O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NOS CASOS DE (OVER)SHARENTING: O PAPEL PREVENTIVO DA REDE DE PROTEÇÃO NO CENÁRIO JURÍDICO BRASILEIRO
20 de setembro de 2023THE PRINCIPLE OF THE BEST INTEREST OF THE CHILD AND ADOLESCENT IN CASES OF (OVER)SHARENTING: THE PREVENTIVE ROLE OF THE PROTECTION NETWORK IN THE BRAZILIAN LEGAL SCENARIO
Artigo submetido em 12 de setembro de 2023
Artigo aprovado em 17 de setembro de 2023
Artigo publicado em 20 de setembro de 2023
Cognitio Juris Ano XIII – Número 49 – Setembro de 2023 ISSN 2236-3009 |
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RESUMO: “Sharenting” é o nome dado ao fênomeno surgido na contemporaneidade vinculado à (super) exposição de crianças e adolescentes em redes virtuais por pais e responsáveis legais. O presente artigo realiza análise acerca da atuação perante esses casos da rede de proteção à criança e ao adolescente à luz da doutrina da proteção integral, objetivando evitar a exasperação dos danos psicológicos causados em razão da prática e prevenir sua ocorrência. Para tanto, reconhecida a importância da atuação dos equipamentos da rede em casos de violação de direitos, direciona-se debate destinado a salvaguardar crianças e adolescentes atingidos por meio de sua efetiva atuação. Pretende-se reunir elementos destinados a demonstrar a necessidade e a importância da utilização de viés protetivo perante casos de sharenting, especialmente por meio de criação de políticas públicas para tal finalidade, isso tudo por meio de pesquisa bibliográfica baseada no método hipotético-dedutivo.
Palavras-chave: Direito da infância e adolescência. Sharenting. Proteção integral. Violação de direitos. Rede de proteção.
ABSTRACT: “Sharenting” is the term given to the contemporary phenomenon linked to the (over)exposure of children and adolescents on virtual networks by parents and legal guardians. This article conducts an analysis regarding the performance of the child and adolescent protection network in the light of the doctrine of integral protection in these cases, with the aim of avoiding the exacerbation of psychological harm caused due to the practice and preventing its occurrence. Therefore, recognizing the importance of the network’s entities in cases of rights violations, the discussion is directed towards safeguarding children and adolescents affected through effective intervention. It is intended to bring together elements to demonstrate the need and importance of using a protective bias in cases of sharenting, especially through the creation of public policies for this purpose, all through bibliographical research based on the hypothetical-deductive method.
Keywords: Childhood and adolescence rights. Sharenting. Integral protection. Exposure. Rights violation. Protection network.
1. INTRODUÇÃO
A partir da constante evolução das mídias sociais e da constatação do aumento de casos de exposição de crianças e adolescentes na rede mundial de computadores, a geração mais observada de toda história (Shmueli; Blecher; Prigat, 2022, p. 265) passou a sofrer com os efeitos do fenômeno denominado sharenting, isto é, a postagem de informações, imagens e demais dados pessoais dos tutelados no espaço virtual por pais ou responsáveis legais.
A controvérsia, pelo menos na atual conjuntura, ganha contornos cada vez mais assinalados com o progresso das redes sociais e da superexposição de dados pessoais em ambiente virtual. Nesse viés, considerando que a exposição se vincula e também se contrapõe aos direitos amplamente garantidos a crianças e adolescentes, torna-se possível perceber a existência de um problema a ser debatido, permeado por discussões que buscam encontrar equilíbrio entre o exercício do direito de liberdade de expressão por parte dos pais, muitas vezes exercido de modo disfuncional, e o resguardo de crianças e adolescentes em razão do princípio da proteção integral, evitando assim que tenham seus direitos fundamentais, previstos por mandamento constitucional, violados.
Necessário colocar o foco sobre referida questão com o objetivo de se contribuir para o debate jurídico e social que se desenvolve diante da contemporaneidade da matéria, reunindo, em viés transdisciplinar e panorâmico, apontamentos que possibilitem o aprimoramento da atuação da rede de proteção à criança e ao adolescente em face de tais casos, não apenas perante violações de direitos constatadas como também em caráter preventivo.
Em que pese a hodiernidade da discussão, uma das principais questões levantadas a respeito da temática gira em torno de quais são os limites do exercício da autoridade parental no que se refere à exposição virtual de dados pessoais de crianças e adolescentes, com base na necessidade de adesão ao direito de liberdade de expressão dos pais em detrimento dos interesses relativos à privacidade dos tutelados.
