O PROBLEMA DA SUPREMACIA CONSTITUCIONAL EM FACE DOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS INDÍGENAS: UMA ABORDAGEM PLURALISTA

O PROBLEMA DA SUPREMACIA CONSTITUCIONAL EM FACE DOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS INDÍGENAS: UMA ABORDAGEM PLURALISTA

31 de maio de 2023 Off Por Cognitio Juris

THE PROBLEM OF CONSTITUTIONAL SUPREMACY IN THE FACE OF INDIGENOUS LEGAL ORDINANCES: A PLURALIST APPROACH

Artigo submetido em 22 de maio de 2023
Artigo aprovado em 27 de maio de 2023
Artigo publicado em 31 de maio de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 46 – Maio de 2023
ISSN 2236-3009

Autor:
Yury Dutra da Silva[1]

RESUMO

O presente artigo tem como fim abordar o problema da aplicação da ordem constitucional hegemônica, especialmente enquanto parâmetro de controle, aos ordenamentos indígenas, numa perspectiva pluralista e tomando por base o recorte epistemológico moderno de constitucionalismo e seus sustentáculos, a exemplo da força normativa da carta magna, o espírito de constituição e os modelos específicos de hermenêutica voltada às questões próprias desse ramo jurídico central. Intenta-se desvelar, ainda que não definitivamente, pontos de incomensurabilidade e mecanismos eventuais de conexão entre essas ordens jurídicas, respeitando-se a autonomia das construções jurídicas dos povos originários em face do sistema envolvente.

Palavras-chave: Constitucional. Pluralismo. Hermenêutica. Povos Originários.

ABSTRACT

This article aims to address the problem of applying the hegemonic constitutional order, especially as a control parameter, to indigenous orders, in a pluralistic perspective and based on the modern epistemological approach of constitutionalism and its pillars, such as the normative force of the Charter magna, the spirit of constitution and the specific models of hermeneutics focused on the issues of this central legal branch. It is intended to reveal, even if not definitively, points of incommensurability and possible mechanisms of connection between these legal orders, respecting the autonomy of the legal constructions of the original peoples in the face of the surrounding system.

Keywords: Constitutional. Pluralism. Hermeneutics. Indigenous Peoples.

1.     INTRODUÇÃO

A vigente era dos direitos revelou-se pari passu ao que se pode referir, em paráfrase, como a era das constituições. A pretérita ligação decorre, para além das razões históricas de fundo – ora disruptivas, ora evolutivas – de pertinência temática, uma vez que a consolidação estrutural do Direito enquanto sistema jurídico normativamente escalonado e sinergicamente ativo, só foi possível a partir do fortalecimento da força normativa da Constituição. Esta povoando o topo desse ordenamento.

Esse simples fato ilumina o ponto conectivo ao que se pretende tratar neste artigo: a medida da vinculatividade da norma constitucional quanto à normatividade produzida pelos povos tradicionais, especialmente os indígenas. Afinal, a era dos direitos não faz distinção entre grupos; sua vocação é a realização plena dos espíritos, independentemente da cosmologia a que filiados.

Essa distinção cosmológica, que possui matiz cultural, reverberou na forma de dissidência jurídica. Os povos tradicionais, sobretudo a partir de uma linha de entendimento pluralista (Santos, 2014), são legítimos produtores do Direito e possuem uma maneira própria de pensá-lo, bem como instituições idiossincráticas para fazer valer seu compêndio de regras e princípios no mundo dos fatos. Eis o nascedouro de um atroz problema: as antinomias reais entre as normatividades hegemônica e tradicional, aqui retratadas a nível constitucional.

Assim, quando se fala de pluralidade de ordens jurídicas de maneira abstrata e não especificamente atinente a casos de tensão, pode-se incorrer na ingenuidade de que há uma perfeita harmonia entre as estruturas retratadas, que as práticas jurídicas implementadas pelos povos tradicionais podem ser reconhecidas pela ordem hegemônica sem maiores problemas, afinal, representariam meras variações culturais a  serem festejadas e reconhecidas.

