O CONSUMIDOR COM DEFICIÊNCIA E A SUA INCLUSÃO NA SOCIEDADE DE CONSUMO: UMA ANÁLISE À LUZ DO CDC E DA LBI

O CONSUMIDOR COM DEFICIÊNCIA E A SUA INCLUSÃO NA SOCIEDADE DE CONSUMO: UMA ANÁLISE À LUZ DO CDC E DA LBI

1 de março de 2022 Off Por Cognitio Juris

THE DISABLED CONSUMER AND THEIR INCLUSION IN THE CONSUMER SOCIETY: AN ANALYSIS BASED ON THE CDC AND THE LBI

Cognitio Juris
Ano XII – Número 39 – Edição Especial – Março de 2022
ISSN 2236-3009
Autores:
Sinézio Alves Gomes Júnior[1]
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira[2]

Resumo: Este artigo trata da importância da inclusão do consumidor com deficiência na sociedade de consumo, bem como dos avanços obtidos neste aspecto com a promulgação da Lei nº13.146/15 – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e da Lei nº8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor. Paralelamente, serão analisados alguns aspectos da sociedade moderna capitalista, bem como as implicações de sua adoção na vida da pessoa com deficiência, buscando-se o real entendimento da importância da inclusão na sociedade consumo e do sentimento de pertencimento. Além disto, serão analisados os efeitos práticos na vida da pessoa com deficiência no oferecimento de uma igualdade real na sociedade de consumo. Subsidiando a pesquisa, serão feitas pesquisas bibliográficas na base de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações – BBTD, aliado ao posicionamento de doutrinadores e sociólogos contemporâneos. Ao final, concluiu-se que a inclusão da pessoa com deficiência na sociedade de consumo possui um grande valor sociológico pois manifesta a concretude do que se objetiva com o Estatuto da Pessoa com deficiência e com o CDC, a manifestação da vida plena com a prática dos atos da vida civil.  Desta forma incluir a pessoa com deficiência na sociedade de consumo faz parte do processo contínuo de dignificação e ressignificação social, gerando um sentimento de pertencimento, expurgando as barreiras existentes para a prática de qualquer ato e avançando na agenda de construção de uma sociedade cada vez mais justa e igualitária.

Palavras-chave: consumo, pessoa com deficiência, inclusão social

Abstract: This article deals with the importance of including consumers with disabilities in the consumer society, as well as the advances obtained in this aspect with the enactment of Law No. 13.146/15 – Brazilian Law for the Inclusion of Persons with Disabilities (Statute of Persons with Disabilities ) and Law nº 8.078/90 – Consumer Protection Code. At the same time, some aspects of modern capitalist society will be analyzed, as well as the implications of its adoption in the life of people with disabilities, seeking a real understanding of the importance of inclusion in the consumer society and the feeling of belonging. In addition, the practical effects on the life of people with disabilities in offering real equality in the consumer society will be analyzed. Subsidizing the research, bibliographic research will be carried out in the database of the Brazilian Digital Library of Theses and Dissertations – BBTD, together with the positioning of contemporary scholars and sociologists. In the end, it was concluded that the inclusion of people with disabilities in the consumer society has great sociological value as it expresses the concreteness of what is aimed at the Statute of People with Disabilities and with the CDC, the manifestation of full life with practice of the acts of civil life. In this way, including the disabled person in the consumer society is part of the continuous process of dignification and social resignification, generating a sense of belonging, purging the existing barriers to the practice of any act and advancing in the agenda of building an increasingly society fair and equal

Keywords: consumption, people with disabilities, social inclusion

Introdução

Ao se falar em inclusão ou processo inclusivo da pessoa com deficiência, as primeiras imagens que normalmente permeiam o pensamento são as de calçadas esburacadas ou sem rampa de acesso, ônibus sem plataforma elevatória para cadeirante ou banheiros sem a adaptação devida. Normalmente as barreiras que mais saltam aos olhos são justamente estas em virtude de sua natureza arquitetônica, no entanto, existem diversas outras barreiras, muitas vezes esquecidas ou ignoradas, que são tão prejudiciais à vida da pessoa com deficiência quanto as ora relatadas.