Tendo em vista a expressiva quantidade de informações disponíveis eletronicamente e o pouco controle acerca das formas de utilização de tais dados após publicação, encaminha-se a debate jurídico relevante vinculado ao mau uso e à utilização não autorizada das imagens.
De acordo com artigo publicado pelo Instituto de Referência em Internet e Sociedade – IRIS(2021) e relatório divulgado pela UNICEF(2017), dados angariados em pesquisa realizada no ano de 2010 revelaram que 81% das crianças com idade entre 2 e 10 anos completos, residentes em países de alta renda como Austrália, Canadá, França, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos, possuíam digital footprint (“pegada digital”), notadamente em razão de que imagens suas haviam sido publicizadas em alguma rede social pelos pais e responsáveis ou por terceiros com a autorização destes.
Além disso, em razão da realidade pós-moderna[3], percebe-se que com o avançar da idade e aquisição de também crescente discernimento, crianças e adolescentes passaram a igualmente fazer uso da rede, para os mais variados fins.
De acordo com pesquisa realizada anualmente pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade de Informação – Cetic.br (2022), os dados indicaram que 92% da população brasileira entre 9 e 17 anos de idade utilizou a internet de modo frequente, condição que mantém o holofote sobre a matéria.
Assim, o debate parte da análise de como é realizada e no que se baseia a atuação da rede de proteção à criança e ao adolescente perante casos de superexposição e de exibição indevida de dados, tendo como premissa o papel a ser desempenhado pelos referidos órgãos em observância à doutrina da proteção integral e ao princípio do melhor interesse, a partir da contribuição prática e/ou estatística de casos precedentes, especialmente no que se refere às políticas públicas de viés pedagógico e não punitivista.
Ademais, a atuação da rede de proteção à criança e ao adolescente perante casos de (over)sharenting é objeto de amplificada análise no terceiro tópico do presente artigo, objetivando evitar a exasperação dos danos psicológicos causados em razão da prática e prevenir a sua ocorrência diante do comportamento consciente dos genitores, fundamentalmente baseado no dever de cuidado, lançando luz sobre a atuação em razão do defloramento da parentalidade responsável, considerando que a mera previsão de direitos não é efetiva se desacompanhada de formas que permitam sua concretização.
Desse modo, por meio dos recursos disponibilizados pela análise da doutrina protetiva, bem como pela exploração bibliográfica de artigos, livros científicos e matérias jornalísticas sobre o tema, realiza-se análise comparativa e dialética dos pensamentos de diversos estudiosos sobre o assunto, voltando-se à ótica dos direitos humanos e sua correlação com vivências suportadas por crianças e adolescentes que se encontram inseridos em cenário favorável à ocorrência de condutas de sharenting.
Para tanto, utiliza-se de abordagem hipotética-dedutiva, em razão de serem as discussões travadas a respeito do tema baseadas na doutrina da proteção integral da criança e do adolescente. Destaca-se o suporte proporcionado por autores como Válter Kenji Ishida, Paulo Henrique Aranda Fuller e Tânia da Silva Pereira.
Assim, sem se escusar do aspecto funcional, trata-se, com base nos ditames da proteção integral, sobre qual é o papel da rede de proteção de crianças e adolescentes vítimas de (over)sharenting, isso com o objetivo de prevenir e amenizar danos decorrentes da prática, bem como sugerir incremento na atuação estatal por meio da formulação de programas de capacitação dos órgãos diretamente envolvidos, especialmente visando ação no combate à desinformação que envolve o tema, repassando orientações acerca dos limites da autoridade parental e dos deveres decorrentes do poder familiar.
2. Sharenting, liberdade de expressão e privacidade
De acordo com Eberlin (2017, p. 255-273), sharenting é “uma expressão da Língua Inglesa que decorre da união das palavras ‘share’ (compartilhar) e ‘parenting’ (cuidar, no sentido de exercer o poder familiar)”, consistindo, assim, conforme Medon (2022, p. 265-298) “no hábito de pais ou responsáveis legais postarem informações, fotos e dados em aplicações de internet”.
Tal espécie de compartilhamento de informações, na visão de Steinberg, decorre da evolução do modo pelo qual estabelecemos nossas relações atualmente, “sobremaneira que legítima a vontade dos pais e responsáveis em registrar, por meio de postagens, as próprias histórias de vida, da qual os filhos são, naturalmente, um elemento central” (2017, p. 839-884).
