O SUPERINDIVIDAMENTO COMO FENÔMENO SOCIAL: REGULAMENTAR É O CAMINHO DE INCLUSÃO
1 de março de 2022THE SOCIAL PHENOMENON OF THE OVER-INDEBTEDNESS: REGULATING IS THE WAY TO INCLUSION
Cognitio Juris Ano XII – Número 39 – Edição Especial – Março de 2022 ISSN 2236-3009 |
RESUMO: A presente pesquisa tem como tema a análise do fenômeno do superendividamento dos consumidores sob uma perspectiva social e da necessidade de sua regulamentação como instrumento de proteção a tais indivíduos em situação de vulnerabilidade. Nesse diapasão, depara-se com a seguinte problemática: o atual cenário nacional de elevado número de consumidores em situação de superendividamento gera a necessidade de uma urgente regulamentação? É evidente que o sistema jurídico-normativo nacional pode atuar na mudança de tal cenário. Nesta perspectiva o objetivo geral deste trabalho foi analisar o instituto do superendividamento do consumidor como um evento que necessita da devida intervenção da ciência jurídica, haja vista as consequências sociais e jurídicas por ele geradas. Desse modo, a pesquisa foi conduzida no tocante ao aporte teórico pelos ensinamentos de Zygmunt Bauman, mais precisamente em seus estudos a respeito da vida para o consumo. Para a construção metodológica foi adotado o método dedutivo, a partir do qual a análise das premissas possibilitará chegar-se a uma conclusão verdadeira. Como suporte, fez-se uso de conteúdo histórico abarcado pela problemática da pesquisa e revisão bibliográfica. Como resultados a presente pesquisa constatou que há um elevado número de consumidores em situação de superendividamento, em razão de uma conjuntura social fundada no consumo desordenado (sociedade líquida). Com isso, observou-se a necessidade de regulamentação, por meio da aprovação do projeto de lei nº 3.515/2015, que se faz urgente e indispensável, pois permitirá uma maior rede de proteção, possibilitando-lhes a recuperação financeira das pessoas superindividadas.
Palavras-chave: Consumidor. Superendividamento. Consumismo. Regulamentação.
ABSTRACT: The current research possesses as its theme, the analysis of the phenomenom of over-indebtedness of consumers from a social perspective and the need for its regulation as an instrument of protection towards such individuals in a situation of vulnerability. In this regard, the following problem is encountered: does the current national scenario of a high number of consumers in a situation of over-indebtedness generate the necessity of urgent regulation? It is evident that the national juridical-normative system can peform to change this scenario. Under this perspective, the general objective of this work was to analyze the institute of consumer over-indebtedness as an event that recquires the due intervention of the legal science, given the social and juridical consequences generated by it. Therefore, the research was conducted in regard to the theoretical contribution of the lessons of Zygmunt Bauman, more precisely in his studies respecting life for consumption. For the methodological construction, the deductive method was adopted, from which the analysis of the assumptions will enable the reach of a truthful conclusion. As support, the historical content encompassed by the problematic of research and literature review was utilized. As a result, this research ascertained that there is a high number of consumers in a situation of over-indebtedness, on account of a social situation based on disordered consumption (liquid society). Thus, the need for regulation was observed, through the approval of Bill nº 3.515/2015, which is urgent and indispensable, since it will allow a greater protection network, enabling the financial recovery of highly indebted people
Keywords: Consumer. Over-indebtedness. Consumerism. Regulation.
- INTRODUÇÃO
A complexidade das relações de consumo, na era pós-moderna, tendo em vista a criação quase que instantânea de uma série de produtos, dos mais diversos, é uma tendência mundial. Devido a um crescimento constante das mais diversas variedades de objetos, produtos e serviços, as pessoas buscam consumi-los como uma forma de satisfação própria, ou seja, há uma realização de compras sem a necessidade de se fazê-las, mas apenas como uma forma de estabelecer-se em certo parâmetro social.