A vida na sociedade pós-moderna é composta de diversos aspectos ou áreas, como os lados de um prisma, os quais necessariamente precisam estar interligados para dar sentido a forma, ou, de maneira análoga, a vida do cidadão, quer possua deficiência ou não. Desta forma, não é possível ter uma vida plena e digna se não há plenitude no exercício dos direitos e participação na sociedade.

Desta forma, diante da crescente visibilidade do Pessoa com Deficiência (PCD) na mídia e nas novas legislações, e dos crescentes esforços de inserção social, este estudo tem por alvo compreender a importância da inclusão na sociedade de consumo em relação a pessoa com deficiência, baseando-se nos preceitos estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e na Lei Brasileira de Inclusão (LBI), e como estas legislações se complementam neste sentido.

Tal debate demostra-se relevante considerando os dados do Censo[3] Demográfico do ano de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ao qual assevera que 45.606,048 milhões de pessoas, o que representa em torno de 23,9% da população brasileira, declaram possuir alguma deficiência.

Respaldando a exposição traremos o entendimento de pesquisadores e doutrinadores acerca dos reflexos sociais deste processo e faremos uma análise dos impactos sócio legislativos que estas legislações proporcionam no processo inclusivo.

Apoiado neste debate, destaca-se o problema central do artigo qual seja: como a LBI e o CDC podem colaborar na inclusão da pessoa com deficiência na sociedade de consumo em condições de igualdade com os demais cidadãos?

Quanto aos aspectos metodológicos, será utilizado o método dedutivo estudando-se os conceitos pacificados na doutrina e jurisprudência, trazendo como complemento o posicionamento da academia sobre a os avanços obtidos com o advento da lei nº 13.146/15 e da lei nº8078/9 como instrumento de inclusão social da pessoa com deficiência na sociedade de consumo pós-moderna.

Por fim, o presente artigo está dividido em quatro tópicos, onde o primeiro e o último tratam da Introdução e Considerações Finais, respectivamente. Já o segundo trata da sociedade de consumo, o terceiro sobre a igualdade e o processo inclusivo na sociedade de consumo, o quarto discorre a Lei Brasileira de Inclusão e o CDC no contexto de proteção da pessoa com deficiência sobre subdividindo-se em dois tópicos: a evidenciação das barreiras e o processo inclusivo.

2  A sociedade de consumo

          O Brasil historicamente adotou o capitalismo como seu sistema econômico e social, fundando-se na propriedade privada e no livre mercado. Conforme assevera o Art. 1º, IV da Carta Magna:

  Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (grifo nosso)

 Ao longo de seu processo de desenvolvimento o capitalismo viveu três fases: a fase mercantilista, com o fortalecimento do comércio, a fase industrial, ocorrida durante a revolução industrial, e a fase monopolista ou financeira, em vigor após as guerras mundiais destacando o papel dos bancos e das grandes corporações. Esta última fase é a que vigora atualmente em boa parte dos países do mundo, incluindo o Brasil (PENA, 2021).

          O capitalismo possui como motor que o impulsiona o consumo de bens e serviços oferecidos ao público que, em número crescente, exige uma maior produção, qualidade e especificidade dos seus produtos.

          Atualmente a população mundial está em torno de 7,8 bilhões de habitantes, segundo dados do Worldometer[4], dos quais, segundo a OMS[5], em estudo realizado em 2011, 1 bilhão de pessoas vivem com alguma deficiência. Neste universo de pessoas, desde tenra idade, a grande maioria são potenciais consumidores, os quais, mediante o consumo, acarretam impactos profundos na economia podendo criar nichos de mercado.

Desta forma, pode-se afirmar que estamos imersos em uma sociedade de consumo, a qual é calcada no crescimento do consumismo para manter a circulação de capital e garantir a geração de lucro. Assim, entende-se por sociedade de consumo a era contemporânea do capitalismo em que o crescimento econômico e a geração do lucro e riqueza encontram-se predominantemente pautados no crescimento da atividade comercial e, consequentemente no consumo (SOARES, 2018, p.3).