Todavia, conforme Berti e Fachin, o fenômeno é potencializado pela Era Digital, caracterizada pela presença das mais variadas tecnologias no dia a dia das pessoas, o que se observa no compartilhamento excessivo e irresponsável de imagens, mas também, eventualmente, de dados e informações por parte dos pais acerca de seus filhos (2021, p. 95-113).
Assim, na contemporaneidade, por se tratar de matéria tenra ao campo jurídico e da necessidade de sistematização de casos cada vez mais frequentes, vertentes trazidas são objetos de discussão constante.
Conforme refere Eberlin, diante da expressiva quantidade de informações disponíveis na rede mundial de computadores e as possíveis formas de utilização desses dados, o tema é conduzido a “debates importantes ligados à privacidade, ao mau uso (ou ao uso não autorizado) de dados e à liberdade de expressão”, uma vez que “os dados pessoais das crianças que são inseridos na rede mundial de computadores ao longo dos anos e que lá permanecem podem ser acessados muito tempo posteriormente à publicação” (2017, p. 255-273), inclusive, sabe-se bem, por terceiros mal intencionados.
Desse modo, percebe-se que o fenômeno não tem passado despercebido dos olhares atentos de juristas e também de profissionais da área da saúde mental, em especial diante das decorrências envolvidas. Nesse aspecto, de acordo com Steinberg (2017, p. 839-884), as informações compartilhadas pelos pais podem causar impactos cujos efeitos são propagados desde a infância até a vida adulta, bem como expor crianças a constrangimentos em razão das histórias, fotografias e comentários divulgados na internet que possam ser considerados embaraçosos. Já na visão de Medon (2022, p. 269), trata-se de “exercício disfuncional da liberdade de expressão e da autoridade parental dos genitores, que acabam, com frequência, minando direitos da personalidade de seus filhos nas redes sociais”.
Incrementando o debate, Eberlin (2017, p. 255-273) destaca também que o sharenting é relacionado a casos em que pais fazem a gestão da vida digital de seus filhos na internet a partir do momento em que criam perfis em nome das crianças e postam, constantemente, informações sobre sua rotina, muitas vezes antes mesmo do nascimento.
Assim, percebe-se que além de atuarem no exercício da própria intimidade, pais e responsáveis legais também o fazem com a privacidade familiar em geral, incluindo seus filhos, o que pode acarretar resultados cada vez mais danosos. Dessa maneira, para referido autor, a exposição exagerada de informações “pode representar ameaça à intimidade, vida privada e direito à imagem das crianças, interesses estes que são expressamente protegidos pelo art. 100, V, da Lei n. 8.069/1.990” (2017, p. 255-273).
Nesse mesmo sentido, Medon (2022, p. 272) entende ainda que “a preocupação a respeito do tema, importa pontuar, não tem por objetivo estimular intromissões desmensuradas no seio familiar ou censurar o discurso dos pais, reduzindo a liberdade de expressão”, mas sim o objetivo é a “prevenção e a repressão a danos que são causados a essas pessoas humanas em desenvolvimento”.
No mesmo cenário, para Rettore e Borges e Silva (2016, p. 38), ser sujeito de direito em ordenamento jurídico voltado à promoção do indivíduo conforme o grau de vulnerabilidade que apresenta “significa ter sua personalidade – encarada como o conjunto de atributos essenciais aos seres humanos – ocupando posição central no ordenamento jurídico e sendo alvo de tutela especial e prioritária”.
Nesse contexto, Veronese e Wagner destacam que “a preocupação reside no fato de não existir uma efetiva exclusão desse dado pessoal. Para as crianças, isso significa que as decisões tomadas por seus pais resultarão em um registro inapagável” (2022, p. 78), ao tempo em que de acordo com Steinberg, “é fato que as crianças não possuem controle sobre sua própria pegada digital” (2017, p. 839-884), deixando assim claro que as decisões adotadas por pais e responsáveis legais poderão ecoar consequências até a vida adulta.
