O ENIGMA DA UBERIZAÇÃO: AUTONOMIA DIGITAL, SUBORDINAÇÃO VELADA E OS DESAFIOS DO PL 12/2024

O ENIGMA DA UBERIZAÇÃO: AUTONOMIA DIGITAL, SUBORDINAÇÃO VELADA E OS DESAFIOS DO PL 12/2024

26 de outubro de 2025 Off Por Cognitio Juris

THE ENIGMA OF UBERIZATION: DIGITAL AUTONOMY, VEILED SUBORDINATION AND THE CHALLENGES OF PL 12/2024

Artigo submetido em 23 de outubro de 2025
Artigo aprovado em 25 de outubro de 2025
Artigo publicado em 26 de outubro de 2025

Cognitio Juris
Volume 15 – Número 58 – 2025
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Gisliedson Luanderson Silva Lopes[1]
Carlos Francisco do Nascimento[2]

RESUMO: A uberização, um modelo de trabalho mediado por plataformas digitais, ganhou força com o avanço tecnológico, oferecendo flexibilidade e acesso ao mercado de trabalho, mas também acarretando desafios à regulamentação e proteção dos trabalhadores. Este artigo discute a evolução desse fenômeno, seus impactos socioeconômicos e a proposta do Projeto de Lei Complementar nº 12/2024, que visa regulamentar o trabalho sob demanda no Brasil. A análise busca compreender as transformações provocadas pela uberização e os caminhos futuros para a proteção dos direitos trabalhistas que tutelam essa atividade.

Palavras-chave: Uberização; Trabalho por Plataformas; Precarização; Regulamentação; PL 12/2024.

ABSTRACT: Uberization, a work model mediated by digital platforms, has gained strength with technological advancements, offering flexibility and access to the labor market, but also bringing challenges to the regulation and protection of workers. This article discusses the evolution of this phenomenon, its socioeconomic impacts, and the proposal of PL 12/2024, which aims to regulate on-demand work in Brazil. The analysis seeks to understand the transformations caused by uberization and the future paths for the protection of labor rights.

Keywords: Uberization; Platform Work; Precarization; Regulation; PL 12/2024.

INTRODUÇÃO

Com o avanço das plataformas digitais, o mercado de trabalho tem experimentado uma revolução silenciosa: a uberização. Este modelo, caracterizado pela mediação de atividades laborais por aplicativos, alterou radicalmente a forma como os serviços são prestados e contratados. Embora prometendo flexibilidade e facilidade de acesso, a uberização, no entanto, revelou uma face sombria, marcada pela precarização das relações de trabalho. Essa transformação tem suscitado desafios à regulamentação e proteção dos trabalhadores, configurando o problema central de como conciliar a inovação tecnológica com a garantia de direitos laborais em um cenário de crescente informalidade.

Diante desse contexto, o presente artigo tem como objetivo discutir a evolução do fenômeno da uberização, analisar seus impactos socioeconômicos e explorar a proposta do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 12/2024, que visa regulamentar o trabalho sob demanda no Brasil.

A metodologia empregada baseia-se em uma análise exploratória e bibliográfica, buscando compreender as transformações provocadas pela uberização e identificar os caminhos futuros para a proteção dos direitos trabalhistas. A relevância deste estudo reside na urgência de se discutir e buscar soluções para a crescente precarização do trabalho na era digital, contribuindo para o debate sobre a construção de um marco regulatório que assegure dignidade e justiça social aos trabalhadores inseridos nesse novo paradigma produtivo.

O presente trabalho está seccionado da seguinte forma: Introdução; Agênese da precarização digital: Da flexibilidade prometida à subordinação algorítmica; Escravidão digital: Custos ocultos, precarização e adoecimento no trabalho de plataforma; batalha por direitos: Diálogos, obstáculos e o futuro da regulamentação da uberização no Brasil e Conclusão.

1. A GÊNESE DA PRECARIZAÇÃO DIGITAL: DA FLEXIBILIDADE PROMETIDA À SUBORDINAÇÃO ALGORÍTMICA

No cenário contemporâneo do mercado de trabalho, a precarização tem se manifestado de maneira multifacetada, redefinindo as relações laborais e diluindo as fronteiras entre o emprego formal e a informalidade. Essa transformação é impulsionada pela busca incessante por flexibilidade e redução de custos por parte das empresas, levando ao surgimento de modelos de trabalho que, embora apresentem aparente autonomia, frequentemente desamparam o trabalhador.