Livia Barbosa (2004, p.13) afirma que todo e qualquer ato de consumo é essencialmente cultural e é por meio do consumo individual e local que ocorrem alterações nas forças globais de circulação, inovação tecnológica e relações políticas. Assim, podemos afirmar que o consumo acabou se tornando o centro e direcionador de diversos aspectos da vida em sociedade. Não é exagero afirmar que a cultura, ideias, aspirações e objetivos profissionais acabam recebendo forte influência da sociedade de consumo, ao invés de outras dimensões sociais como trabalho, educação e cidadania.         

A forte influência imposta por este movimento consumista, reverbera no cotidiano dos cidadãos os quais precisam se interrelacionar para concretizar atos rotineiros, que necessariamente precisam ser praticados. Medidas simples como ir a uma padaria, supermercado ou farmácia, são incorporadas à rotina do cidadão comum, no entanto, acabam não sendo oportunizadas de maneira uniforme para toda a coletividade.

Notadamente a pessoa com deficiência, mas especificadamente as pessoas acometidas com deficiências visuais, na fala ou motora, são as que enfrentam maiores dificuldade para realizar estas atividades do dia a dia, quando estas não são completamente inviabilizadas pelas barreiras existentes.

Dallari (2004) entende que os seres humanos vivem juntos, não apenas porque escolheram esse modo de vida, mas porque a vida em sociedade é uma necessidade da natureza humana.  Estas necessidades podem ser tanto de natureza material como roupas, alimentos, moradia, como de ordem psicológica, como o afeto, amar e sentir-se amada, atenção etc.

Participar da sociedade de consumo é estar apto a praticar os atos que a compõem: comprar, vender ou utilizar serviços por conta própria, em igualdade de condições. Em seu artigo inaugural a Lei Brasileira de Inclusão – LBI, assevera que o seu principal objetivo é promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando a sua inclusão social e cidadania.

O processo de inclusão das pessoas com deficiência não se resume somente ao direito ao trabalho, à educação, ou acesso aos órgãos públicos, mas engloba todos os aspectos da vida moderna, inclusive os que eventualmente surgirem em virtude de avanços tecnológicos.

Observa-se que na última década houve diversos avanços no processo inclusivo, mas ainda existem situações que requerem um olhar atento, especialmente quando se fala em sociedade de consumo, como o fato de ser quase nula nas gôndolas dos supermercados produtos com linguagem braile em seus rótulos, para que o cidadão cego possa identificar o que está comprando e seus ingredientes. Semelhantemente, um cidadão que seja surdo-mudo e utilize a linguagem brasileira de sinais – LIBRAS, dificilmente conseguirá se comunicar com um atendente ou caixa de supermercado por falta de preparo do funcionário, assim como um cidadão que use cadeira de rodas consegue alcançar um produto no topo da prateleira quando na verdade deveria existir uma pessoa para auxiliá-lo desde o momento que adentra no estabelecimento comercial.

Pequenos atos da vida cotidiana praticados por pessoas com deficiência imersos em uma sociedade de consumo, embora aparentemente simplórios, possuem um significado que extrapola o próprio valor do objeto ou ato em si, haja vista representar a manifestação da igualdade de oportunidades constitucionalmente prevista e reafirmada no ideal da Lei Brasileira de Inclusão, expondo como resultado uma redução das barreiras eventualmente existentes e a concretização de um processo real de inclusão.

3  A igualdade e o processo inclusivo na sociedade de consumo

Bauman (2008) ao discorrer sobre a sociedade de consumidores conclui que o valor supremo buscado é uma vida feliz, e que esta sociedade promete uma felicidade perpétua e instantânea não admitindo aqueles que pensam de maneira contrária ou o próprio sentimento de infelicidade, desqualificando este tipo de pessoa como membro autêntico da sociedade.

          A felicidade mencionada por Bauman é um valor subjetivo perseguido por todos indistintamente de modo que a forma de se atingir tal objetivo varia segundo os valores intrínsecos de cada um, sem deixar de lado os fatores culturais impostos pelo movimento consumerista. Não é possível se falar em felicidade, no tocante as pessoas com deficiência, mesmo que fundamentada em diferentes alicerces ou culturas, sem adentrar em duas variáveis que necessariamente a afetam diretamente: a igualdade e a inclusão social.

