O LEGADO DA EXCLUSÃO: A IMPERATIVIDADE DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NO ENSINO BRASILEIRO
5 de dezembro de 2025THE LEGACY OF EXCLUSION: THE IMPERATIVE OF AFFIRMATIVE ACTIONS IN BRAZILIAN EDUCATION
Artigo submetido em 03 de dezembro de 2025
Artigo aprovado em 05 de dezembro de 2025
Artigo publicado em 05 de dezembro de 2025
| Cognitio Juris Volume 15 – Número 58 – 2025 ISSN 2236-3009 |
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| Autor(es): Thamires Martins da Silva Orefice[1] |
Resumo: Este artigo traz algumas reflexões sobre a Lei n. 1, de 1837 e o Decreto nº15 de 1839 (BRASIL, 1837, art. 3º) que definiria o acesso à educação no Brasil, proibindo pessoas negras de frequentar escolas e as consequências derivadas desta legislação, bem como, sobre os desafios e perspectivas das políticas de ações afirmativas no Ensino Jurídico Brasileiro.
Palavras-chave: Educação – igualdade – Direitos Humanos – Ações afirmativas
Abstract: This article brings some reflections on Law No. 1 of 1837 and Decree No. 15 of 1839 (BRAZIL, 1837, art. 3) that would define access to education in Brazil, prohibiting black people from attending schools and the consequences arising from this legislation, as well as on the challenges and perspectives of affirmative action policies in Brazilian Legal Education.
Keywords: Education – Equality – Human Rights – Affirmative Action
METODOLOGIA
Este estudo foi conduzido utilizando uma abordagem qualitativa, com o objetivo de obter uma compreensão aprofundada sobre os impactos derivados da proibição do acesso educacional de pessoas negras.
A pesquisa baseou-se na leitura de artigos acadêmicos, bem como na análise de obras que dialogam com a temática.
A coleta de dados foi realizada em duas etapas principais:
1. Da revisão da Literatura: Foram selecionados artigos científicos publicados em revistas acadêmicas reconhecidas, utilizando bases de dados como Google Scholar, Scielo, entre outras.
Os critérios de inclusão para os artigos foram:
– Publicados nos últimos 3 anos.
– Relevantes para o tema do estudo.
– Disponíveis em texto completo.
A leitura dos artigos permitiu identificar teorias, conceitos e dados empíricos essenciais para a fundamentação teórica do estudo.
2. Da análise de Documentos e Notícias: Além dos artigos científicos, foram analisados documentos oficiais, relatórios governamentais, e notícias veiculadas em meios de comunicação de massa.
Os documentos foram selecionados com base em sua relevância e contribuição para a compreensão do tema. As notícias foram escolhidas de fontes confiáveis, reconhecidas pela credibilidade e qualidade de suas informações.
INTRODUÇÃO
A trajetória da educação no Brasil está profundamente conectada às relações complexas sociais e raciais que formaram o país. A Lei n.º01 de 14 de janeiro de 1837, e o Decreto nº15 de 1839, sobre instrução primária no Rio de Janeiro, surgem como marcos importantes para compreendermos o contexto, ao proibir manifestamente em seu artigo 3º o acesso de pessoas negras, tanto escravizadas quanto libertas, às instituições de ensino público. Essa lei não só institucionalizou a segregação racial no sistema educacional, como também abriu caminho para um legado de desigualdades que ainda persiste.
A análise dessa lei à luz dos Direitos Humanos revela a profundidade do racismo estrutural que influenciou as instituições do Brasil desde a época imperial. Partindo da perspectiva dos Direitos Humanos, discute-se o histórico de desigualdades estruturais que justificam políticas de ação afirmativa, bem como seus efeitos práticos na promoção da diversidade e inclusão no ensino brasileiro.