Em diversas plataformas digitais, por exemplo, observa-se uma dinâmica em que, segundo Ricardo Antunes (2020): “elas e eles ficam à espera de uma chamada por smartphone e, quando a recebem, ganham estritamente pelo que fizeram; nada recebendo pelo tempo que ficaram esperando.” Essa condição, amplamente difundida, estende-se a um vasto leque de profissões, desde motoristas e entregadores até profissionais de saúde e cuidadores, revelando a abrangência dessa nova arquitetura do trabalho (Antunes, Ricardo, 2020).

A essência dessa modalidade reside na transferência dos riscos da atividade para o trabalhador, que se torna um empreendedor de si mesmo, sem as garantias e proteções historicamente conquistadas.

No início do século XX, o modelo fordista, caracterizado pela produção em massa e pela rígida divisão de tarefas, consolidou o emprego assalariado com maior previsibilidade de remuneração, mas também com jornadas exaustivas e pouca flexibilidade. Na obra “O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital”, Ricardo Antunes (2018) aponta que, contra a rigidez taylorista e fordista vigente nas fábricas da “era do automóvel” durante o longo século XX, nas últimas décadas, as empresas “liofilizadas e flexíveis”, impulsionadas pela expansão informacional-digital e sob o comando dos capitais, em particular o financeiro, vêm impondo sua trípode destrutiva sobre o trabalho.

A ascensão do Estado de Bem-Estar Social, entre as décadas de 1950 e 1970, expandiu o emprego formal e garantiu direitos como férias remuneradas e aposentadoria. Nesse período, o vínculo empregatício contínuo era a norma, fortalecendo a estabilidade e segurança dos trabalhadores.

Esse modelo de organização do trabalho e da sociedade representava uma fase em que o capital e o trabalho buscavam uma forma de coexistência que permitisse tanto o desenvolvimento econômico quanto a inclusão social. Como aponta Castel (2009), a sociedade salarial configurava um sistema que garantia “a proteção do trabalhador face aos riscos da vida, assegurando-lhe um estatuto social e uma inserção na comunidade”. Essa estabilidade, no entanto, seria posteriormente desafiada por profundas transformações econômicas e tecnológicas.

As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pelo avanço do neoliberalismo e da globalização, impulsionando políticas de desregulamentação e flexibilização trabalhista. Isso resultou no crescimento da terceirização e do trabalho temporário, enfraquecendo as proteções laborais.

Segundo Graham, Mark e Anwar, Mohammad Amir (2017), as companhias ocidentais começaram a terceirizar funções que não eram as principais em seus negócios para locais de baixos salários. Nos anos 90, países como a índia e as Filipinas eram a casa de milhões de trabalhadores que realizavam trabalhos de serviços para clientes predominantemente ocidentais.

Nos anos 2000, o desenvolvimento tecnológico e a internet aceleraram essas transformações, promovendo o trabalho remoto e o freelancer, que é um profissional autônomo e independente, sem vínculo empregatício formal. Essa nova organização do trabalho, que antes era uma exceção, começou a se disseminar, possibilitando que indivíduos oferecessem seus serviços a uma gama global de clientes sem a necessidade de um espaço físico tradicional de trabalho. No entanto, o que inicialmente se apresentava como um avanço na flexibilidade e na autonomia, também introduziu novos desafios.

Para Harvey (1992), a compressão do tempo e do espaço, impulsionada pela tecnologia, levou a uma flexibilização radical das relações de produção e trabalho, transformando o modo como as empresas operam e como os indivíduos se inserem no mercado. Essa dinâmica exigiu dos profissionais autônomos uma constante autogestão, demandando habilidades de gestão financeira, organização de prazos e busca ativa por oportunidades, deslocando para o indivíduo a responsabilidade por sua segurança e estabilidade profissional.