Essa posição, aliás, muito embora não encampada expressamente mas não aprofundada pelos pluralistas em geral, descamba no não reconhecimento dos embaraços mais graves a nível de reconhecimento da multiplicidade de sistemas, razão pela qual dedicamos parte importante deste estudo a uma singela tentativa de elucidação sobre esses choques jurídico-culturais e as perspectivas de resolução, à luz de soluções domésticas e também de estirpe internacionalista.

É preciso, outrossim, admitir que este tema, pela enorme vascularidade que possui, finda por dialogar com uma teoria geral de Estado, impossível de ser melhor explorada neste trabalho e que será exemplificativamente abordada quando essencial ao entendimento dos conceitos subjacentes ao de ordenamento jurídico.

O caminho desta análise é o de reconhecimento da Constituição enquanto diploma fundante e legitimador do sistema jurídico brasileiro e, portanto, parâmetro inarredável de controle da ordem normativa total. A partir disso e sob risco de também contra isso, a superação da ideia de que o Estado é o único e absoluto detentor do potencial criador da normatividade, de modo a elucidar a jusdiversidade (Souza Filho, 2021)  existente neste país.

Por fim, a par dessa realidade material, restará uma tentativa inaugural de consolidação de mecanismos e alternativas para a solução de tensões sistêmicas, a fim de superar-se o que se chamará aqui de Monismo Temperado, com sustentáculo não exclusivo em ideias contemporâneas orgulhosamente defendidas pelo constitucionalismo latino-americano, a exemplo da multitudinariedade de povos e plurinacionalidade, que, como dito, inexoravelmente convocará a uma reanálise de postulados conceituais do próprio Estado.

2.     UM LUGAR PARA A CONSTITUIÇÃO

As Constituições ocidentais, como hoje conhecidas, são uma invenção da modernidade intimamente atrelada aos processos revolucionários estadunidense e francês do fim do século XVIII. A concepção inaugurada por essas insurreições, em linhas gerais e não exaustivas, foi a de documento jurídico capaz de limitar os arbítrios do Estado (absolutamente soberano, até então), de organizar suas funções e instituições, assim como entregar direitos aos cidadãos sob sua égide, direitos esses consagrados pela história como fundamentais para uma vida digna (Barroso, 1993).

Esse recorte histórico-epistemológico faz-se necessário, sobretudo em função do retorno temporal que inviabilizaria uma análise mais aprofundada do tema. Isso porque, em acepção ampla, a Constituição pode ser entendida simplesmente como a base jurídica de qualquer sociedade minimamente organizada, de modo que sua existência remontaria a comunidades cujos registros esparsos são objeto próprio da antropologia, muito embora sirvam de substrato incidental à análise jurídica. Em resumo, toda e qualquer sociedade, sob esse prisma, possuiria uma Constituição (Heller, 1969).

Dito isso, é preciso ter em mente que o constitucionalismo moderno atravessou um longo período de assentamento. Foram necessários alguns quartos de século até que a força normativa dessa nova construção jurídica pudesse gozar de todo o prestígio que hoje possui. Durante bastante tempo, e marcadamente durante o século XIX, a era das codificações, cujo ponto de inflexão parece ter sido o Código de Napoleão (Code Civil des Français) de 1804, as linhas mestras da hermenêutica jurídica fincaram-se em primados tipicamente civilistas, como a liberdade contratual, proteção patrimonial, apego à forma e na tentativa de exaurir as situações sociais por meio de previsões legislativas abstratas (Gomes, 1999).

Prosseguindo na marcha temporal, tem-se como bastante sedimentada a noção de que os eventos bélicos mundiais da primeira metade do século XX despertaram a humanidade para a necessidade da formulação de uma nova concepção de sociedade global, fincada em valores protetivos da pessoa como prioridade inafastável, do que exsurgiria a noção de dignidade enquanto predicado inato ao ser humano. Essa retomada do imperativo categórico é conhecida como “viragem kantiana” e marca o reencontro da técnica jurídica com as discussões sobre moral (Barroso, idem), num verdadeiro processo de espiritualização e principialização do Direito (Roxin, 1997).