O princípio da igualdade constitui um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito e está intrinsecamente ligado à promoção e proteção dos Direitos Humanos. No contexto brasileiro, marcado por desigualdades históricas e estruturais, o acesso à educação, especialmente em cursos de elevado prestígio social, como o de Direito, revela-se um campo fértil para a discussão sobre mecanismos de inclusão social. Nesse cenário, as ações afirmativas despontam como instrumentos jurídicos e políticos destinados a corrigir distorções históricas, assegurando condições equitativas de acesso e permanência no ensino superior.
Este trabalho propõe uma análise crítica das ações afirmativas no ensino jurídico brasileiro, examinando sua fundamentação legal, seus impactos na democratização do ingresso ao curso de Direito e sua relação com a efetividade do princípio da igualdade.
O presente artigo tratará também de analisar a importância do legado deixado por Luís Gonzaga Pinto da Gama (1830-1881) que é uma figura central na história da luta por direitos e igualdade no Brasil.
A pesquisa busca também problematizar os avanços e os desafios na consolidação de uma educação jurídica mais democrática, plural e comprometida com a transformação social
A EDUCAÇÃO NA ORIGEM: ANÁLISE CRÍTICA DA PRIMEIRA LEI EDUCACIONAL BRASILEIRA
A primeira lei brasileira voltada especificamente para organizar a educação pública foi a Lei de 15 de outubro de 1827, também conhecida como Lei das Escolas de Primeiras Letras.[2]
Essa lei determinava que em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império deveria haver escolas de primeiras letras, ou seja, escolas de ensino básico. Tal lei estabeleceu diretrizes sobre o currículo, ao qual seriam obrigatórias: leitura, escrita, as quatro operações de aritmética, bem como, noções de moral cristã, a forma de contratação de professores, os salários e algumas normas disciplinares.
Porém, essa normativa por se tratar ainda de um Brasil sob o jugo do período escravocrata, proibia terminantemente o acesso de pessoas escravizadas, e ainda dez anos depois tal proibição se consolidaria de maneira expressa na legislação datada de 14 de janeiro de 1837, qual seja:
Lei n. 01: “São proibidos de frequentar as escolas públicas:
Primeiro: pessoas que padecem de moléstias contagiosas.
Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”.
Ou seja, a população negra escravizada, que na época era a maioria da força de trabalho, seria completamente excluída do direito à educação básica.
A Lei Geral de 1827, embora considerada o pilar do ensino público no Brasil, refletia as limitações de uma sociedade desigual e escravocrata, propagando assim o elitismo educacional, que perdurou ao longo dos séculos seguintes.
Em 1835, a Lei Provincial nº 13 da Província de Minas Gerais, dispunha que apenas pessoas livres poderiam frequentar escolas, seguida da Instrução Pública da Província de Goiás onde a letra da lei era a mesma.
Por meio da Resolução n. 27, em 1836 foram aprovados os Estatutos para aulas de Primeiras letras da Província do Rio Grande do Norte, onde proibia os professores de admitirem alunos não livres em suas aulas, somente seria admitido que pessoas escravizadas aprendessem afazeres domésticos com as professoras.
Essas são algumas dentre outras Resoluções e leis publicadas em outros Estados que também proibiam o acesso de pessoas negras ao ensino.
Certamente por compreenderem a incompatibilidade entre educação e escravidão, as elites senhorais pressentiam os riscos e temiam as consequências da propagação das letras entre os negros e negras. Por isso, buscaram evitar, inclusive, como visto, por meio da lei, que a instrução servisse de arma para concretizar o que o medo branco pressupunha diante da onda negra por liberdade (AZEVEDO, 1987).
Somente em 1874, com a promulgação do Regimento da Escola Noturna Sete de Setembro da Província de Santa Catarina, que passou-se a admitir a matrícula de escravos, desde que tivessem licença de seus senhores.
Logo após a assinatura da Lei Áurea, o Estado de um lado constituía a Escola Correcional Quinze de novembro[3], controlando e punindo crianças negras, e de outro lado movimentos negros criavam escolas próprias, centradas na alfabetização, cidadania e valorização da identidade negra.