          Gonçalves (2010) compreende que a igualdade é um conceito mutável no tempo, adaptando-se ao dinamismo das carências e das reivindicações sociais. Observa ainda que a sociedade evoluiu de um estágio em que se entendia como sendo natural a desigualdade, passando pela defesa da igualdade formal e alcançando a igualdade material (igualdade de oportunidades).

A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu art. 5º o Princípio da Igualdade entre todos os cidadãos sem qualquer espécie de distinção garantindo-se, dentre outros direitos, o direito à vida, aqui entendida não somente no sentido do direito de viver, mas de viver com dignidade, com um mínimo existencial.

A igualdade prevista na CF/88 manifesta-se em dois aspectos: a igualdade formal e a igualdade material. Por igualdade formal entende-se como a igualdade perante a lei, voltado a aplicação das normas. Já a igualdade material diz respeito a capacidade de dispor e usufruir dos direitos previstos em igualdade de oportunidade com os demais.

Novelino (2016) entende o conceito como uma igualdade real entre os cidadãos, sendo, portanto, pressuposto para uma vida digna. Afirma ainda que a construção de uma sociedade justa e solidária (princípio da solidariedade)e a busca pela redução das desigualdades sociais e regionais estão associadas à concretização do princípio da igualdade, em seu aspecto substancial (igualdade material).

Barbosa (1999), em célebre reflexão, afirma que a regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Complementa ainda que a desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade…Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.

Assim, não é possível conceder o mesmo tratamento na sociedade de consumo a cidadãos que não podem usufruir em condições de paridade com os demais tudo aquilo que é oferecido. Não se está considerando a capacidade financeira, mas a faculdade de dispor dos recursos financeiros da maneira que lhe for mais conveniente e onde quiser, possuindo a liberdade de escolha e de determinar-se perante o mercado.

Sen (2011) conclui que “a igualdade é exigida de alguma forma básica mesmo por aqueles que colocam em dúvida os “argumentos a favor da igualdade” e expressam ceticismo sobre a importância central da “justiça distributiva”. Ou seja, mesmo aqueles que são contrários a políticas de igualdade ou Justiça distributiva, não aceitam desigualdades irrazoáveis.

          Desta forma entende-se que a igualdade pretendida pelo legislador se manifesta no sentido de que todos tenham a mesma oportunidade de usufruir dos direitos previstos a fim de se obter uma vida digna, nem que para tanto, por meio de políticas afirmativas, ocorram tratamentos diferenciados para ser obter uma real igualdade social. Assim adotamos o pensamento de Gonçalves (2010) ao afirmar que a igualdade possui três dimensões: a dimensão clássica liberal, a qual se preocupa com o tratamento normativo igualitário, a dimensão democrática, não permite as discriminações positivas, e a dimensão social, que defende a eliminação das desigualdades fáticas, buscando a igualdade material e não apenas a formal.

          Esta igualdade pretendida caminha em paralelo com o processo social inclusivo, ou seja, não se pode exigir uma igualdade real sem que exista um processo inclusivo em curso, da mesma maneira que não se pode haver um processo inclusivo sem que a igualdade seja garantida, são condições interdependentes.

          Ser cidadão presume a existência de obrigações e direitos perante o Estado, desta forma, as legislações protetivas, a qual destacamos a Lei Brasileira de Inclusão – LBI, possui como objetivo maior a plena inclusão da pessoa com deficiência por meio da eliminação das barreiras existentes, independentemente do tipo de deficiência que acomete o cidadão.

Tal critério se demonstra correto por considerar os ditames constitucionais, em especial o art. 5º que diz:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, … (grifo nosso)

Apresentando-se como pressuposto a igualdade perante a lei, exercer os direitos e cumprir os deveres, ao Estado cabe garantir o exercício pleno dos atos da vida civil. Desta forma, não adianta centrar-se na deficiência desconsiderando que o real problema da pessoa com deficiência são as barreiras existentes para a consecução de uma vida digna.

          Ao objetivar o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais, o Estatuto da Pessoa com Deficiência reafirma o compromisso de tornar a pessoa com deficiência um verdadeiro cidadão no sentido amplo da palavra, ou seja, participante da vida cívica e das deliberações que digam respeito a toda a coletividade. Ser cidadão, como afirma Ramos (2020), é ter direito a direitos: como a vida, a liberdade, à propriedade, à saúde, dentre outros, que não se resumindo somente ao exercício dos direitos sociais.