Neste cenário de consumo desenfreado, surge o instituto do superendividamento dos consumidores, tendo em vista ser cada vez mais frequente a existência de pessoas com dívidas exorbitantes, das quais não detém o montante necessário para a devida liquidação. Ante a situação, nos defrontamos com a seguinte problemática: o atual cenário nacional de elevado número de consumidores em situação de superendividamento gera a necessidade da regulamentação como forma inclusiva ao mercado consumerista.
Neste contexto, é importante entender que o Direito, constituído a partir da percepção da sociedade e de suas transformações, atua de forma a possibilitar aos indivíduos uma margem de solução para os seus conflitos. Nessa perspectiva, é imprescindível a atuação da ciência jurídica na problemática do superendividamento.
Assim o objetivo geral é analisar o instituto do superendividamento do consumidor na perspectiva da intervenção da ciência jurídica mediante sua regulamentação, haja vista as consequências sociais e jurídicas por ele geradas. Como metodologia para a construção do trabalho será utilizado o método dedutivo, adotando como procedimento técnico a pesquisa bibliográfica, por meio da consulta em livros e artigos científicos.
O tema abordado detém fundamental importância cientifica e acadêmica, tendo em vista que o problema do superendividamento dos consumidores é uma realidade na sociedade brasileira, em que a regulamentação tornou-se essencial. Nessa perspectiva, o primeiro capítulo aborda as relações de consumo nascedouro do impulsionamento do desenvolvimento do sistema capitalista, as estratégias de marketing para a conquista do consumidor e também a expansão do crédito que permite o encorajamento do consumo. No segundo capítulo, abordar-se-á, inicialmente, o contexto histórico e social em que se deu a regulamentação do superindividamento em alguns países, culminando na demonstração da necessidade de que esse fenômeno seja objeto de legislação especifica no Brasil.
Finalmente, o artigo será concluído com uma síntese geral de todos os temas abordados e das considerações extraídas a partir destes, em um esforço para contribuir para a melhor compreensão da relação e impacto de tão relevantes assuntos.
- DA SOCIEDADE DO CONSUMO AO HIPERCONSUMO
Quando falamos “sociedade de consumo” vale salientar que sempre consumimos ao longo do tempo e da história, apenas, como enfatiza Baumman, agora há concepção mais singular com objetivos completamente diferente dos tempos, com a percepção do papel fundamental de consumidor nessa sociedade. Além do mais, “o consumidor em uma sociedade de consumo é uma criatura acentuadamente diferente dos consumidores de quaisquer outras sociedades até aqui”
Para fins de manter esse perfil do consumidor contemporâneo em sua capacidade de manter o consumo, o mercado também mantém um alerta continuamente tentador com a percepção de que há uma insatisfação permanente que precisa ser preenchida pelo consumismo.
O consumo na sociedade contemporânea passa necessariamente pelo sistema capitalista com o fortalecimento do mercado econômico globalizado e pela captação comercial dos fornecedores em face das facilidades alternativas de aquisições pelo crédito. É importante apontar a interferência dos propósitos políticos e econômicos do impulso do capitalismo nesse processo consumerista, desencadeadas pelas relações à satisfação do consumidor, como consequência de mercado globalizado.
Acrescente-se a contribuição do marketing que permite instigar a atração de desejos emocionais e sociais por meio do consumismo, com uma proposta de satisfação pessoal numa perspectiva de felicidade. O consumidor passa a ser o ícone de comportamentos mercadológicos do consumo, inserido numa moldura de mercantilização dos modos de vida. Estes captados pelas estratégias de produtos e serviços personificados (LIPOVETSKY, 2020) com uma propositura da inovação e diferenciação no âmbito social.