Para exemplificar o tema debatido, cita-se caso em que em uma tarde em uma estação de esqui, após praticar o esporte junto da filha Apple Martin, a atriz norte americana Gwyneth Paltrow, aparentemente feliz com a atividade realizada, postou uma foto em seu perfil no Instagram (@gwynethpaltrow, 2023)com o objetivo de registrar o momento. Todavia, conforme a repercussão do gesto demonstrou, a foto, que mostra mãe e filha com roupas de frio e Apple fazendo uso de capacete e uma grande viseira colorida, não foi bem recebida pela então adolescente, que chegou a questionar Gwyneth em um comentário no post sobre o motivo de ter publicado a imagem sem pedir seu consentimento.
O fato acima é ilustrativo de como são cada vez mais recorrentes situações em que crianças e adolescentes são submetidos a episódios de violação de direitos em razão da conduta de pais e responsáveis legais. Dados obtidos em recente pesquisa realizada com mais de 500 pais brasileiros pela empresa Avast Software (AVAST SOFTWARE, 2023) registrou que 33% dos entrevistados já haviam publicado uma foto do filho menor de idade nas mídias sociais, sem pedir permissão e sem cobrir o rosto da criança antes de publicá-la. Além disso, a pesquisa também questionou a respeito dos perigos atrelados ao compartilhamento, quando então 60% dos pais brasileiros destacaram possuir receio de que as imagens fossem compartilhadas além das conexões familiares e amizades e chegassem na mão de estranhos, ao tempo em que para 63% dos genitores o maior receio é de que as crianças fossem vistas ou contatadas por abusadores sexuais.
Nada obstante, ainda que em primeiro momento a prática pareça inofensiva e adequada, o costume passou a ser encarado negativamente em razão do compartilhamento desmedido dos dados, o que geraria superexposição gradativa e violadora de direitos. Assim, tal hábito passou a rivalizar com a concepção protetiva que os ordenamentos jurídicos de modo geral têm sobre crianças e adolescentes, considerados por lei pessoas em desenvolvimento.
Para incrementar o argumento, em pesquisa levada a efeito pela organização The Parent Zone a pedido da revista britânica Nominet (NOMINET UK, 2015) dois mil entrevistados indicaram que, entre o nascimento e os 5 anos de idade, postaram em média 973 fotos dos filhos em redes sociais, tudo ao tempo em que 17% dos responsáveis disseram jamais ter se certificado acerca das configurações de privacidade da plataforma utilizada e outros 46% relataram ter feito a checagem apenas uma ou duas vezes.
A atualidade da questão também pode ser medida por casos que repercutiram em nível nacional, como o do garoto Nissim Ourfali, que em 2012 sofreu com as consequências de ter um vídeo de seu Bar Mitzvah viralizado com uma versão da música “What makes you beautiful”, da boyband londrina One Direction, isso após a gravação ser disponibilizada na rede pelo genitor.
O caso foi levado até o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que em 2016 determinou que a empresa Google removesse de seus servidores todos os vídeos que mostravam Nissim ao som da música, inclusive sátiras e paródias criadas a partir das falas do menino judeu.
No mesmo panorama, também foi objeto de recente debate a condição da garota “Bel”, de 13 anos, dona de um canal no Youtube com mais de 7 milhões de inscritos (Bel, Youtube, 2023), onde vídeos publicados (e agora excluídos) a mostravam submetida pela genitora “Fran” a supostos maus-tratos.
De acordo com matérias jornalísticas existentes sobre o caso (Mandelli, 2020), um dos vídeos, ainda disponível em outros geradores de conteúdo da plataforma (Raquelimc1705, Youtube, 2023), registra a menina sendo forçada pela genitora a participar de “desafios”, como ingerir uma mistura de leite batido com bacalhau e azeitonas e a ter ovos quebrados em sua cabeça.
Assim, casos como os citados delimitam a discussão realizada no atual momento em campo jurídico, notadamente em razão da problemática social envolvida e a relevância de atuação preventiva da rede de proteção a criança e ao adolescente visando, em visão não tão otimista, ao menos amenizar os danos causados aos protegidos expostos.
3. Rede de proteção: princípios e deveres
A Constituição de 1988, por meio do art. 227, dispõe acerca da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente no Brasil, consolidando os direitos humanos especificamente destinados ao público protegido. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), na visão de Ramidoff (2022, p. 10), constitui-se no dever/ser jurídico-legal que organiza, regulamenta e prescreve os interesses indisponíveis, difusos e coletivos, bem como os direitos individuais e garantias fundamentais, especificamente destinados à promoção e à proteção integral da criança e do adolescente.