Então, o desprestígio parcial em que se viram as codificações herméticas – acusadas de embasar as atrocidades perpetradas pelo regime nazista[2] – deu espaço para a ampliação da normatividade e jurisdição constitucionais. Essa visão caricata do sistema jurídico alemão (gezet ist gesetz) e, sobretudo, do positivismo jurídico, serviu bem ao propósito de sustentar as bases para uma novel era constitucional, seu apogeu sócio-político (Valadão, 2022).

Bem antes disso, autores como Kelsen (1998) já punham a Constituição no topo do ordenamento jurídico, sendo certo que a noção de sua superioridade em face dos demais diplomas do sistema de normas não foi criado no pós-guerra. A mudança vivida nas mais recentes décadas operou-se no plano prático, da efetividade dos comandos constitucionais.

Pinto Ferreira (1991) assenta que a ideia de supremacia constitucional e de sua normatividade enquanto parâmetro de controle passou a ser o pilar do moderno direito público. No mesmo sentido é toda a construção teórica de renomados autores como Hesse (1991) e Habermas (2003). Este tecendo as linhas argumentativas de uma “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”, trazendo ao seio da comunidade e de suas naturais discrepâncias ideológicas o mister central de definir o que é Constituição e o que ela diz, intrinsecamente coerente à ideia de povo como titular do poder constituinte; aquele, numa luta positivista (este termo demonizado na doutrina brasileira, equivocadamente a nosso ver), projetando em linhas teóricas as razões para a consideração e respeito da normatividade constitucional, porquanto topo rígido.

Das ideias desses autores e de seus predecessores, a exemplo de Lassalle (2001), ecoaram alguns conceitos extremamente caros ao intérprete contemporâneo da Constituição, a exemplo da vontade de constituição (elemento anímico, villu sua verfassung), sentimento constitucional (elemento psico-sociológico) e força normativa da mesma. Trata-se de conceitos fundantes das práticas hodiernas nessa seara. A partir do engajamento social, da assimilação pelas pessoas postas sob a égide de determinada constelação de normas,  no sentido de que a Constituição deve ser cumprida exemplarmente, é que se constrói uma percepção geral de supremacia constitucional, amplamente solidificada na prática brasileira.

Esse sentimento generalizado, porém, traz consigo algumas consequências que não devem ser menosprezadas. A primeira delas é que, enquanto vigente, é a própria Constituição que descreve o processo de sua mutação formal. Isso possui uma repercussão prática importante, uma vez que a normatividade jurídico-constitucional derivada é ainda mais formalista que a originária, na medida que expedida diretamente pela força estatal, em sua faceta legiferante.

O segundo ponto a ser levado em cálculo é o de que a normatividade oficial é produto do Estado e, ainda que se fale em uma ampla participação social na confecção da norma constitucional originária[3] brasileira, trata-se de produto de poder de fato (natureza do poder constituinte) providenciado por representantes da estrutura do Estado oficial. O “We the People” serviu, nos EUA, ao fim de disseminar a noção de que o povo possuía alguma ingerência sobre o texto produzido, quando não era a realidade prática. No Brasil, o preâmbulo da Constituição faz menção expressa aos parlamentares[4] reunidos na condição de representantes do Povo, sendo os mesmos prévios servidores (lata acepção) pertencentes aos quadros da máquina burocrática estatal.

A alegação de ser um representante do povo, pura e simples, não confere materialidade à afirmação. A representatividade factual, ou sua ausência, tem sido amplamente discutida no Brasil, e mais recentemente foi objeto de Emenda (EC nº 97/2017), ao que se seguiu a criação das Federações Partidárias, inseridas no ordenamento por meio da Lei Ordinária Federal nº 14.208/2021.