Vale pontuar que para entendermos a construção da relação dessa sociedade consumerista e o papel contributivo do consumidor nesse processo na perspectiva teórica de Gilles Lipovetsky, as fases do capitalismo do consumo iniciam-se com o nascimento dos mercados em massa através da produção e impulsionados pelo marketing na mesma direção. Uma vez que “a economia de consumo é indissociável desta invenção de marketing” (2020, p. 25) com a produção de preços acessíveis para justamente alcançar as massas, ou seja, perfazendo uma democratização de acesso aos produtos. Vale enfatizar o destaque as marcas que começam a ascender no mercado, fazendo com que o consumidor depositasse sua confiança nela. Impulsionados pela nova relação consumerista voltados à burguesia, desencadeiam-se a chamada “democratização do desejo” com estratégias de marketing para fins de fidelizar o consumidor em termos de desejos e instigando o processo do prazer pela compra.
Segundo a percepção de Lipovetsky (2020), a fase seguinte do capitalismo do consumo ganha destaque com a diversificação dos produtos, com a proposta de renovação constante voltada para a vida cotidiana do consumidor, embutindo a ideia de que o conforto é diretamente proporcional a felicidade. Destaca-se nesse interim a sociedade do desejo com o encorajamento por meio do crédito, desencadeando, evidentemente, a compulsividade de comprar e esbanjamento individualista no âmbito do consumo. Há uma subjacente necessidade de cada vez mais consumir, somente.
Essa incessante busca pelo consumo revela a constituição de uma modernidade líquida, termo desenvolvido por Zygmunt Bauman. Ele utiliza a metáfora da liquidez para fazer um contraponto com os tempos da certeza que seriam identificados pelo estado sólido. Para ele as formas de vida moderna, se assemelham pela vulnerabilidade e fluidez, incapazes de manter a mesma identidade por muito tempo, o que reforça esse estado temporário das relações sociais (BAUMAN, 2003).
Vale salientar que o despertar do consumir cada vez mais surge como forma de inserção de status social ilusório, mas, ao mesmo tempo, aponta para uma sociedade excludente dominada pelo mercado e pelo hedonismo (BARROS, 2009). Há uma percepção do ato de consumir por consumir e não mais na perspectiva de necessidades. Nesse ponto, Lipovetsky (2020) chama a atenção do consumismo baseado em marcas como forma de distinção na sociedade, que poderá conferir uma identificação do indivíduo. Isso podemos chamar do hiperconsumo.
Note-se, assim, que tais processos de inconstância atuam de forma determinante nas relações de consumo, de modo que os consumidores se encontram inseridos nesse meio de incessante busca pelo ter. Dessa forma, observa-se que há, na modernidade líquida, uma supervalorização pelo consumismo exacerbado.
Neste contexto, é possível perceber que a inserção dos consumidores em um sistema de consumo desordenado representa a consolidação de uma sociedade liquida, e representa um agravamento de sua posição vulnerável na relação de consumo, de forma que tais indivíduos são facilmente atingidos pelo fenômeno do superendividamento.
- O FENÔMENO DO SUPERINDIVIDAMENTO
A complexidade das relações sociais, a partir do século XX, coadunam à formação de um consumo multifacetário. A difusão cada vez mais rápida das informações, de forma a construir-se um ambiente globalizado e complexo, insere os consumidores em uma sociedade moldada ao consumo. Para Bauman (2008) essa complexidade acarreta em uma cultura consumista, porque há uma desvalorização das antigas ofertas, com a troca constante por novas ofertas, o que leva a uma insatisfação com a identidade adquirida e o conjunto pelo qual ela se caracteriza. Essa mudança de identidade consiste em se desfazer do passado sempre na procura de algo novo.
Ademais, uma das principais características das sociedades modernas é a necessidade de as pessoas mostrarem-se publicamente, o que também influencia no consumo. O surgimento das redes sociais e da comunicação instantânea tornou os indivíduos cada vez mais seres públicos e até mesmo produto. Essa exposição no meio virtual, principalmente mediante as redes sociais, faz com que os mesmos sejam conhecidos em diversos setores. Um destes setores é justamente o que concerne ao consumo.