Embora o freelancer tenha flexibilidade e autonomia para escolher projetos, clientes e horários, essa modalidade exige habilidades de gestão financeira, organização de prazos e busca ativa por oportunidades. Essa nova configuração, muitas vezes apresentada como uma promessa de liberdade, na realidade, intensificou a vulnerabilidade e a responsabilidade individual sobre os riscos do mercado. Como observa Sennett (2006), o novo capitalismo promove uma cultura de “flexibilidade” que, em vez de libertar, “corrói o caráter”, desfazendo laços de lealdade e comprometimento que eram pilares do trabalho estável. A exigência de constante adaptação e a ausência de garantias coletivas lançam sobre o trabalhador a totalidade do ônus de sua inserção no mercado.

Hodiernamente, com o advento das plataformas digitais e da inteligência artificial, exemplificado notavelmente pelo modelo de negócios da Uber, introduziu uma complexidade sem precedentes nas relações de trabalho. Embora as empresas se apresentem como meros intermediadores, a realidade operacional impõe aos trabalhadores a assunção de uma série de encargos que tradicionalmente seriam de responsabilidade do empregador. Nesses arranjos, “trabalhadores e trabalhadoras com seus automóveis arcam com as despesas de seguros, gastos de manutenção de seus carros, alimentação, limpeza etc., enquanto o ‘aplicativo’ se apropria do mais-valor gerado pelo sobretrabalho dos motoristas, sem nenhuma regulação social do trabalho.” (Antunes, Ricardo, 2020).

A explosão do trabalho digital e das plataformas online reconfigurou drasticamente o panorama laboral, criando um mercado global de serviços que transcende as barreiras geográficas tradicionais. Atualmente, esse ecossistema digital movimenta bilhões de dólares, contando com milhões de trabalhadores registrados em diversas plataformas. Essa ubiquidade, contudo, não se traduz em maior proteção ou equidade. Ao contrário, a natureza desregulamentada dessas relações tem gerado profundos desafios para a força de trabalho global.

Essa modalidade de trabalho, muitas vezes celebrada pela flexibilidade e autonomia, esconde uma realidade de profunda precarização e vulnerabilidade. Como apontam Hjorth e Vili Lehdovirta (2018), “a capacidade de barganhar dos trabalhadores é significativamente enfraquecida e a colaboração entre os trabalhadores é desencorajada”, uma vez que competem globalmente e são classificados como empreendedores independentes.

A dinâmica apresentada por Hjorth e Vili Lehdovirta, somada à ausência de vínculos empregatícios formais, significa que “muitos dos problemas identificados estão relacionados à superoferta de força de trabalho” (Graham et al., 2017), o que se traduz em “discriminação, precariedade e pouco desenvolvimento de qualificação”. O resultado é um cenário onde a concorrência global e a pressão algorítmica forçam os trabalhadores a aceitar condições menos favoráveis, subvertendo a lógica da proteção trabalhista construída ao longo do século XX.

Fundada por Travis Kalanick, a Uber expandiu-se globalmente, chegando ao Brasil em 2014, período coincidente com a Copa do Mundo, que expôs deficiências no transporte público e favoreceu a adoção do aplicativo. Após o evento, o governo percebeu uma ameaça ao modelo de uberização devido aos prejuízos à classe dos taxistas, que enfrentaram queda na demanda, enquanto a Uber crescia exponencialmente devido à facilidade, preços mais baixos e uma boa primeira impressão aos consumidores. Apesar de várias tentativas legislativas de proibição, o lobby em favor dos aplicativos frequentemente prevaleceu.

A rápida ascensão da Uber não apenas transformou a mobilidade urbana, mas também gerou um conflito social e econômico significativo, evidenciando a fragilidade das regulamentações existentes e a força disruptiva das novas tecnologias.

Nesse contexto, a chegada de plataformas como a Uber simboliza uma nova fase da precarização do trabalho, onde a autonomia prometida muitas vezes mascara uma intensa subordinação algorítmica. Como observa Antunes (2018), “a uberização do trabalho, em suas múltiplas formas, significa uma nova ofensiva do capital contra o trabalho, onde a flexibilidade é utilizada como arma para desmantelar direitos e proteções sociais”. A batalha entre o novo modelo de trabalho e as categorias tradicionais, como a dos taxistas, ilustra as tensões inerentes a essa transição, marcada pela busca por novas formas de controle e pela resistência dos trabalhadores afetados.”

Com o tempo, plataformas como Uber, iFood, 99 (serviços de transporte por aplicativo), freelance e dentre outras, consolidaram-se na economia, contudo, a promessa de flexibilidade e autonomia revelou um sistema algorítmico que controla desde o valor das corridas até a quantidade de horas trabalhadas, levando à crescente precarização das relações de trabalho. A possibilidade de ganhos rápidos em um cenário de desemprego e crises econômicas atraiu muitos trabalhadores.

