidade muito aquém da esperada. Entretanto, o Ministério da Justiça e Segurança Pública “sequer considera esses dados e faz publicidade de sua meta para ampliar os bancos de perfis genéticos brasileiros, incorporada pela nova lei, com base na solução de alguns poucos casos de crimes violentos que tiveram alguma repercussão”. (BORGES; NASCIMENTO, 2021, p.177).
Outro ponto relevante é a necessidade, apontada pela doutrina, de se analisar o risco de resultados discriminatórios na operacionalização dos procedimentos de coleta e armazenamento e construção de banco de um modo geral, contexto no qual se inserem aqueles de materiais genéticos (DAGUER; BORRI; SOARES, 2022). É neste contexto que Arruda, Resende e Fernandes (2021) analisam a problemática dentro do marco da evolução dos sistemas de policiamento preditivo, também à luz da criminologia crítica. De acordo com as autoras, torna-se necessário “levantar os riscos de tais sistemas, com relação à distribuição do status de criminoso perante a sociedade e, em específico, aos indivíduos que são alvos destes sistemas de controle”. (ARRUDA; FERNANDES, 2021, p. 680).
Em outras palavras, importa questionar quais dados são utilizados para realizar as referidas predições, como são apreciados pelos mecanismos tecnológicos e de que forma isso reflete na sociedade, uma vez que o processo de criminalização é reforçado pelas atuações seletivas das agências do sistema penal. Destaque-se também que os softwares, apesar de não necessariamente atuarem da mesma forma e sob a mesma lógica, “representam produtos de uma transculturação, apontada por Zaffaroni” (ARRUDA; RESENDE, 2021, p. 681), e podem ser relevantes exemplos de um modelo colonizador de polícia de ocupação, representando técnicas de vigilância condicionadas pelo risco e pela sensação de insegurança.
Em muitos casos, ainda, tais processos são formulados pela iniciativa privada e vendidos com a promessa de neutralizar os preconceitos dos tomadores de decisão humana. No entanto, conforme aponta Braga (2020, p. 693), poucos são os fornecedores totalmente transparentes sobre a operação dos sistemas (frequentemente protegidos pelo segredo industrial), sobre os dados efetivamente utilizados ou sobre o regime de responsabilização adotado pelo fornecedor em casos de danos gerados por vieses ou evidências de má conduta (BRAGA, 2020).
Nas palavras de Daguer, Borri e Soares (2022), o mais grave de tudo isso é que no Brasil, historicamente conhecido por não observar as premissas de transparência de dados sobre segurança pública, inexiste qualquer preocupação dos governos em elaborar mecanismos de accountability voltados para as tecnologias e nem protocolos para segurança dos dados coletados.
Muitos são os questionamentos que podem ser apontados, como descrevem Arruda, Resende e Fernandes (2021), para quem a introdução de novas tecnologias no âmbito jurídico–penal, tem reproduzido a lógica segregacionista que caracteriza o sistema de persecução penal brasileiro, o qual reserva a resposta penal aos indivíduos que não interessam à sociedade neoliberal. Ou cujo interesse pode ser considerado apenas na medida em que “fornecem dados que podem auxiliar na conformação de práticas de vigilância, e não na promoção da dignidade humana”. (ARRUDA; RESENDE; FERNANDES, 2021, p. 683).
O que implica em refletir que, no contexto de uma sociedade que possui inúmeros problemas de discriminação e injustiça, tal como a brasileira, o uso não controlado da inteligência artificial na esfera pública, e especialmente no campo punitivo penal “tem a capacidade de impactar negativamente toda a população, amplificando possíveis discriminações sob o discurso de uma pretensa imparcialidade algorítmica que dificulta a identificação dessas injustiças” (MAGALHÃES; GOMES, 2021, p. 174). Isto aconteceria na medida em que as tecnologias forneceriam certo ar de neutralidade, quando, na verdade, o algoritmo possui vieses para suas decisões e manutenção do estado de coisas violador de direitos fundamentais para determinados segmentos sociais, conforme Daguer, Borri e Soares (2022).