O ambiente virtual impulsionou um constante processo de acesso a produtos e serviços intencionalmente direcionadas de forma a gerar nos consumidores uma necessidade por aquele consumo, ainda que ele não exista. Um dos propulsores a levar aos consumidores dentro desse processo foi o marketing. Acrescente-se o acesso ao crédito como condição essencial na sociedade de consumo, pois se caracteriza como elemento indispensável para a aquisição de produtos e fruição de serviços. Desse modo, o crédito se torna meio de imposição dessa cultura do consumo, inserindo os consumidores em uma sociedade consumista.
De outra perspectiva, o crédito pode instigar a uma concepção fantasiosa de sonhos e desejos, mas, na realidade, são instrumentos jurídicos contratuais de promessas de retorno financeiro. Quando ocorre o descumprimento contratual surge problemas de liquidação comprometendo a liquidez financeira do consumidor. Nesta premissa, propõem-se alternativas ao dogmatismo jurídico de forma positivista do direito.
Assim, a facilidade de acesso aos créditos, associado ao consumismo, conduz os consumidores a postergarem a quitação de suas dívidas, de forma a acentuar, consideravelmente, seus endividamentos. Mas, é somente a partir de sua aglomeração e perpetuação que os indivíduos consumidores podem ser inseridos em uma problemática que afeta toda a sua capacidade de solvência, passando assim, a constituir o fenômeno do superendividamento, que se caracteriza pela falta de possiblidade do consumidor de boa-fé saldar suas dívidas presentes e futuras com sua capacidade financeira atual (MARQUES, 2010).
Diante deste cenário, de uma sociedade voltada para o consumo aliada a facilidade do crédito e a uma publicidade agressiva, se pode perceber que variadas outras situações podem contribuir para que as pessoas cheguem a situação de superendividamento, algumas consideradas imprevisíveis, tais como desemprego, morte, acidente, redução de salário, doença, divórcio, crises econômicas, altos índices de inflação, e outras previsíveis, como má administração das finanças e/ou falta de educação financeira. Pelos diversos motivos citados, o nível de endividamento das famílias brasileiras aumenta a cada ano. Em fevereiro de 2019 o percentual de famílias endividadas era de 61,5%, passando para 65,1% em fevereiro de 2020; já o percentual de famílias sem condições de pagar suas dívidas em fevereiro de 2019 era de 9,2%, subindo para 9,7% em fevereiro de 2020, como mostra pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Comercio de Bens, Serviços e Turismo.
Segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de defesa do Consumidor – IDEC – 15% da população brasileira, ou seja, cerca de 30 milhões de brasileiros, se encontram em situação de superindividamento, portanto, sem que possuam condições financeiras de pagar as suas dívidas.
No momento atual, em que se enfrenta a situação de pandemia gerada pelo COVID -19, o quadro de superindividamento conta com fatores que pode e muito aumentar o número de pessoas atingidas, tais como o aumento do desemprego, a redução de salários, a suspensão de contratos de trabalho, a impossibilidade de realização das atividades pelos trabalhadores informais e até mesmo a impossibilidade de locomoção. Neste caso, a redução da renda, não provocada por vontade da pessoa, é geradora de endividamentos que atinge até o pagamento de contas básicas de consumo.
Ainda, se faz salutar compreender o que o superindividamento pode gerar como consequências na vida das pessoas. Essas consequências são de diversas naturezas, como ser excluído do mercado de consumo, ter baixa produtividade no trabalho, perder o emprego, e ainda devido ao sentimento de frustração diante da incapacidade de cumprir as obrigações para com os credores, o indivíduo pode desenvolver problemas de ordem psicológica que poderão afetar a sua rotina e a convivência familiar, gerando desentendimentos, mudança de comportamento, agressividade, impaciência, violência doméstica e até divórcio.
- A IMPORTÂNCIA DE REGULAMENTAÇÃO JURIDICA DO SUPERINDIVIDAMENTO
O superendividamento é um fenômeno social que afeta os consumidores, os quais foram e são fortemente influenciados pela globalização. Neste sentido aponta Butelli e Porto (2014) que o problema do superindividamento é de ordem mundial, ocorrendo em países como Dinamarca, França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Áustria, Canadá e Estados Unidos, os quais já possuem legislações que tratam do tema. Outros países iniciaram discussões como Espanha, Itália, Portugal e Brasil.