E em 1888, a Sociedade Beneficente Luiz Gama fundou seu primeiro colégio, que a partir de 1910 integrou-se à Federação Paulista dos Homens de Cor, outras iniciativas foram surgindo ao longo dos anos seguintes como forma de resistência, como a Escola Progresso e Aurora e a Escola Raimundo Duprat, desafiando a estrutura de um Estado racista e segregacional.
Esse marco inicial se faz relevante para compreendermos como o princípio da igualdade na educação tem evoluído de uma previsão formal para políticas concretas, como as ações afirmativas. O contraste entre a Lei de 1827, bem como a Lei nº 1 de 1837 e as legislações contemporâneas, como a Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012), evidenciam o avanço normativo e a luta histórica de grupos marginalizados — como simbolizado pela trajetória de Luiz Gama[4] — para que a educação se tornasse um direito efetivo para todos.
A despeito de sua importância como ponto de partida para o ensino público, a Lei de 1827 revelou, na prática, profundas contradições entre a letra da lei e a realidade social do período, acentuando ainda mais as diferenças entre homens e mulheres, desde o início da vida educacional, e perpetuando a exclusão de negros, aos quais eram proibidos de frequentar as escolas públicas, conforme estabelecia tal legislação.
Enquanto, as meninas teriam um currículo menor. Em matemática, por exemplo, elas deveriam aprender apenas as quatro operações básicas enquanto os meninos tinham aulas de números decimais, frações, proporções e geometria. Previa, também, que as escolas femininas oferecessem aulas de prendas domésticas, como corte, costura e bordado.[5]
Além disso, a omissão em garantir o acesso de meninas de forma sistemática e a total exclusão da população escravizada consolidaram um modelo de instrução restrito à elite branca e burguesa, perpetuando o ciclo de exclusão educacional das classes subalternas.
A compreensão dessas raízes históricas ilumina a importância das ações afirmativas contemporâneas, como a Lei nº 12.711/2012 (Lei de Cotas), bem como a aprovação da Lei nº 10.639/2003 e a criminalização do racismo, enquanto instrumentos de justiça social e reparação histórica.
Tais políticas buscam corrigir a desigualdade acumulada desde o surgimento das primeiras normativas educacionais do país. Assim, a análise da Lei de 1827 não apenas permite reconhecer a origem excludente do sistema educacional brasileiro, mas também legitima a continuidade de medidas reparatórias que visem a efetivar, na prática, o princípio da igualdade no ensino, promovendo a inclusão de grupos antes marginalizados do acesso ao saber e, consequentemente, ao exercício pleno da cidadania.
Em 2020 foi aprovado o projeto de lei 5.384/2020 que faz ajustes à Lei 12.711/2012 – Lei que tornou obrigatória a reserva de vagas para estudantes de escolas públicas autodeclarados pretos, pardos e indígenas nas Universidades Federais, e por inúmeras vezes nos deparamos com argumentos de que as políticas públicas em favor de cotas raciais seriam um mecanismo de nos ater ao passado, afinal já não vivemos em uma sociedade escravagista, porém não podemos nos olvidar que tal período perdurou por mais de 300 anos e que mesmo após a aclamada abolição não houveram políticas capazes de restituir os séculos de exclusão marcados por atrocidades.
Muito pelo contrário, o que se seguiu foram muitas outras tantas medidas de repressão de um povo liberto, a despeito do delito de vadiagem, crime previsto no Código Criminal de 1830, deixando de ser considerado crime somente em 1940, sendo um ano depois incluída no rol de contravenções penais.
Com a instituição do regime abolicionista era considerável o contingente de homens e mulheres negras libertos, sem ocupação formal que muitas das vezes sobreviviam com subempregos, que ao longo do tempo passaram a ser vistos como improdutivos diante da sociedade que cada vez mais fincava suas raízes nas ideologias capitalistas.
Esses libertos considerados “vadios”, mais tarde seriam perseguidos e criminalizados por não terem ocupação formal estabelecida, lançados à própria sorte a partir da assinatura da malfadada Lei Áurea.