Seria, portanto, o reforço punitivo e a perpetuação do processo que Rubens Casara (2018, p. 23) descreve como uma “gestão dos indesejáveis”, por meio de uma racionalidade criminal e repressiva, que neste momento histórico, passa cada vez mais a ser corroborada pelas técnicas de vigilância.
Reiterando tais preocupações, Borges e Nascimento (2021, p. 177), analisadas especificamente à luz da constituição de banco de perfis genéticos, indicam ser possível concluir que tais bancos “contribuem essencialmente para o funcionamento da necropolítica do sistema penal brasileiro, que tem por objetivo fazer morrer ou mutilar grupos considerados perigosos para a vida da população que deve viver, de acordo com o mercado”. Isto porque, tais bancos armazenam essencialmente o perfil de pessoas condenadas por crimes violentos, de modo podem constituir-se em um mecanismo que é e continuará sendo utilizado para manter neutralizadas essas pessoas, presas à circularidade do cárcere, sem possibilidade de recomeço, sujeitas às suas violências, vulneráveis à morte ou como uma multidão de mortos-vivos que só ganham visibilidade por também praticarem violência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
George Orwell já previa em sua obra “1984” uma verdadeira transgressão de privacidade que viria a ocorrer, através dos avanços tecnológicos. No enredo, os indivíduos eram tidos como verdadeiras “marionetes” da tecnologia, que era utilizada para o controle da população, ou a sua destruição. O Estado classifica-se como o “grande irmão” do cidadão ao vigiar a todos, sacrificando sua intimidade e privacidade em troca de paz, zelando por todos na tentativa de assegurar a ordem mundial.
Nesse sentido, é possível visualizar uma grande semelhança entre a ficção de Orwell e a realidade que o mundo da tecnologia trouxe consigo, principalmente no que tange à invasão da vida privada do indivíduo por aqueles que detém o poder para tal, discursando um “bem maior”. É o que ocorre com a instituição da coleta obrigatória dos perfis genéticos em casos específicos, possibilidade trazida pela Lei 12.654/2012, que foi instituída para trazer eficiência ao processo de persecução criminal, permitindo, em tese, um extenso banco de dados com informações acerca de indivíduos envolvidos em determinados delitos e, consequentemente, uma forma de solucionar investigações de forma facilitada. Contudo, ignorou-se uma série de direitos fundamentais inerentes a todo e qualquer cidadão, como o princípio da não autoincriminação e da presunção de inocência, além de violar um dos pilares do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, a presente pesquisa teve como objeto de estudo a Lei n° 12.654/2012, a qual instituiu a coleta de perfil genético obrigatório como forma de identificação criminal em casos específicos. Através da análise da referida lei, buscou-se caracterizar como se dá a regulamentação dos bancos de dados em questão e, para além desse tema, analisar acerca da constitucionalidade de tal medida. Ao analisar as mudanças trazidas pelas Lei n° 13.964/2019, foi possível verificar uma radicalização das violações aos direitos e garantias constitucionais já trazidas pela Lei n° 12.654/2012, sobretudo desrespeitando o direito de não autoincriminação e autorizando que a presunção de inocência dos cadastrados nos bancos de dados se convertesse em presunção de culpa.
Diante dessa inconstitucionalidade, resta saber se essas violações são vantajosas e se os bancos de dados realmente contribuem para a resolução de investigações criminais, conforme sua justificativa de evitar erros, identificar criminosos de maneira eficiente e impedir condenações indevidas, ou se apenas corroboram para manter uma estigmatização de uma parcela da população que já encontra-se à mercê da criminalidade. Ademais, é necessário indagar se o Brasil está preparado para enfrentar os novos dilemas que envolvem o tema, principalmente no que tange à regulamentação dos processos de identificação de suspeitos por meio de compatibilidade do material genético, bem como a manutenção desses dados que se encontram registrados em bancos de dados.
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[1]Doutora em Direito – UNISINOS, Professora-Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos da UNIJUI. Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. joice.gn@gmail.com
[2] Acadêmica de Direito – Bolsista PIBIC/CPNq – Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul. laura.paulata@sou.unijui.edu.br.
[3]Acadêmica de Direito – Bolsista PIBIC/CPNq – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. merian.alves@sou.unijui.edu.br.