Nesse viés, a proteção integral, que em conotação histórica tem raízes da Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989 e, no Brasil, na Constituição Federal de 1988, ganhou contornos ainda mais concretos diante da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), elevando o valor intrínseco da criança como ser humano e a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento(Costa, 1992, p. 17).
Assim, a proclamação da Declaração Universal dos Direitos da Criança representou importante impacto na área da infância, posto que “a criança passa a ser considerada, pela primeira vez na história, prioridade absoluta e sujeito de Direito, o que por si só é uma profunda revolução”(Marcílio, 1998, p. 49-50).
Além disso, em 1989, baseada nos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e na própria Declaração Universal de 1959, a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos promoveu a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ratificada por 196 países. Assim, definiu-se “como criança qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade (art. 1), cujos ‘melhores interesses’ devem ser considerados em todas as situações (art. 3)” (Marcílio, 1998, p. 49-50), de modo que conferido à crianças e adolescentes direitos até então previstos somente a adultos, inclusive no que se refere aos dispostos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No aspecto, com base na conotação histórica citada, importante destacar que crianças e adolescentes ainda são considerados uma minoria porque têm pouco poder conferido, e, diante de tal concepção, na visão de Qvortrup, “com muita frequência, a legislação é elaborada sem levar as crianças em consideração, embora haja poucas dúvidas de que os eventos sociais causem efeitos constantes”(2011, p. 199-211).
Já na área da psicologia, na percepção de Belsky (2020, p. 93), se é debatido a respeito do comportamento de genitores nos encaminhamentos adotados perante a criação de seus filhos, posto que “diversas teorias do desenvolvimento humano fornecem fundamentos para esperar que os pais cuidem de seus filhos de maneira semelhante à criação que eles próprios experimentaram” (tradução nossa).
Dessa maneira, de acordo com Teixeira e Penalva, quando uma criança nasce se percebe totalmente dependente de seus pais ou cuidadores, já que frágil física e psicologicamente. Diante disso, de acordo com as autoras, à medida que vai crescendo, “essa criança vivencia gradativo processo de aquisição de autonomias, justificando a diminuição da interferência paterna” (2008, p. 298).
Destacando aspectos legislativos que almejam assegurar os direitos das crianças e adolescentes, ao se realizar paralelo com a temática atrelada ao sharenting, nota-se que a problemática é permeada por discussões que buscam encontrar equilíbrio entre o exercício do direito de liberdade de expressão por parte dos pais, muitas vezes exercido de modo disfuncional, e o resguardo de crianças e adolescentes em razão do princípio da proteção integral, evitando assim que tenham seus direitos fundamentais, previstos por mandamento constitucional, violados.
Para Eberlin, mesmo que não ocorra a intenção dos pais de exporem seus filhos, uma análise do comportamento destes nas redes sociais pode permitir que terceiros façam interferências a respeito das informações que possam ser associadas a uma criança, tais como localização, idade e data de aniversário (2017, p. 258).
Dessa maneira, diante do surgimento e notório aumento de casos de superexposição de crianças e adolescentes em redes sociais por pais e responsáveis legais, destaca-se hipótese a respeito de qual é o papel da rede de proteção (formada, precipuamente, por Conselho Tutelar, Ministério Público, Defensoria Pública e, eventualmente, instituições voltadas à defesa e promoção dos interesses e direitos de crianças e adolescentes), quando deparada com casos de exposição exagerada, indevida, vexatória e geradora de contraposição aos ditames da proteção integral e do melhor interesse.
Nesse aspecto, uma vez constatada a ocorrência de violação de direitos, cabe aos equipamentos de atenção primária o atendimento da criança ou adolescente atingido, em especial por meio das equipes técnicas atuantes nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), responsáveis pela identificação da demanda e adoção de medidas iniciais visando o estancamento da situação violadora.
Assim, verificada a necessidade de aplicação de medidas de proteção emergenciais, é papel dos Conselhos Tutelares a atuação destinada à salvaguarda da criança e do adolescente em violação, com a decorrente remessa da problemática ao Ministério Público, Defensoria Pública e ao Poder Judiciário para acompanhamento e demais procedimentos cabíveis.
Todavia, um sintoma dessa tendência é a existência de dúvida a respeito da efetiva capacidade de atuação dos equipamentos da rede de proteção primária perante tais casos, posto que são poucas e precariamente difundidas as políticas públicas executadas em nível nacional acerca da matéria.