O termo ‘uberização’ não se restringe apenas ao aplicativo Uber, mas abrange também restaurantes ou lojas que utilizam a internet para acessar trabalhadores autônomos para suas entregas.

A precarização da uberização alcança diversas profissões. Essa expansão demonstra que o modelo de gestão baseado em algoritmos e na desregulamentação se tornou uma lógica onipresente, permeando setores antes impensáveis e transformando a natureza do vínculo empregatício. Como destacam Abílio e Grohmann (2021), a “uberização” representa uma forma de gerenciamento do trabalho que se apoia na ilusão da autonomia do trabalhador para submeter sua força de trabalho a um controle digital, transformando a relação de emprego em uma série de tarefas avulsas e desprotegidas.

Fica evidenciado que a “uberização” não é apenas uma característica do transporte ou entregas, mas uma estratégia capitalista de reestruturação do trabalho que busca maximizar lucros e minimizar custos sociais.

2. “ESCRAVIDÃO DIGITAL”: CUSTOS OCULTOS, PRECARIZAÇÃO E ADOECIMENTO NO TRABALHO DE PLATAFORMA

No cenário contemporâneo, observa-se uma complexa dinâmica de precarização que transcende fronteiras geográficas e setoriais. Conforme apontado por Antunes (2018). “à terceirização, a informalidade e a flexibilidade se tornaram, então, partes inseparáveis do léxico e da pragmática da empresa corporativa global”, atuando como elementos corrosivos que minam a proteção social do trabalho e promovem a intermitência.

A “escravidão digital”, na perspectiva de Antunes (2018), materializa-se na ausência de contratos formais, na instabilidade e na submissão a metas abusivas. Os trabalhadores, muitas vezes, são compelidos a arcar com os custos de seus instrumentos de trabalho – como veículos e manutenção – enquanto as plataformas, que operam em escala global, se apropriam do mais-valor gerado sem assumir as responsabilidades trabalhistas históricas. Essa dinâmica gera um ambiente de trabalho onde o assédio moral e a pressão por desempenho são constantes, resultando em sérios problemas de saúde mental, como adoecimento, depressão e, em casos extremos, suicídios, conforme apontado por diversas pesquisas recentes sobre o tema (Abramides; Lima, 2022; Giovanetti, 2023).

Apesar de ordenamentos jurídicos, como o britânico, ter reconhecido a existência de vínculo empregatício entre os motoristas e plataformas como a Uber, assegurando-lhes direitos como salário mínimo e férias remuneradas (Pinheiro, 2016; Antunes, 2018), a realidade brasileira diverge significativamente. No Brasil, decisões judiciais têm sido inconsistentes, e a tese da autonomia do trabalhador ainda prevalece em muitos casos, impedindo que os uberizados usufruam da proteção social e dos direitos trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Essa disparidade cria um limbo jurídico, perpetuando a vulnerabilidade de milhões de trabalhadores digitais.

A narrativa promovida pelas plataformas digitais de que seus trabalhadores são “empreendedores” e “donos do próprio negócio” é, na análise de muitos estudiosos, uma falsa ilusão estratégica, concebida para redefinir as relações de trabalho e eludir responsabilidades historicamente atribuídas aos empregadores. Essa retórica ignora a intrínseca transferência de riscos e custos para a força de trabalho, que se vê compelida a arcar com as despesas operacionais da atividade: combustível, manutenção do veículo, seguros, impostos, depreciação do capital (carro, moto, bicicleta), e até mesmo o custo do smartphone e do plano de dados.

Em contraste com o modelo tradicional de emprego, onde tais encargos são suportados pela empresa, o trabalhador de plataforma assume integralmente o ônus financeiro e os riscos inerentes à prestação do serviço, como acidentes, períodos de baixa demanda e adoecimento, permanecendo desprovido de direitos básicos como seguro-desemprego, férias remuneradas, 13º salário e acesso à Previdência Social em condições paritárias. Esta desresponsabilização corporativa é um dos pilares da precarização na economia digital, conforme amplamente discutido por Antunes (2018).