Esse vácuo entre o eleitorado, real detentor (parcial, pois não engloba todos do povo) do poder constituinte originário, com força latente e contínua, e seus representantes políticos, comunica-se amplamente com o debate do conflito dos ordenamentos jurídicos, na medida em que as comunidades tradicionais pouco ou em nada veem-se representadas nas arenas de produção legislativa e executiva. Essa discrepância democrática, vai na contramão absoluta da viabilidade de presunção de uniformidade nacional em todo o território brasileiro, tese que foi abraçada pelo Supremo Tribunal Federal em caso paradigmático (Raposa do Sol[5]).

Também é importante asseverar que, por sua natureza peculiar, o sistema constitucional possui lógica funcional própria, de modo que sua hermenêutica também seguirá tendências particulares, vinculando o intérprete da Constituição, seja ele formal ou inserido na comunidade aberta.

Portanto, não restam dúvidas de que a ordem constitucional brasileira goza de lugar privilegiado no topo da “pirâmide normativa”. Isso, contudo, não garante de forma alguma que a mesma tenha sido produzida tendo em consideração todos os grupos sobre os quais recaia e, mais precisamente, as normas e instituições produzidas pelas diversas comunidades que povoam e constroem a abstração alcunhada de brasileiro.

O lugar da Constituição, segundo essa abstração, encontra-se muito bem definido, mas provavelmente precisa ser rediscutido quando levada em conta as idiossincrasias portadas pelos diferentes povos que construíram e formam o Brasil. A mera presunção de uniformidade étnico-sócio-política que, séculos atrás, serviu ao fim da formação dos Estados Nacionais, não atende à realidade materializada pelas diferentes noções de mundo, constelações de valores e instituições erigidas pelos mais diversos e ricos povoamentos, ajuntamentos e comunidades tradicionalmente fincadas em território brasileiro.

3.     SOBRE O PLURALISMO JURÍDICO, SUAS TENSÕES E A NOÇÃO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE OCIDENTAL

Na filosofia, Pluralismo é a noção metafísica de que o compêndio de individualidades — elementos —, ao se relacionarem, formam a totalidade universal (Rezende, 2010). Assim funcionariam as coisas para os pluralistas como Anaxágoras e Empédocles, por exemplo. Já vê-se por aqui que essa corrente estimula e valoriza as individualidades, ainda que num contexto de coesão geral.

No campo da sociologia, também é comezinha a noção de que as complexidades interativas, manifesas no bojo das múltiplas comunidades, revela-se, em alguma medida, como derivação de uma pluralidade de idiossincrasias. O pluralismo biológico, outrossim, deu forma à vastidão de formas de vida no planeta Terra; o religioso, às inúmeras cosmologias que espiritualizam a experiência social. A política, por sua vez, dialoga organicamente com o conceito em questão, sendo típica de sua dialética o confronto entre perspectivas distintas, plúrimas, portanto.

Nesse sentido, o pluralismo parece intimamente ligado ao sistema democrático, porém esse liame sofre uma série de tensões decorrentes dos conflitos naturais entre grupos de uma sociedade e um deles dá-se na seara jurídica, sendo o objeto central deste estudo. Mas, ainda sobre o dito, é preciso ter em conta (sem se adentrar ao caráter historicamente excludente das decisões democráticas) que essa prática política (por nós, comumente entendida como regime de governo, precipuamente alcunhada de forma de governo por Platão[6]) é voltada à resolução de questões nascidas no bojo da condução da efervescência da cidade, ou, melhor dizendo, da polis, sendo difícil afirmar que a etiologia desse constructo paute-se no acolhimento da diferença mais do que na vocação utilitarista que revela.

Por aqui, aborda-se um pluralismo interno, que tenta divorciar-se da lógica de produção da normatividade exclusivamente a partir do Estado. Será feita a análise de sua estrutura conceitual, fundamentos e adequabilidade ou não à ordem jurídica brasileira, bem como propostas alternativas epistemológicas superadoras acaso existentes.