Perceba que, dentre os países que apresentam atualmente um tratamento legislativo específico aos casos de superendividamento, a maioria são concebidos como sendo desenvolvidos. O Brasil, juntamente com a Espanha e a Itália, ainda que estes dois integrem o grupo dos países desenvolvidos, permanecem inertes frente a tal fenômeno resultante das relações de consumo – superendividamento. Tais países, majoritariamente localizados no continente Europeu, passaram a dispor sobre legislação específica a respeito do superendividamento dos consumidores a partir do momento em que enfrentaram grandes crises econômicas. Estas, outrora, afetavam, de forma mais contundente, as classes mais vulneráveis, de forma que a possibilidade de serem inseridos em um superendividamento seria mais facilitada.
É nesse contexto de crise econômica que a França, em meados de 1970, dispõe a respeito de legislação específica no tratamento dos casos envolvendo consumidores superendividados. Nessa época a economia nacional francesa disponibilizou crédito em abundância aos consumidores em razão da alta inflacionária, ocorre que a recessão e o controle da inflação no fim dos anos 80 somado a fatores como desemprego e divórcio levou o país a dispor de mais de 200 famílias superindividadas (BUTELLI; PORTO, 2014).
Assim, a construção de mecanismos legais que atuassem na solução dos conflitos decorrentes de tal fenômeno foi incisiva na legislação Francesa, de modo que a possiblidade de uma recuperação financeira a tais superendividados tornou-se mais visível.
O governo Alemão, em seu Código Civil já dispunha a respeito da insolvência civil. Sucessivamente, com o surgimento do superendividamento e suas peculiaridades, observou que tratamentos específicos precisavam ser criados. Dessa forma, o governo Germânico percebendo que medidas urgentes e incisivas precisavam vir à tona inseriu ao sistema de insolvência civil o superendividamento. Consequentemente os consumidores passaram a dispor de institutos específicos a serem utilizados quando fossem acometidos pelo aludido fenômeno.
Já os Estados Unidos, optou por regulamentar a possibilidade de falência dos consumidores e da consequente aplicação do Código de Falência aos mesmos. A disposição inserida no Código de Falências permite a falência do consumidor pessoa física não empresária. Entretanto, o Código recebe consideráveis críticas ao fato de permitir o abuso da politica do “fresh start policy”, que consiste em uma vez liquidados os bens disponíveis do devedor, ocorrerá o perdão do restante da dívida.
É possível perceber que esforços foram empregados pelas legislações do direito comparado, no tocante a regulamentação do superendividamento, tendo como finalidade precípua a proteção aos consumidores em face a uma cultura do consumo. No Brasil mesmo diante da realidade acerca do superindividamento dos consumidores, não existe regulamentação legal, estando os indivíduos que se inserem nesse problema de ordem social desprotegidos juridicamente.
Todavia, é salutar compreender que no ordenamento jurídico brasileiro o direito do consumidor possui fundamento Constitucional, estando presente nos artigos 5º, XXXII e 170, V. Assim, o Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90, se perfaz no diploma legal, que define os instrumentos de defesa e proteção. Neste sentido, em seu artigo 4º, I, encontra-se o princípio da vulnerabilidade, se prestando a demonstrar a vulnerabilidade do consumidor frente ao fornecedor na relação de consumo, e por isso tornando-o sujeito de uma amplitude de direitos.
Assim, encontrando-se tanto a vulnerabilidade do consumidor, como a sua proteção assentada na legislação constitucional e infraconstitucional, e diante da omissão legal acerca do fenômeno do superindividamento, é possível afirmar que a regulamentação a seu respeito se faz urgente. Essa necessidade existe considerando que o devedor superindividado sofre reflexos de não ter um direito seu assegurado pelo Poder Público.