          Dallari (2004, p.22) entende que a cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida em sociedade e do governo do seu povo. Acrescenta ainda que, quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social.

          Participar da sociedade de consumo é a clara manifestação de um direito fundamental, ainda que não previsto de maneira expressa, a qual acaba revelando o grau de maturidade e adaptação da sociedade em relação ao PCD. Considerar um direito fundamental implica dizer que ele dá início ou serve de alicerce para a construção de um arcabouço jurídico, ou seja, fornece bases que devem ser respeitadas sob pena de uma provável ilegalidade. Sen (2010) vai dizer que o cidadão, independentemente de ser deficiente ou não, tem que ser livre das pessoas para expandir suas capacidades (“capabilities”) segundo sua valorização individual e que, ao governo, cabe apenas auxiliar este desenvolvimento por meio das políticas públicas.

          Desta forma, caracterizar o direito à inclusão na sociedade de consumo como fundamental é de suma importância pois ele concede um corpo e alma a outros direitos, uma verdadeira materialização dos direitos formalmente previstos.    

A convivência social, por sua vez, é um dos fatores mais importantes no processo de inclusão da pessoa com deficiência, haja vista ser um exercício constante e interminável, pois o movimento inclusivo surge a partir do instante que a pessoa com deficiência é exposta a prática dos atos da vida civil e, em virtude da deficiência, não consegue exercê-los em sua plenitude. Sassaki (1997) diz que a inclusão social é “um processo bilateral no qual as pessoas ainda excluídas e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos.”

Silveira (2008) afirma:

“O ser humano capta a realidade, tornando-a objeto de seus conhecimentos. Passa a refletir sobre a realidade e a compreender seus desafios para tentar superá-los. Não se limita a adaptar-se à realidade, mas a transforma, e neste processo, transforma-se a si próprio. É um ser que planeja, revisa e verifica suas ações, imaginando seus efeitos no futuro (consequências). É também um ser que transforma sua mente e o ser “eu” nas relações sociais. O diálogo “eu” e “você” é essencial à sua formação.

Uma sociedade desenvolve um sistema para consagrar seus valores e estabelecer conceitos morais-éticos, e sob este aspecto constitui uma ordem social vital para a sua manutenção, além disso, a observância de algumas formas de conduta fornece soluções para os eventuais conflitos existentes num determinado agrupamento (CEZAR, 2019).

Pinsky (2003) entende que os direitos sociais, quanto a sua aplicação, não afetam de igual modo todos os cidadãos pois para alguns, é condição muitas vezes fundamental para a sua sobrevivência física e emocional – e, portanto, para o exercício dos demais direitos humanos.

          O fato de a pessoa com deficiência ser incluída na sociedade de consumidores, no sentido de poder dispor de seus recursos e manifestar sua vontade por meio da participação direta nos atos praticados, além de uma clara manifestação da efetividade da igualdade material, possui como um dos grandes benefícios intrínsecos a descoberta das barreiras existentes, tornando-as combatíveis para que se alcance uma maior igualdade real.

4  A Lei Brasileira de Inclusão e o CDC no contexto de proteção da pessoa com deficiência: a sua inclusão na sociedade de consumo

Como exposto anteriormente as legislações protetivas possuem como foco central a concretização do ideal da igualdade real entre os cidadãos promovendo uma inclusão social a qual presume a prática autônoma e independente dos atos da vida civil, inclusive das relações jurídicas de consumo. Diante disto, selecionou-se duas legislações que, harmonicamente, protegem o cidadão e combatem abusos em seus respectivos campos de atuação, promovendo uma maior inclusão do PCD na sociedade de consumo: a Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e o Código de Defesa do Consumidor.

Em 1990 foi sancionada a Lei nº 8078/90, o Código de Defesa do Consumidor, a qual estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social. Esta lei segue os ditames da Política Nacional das Relações de Consumo, a qual, segundo o CDC, tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo.

Já, no ano de 2015, foi instituída a Lei nº 13.146/15, chamada de Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), tendo como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a qual destina-se a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.