No ponto, para Custódio (2008, p. 32), o reconhecimento trazido à crianca e ao adolescente deu origem ao princípio da universalização, por meio do qual se dispôs que os direitos previstos são suscetíveis de reinvidicação e efetivação para todas as crianças e adolescentes.
Porém, para referido autor, tal fato também exige uma postura pró-ativa dos beneficiários nos processos de reivindicação e construção de políticas públicas, encontrando assim o Direito da Criança e do Adolescente seu caráter jurídico-garantista, “segundo o qual a família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar a efetivação dos direitos fundamentais” (Custódio, 2008, p. 33).
Assim, para Custódio (2008, p. 34), o princípio da prioridade absoluta de igual modo reforça diretriz de ação destinada à efetivação dos direitos fundamentais, posto que estabelece prioridade para realização das políticas públicas e a destinação privilegiada dos recursos necessários à sua execução, encontrando desse modo fundamento no que é previsto pelo art. 87, inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Além disso, para referido autor, tal previsão trata-se em verdade de uma “tentativa de superação de práticas assistencialistas emergenciais e segmentadas, que excluíam a maior parte do universo das crianças e adolescentes da possibilidade de usufruir os serviços decorrentes das políticas sociais básicas” (Custódio, 2008, p. 34).
Ademais, destaca ainda a relevante pesquisa realizada por Custódio (2008, p. 35) que o princípio da ênfase às políticas sociais básicas tem o objetivo de promover efetivo reordenamento institucional, provendo conjunto de serviços destinados ao atendimento das necessidades sociais de todo contexto familiar de crianças e adolescentes, reconhecendo-se assim o campo da assistência social “como um campo específico de políticas públicas com caráter emancipatório, desvinculado dos tradicionais laços assistecialistas e clientelistas” (Custódio, 2008, p. 35).
Assim, entende-se que apesar de certo ineditismo do tema em comento em aspectos sociais e jurídicos, o qual vinculado a sua hodiernidade, para Barboza (2000, p. 201-213), com a Constituição de 1988 o princípio do melhor interesse da criança “passou a ser de observância obrigatória, com caráter de prioridade absoluta, em toda questão que envolva qualquer criança ou adolescente, e não apenas aqueles indicados pela lei”, afirmando-se, dessa maneira, que todos, indiscriminadamente, têm direitos iguais, bem como ressaltando a necessidade de melhor instrumentalização de políticas destinadas à assegurar esses direitos.
4. Possíveis papéis da rede de proteção à criança e ao adolescente no acompanhamento de casos de sharenting
Para Steinberg (2017, p. 839-884), uma das alternativas no campo das políticas públicas aplicáveis a respeito da matéria seria a implementação de medidas com o objetivo de educar pais e responsáveis legais acerca do uso das redes sociais, fixando percepção vinculada à necessidade de proteção da privacidade das crianças.
Sendo assim, ao se considerar que, conforme refere Ishida, “a doutrina da proteção integral e o princípio do melhor interesse são duas regras basilares do direito da infância e da juventude que devem permear todo tipo de interpretação dos casos envolvendo crianças e adolescentes” (2019, p. 25), medidas são expostas pelo mundo jurídico com o objetivo de assegurar garantias previstas em campo constitucional, notadamente com o objetivo de amenizar as consequências decorrentes da problemática.
Dessa maneira, uma das vertentes em voga dá conta da possibilidade de reconhecimento do direito ao esquecimento perante casos já constatados de sharenting, sendo esse, na visão de Bezerra Júnior, o “direito subjetivo de reagir contra a injustificada utilização de fatos pretéritos, desprovidos de interesse público ou relevância social, com aptidão para malferir, de forma relevante, direitos da personalidade” (2018, p. 257).
Nesse sentido, de acordo com Veronese e Wagner, tendo em vista que sharenting igualmente é tido como lesão ou ameaça a lesão de direitos que pode ou não se concretizar, por essa razão “o direito ao esquecimento possui tamanha importância, pois representa a possibilidade jurídica de uma justa medida de proteção dos direitos fundamentais da personalidade da população infantoadolescente”(2022, p. 122).
O fato é corroborado pela afirmação de Chehab ao registrar que o direito ao esquecimento nada mais é do que “a faculdade que o titular de um dado ou fato pessoal tem para vê-lo apagado, suprimido ou bloqueado, pelo decurso do tempo e por afrontar seus direitos fundamentais” (2015, p. 563-596), ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha estabelecido que o direito ao esquecimeto é incompátivel com a Constituição Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário 1010606.