Dito isso, pensa-se ser bastante seguro afirmar que, talvez ironicamente, o precursor de uma teorização pluralista mais robusta no Brasil, sobretudo a partir dos anos setenta, foi um estudioso português. Boaventura publicou seu memorável “Direito de Pasárgada” ao finalizar seus trabalhos de campo, iniciados em 1970, na Favela do Jacarezinho (referenciada como a Pasárgada de Manuel Bandeira[7]). Discutia-se a legitimidade da ordem jurídica periférica, produzida pelas comunidades flageladas economicamente e postas residir, interagir, sociabilizar e produzir em ambiente quase inalcançado pelas mãos do Estado executivo.

Até aquele momento, parecíamos beber da fonte iluminista, liberal e contratualista cristalizada séculos antes quanto à lidimidade do Estado como o único e absoluto produtor de normas jurídicas, sentinela da ordem social. A legitimidade contratual do ente político convocaria o nascido Leviatã à aplicação da justiça, à imposição da ordem e libertaria os homens da prisão de sua própria natureza: desviante em sociedade, podendo ser lida como naturalmente pecaminosa ou inocente.

Essa era a imagem prevalecente do Estado (ente necessário), muito embora com variações mais ou menos em prol ou não de sistemas democráticos, com maior ou menor ingerência econômica, dentre outras discussões derivadas a respeito de sistemas e regimes de governo e formas de Estado, mas jamais sobre a produção em si da norma: esta era produto do Estado e se questionava sobre isso tanto quanto sobre o fato de o céu escurecer antes de uma chuva.

Nenhum dos integrantes da tríade contratualista, porém, chegou a ver a aurora das revoluções do fim do século XVIII e organizar suas ideias com base em uma teorização do que hoje se alcunha direitos de segunda dimensão (prestacionais). Durante o citado centenário e o anterior, prevalecia (na Europa, não custa lembrar) uma noção de direitos humanos (do homem) de cariz jusnaturalista, com ensaios bem anteriores de direitos de abstenção, consagrados particularmente na prática constitucional inglesa.

Contudo, os direitos fundamentais no formato corrente – fazendo-se aqui livre tráfego entre as aplicações interna e externa: “fundamentais” e “humanos” – ainda não estavam perto de consolidarem-se, sobretudo em sua versão igualitária, que ainda precisaria de uma nova viragem constitucional, fomentada pela agressividade do capitalismo, para ver-se em termos positivos.

Essa evidente lacuna é um dos elementos fundamentais, a nosso sentir, em países periféricos, propiciadores do surgimento natural de ordens paralelas. Regiões abandonadas pelo braço do Estado, com IDH diminuto e fortemente assoladas por mazelas sociais, tendem a estabelecer lógicas próprias de funcionamento, como decorrência de uma necessidade funcional mínima, ainda que dissonante do sistema jurídico oficial. Esse não é o único fundamento do pluralismo, porém.

No âmbito dos povos tradicionais, são, sobretudo, os processos histórico-culturais distintos dos comungados pela sociedade envolvente o fator aglutinante das suas idiossincrasias jurídicas. Sua lógica funcional, desde o berço, é distinta da hegemônica, o que descamba no erigir de instituições e regulamentos sociais particulares, muitos das quais, sendo os que mais nos interessam por aqui, incompatíveis com a normatividade constitucional.

Para que se compreenda o pluralismo em sua essência, é preciso  que haja o resgate de algumas lições de Bobbio (ano). A primeira delas é a de que a normação não existe isoladamente, estando sempre inserida em um contexto relacional envolvendo outras normas (muito embora seja teoricamente possível um ordenamento mono normativo, mas essa é outra questão). O contexto é o ordenamento, o plexo, a nomodinâmica kelseniana.

A juridicidade dessa norma, não em termos de legitimidade, mas de factualidade, é atestada pela garantia de sua execução por meio de uma modelo sancionatório institucionalizado. Essa não é a única forma de enxergar os ordenamentos ou as normas jurídicas e autores como Hart (1994), caminham por argumentos positivistas diferentes, mas se trata de uma noção dificilmente alijada pela realidade material: a norma é juridicamente relevante quando posta em prática (possui grau mínimo de eficácia), inserida num contexto de diretrizes comportamentais vinculantes, substancialmente assimiladas pela psique social e garantidas por um sistema sancionatório de fundo.