Adicionalmente, a suposta autonomia é mitigada por um controle algorítmico onipresente e opaco, que redefine as dinâmicas de poder entre capital e trabalho. As plataformas, por meio de seus algoritmos, não apenas ditam as tarifas, as rotas e a distribuição de tarefas, mas também implementam sofisticados sistemas de avaliação e incentivos que funcionam como mecanismos de vigilância e pressão. A performance dos trabalhadores é constantemente monitorada através das avaliações dos usuários (estrelas), que podem impactar diretamente a disponibilidade de novas demandas.

Recusas de viagens ou entregas, ou baixas pontuações, podem resultar em “consequências” que variam desde a diminuição do volume de trabalho oferecido até o bloqueio ou desativação da conta – uma espécie de “demissão” sem justa causa ou direito à defesa (Abramides; Lima, 2022). Essa gestão por algoritmos, desprovida de transparência e de instâncias claras de contestação, impõe uma subordinação velada, transformando a prometida autonomia em um controle digital rigoroso, característico da “nova forma de organização do capital e trabalho” (Antunes, 2018).

Essa modalidade de controle algorítmico não apenas precariza as condições financeiras, mas também acarreta graves consequências para a saúde mental dos trabalhadores. A vigilância constante, a pressão por altas avaliações e a imprevisibilidade da renda geram elevados níveis de estresse, ansiedade e depressão. A ausência de relações interpessoais com um “chefe” visível e a impossibilidade de diálogo com um algoritmo tornam a pressão ainda mais perniciosa, configurando uma forma de assédio moral algorítmico. Relatórios e pesquisas recentes (Giovanetti, 2023) têm demonstrado a correlação direta entre o modelo de trabalho por plataforma e o aumento de casos de adoecimento mental, evidenciando que a busca por produtividade máxima por parte das plataformas negligencia o bem-estar dos indivíduos que as tornam operacionais.

A precarização do trabalho uberizado não é, portanto, um subproduto acidental da inovação, mas sim uma estratégia deliberada para otimizar lucros ao desonerar as empresas de obrigações trabalhistas. Embora tribunais em algumas jurisdições, como a britânica, tenham reconhecido a existência de vínculo empregatício e garantido direitos aos trabalhadores de plataformas (Pinheiro, 2016; Antunes, 2018), a realidade jurídica brasileira ainda se mostra inconsistente e, em muitos casos, resistente a essa interpretação.

A luta pela regulamentação e pelo reconhecimento dos direitos trabalhistas nesse novo paradigma do capital-trabalho continua sendo um desafio fundamental para o futuro do mercado de trabalho, exigindo um arcabouço jurídico que transcenda a falsa dicotomia entre autonomia e subordinação para assegurar justiça social e dignidade aos trabalhadores da era digital.

3. BATALHA POR DIREITOS: DIÁLOGOS, OBSTÁCULOS E O FUTURO DA REGULAMENTAÇÃO DA UBERIZAÇÃO NO BRASIL

A persistência da precarização do trabalho no cenário digital brasileiro, em contraste com avanços em outras nações, sinaliza a necessidade urgente de um marco regulatório que efetivamente garanta dignidade e direitos aos trabalhadores de plataformas. O debate sobre o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 12/2024, que propõe uma nova categoria de “trabalhador autônomo por plataforma”, representa um passo nessa direção. Contudo, é fundamental que as discussões avancem para além das premissas de autonomia e considerem a real subordinação e o controle exercido pelas plataformas, buscando um equilíbrio que não disfarce o assalariamento e assegure condições de trabalho justas e seguras para a crescente massa de “escravos digitais”.

Iniciativas e movimentos sociais que buscam a proteção desses trabalhadores, como os Infoproletários, cujo objetivo é “denunciar e combater a exploração e os abusos que sofremos em nossa categoria e no conjunto da classe trabalhadora” (Antunes, 2018, p. 17), demonstram um reconhecimento crescente da importância de adaptar as leis à realidade do século XXI. No entanto, o desafio reside em construir arcabouços jurídicos que sejam eficazes em proteger a classe trabalhadora sem engessar a economia digital, promovendo um ambiente de trabalho justo e com segurança social em meio à flexibilidade imposta pelas novas tecnologias.

O Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 12/2024, proposto pelo Poder Executivo, busca regulamentar as relações de trabalho intermediadas por empresas operadoras de aplicativos de transporte privado individual de passageiros em veículos de quatro rodas. Seu principal objetivo é estabelecer mecanismos de inclusão previdenciária e garantir direitos trabalhistas mínimos para os motoristas que utilizam essas plataformas, visando melhorar suas condições de trabalho e assegurar proteção social adequada.

Desde sua apresentação em 5 de março de 2024, o PLp nº 12/2024 tem tramitado na Câmara dos Deputados, sendo analisado por diversas comissões, incluindo a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços; a Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público; a Comissão de Defesa do Consumidor; e a Comissão de Viação e Transportes. Ao longo de 2024, essas comissões realizaram audiências públicas para debater o projeto com representantes do governo, das empresas de aplicativos e dos motoristas, buscando aprimorar a proposta legislativa e equilibrar os interesses das partes.

Diante da crescente precarização, o PLP nº 12/2024 surge como uma tentativa de regulamentar o trabalho em plataformas digitais. O projeto é resultado de negociações entre trabalhadores, empresas e governo, buscando conciliar a flexibilidade do trabalho sob demanda com a necessidade de proteção dos direitos trabalhistas. O projeto de lei propõe, entre outros pontos, a criação de uma remuneração mínima por hora trabalhada e a inclusão dos trabalhadores de plataforma no sistema previdenciário, garantindo benefícios como auxílio-doença, aposentadoria e licença-maternidade.

O projeto também visa garantir a transparência dos dados, permitindo que os trabalhadores acessem informações claras sobre suas atividades e remuneração. É crucial considerar a importância da regulamentação do uso e da transparência dos dados gerados nas plataformas, visto que atualmente não há uma legislação específica para esse fim.

Apesar da clareza dos objetivos, a implementação da PLP nº 12/2024 enfrenta desafios significativos. Um dos principais é a definição da natureza jurídica da relação de trabalho. Embora o projeto considere o trabalhador de aplicativo como “autônomo por plataforma”, estabelecendo “inexistência de qualquer relação de exclusividade” e “inexistência de quaisquer exigências relativas a tempo mínimo à disposição e de habitualidade”, a realidade da subordinação algorítmica e do controle exercido pelas plataformas ainda gera controvérsias.

A dificuldade reside em conciliar a flexibilidade desejada pelas plataformas com a necessidade de proteção social, especialmente diante de um histórico de “pejotização” e da “falsa ilusão do empreendedor” que tem transferido os riscos e custos da atividade para o trabalhador. A fiscalização da “regularidade e veracidade das informações prestadas pelas empresas” será crucial, mas complexa.

Outro desafio premente é a abrangência da regulamentação. Atualmente, a PLP nº 12/2024 se concentra exclusivamente nos motoristas de veículos automotores de quatro rodas. Isso deixa de fora uma vasta gama de trabalhadores de plataformas, como entregadores (motoboys), que operam sob condições frequentemente ainda mais precárias e enfrentam riscos distintos.

A necessidade de expandir essa regulamentação para outras categorias é um ponto de debate intenso, e a ausência de um marco legal abrangente pode criar lacunas e perpetuar a precarização em outros setores da gig economy. Além disso, a capacidade de fiscalização e aplicação das multas administrativas em um setor tão dinâmico e globalizado representa um obstáculo considerável para a efetividade da lei.

No tocante à remuneração e à inclusão previdenciária, a proposta estabelece um valor horário mínimo de R$ 32,10 (trinta e dois reais e dez centavos), composto por R$ 8,03 (oito reais e três centavos) de retribuição pelos serviços e R$ 24,07 (vinte e quatro reais e sete centavos) para ressarcimento de custos, com reajustes vinculados ao salário mínimo. Além disso, determina que o trabalhador será considerado contribuinte individual, com alíquota de 7,5% (sete vírgula cinco porcento) sobre 25% (vinte e cinto porcento) do valor bruto auferido, e a empresa contribuirá com 20% (vinte porcento) sobre o salário de contribuição do trabalhador.

 Embora represente um avanço em relação à completa desproteção, a metodologia de cálculo da remuneração, que considera apenas o período entre a aceitação da viagem e a chegada ao destino, é criticada por não contemplar o tempo à disposição ou ociosidade, mascarando uma remuneração real por hora que pode ser inferior ao piso proposto. A eficácia dessa medida dependerá da capacidade de fiscalização da “remuneração mínima estabelecida” e da proibição de limitar a distribuição de viagens quando o trabalhador atingir o valor horário mínimo.