          Antes de nos aprofundarmos nas referidas legislações é importante compreender o papel social desempenhado por elas no contexto de proteção à pessoa com deficiência. Preliminarmente, observa-se que em suas linhas inaugurais, ambos os textos, esclarecem seu viés protetivo ao definir seus objetivos e conceituar os termos principais: consumidor e pessoa com deficiência.

          Esta conceituação é deveras importante por auxiliar na delimitação do púbico alvo vulnerável de seus dispositivos e estabelecer parâmetros para utilização pelos operadores do direito. Segundo o CDC, em seu art. 2º, consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, por esta conceituação observa-se que não há condicionantes de natureza intrínseca, ou seja, as características particulares do sujeito não são consideradas. Desta forma, entende-se que o público-alvo é formado por todos aqueles que são consumidores ou potenciais consumidores, os quais desejam participar da sociedade de consumo, observando o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos e a melhoria da sua qualidade de vida.

          Desta forma, nota-se que o CDC não trata a relação consumerista como simples ato comercial, mas como uma transação nas quais o respeito a dignidade do consumidor, a harmonia na relação e a transparência devem ser respeitadas, além do dever de que o produto siga padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, assegurando-se ao consumidor a liberdade de escolha utilizando-se de informações adequadas e claras.

Já, em relação ao Estatuto da Pessoa com Deficiência, a pessoa com deficiência é entendida como:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (grifo nosso)

          Desta forma, a pessoa com deficiência, é caracterizada pela sua limitação a qual, em contato com as barreiras existentes, a impede de usufruir de uma participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com os demais.

          De posse destes conceitos, sob a ótica da sociedade de consumo, pode-se observar que se tratam, em representação gráfica, de dois círculos concêntricos de tamanhos diferentes onde um engloba o outro. No caso, o ser consumidor, engloba a figura da pessoa com deficiência participante da sociedade de consumo, ou seja, delimitando a discussão à área de convergência das duas legislações obtém-se as pessoas com deficiência participantes ou potenciais participantes da sociedade de consumo.

          Para ser ter uma noção da dimensão populacional em análise, segundo dados do Censo demográfico do IBGE realizado em 2010, 23,9% da população brasileira tem algum tipo de deficiência, ou seja, aproximadamente 45,6 milhões de pessoas declararam ter pelo menos uma deficiência. Este grande grupo, imerso na sociedade, precisa conviver e se relacionar, praticar os atos do cotidiano como um óbvio pressuposto da vida em uma sociedade moderna. Desconsiderar esta realidade demográfica exposta e as adaptações necessárias é ter a ilusão de que todos os cidadãos exercem seus direitos em igualdade de oportunidades na sociedade consumerista.

          Dallari (2004) afirma que a sociedade humana é produto da necessidade de convivência, que é condição essencial para que as pessoas possam gozar de seus direitos. Essa convivência deve ser ordenada, para evitar conflitos e assegurar as mesmas possibilidades a todos, devendo também ser democrática, para que os direitos não se reduzam a privilégios de alguns.

          O público geral, na perspectiva de consumidor, encontra-se em uma posição de vulnerabilidade no mercado de consumo (art. 4º, CDC), no entanto, ao acrescentarmos o ser pessoa com deficiência, há uma potencialização da condição de vunerabilidade e, à luz do Código de Defesa do Consumidor com relação ao consumidor ordinário, tem havido o reconhecimento da pessoa com deficiência como sujeitos hipervulneráveis. Estes últimos requerem uma proteção qualificada em razão do fato de a hipervulnerabilidade consistir em uma situação social de fato e objetiva na qual a vulnerabilidade é agravada (MANFREDINI; BARBOSA, 2017, p.98-107).

          Desta forma, Manfredini (2017) afirma que é essencial o diálogo entre os microssistemas de proteção das pessoas com deficiência e dos consumidores, pois desta forma se possibilita a plena proteção jurídica ao enquadrar em hipervulnerável esse grupo social, permitindo-se, inclusive, a indenização por danos morais nas hipóteses de abusos, uma vez que há uma gama de recursos disponíveis no mercado que incentiva o consumidor com deficiência a adquirir e contratar serviços almejando sua autonomia e melhor qualidade de vida.