É preciso fazer ressalvas de que se trata de uma redução do pensamento de Bobbio, que refina a ideia de força com o de regra com eficácia reforçada. Portanto, a força, a coação, é fator necessário ao exercício do poder – e à vinculação normativa é exercício de potência -, mas não serve ao fim de justificá-lo, cabendo muito mais ao consenso esse papel.

Esses elementos podem ser vislumbrados nitidamente no âmbito das comunidades tradicionais e não poderia ser diferente. Sua existência remota, bioculturalidade intrínseca e processos culturais autônomos, produziram normas com força cogente e ampla aplicabilidade em seu bojo, garantidas por uma coação de fundo e implementadas por meio do funcionamento de instituições peculiares.

Ocorre que o reconhecimento simples dos ordenamentos paralelos não responde à questão da forma de comunicação. Se imaginarmos, por exemplo, que existe realmente um ordenamento indígena (melhor seria dizer “ordenamentos indígenas”), sem adentrar a complexidade das variadas etnias que compõem esse grande grupo[8], precisa ele bastar-se em si mesmo, sob pena de não se dissociar do ordenamento da sociedade envolvente.

A Constituição em vigor, dogmática que é, reverbera o espírito de um momento histórico e os seus valores subjacentes. Em 1988 superavam-se ainda as máculas do período ditatorial que vigorou de 1964 a 1985. Havia, portanto, um claro interesse em garantir que o passado imediato não se reprisasse, por meio do estabelecimento de firmes e notáveis garantias fundamentais, que não mais passariam ao largo das conquistas humanitárias do pós-Segunda Guerra.

Para os povos indígenas, a propósito, na marcha histórica de cíclicos massacres, o lapso da mais recente ditadura militar (fenomenologia essa não isolada no Cone Sul das américas) marcou mais um genocídio desses grupos. Ao que parece, é inegável que a generalização mais imediatamente possível é a que assenta o traço comum da tragicidade experienciada por praticamente todas as comunidades indígenas que habitaram o Brasil desde sua colonização no Séc. XVI (Pereira, 2017).

A ordem vigente, mais do que não albergar as comunidades tradicionais, parece rechaçá-las na forma de discriminação institucional, que torna mais gritante o reconhecimento de seus próprios ordenamentos materiais e jurídicos.

Dito isso, é preciso estabelecer o modelo relacional entre a ordem “oficial” e a dessas comunidades (recorramos a uma abstração de uma ordem paralela unívoca). Desse modo, se o ordenamento indígena for lido enquanto autônomo, sendo o que pretendem as diversas teses citadas ao longo deste escrito, então não pode essa ordem jurídica se submeter a nenhuma outra que não a sua própria constituição (lata acepção). O caso contrário representaria basicamente um Monismo Temperado, é dizer, chamamos de ordenamento indígena o que, em verdade, seria única e exclusivamente um conjunto de práticas jurídicas ou quase jurídicas autorizadas pelo sistema constitucional da sociedade hegemônica, o que não traz grandes imbróglios até que cenários limítrofes sejam encarados, como os que dialogam com posturas culturais que, na leitura ocidental, representam ofensas a direitos fundamentais[9].

Esse raciocínio, simples em essência, desata um cenário de difícil aceitação para a sociedade envolvente:  um em que algumas práticas dos povos tradicionais, muito embora contrárias ao sistema valorativo da CRFB/88, devem ser respeitadas. Diga-se, mesmo as contrariações mais saltantes aos olhos. Este ainda é o primeiro cenário.

Já por agora, é preciso dizer que a maior parte das variações que divirjam dessa conclusão evidente, parecem remeter a sistemas monistas, mais ou meno rigorosos, a depender do nível de aceitação das práticas divergentes.

O segundo modelo relacional é o que pertence à reminiscência histórica, atinente ao período de tentativa de integração à comunhão nacional e de desrespeito aos modos de vida desses povos. Em verdade, não se trata sequer de modelo interativo, mas de simples dominação político-jurídica e, por essas razões, não se fazem necessários maiores comentários.