A despeito de não haver julgamento de ações relativas à vadiagem pelo judiciário atualmente, ainda existe uma prática comum nos protocolos de abordagem policial, podendo ser usado como argumento suplementar na legitimação de intervenções policiais.
Cotas raciais não são esmolas!
(…)
Experimenta nascer preto, pobre na comunidade
Cê vai ver como são diferentes as oportunidades
E nem venha me dizer que isso é vitimismo
Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo
Existe muita coisa que não te disseram na escola
Eu disse, cota não é esmola
“Cota não é esmola”, Bia Ferreira
Importante frisar que as ações afirmativas e as cotas raciais não se trata de medidas de combate à pobreza, ainda que a longo prazo possam gerar impactos na redução de desigualdades socioeconômicas.
Como bem afirma a renomada jurista Lívia Sant’Anna, em sua obra Cotas Raciais:
“As ações afirmativas têm como fundamento não apenas o estímulo à
diversidade e a promoção da igual participação de todas/os no processo
democrático, mas, sobretudo, a necessidade de medidas emancipatórias
voltadas para a igual liberdade de escolha. Isso porque a remoção de
obstáculos e a realização da justa redistribuição, levando-se em consideração as desigualdades alicerçadas na raça, geram significativos impactos na autonomia dos indivíduos pertencentes a grupos raciais vulnerabilizados.”
Esse projeto de exclusão também se constituiu mais tarde, quando em 1851 através da lei n.420 à qual se impôs a taxa de 10$000 rs. sobre todo africano que exercesse ofício mecânico.[6]
E com o advento da abolição formal, negras e negros se viram à margem, o Estado não implementou política alguma que conferisse a esses libertos condições para que sobrevivessem, muito ao contrário nas palavras do professor Doutor Helio Santos, a exclusão da população negra se apresenta como uma estratégia de desenvolvimento[7], pois enquanto a população negra era alijada das oportunidades de trabalho livre e remunerado, proibidos do acesso à educação, o Estado brasileiro iniciava uma política de incentivo à vinda de imigrantes para o Brasil, esses com inúmeros incentivos e ações concretas que garantiam direito à terras e subsídios para que constituíssem moradia digna e assim perpetuar suas riquezas, como a lei de terras, bem como o decreto – Lei nº 7.967, de 1945, que previa:
Art. 2º Atender -se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional.
Ou seja, a primeira ação afirmativa se deu com o favorecimento dos imigrantes, com o advento da reserva de terras devolutas exclusivamente aos imigrantes europeus, proibindo o uso de trabalhadores escravizados, institucionalizando-se assim a exclusão da população negra do acesso à propriedade rural.
E a partir da Lei nº 601 de 18 de Setembro de 1850 – a chamada Lei de Terras, o Estado autorizou a doação de terras, infraestrutura e incentivos aos imigrantes europeus, operando desta forma como um dos instrumentos jurídicos de racialização do acesso à terra, fortalecendo o projeto eugenista de branqueamento do Brasil.
A historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro sustenta que a política de imigração brasileira era baseada na busca do “trabalhador ideal”, adjetivo carregado de subjetividades preconceituosas. Afirma-se que as correntes migratórias eram admitidas, desde que assegurado o branqueamento da população.
Durante o período do Estado Novo, segundo Carneiro “a solução estava em impedir a entrada de negros, judeus e japoneses, principalmente, de forma a não aprofundar o abismo provocado pela má-formação étnica herdada do passado escravocrata e do liberalismo republicano.[8]”
AÇÕES AFIRMATIVAS COMO MECANISMO DE REPARAÇÃO HISTÓRICA E INCLUSÃO EDUCACIONAL
A abolição rompeu formalmente a relação de exploração de pessoas negras, porém o Estado não estabeleceu políticas efetivas que viabilizasse a igualdade de direitos à essas pessoas, o que alguns teóricos chamam de uma abolição às avessas, não foram concedidas à essas vítimas maneiras dignas de subsistência, ao contrário, como observamos foram criadas inúmeras políticas de perpetuação desses meios de exclusão e afastamento da dignidade.