Desse modo, com vistas ao atendimento desta necessidade tramita na Câmara dos Deputados o projeto de Lei 3.515/2015, já aprovado pelo Senado Federal. Esse projeto tem em suas bases a prevenção ao superendividamento e a necessidade de educação consumerista, além de uma atuação mais responsável das concessionárias de crédito e a possibilidade de repactuação de dividas, por meio de um plano de pagamento proposto pelo consumidor endividado, respeitando o mínimo existencial.
O referido projeto de lei foi consolidado a partir das muitas produções científicas a respeito do superendividamento, tendo como base o reconhecimento da vulnerabilidade dos consumidores superendividados e da necessidade de regulamentação de preceitos normativos que atuem na recuperação financeira dos mesmos.
Ademais, o projeto de lei dispõe de institutos legais que permitirão aos consumidores superendividados uma reeducação em suas relações de consumo. O artigo 1º acrescenta ao artigo 6º o inciso XI, que determina a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira, de prevenção e tratamento das situações de superendividamento, com vistas a preservação do mínimo existencial, adotando a possiblidade de revisão e repactuação da dívida, além de outras medidas.
Nesta esteira, o projeto objetiva o preenchimento de uma lacuna legislativa referente a prevenção e tratamento do superindividamento, com valorização do binômio educação financeira e concessão responsável de crédito, mas não se perfazendo em paternalista, uma vez que de um lado coloca o consumidor como protagonista e responsável por suas escolhas, e de outro o protege de práticas abusivas.
Perceba, com isso, que a busca pela construção do projeto de lei nº 3.515/2015 não se restringe exclusivamente a aplicar sanções aos abusos cometidos pelas concessoras de crédito. Ao contrário disso, o aludido projeto almeja a inserção dos consumidores em um processo de reeducação, de forma que passarão, gradualmente, a consumirem de forma mais consciente.
No decorrer desta análise observou-se que a concessão desordenada de crédito é um dos fatores primários na inserção dos consumidores em um superendividamento, com base nisso, o projeto de lei supramencionado busca uma atuação mais responsável das concessoras de crédito e não um total impedimento ao mesmo, já que ele (crédito) é um fenômeno intrínseco às relações de consumo.
Outro ponto de fundamental relevância no projeto de lei em análise está relacionado a possibilidade de os magistrados, na análise de cada caso em concreto, poder rever os termos de renegociação, de forma a combater qualquer possível abuso cometido pelas concessoras de crédito. Dessa forma, caso ocorra abuso na concessão de credito consignado a lei prevê o dever de revisão ou renegociação do contrato, podendo o juiz adotar a dilação do prazo de pagamento, sem acréscimo nas obrigações do consumidor; a redução dos encargos da dívida e da remuneração do fornecedor; e a constituição, consolidação ou substituição de garantias. Esse artigo do projeto, ainda dispõe da expressão “entre outras”. Essa previsão permite que o magistrado possa analisar cada caso e ante as constatações sujeitas à sua apreciação, poderá propor inúmeras medidas não previstas no artigo, com vistas a garantir a reparação do abuso na concessão de crédito consignado.
Diante de tais apontamentos a respeito do projeto de lei nº 3.515/2015, observa-se que as pretensões do mesmo, se consignam em possibilitar aos consumidores um recomeço financeiro, na medida em que lhes inserem em um processo de reeducação para as relações de consumo, bem como lhes permite quitar as dívidas sem prejuízos a sua própria sobrevivência. Em conjunto, o projeto busca combater possíveis fraudes e abusos, principalmente das concessionárias de crédito, sob a égide do princípio da vulnerabilidade dos consumidores. Dessa forma, constata-se a emergente necessidade da regulamentação jurídica, tendo em vista as severas consequências do superendividamento para as relações de consumo e principalmente para os consumidores em termos de prevenção e o próprio tratamento.
Vale assinalar que o superendividamento se caracteriza pela incapacidade total de gerir as despesas pessoais e familiares culminando com a possibilidade de comprometimento da renda de subsistência por dívidas e a situação de vulnerabilidade dos consumidores, principalmente os idosos O ministro Paulo de Tarso Sanseverino, destacou que “o fenômeno do superendividamento tem sido uma preocupação do direito do consumidor em todo o mundo, decorrente da imensa facilidade de acesso ao crédito atualmente” (STJ, 2021).