          Notadamente a pessoa com deficiência, com a devida participação social, será exposta as barreiras existentes. Tais barreiras, conceituadas no Estatuto da Pessoa com Deficiência, somente são descobertas com a devida inclusão da pessoa com deficiência na sociedade, inclusive na de consumidores, com a prática de atos rotineiros, como usar o transporte público, frequentar uma universidade, ir as compras em um supermercado ou comprar roupas em uma loja qualquer.

          Desta forma, para a plena proteção jurídica, bem como para o combate as barreiras existentes na sociedade de consumo, o diálogo entre estes dois microssistemas jurídicos é essencial, pois trabalham de maneira complementar em relação a pessoa com deficiência proporcionando ferramentas para o combate a discriminações irrazoáveis. Como resultado, será construída uma sociedade mais inclusiva na qual todos, independente de sua condição, poderão usufruir de igual maneira, sem a existência da aura de “privilegiados” e “excluídos”.

Considerações Finais

          A pessoa com deficiência, ao longo da história, sempre buscou o exercício de seus direitos em condições de igualdade com os demais. Muito se falou em relação ao direito à educação, ao trabalho, ao lazer e ao direito de ir e vir, no entanto, na sociedade pós-moderna, o direito à inclusão na sociedade de consumo revelou-se tão importante quanto os demais. Participar da sociedade de consumo significar ter autonomia para utilizar de seus recursos da maneira que achar mais conveniente possuindo liberdade para decidir e se posicionar com total independência.

 Nesta linha, tanto o Código de Defesa do Consumidor, como a Lei Brasileira de Inclusão, de maneira harmônica, revelam-se como importantes instrumentos normativos garantidores desta inclusão, os quais vão proporcionar ferramentas para a busca pela efetivação de um direito tão basilar na sociedade capitalista.

          O processo inclusivo possui diversas facetas, no entanto, o consumo, ou melhor, a inclusão na sociedade consumerista, não é abordada com a mesma importância que os demais. Parte desta desvalorização da inclusão na vida consumerista, não se deve a ela em si, mas entendemos como uma valorização demasiada de outras áreas, com o consequente esquecimento de outras. 

          Não se pretendeu, por evidente, esgotar o tema, mas demonstrar que a vida social da pessoa com deficiência, semelhantemente a um prisma, possui diversas faces necessariamente conectadas, que só alcançam a sua plenitude quando em perfeita harmonia.

          A inclusão na sociedade de consumo deve ser vista como mais uma forma de manifestação plena da cidadania, do processo de construção da vida digna, pois demonstra mais uma etapa de autonomia alcançada pela pessoa com deficiência. Desta forma, justifica-se falar em processo inclusivo notadamente por se manifestar em diversas áreas que necessariamente se conectam em torno de um objetivo comum

          Conclui-se que o consumo ou a inclusão na sociedade de consumo, assim como o direito à educação, ao trabalho e ao lazer, necessita de maior atenção, concretizando o que o CDC e a LBI já preveem. Não se pode falar em vida digna e consequentemente inclusão social sem a promoção desta liberdade, ora, semanalmente, um cidadão comum frequenta a feira livre, um supermercado, um restaurante ou uma loja de departamento, e nestes ambientes exerce seu direito de escolha como consumidor. A privação ou limitação deste aspecto da vida é tão prejudicial quanto a não concretude dos demais direitos sociais pois implica no surgimento do sentimento de exclusão social e de não pertencimento.

          Por fim, conclui-se que a inclusão do consumidor com deficiência na sociedade de consumo é um grande avanço em seu processo de dignificação, refletindo o grau de maturidade social e demonstrando que, independentemente da condição a qual se encontre, a qualquer cidadão deve ser  oportunizado a possibilidade de dispor de seus recursos e se determinar perante a sociedade.

Referências

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[1] Mestrando em Direito e Desenvolvimento pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE).

[2] Doutora em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Valencia-Espanha, professora do Programa de Mestrado em Direito e Desenvolvimento do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE).

[3] https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf

[4] Site independente que monitora dados da população mundial. Suas informações são utilizadas por diversas universidades e governos ao redor do globo. Site: https://www.worldometers.info/

[5]http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/70670/WHO_NMH_VIP_11.01_por.pdf;jsessionid=4E585459DBF72CB8C274F6F88EF6A2A4?sequence=9