Aos negros foram negados, tanto acesso à educação quanto direito à terras ainda que adquiridas por direito, e a herança do período escravocrata ainda se faz bem consolidada com a manutenção do pacto da burguesia que persiste em nossa sociedade.
Portanto, diante de todas essas colocações, se faz necessário esse exercício de revisitarmos a História, e não àquela contada nos livros, onde a maioria quem narra é o próprio algoz, como ensina o cantor Thiago Elniño, “Nem todo livro, irmão, foi feito pra livrar, depende da história contada e também de quem vai contar”.
Entendermos a importância de continuarmos fomentando cada vez mais políticas públicas de enfrentamento ao racismo sistêmico e o estado de marginalização da população negra, comprometer-se com o pacto social de modo igualitário a todos se faz necessário e urgente para a construção de um Estado Democrático de Direito.
Quanto às cotas raciais, ação afirmativa para estudantes e candidatos negros para que ingressem nas universidades e cargos públicos, algo que é crucial destacarmos é que não se tratam de políticas públicas para mitigar a pobreza, e sim de medidas a mitigar tais desigualdades e o impacto do severo atraso de grande parte da população que foi forçada a viver às margens da sociedade.
Nas palavras do Professor Hélio Santos, o racismo sistêmico – inercial que serve como cimento da construção do Brasil[9] – “deve ser combatido com ações afirmativas igualmente sistêmicas, o que exige operar simultaneamente em diversos setores de maneira célere – como no campo da educação, saúde, trabalho e geração de renda, cultura e segurança – a fim de efetivamente reduzir as desigualdades as desigualdades raciais.”
ESPERANÇA GARCIA: VOZ PIONEIRA DA RESISTÊNCIA E DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL COLONIAL
Esperança Garcia é reconhecida, cada vez mais, como uma das primeiras advogadas do Brasil, embora, não tenha frequentado formalmente uma faculdade de Direito.
Mulher negra, escravizada na segunda metade do século XVIII, Esperança Garcia ficou conhecida por sua coragem em escrever uma petição, datada de 6 de setembro de 1770, endereçada ao então governador da Capitania do Piauí. Em tal documento, Esperança denunciava os maus-tratos que sofria junto de seus filhos na fazenda de um capitão-mor, além de relatar a violação de direitos fundamentais, como o impedimento de frequentar a igreja e a separação de sua família.
O teor da carta de Esperança Garcia é extremamente significativo para a história do Direito e dos direitos humanos no Brasil, pois revela uma consciência jurídica e política rara para uma pessoa em condições de cativeiro naquele período. Ao dirigir-se diretamente à autoridade máxima da Capitania, utilizando a forma escrita como instrumento de denúncia e súplica por justiça, Esperança Garcia demonstrou compreender, ainda que empiricamente, princípios de proteção que hoje associamos aos direitos fundamentais e ao acesso à justiça.
Seu ato pode ser interpretado como uma forma primitiva de advocacia, não apenas por si mesma, mas também por sua família e comunidade, configurando um gesto de resistência contra o sistema escravista. Por isso, Esperança Garcia tem sido cada vez mais reconhecida como símbolo de luta por direitos, sobretudo no movimento negro e feminista.
Em 2017, foi simbolicamente reconhecida pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Piauí (OAB-PI), como a primeira advogada do Piauí, honrando seu legado como precursora na defesa de direitos em um contexto de extrema opressão.
LUIZ GAMA:PRECURSOR DA LUTA PELA IGUALDADE E DEMOCRATIZAÇÃO DO SABER JURÍDICO
A história da educação jurídica no Brasil é marcada por exclusões raciais, sociais e econômicas que, por séculos, limitaram o acesso ao conhecimento jurídico a uma restrita elite branca e burguesa. Nesse contexto de negação do direito à educação, figuras como Luiz Gama emergem como símbolos de resistência e de reivindicação do saber jurídico como instrumento de emancipação.