Diante de uma realidade fática do superendividamento, prevalece o senso jurídico de que se “amplie a compreensão do direito como princípio e instrumento universal da transformação social politicamente legitimada, dando atenção para o que tenho vindo a designar legalidade cosmopolita ou subalterna” (SANTOS, 2014, p. 43). Noutras palavras, há uma premente necessidade dos vetores do direito como ponto singular das transformações consumeristas que permitam uma demanda inclusiva do consumidor.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A respeito da sociedade de consumo, percebeu-se uma forte tendência dos indivíduos em consumirem de forma desordenada. Esse consumismo aliado a excessiva disponibilidade de créditos e a uma propaganda agressiva, já podem por si só serem considerados causas que levam os consumidores ao endividamento.
Desse modo, constatou-se que como uma das principais causas fomentadoras do endividamento dos consumidores é a excessiva disponibilidade de crédito, os quais são cotidianamente ofertados aos consumidores de forma facilitada. Tais consumidores, por conseguinte, obtém tais créditos sem qualquer planejamento financeiro e adentram, na maioria das vezes, em dívidas as quais não serão posteriormente solvidas.
Neste contexto, observou-se que os consumidores que se encontrem no limite da sua possibilidade financeira estão passíveis de em decorrência de inúmeros fatores da vida cotidiana como perda de renda, desemprego, doença ou morte na família, crise econômica, altos índices de inflação, adentrar no estado de superindividamento.
Assim, em decorrência da não regulamentação normativa do fenômeno social do superendividamento os consumidores são impossibilitados de recuperarem-se financeiramente, ensejando em omissão do Poder Público quanto a garantia de proteção do consumidor prevista na Constituição Federal.
Portanto, nota-se que o atual cenário em que se encontram os consumidores superendividados é de esquecimento, haja vista a inercia do Poder Legislativo quanto a falta de aprovação do projeto de lei 3.515/2015, o qual propõe medidas de prevenção, de educação financeira, de concessão responsável de credito e de repactuação das dívidas por meio de um plano de pagamento, sendo todas necessárias para uma proteção devida aqueles que de boa-fé encontram-se em situação de impossibilidade de solvência de suas dívidas.
É salutar ainda, mediante os ensinamentos de Bauman, observar que o problema gira em torno da sociedade de consumo, de forma que seria necessária que ao mesmo tempo em que se dê a regulamentação, ocorra uma mudança de concepção, fazendo com que os indivíduos consumam de forma mais consciente. Contudo, em face ao exorbitante número de brasileiros acometidos pelo superendividamento a aprovação do projeto de lei nº 3.515/2015 se faz urgente e indispensável.
REFERÊNCIAS
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BARROS, Lúcio Alves de. O hiperconsumo. Revista educação pública. 2009.
BUTELLI, Pedro Henrique; PORTO, Antônio José M. O SUPERENDIVIDADO BRASILEIRO: uma análise introdutória e uma nova base de dados. Revista de direito do consumido. São Paulo: Ed. RT, 2014. vol. 95.
CESAR, Fernanda Moreira. O consumidor superendividado: por uma tutela jurídica à luz do direito civil-constitucional. Revista de direito do consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2007. vol. 63.
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LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Lisboa: edições 70, LDA, Portugal, 2020.
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SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. Cortez, 2014. STJ. Notícias. O fenômeno do superendividamento e seu reflexo na jurisprudência. 2021. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/28022021-O-fenomeno-do-superendividamento-e-seu-reflexo-na-jurisprudencia2.aspx. Acesso em: 02 jun.2021.
[1] Advogada com graduação pela Universidade Salgado de Oliveira, Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura de Pernambuco, mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pela UNIPÊ – Centro Universitário de João Pessoa. E-mail: adv.joana@hotmail.com.
[2] Doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Professora Titular de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito/Mestrado e da Graduação do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ). Email: maria.fernandes@unipe.edu.br