Casos de sharenting registrados no país também estão trazendo à tona discussões vinculadas à possibilidade de responsabilização civil dos pais como maneira de resolução das adversidades.
Assim, para Bolesina e Faccin, “diante do sopesamento dos interesses conflitantes, conclui-se que os pais, a priori, podem eventualmente ser responsabilizados civilmente pela prática danosa de abuso de direito”(2020, p. 225), ao passo em que de acordo com Schreiber, para aferir o dano é preciso que se faça “uma ponderação entre o interesse da vítima e o interesse do agente cuja conduta se mostra lesiva” (2014, p. 156), revelando assim oposição entre as perspectivas.
Desse modo, se no campo da responsabilidade civil a discussão é permeada por debates, nos quais, inclusive, o princípio da tolerabilidade é invocado de modo constante, outra corrente levantada se refere à possibilidade de vedação da publicação de imagens e demais dados pessoais de crianças e adolescentes pelos pais e responsáveis legais.
Nesse aspecto, propõe Eberlin que “a publicação de dados dos filhos não deve necessariamente ser vedada total e absolutamente pelo ordenamento jurídico. Isso se deve, em primeiro lugar, à autoridade parental, através da qual os pais podem e devem decidir o que é mais conveniente”. Além disso, para o autor, “o sharenting, dentro de seus limites, é uma decorrência da liberdade de expressão dos pais, que detém garantia constitucionalmente amparada para que possam compartilhar seus momentos pessoais junto à família”(2017, p. 255-273).
Por outro lado, extrapolando, de certo modo, as ramificações decorrentes da autoridade parental e reforçando a polêmica que envolve o tema, outra questão importante trazida como sugestão de solução de casos onde já foram evidenciadas violações de direitos em decorrência de sharenting se encontra diretamente relacionada à possibilidade de responsabilização dos provedores de aplicação pelo conteúdo gerado por terceiros (2017, p. 255-273).
Com base nisso, não se questiona que as proposições atualmente debatidas e que objetivam trazer uma resposta ao problema são, de certo modo, fundamentadas no que se encontra previsto no cenário jurídico brasileiro, o qual direciona para a necessidade de solução, ainda que pouco intuitiva, dos casos já constatados de violação de direitos de crianças e adolescentes.
No aspecto, merece destaque também que aludidas soluções até então propostas pela doutrina demandam unicamente atuação pós-facto do Poder Judiciário, sobremaneira que não direcionadas a prevenir a violação e suas decorrências danosas, lidando com tais efeitos apenas em segundo momento.
Porém, o que se propõe com o presente estudo, em alinhamento com as demais perspectivas tutelares expostas, é transcender o viés lenitivo já tão característico no cenário jurídico brasileiro, propondo resoluções que possam se traduzir na prevenção de casos vinculados à prática violadora de direitos em debate.
Para tanto, há necessidade de incremento no trabalho social desenvolvido pela rede de proteção à criança e adolescente como modo de resposta ao sharenting, seja por meio da criação e fomento de políticas públicas robustas destinadas à capacitação dos equipamentos que atuam na linha de frente (CRAS, CREAS e os Conselhos Tutelares), visando precipuamente à prevenção dos casos baseada na orientação das famílias suscetíveis à causa.
Isso porque, conforme se percebe em uma análise inicial, aludidos equipamentos integrantes da rede de proteção primária não recebem capacitação específica para efetiva atuação em casos de superexposição e exposição indevida de crianças e adolescentes na rede mundial de computadores, sendo a temática, apesar de sua relevância, muitas vezes desconhecida pelas equipes técnicas atuantes.
No panorama, sabe-se que casos de violação de direitos de crianças e adolescentes, na grande maioria das vezes, são levados ao conhecimento da rede de proteção em razão de denúncias efetivadas na própria comunidade, em especial durante atendimentos realizados nas unidades escolares e por meio do referenciamento pelos Centros de Referência em Assistência Social.
Assim, reputa-se como de extrema importância que profissionais da educação e assistência social possuam capacitação para inicial atuação perante tais casos, notadamente em caráter preventivo, mas também para que se evitem atos de revitimização dos sujeitos violados.
Com base nisso, não apenas se revela necessário um reforço na formação dos profissionais, como também primordial a realização de trabalho, em nível nacional, de conscientização e orientação preventiva da rede, a qual, assim, terá meios de realizar trabalho junto aos núcleos familiares atendidos.