Considerada a perspectiva pluralista, uma terceira forma de relacionamento é a que, deferindo certo grau de autonomia a esses outros ordenamentos, limita sua legitimidade às balizas da norma de topo vigente no âmbito da sociedade hegemônica. Em termos mais simples, a Constituição da República será o parâmetro de controle de validade dessas ordens paralelas.

Essa terceira solução soa-nos como um mero monismo. É que, sem a existência de uma norma de topo própria, o que se tem é ainda um único sistema, cuja coerência e harmonia internas são garantidas pelo mesmo diploma. Há apenas, dentro de uma espraiamento multicultural, a aceitação de idiossincrasias não desafiadoras, comportamentos destoantes mas que se encontram dentro do espectro de aceitabilidade, práticas jurídicas submissas à CRFB/88.

Na maior parte dos casos, essa terceira via, que em nada nos parece com um pluralismo material, é a adotada pelo intérprete do Direito. Nesse campo particular de incursão, não o Direito, mas sim a Antropologia Jurídica produz uma melhor tentativa de resposta etiológica. Crê-se que esse modelo interpretativo pode ser compreendido segundo o clássico confronto Malinowski Vs. Brown, que se situa no âmbito das estruturas de leitura de mundo do intérprete.

Em linhas bastante apertadas, o estudioso, quando volta seus olhos às práticas de outros povos o faz com as lentes conferidas por sua formação, que envolvem variáveis eventualmente inexistentes, desnecessárias ou contrárias às que formam o indivíduo e a comunidade sob observação. A divergência entre os citados antropólogos é exatamente quanto à possibilidade ou não de um estudo sobre essas outras culturas vir a gozar do rigor necessário a uma análise realmente científica[10].

Os que se filiam ao Pluralismo partem, em geral, da premissa de que é possível tecer considerações objetivas sobre práticas culturais distintas das do observador. Em alguma medida, boa parte da cientificidade da Antropologia depende dessa crença, outro elemento estruturante do processo científico, como já demonstrado por Kuhn (1998). O comprometimento dessa objetividade é vislumbrado exatamente nos momentos em que a autonomia pregada pelo pluralismo é posta em xeque com base em uma valoração nitidamente hegemônica dos fatos. É o que acontece quando abordamos o machismo nas culturas indígenas, o infanticídio, os rituais lesionantes, dentre outras práticas destoantes da leitura de Constituição envolvente.

Adotado esse perfil monístico temperado, a Constituição prevalecente será, sem maiores entraves jurídicos, o parâmetro máximo de validade da norma indígena. Não há dúvidas quanto a isso, sendo que os desdobramentos mais desafiadores serão muito mais de ordem processual do que material. A esse respeito, cita-se a discussão sobre a premência do nascer de uma jurisdição indígena no Brasil, a exemplo de outros países latinos como a Bolívia e a Colômbia.

A agridoce resolução é a de que o Pluralismo representa uma visão dos fatos reoxigenadora, mas que, apesar disso, encontra dificuldades homéricas para justificar-se sob o ponto de vista da técnica jurídica consolidada. Nesses sentido, talvez fosse melhor simplesmente chamarmos tal tese, assim como a jusdiversidade, do que alcunhamos de Monismo Temperado.

Toda a noção de controle de constitucionalidade, supremacia constitucional e seus postulados, mobiliza os vetores interpretativos para o reconhecimento de uma mesma ordem jurídica. A real discussão sobre um pluralismo apenas nos parece possível por meio de uma redescoberta dos postulados centrais do conceito de Estado, o que não caberá nestas linhas.

Por ora, ofertamos uma quarta via, a internacionalista. Isso porque no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a independência dos Estados não é malferida pelo reconhecimento de valores limitativos situados fora dos termos das respectivas constituições, que foram denominados de jus cogens.