Nascido livre em Salvador, filho de Luíza Mahin, uma mulher negra africana notável por sua atuação política em movimentos de insurreição de escravizados, Luiz Gama foi vendido ilegalmente como escravizado aos dez anos de idade pelo próprio pai, em quitação de dívidas.
Ainda jovem, conquistou sua liberdade por meio de estratégias jurídicas, apoiando-se em sua inteligência e no conhecimento que adquiriu de forma autodidata, pois foi privado do acesso formal às instituições de ensino superior.
A partir de sua missão, Gama desenvolveu uma trajetória extraordinária. Tornou-se poeta, jornalista, orador e, sobretudo, rábula — ou seja, um advogado provisionado que, mesmo sem diploma de Direito, obteve autorização para atuar em tribunais.
Sua prática jurídica foi notória por defender, de forma incansável, pessoas escravizadas em busca de liberdade. Estima-se que Luiz Gama tenha contribuído para libertar mais de quinhentos indivíduos do cativeiro, utilizando argumentos jurídicos inovadores, baseados na legislação vigente, como a proibição do tráfico internacional de escravos e a interpretação progressista de leis de alforria.
A atuação de Luiz Gama revela, de modo exemplar, o potencial transformador do conhecimento jurídico quando apropriado por sujeitos historicamente marginalizados. Sua figura encarna a luta por igualdade real e acesso democrático à justiça, antecipando os ideais que, séculos depois, viriam a fundamentar políticas públicas de ação afirmativa. Gama foi, ao mesmo tempo, uma voz crítica da hipocrisia das leis escravocratas e um estrategista que soube utilizar o próprio sistema jurídico como instrumento de emancipação social.
Mesmo enfrentando preconceito racial e restrições institucionais, Luiz Gama conquistou reconhecimento em vida, sendo considerado por muitos como o maior advogado dos escravizados do Brasil imperial. Sua memória, contudo, foi por décadas invisibilizada na história oficial do Direito brasileiro, uma invisibilidade que reflete, ainda hoje, as dificuldades de pluralizar e democratizar o ensino jurídico.
Resgatar o legado de Luiz Gama no contexto contemporâneo é reconhecer a historicidade das desigualdades que moldaram a estrutura educacional brasileira e legitimar, com base em seu exemplo, as políticas de inclusão destinadas a reparar injustiças históricas. Nesse sentido, Gama não apenas antecipa a luta por ações afirmativas, mas também inspira uma compreensão do Direito como instrumento de transformação social, voltado à efetivação do princípio da igualdade material e da dignidade da pessoa humana.
Assim, sua trajetória se insere como referência indispensável para a reflexão crítica sobre o papel das faculdades de Direito na formação de profissionais comprometidos com a promoção da justiça social, da equidade racial e da defesa intransigente dos direitos humanos no Brasil.
O resgate histórico de precursores da justiça como Esperança Garcia e Luis Gama é alforriar saberes, tornando-os concretos e carregados de significado, é, nos dizeres de Paulo Freire ‘esperançar’ um novo mundo, um mundo liberto de ensinamentos que alienam e apagam heróis reais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trajetória de figuras históricas como Esperança Garcia e Luiz Gama revela que a luta pela igualdade e pelo acesso à justiça no Brasil não é um fenômeno recente, mas uma construção que remonta aos períodos colonial e imperial, marcada pela resistência de sujeitos que, mesmo em contextos de extrema opressão, reivindicaram direitos fundamentais por meio do saber jurídico.
A memória de Esperança Garcia, mulher negra e escravizada que utilizou a palavra escrita como instrumento de denúncia, e de Luiz Gama, homem negro que se tornou rábula e libertou centenas de escravizados, demonstra que o conhecimento jurídico foi historicamente apropriado como ferramenta de emancipação por aqueles que estavam à margem do sistema formal de ensino, que mesmo sendo impedidos de estudar alcançaram por meios próprios acesso ao saber que lhes foram negados.