Já no que diz respeito às atribuições dos Conselhos Tutelares, conforme previsão disposta no Estatuto da Criança e do Adolescente, referido Órgão de proteção igualmente demanda aperfeiçoamento contínuo de seus membros com o objetivo de realizar trabalho preventivo baseado na orientação de pais e responsáveis legais e também para criação de programas de incentivo via ações de divulgação em cada comunidade, inclusive por meio da utilização das medidas previstas no art. 129, incisos I a VII do ECA.
Além disso, entende-se como não de menor importância o trabalho desenvolvido pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, especialmente diante do dever de zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, isso tudo por meio da promoção das medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis.
Sem prejuízo, necessária realização de melhor capacitação de membros e servidores atuantes perante referidos órgãos, visando não só a manutenção e fortalecimento dos encaminhamentos tomados em conjunto com o restante da rede de proteção, mas também para aprofundamento do tema e das proposições resolutivas, isso tudo para rápida atuação em casos já identificados de violação de direitos.
Tem-se assim que o processo de prevenção de casos de superexposição de crianças e adolescentes, como um todo, demanda e envolve a atuação conjunta dos órgãos e equipamentos integrantes da rede de proteção responsáveis pela criação e manutenção de ações, serviços e programas de orientação, apoio e promoção social das famílias, isso tudo com o objetivo de garantir-lhes proteção.
5. Considerações finais
O sharenting é um fenômeno da atualidade que conduz a debate jurídico e social cada vez mais frequente, levantando posicionamentos que se espremem entre o exercício da liberdade de expressão por parte dos pais e responsáveis legais e o direito de crianças e adolescentes em não terem suas imagens e demais dados pessoais divulgados precocemente no mundo virtual, isso tudo sem autorização e de maneira desmedida.
Como resposta imediata ao problema, verifica-se que proposições vêm sendo colocadas pela doutrina com o objetivo de direcionar a atuação da rede de proteção em casos de tal natureza. Para tanto, fala-se em responsabilização civil de pais e responsáveis legais, bem como dos próprios provedores de internet responsáveis pela publicidade dos casos e manutenção destes na rede e do direito ao esquecimento envolvido.
Porém, sabe-se que tais medidas propostas, ao menos até o presente momento, não foram hábeis em surtir efeitos relevantes em caráter preventivo, de modo que unicamente utilizadas pelo Poder Judiciário em momento posterior à ocorrência da violação de direitos, o que se entende temerário diante do que é efetivamente defendido pela doutrina protetiva à criança e ao adolescente.
Desse modo, tendo em vista os ditames da doutrina da proteção integral e o objetivo de prevenção de danos, identifica-se a importância do papel da rede de proteção na tutela de crianças e adolescentes vítimas de (over)sharenting, posto que ainda pouco difundidas políticas públicas destinadas à concientização dos responsáveis, seja em caráter preventivo ou reparador, a respeito dos riscos da prática.
Dentre as possibilidades analisadas ao longo do texto, percebe-se que a rede de proteção atuante na tutela dos direitos de crianças e adolescentes se revela despreparada diante da inexistência de políticas públicas de incentivo à conscientização a respeito do tema, de modo que não se encontraram dados relevantes acerca da realização, seja em âmbito federal, estadual ou municipal, de capacitação destinada a moldar a rede de atenção primária atuante perante casos de exposição indevida de crianças e adolescentes.
Assim, em viés panorâmico, discute-se a respeito da necessidade de reorganização da pautas em âmbito nacional, seja por meio da criação e efetiva execução de referidos programas de conscientização destinados à prevenção do casos de exposição desmedida de dados pessoais, como também no próprio ambiente júridico com o objetivo de implementar mecanismos destinados à proteção dos interesses de crianças e adolescentes e da preservação de seus direitos, os quais garantidos constitucionalmente.
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[1] Doutor e mestre em direito das relações sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado.
[2] Pós-graduando em direito civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Pós-graduado em direito penal e processual penal pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Servidor público no Ministério Público de Santa Catarina. Email: norton@mpsc.mp.br.
[3] Em filosofia e teoria crítica, pós-modernidade refere-se ao estado ou condição da sociedade existir depois da modernidade, uma condição histórica que marca os motivos do fim da modernidade. Essa utilização é atribuída aos filósofos Jean-François Lyotard e Jean Baudrillard (RIOS, 2018).