Reconhecendo a comunidade internacional que todos os países se submetem ao mesmo jus cogens, ainda assim não restará desfigurada a natureza de ordenamentos independentes de cada um deles. Portanto, a solução pluralista ao choque de sistemas tratado ao longo deste texto, não deverá ser solucionada nos termos de um clássico controle de constitucionalidade, mas sim no de juridicidade internacional, sendo o que parece a melhor opção para a garantia de que realmente exista, no mesmo território, mais de um ordenamento jurídico em vigor, como produto do reconhecimento da multiplicidade de identidades e culturas formadoras do Brasil.

Essa mesma solução serviria ao fim de resolver as discussões clássicas citadas (infanticídio, lesões ritualísticas etc.), sem configurar incursão indelével ao campo de autonomia desses povos. É preciso dizer, outrossim, que algumas consequências interessantes adviriam dessa abordagem, sendo uma delas o reconhecimento dessas comunidades como sujeitos de direito internacional.

4.     CONCLUSÕES

Neste breve espaço de desenvolvimento, o principal desfecho é que a resolução acerca da relevância de um pluralismo jurídico enquanto teoria com real aplicabilidade prática dependerá de diversos estudos derivados e de um esforço contínuo em prol do entendimento do diferente, eis o principal desafio.

Ademais, restou claro que a maior parte das abordagens pluralistas finda por descaracterizá-lo na forma de um monismo com temperamentos. O Controle de Constitucionalidade típico sobre a ordem jurídica indígena ou, melhor dizendo, sobre as ordens indígenas, resultará em um monismo claro e indiscutível.

No atual nível consolidado da teoria dos ordenamentos e do Estado, parece relativamente seguro dizer que a solução internacionalista é a mais adequada ao não desrespeito à autonomia dos povos tradicionais, bem como ao arrefecimento do ímpeto da sociedade envolvente de controlar, a partir de seus valores, as normas e práticas de povos com processos histórico-culturais autônomos e antecedentes e, por isso mesmo, absolutamente merecedores de respeito e deferência.

REFERÊNCIAS

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SOUZA FILHO, C. M. de. (2021). Jusdiversidade. Revista Videre, 13(26), 08–30.


[1] Analista jurídico no MPAM. Mestrando do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela UniBras. Bacharel em Direito pela UEA.

[2] é importante destacar que a Constituição de Weimar jamais fora formalmente revogada durante o período de exceção nazista. Teóricos como Carl Schmitt, apesar disso, chegaram a propor que a força constitucional derivaria da vontade do próprio Fuhrer, sendo sua vontade o próprio fundamento de validade da ordem jurídica (Valadão, 2022)

[3] Afirmação rebatida por doutrina especializada (Carvalho, 2009) e evidenciada por alguns exemplos de baixa repercussão prática no texto oficial, como ocorreu com os indígenas.

[4] É possível acessar a listagem dos 512 deputados constituintes em <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/deputados-constituintes>. Acesso em 20 de março de 2023.

[5] Reclamação nº 2.833-0/RR e Petição nº 3.388-4/RR

[6] Vide A República, do mesmo autor.

[7] Trata-se da cidade ideal citada em “Vou-me embora pra Pasárgada”, poema escrito por Manuel Bandeira e publicado no livro Libertinagem de 1930.

[8] Dados ainda de 2010 (IBGE) apontavam a existência de cerca de  novecentas mil pessoas identificadas como indígenas vivendo no território brasileiro. Esse número, que congrega uma ampla gama de formações culturais, bem como diferentes maneiras de enxergar o meio ambiente,  alberga aproximadamente 305 (trezentas e cinco) etnias e 274 (duzentas e setenta e quatro) línguas faladas por esses povos.

[9] Há casos clássicos de práticas indígenas contestadas pela sociedade envolvente, a exemplo do infanticídio e do Ritual das Tucandeiras, mas que não são aprofundados neste momento porquanto se pretende abordagem abstrata a nível de análise de sistemas.

[10] Radcliffe-Brown (1933), ainda no uso da terminologia “sociedades primitivas”, acreditava que algumas delas sequer poderiam construir um Direito, por lhes faltar grau mínimo de organização política, o que nos parece uma afirmação equivocada, por todos os motivos já expostos ao longo do texto.