O futuro com esta regulamentação é incerto, mas aponta para uma tentativa de conciliação entre a inovação e os direitos sociais. Por um lado, a PLP nº 12/2024 representa um reconhecimento oficial da necessidade de dar alguma proteção aos trabalhadores de plataforma, buscando “reforçar não apenas os direitos trabalhistas, mas também os valores de solidariedade, justiça e dignidade”. Por outro lado, a manutenção da classificação como “trabalhador autônomo por plataforma” e a limitação da abrangência podem ser interpretadas como uma concessão que não aborda integralmente a questão do vínculo empregatício.

O sucesso da regulamentação dependerá de sua capacidade de adaptação às constantes evoluções tecnológicas e do mercado, bem como da pressão contínua de sindicatos e movimentos sociais por direitos mais abrangentes. A efetividade da “negociação coletiva” e a capacidade de fiscalização das “práticas abusivas, discriminação e precarização do trabalho” serão determinantes para moldar o futuro do trabalho uberizados no Brasil.

CONCLUSÃO

A análise empreendida sobre a uberização no mercado de trabalho brasileiro revela que, embora o fenômeno seja frequentemente celebrado pela flexibilidade e autonomia que oferece aos trabalhadores, ele oculta uma profunda e multifacetada precarização das relações laborais.

Os principais resultados demonstram que a ausência de vínculo empregatício formal transfere integralmente os riscos e custos da atividade para o trabalhador, que se vê obrigado a arcar com despesas operacionais e a submeter-se a jornadas exaustivas para garantir a subsistência. Além disso, o controle algorítmico, operando de forma opaca e onipresente, exerce uma subordinação velada, determinando tarifas, avaliações e até mesmo o desligamento da conta, o que impacta diretamente a saúde mental dos trabalhadores, gerando estresse, ansiedade e depressão.

As implicações desse sistema de trabalho são significativas para o campo do Direito do Trabalho e das Políticas Públicas. A persistência da tese da autonomia do trabalhador no Brasil, em contraste com o reconhecimento de vínculo em outros ordenamentos jurídicos, perpetua um limbo jurídico que vulnerabiliza milhões de indivíduos.

O PLP nº 12/2024, com proposta para regulamentar as relações de trabalho intermediadas por aplicativos de transporte de passageiros, representa um avanço inicial ao buscar inclusão previdenciária e direitos mínimos. No entanto, sua limitação de abrangência e a manutenção da classificação de “autônomo por plataforma” apontam para um debate contínuo sobre a capacidade dessa legislação de efetivamente combater a precarização e a “falsa ilusão do empreendedor”.

Em termos de pesquisas futuras, sugere-se aprofundar os estudos sobre o impacto da PLC nº 12/2024 após sua eventual implementação, monitorando a real efetividade das medidas propostas em mitigar a precarização e garantir dignidade aos trabalhadores.

É crucial também expandir a análise para outras categorias de trabalhadores de plataforma, como entregadores, que enfrentam desafios análogos ou até mais agudos. Investigações que explorem as dinâmicas de resistência e organização desses trabalhadores, bem como as estratégias das plataformas em se adaptar (ou contornar) a novas regulamentações, seriam de grande valia para o campo em análise.

Em síntese, este estudo reforça a contribuição para o campo científico ao desvelar a complexa teia de desafios impostos pela uberização, que vai além da simples flexibilidade, adentrando em questões de controle, precarização e saúde mental. A discussão sobre a PL nº 12/2024 ilustra a busca por um equilíbrio entre a inovação tecnológica e a necessária proteção social, sendo um passo importante, mas não final, na construção de um futuro do trabalho mais justo e equitativo.

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[1] Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, campus Caicó. Técnico têxtil pelo Instituto Federal do Rio Grande do Norte. Técnico em informática pelo SEBRAE. Email: gisliedsonlopes.gl@gmail.com.

[2] Graduação em Direito, Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (1999), graduação em Geografia, Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2001), mestrado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2009) e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2017). Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atuação acadêmica na área do Direito do Trabalho e Ciências Sociais, mas especificamente, no estudo das relações de trabalho: Email: carlos.nascimento@ufrn.br.