Nesse sentido, o resgate dessas trajetórias não é apenas um ato de justiça histórica, mas também um fundamento ético e político para a defesa e o aprimoramento das ações afirmativas no ensino jurídico brasileiro. E particularmente, para pessoas negras tal resgate de memórias implica em representatividade, algo que impulsiona a lutar pelos seus direitos e prosseguir na resistência.
As políticas de ação afirmativa, como a Lei de Cotas, representam respostas concretas a desigualdades estruturais que persistem desde o Brasil escravocrata e colonial, perpetuando barreiras de acesso à educação de qualidade para negros, indígenas, quilombolas e pessoas de baixa renda.
Assim, compreender e valorizar a história de resistência de personagens como Esperança Garcia e Luiz Gama fortalece a legitimidade das ações afirmativas como instrumentos de efetivação do princípio da igualdade substantiva, contribuindo para a construção de um ensino jurídico mais plural, democrático e comprometido com a transformação social.
Reconhecer o passado é, portanto, condição indispensável para reconfigurar o presente e abrir caminhos para um futuro em que o Direito, como saber e como prática, sirva o seu propósito, sendo verdadeiramente acessível a todos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ações afirmativas nas políticas educacionais, o contexto Pós- Durban – EdUFSCar, São Carlos, 2009
A resistência Negra ao Projeto de exclusão racial – Brasil 200 anos (1822 – 2022), Org Hélio Santos, Ed Jandaíra
Lei de Terras. Disponível em: <https://mapa.arquivonacional.gov.br/index.php/assuntos/15-dicionario/65-dicionario-da-administracao-publica-brasileira-do-periodo-imperial/279-lei-de-terras>. Acesso em: 2 dez. 2025.
Delito de “vadiagem” é sinal de racismo, dizem especialistas. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2023/09/delito-de-vadiagem-e-sinal-de-racismo-dizem-especialistas>.
VAZ, L. S. Cotas raciais. [s.l: s.n.].
Legislação brasileira: controle e embranquecimento do mercado de trabalho livre. Disponível em: <https://museudaimigracao.org.br/blog/migracoes-em-debate/legislacao-brasileira-controle-e-embranquecimento-do-mercado-de-trabalho-livre>.
Linha De Cor. Disponível em: <https://www.linhadecor.com/verbetes/ano_1848>. Acesso em: 2 dez. 2025.
[1] Advogada, pós graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes e mestranda em Direitos Humanos pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: ra00345582@pucsp.edu.br
[2] Norma promulgada no período imperial, ainda sob o reinado de Dom Pedro I, e ficou registrada como o primeiro marco legal do ensino público no Brasil.
[3] A Escola Correcional Quinze de Novembro foi fundada em 3 de dezembro de 1899, destinada a recolher, por ordem do chefe de polícia ou do juiz criminal, os menores “viciosos”, órfãos sem recursos e menores de nove a 14 anos julgados culpados por crime ou contravenção, que tivessem agido com ‘discernimento’, de acordo com o disposto no Código Penal, (Brasil,1901; 1902).
[4] Luís Gama – Wikipédia, a enciclopédia livre
[5] https://ensinarhistoria.com.br/linha-do-tempo/assinada-a-lei-geral-a-primeira-lei-educacional-do-brasil/ – Blog: Ensinar História – Joelza Ester Domingues
[6] Lei nº 420, de 7 de junho de 1851.Legislação da província da Bahia sobre o negro:1835-1888 (op.cit.,p.42)
[7] Um novo acordo para a equidade racial no Brasil
[8] Maria L.T. Carneiro, A biotopia do imigrante ideal: nem negro, nem semita, nem japonês. In:Maria L. T. Carneiro; Márcia Y.Takeuchi (org), imigrantes japoneses no Brasil. Trajetória, imaginário e memória, 2010, pp.64-96.
[9] Um novo acordo para equidade racial no Brasil – Helio Santos

