MÃES ENCARCERADAS: A INTERPRETAÇÃO DA IMPRESCINDIBILIDADE DO CUIDADO MATERNO NA CONCESSÃO DE PRISÃO DOMICILIAR PELO PODER JUDICIÁRIO

MÃES ENCARCERADAS: A INTERPRETAÇÃO DA IMPRESCINDIBILIDADE DO CUIDADO MATERNO NA CONCESSÃO DE PRISÃO DOMICILIAR PELO PODER JUDICIÁRIO

20 de setembro de 2023 Off Por Cognitio Juris

INCARCERATED MOTHERS: THE INTERPRETATION OF THE INDISPENSABILITY OF MATERNAL CARE IN THE GRANTING OF HOUSE ARREST BY THE JUDICIARY

Artigo submetido em 09 de setembro de 2023
Artigo aprovado em 18 de setembro de 2023
Artigo publicado em 20 de setembro de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 49 – Setembro de 2023
ISSN 2236-3009

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Autores:
Lívia García Moro Dalla Vecchia[1]
Lygia Maria Copi[2]

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RESUMO: Entre 2000 e 2022, a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou mais de 400%, crescimento este que não foi acompanhado, conforme informações estatísticas divulgadas pelo Ministério da Justiça, pelo número de vagas e infraestrutura das unidades prisionais para esse público. Dada essa realidade, o artigo busca responder ao seguinte questionamento: Em relação aos direitos da mãe encarcerada, o que se entende sobre imprescindibilidade do cuidado materno à luz da Lei 13.769/18 e como a jurisprudência pátria tem entendido a questão? Para tanto, partiu-se da premissa da perspectiva de gênero, utilizando-se de estudos sobre o patriarcado, o feminismo, bem como a criminologia feminista. A proposta seguiu o método bibliográfico e contou com investigação acerca do sistema legal penal, de princípios norteadores da execução penal, além de análise estatística, assim como ilustrou a matéria com decisões jurisprudenciais como reforço argumentativo. Por derradeiro, evidenciou-se com a pesquisa a premente necessidade de estudos, investimentos e atuação jurisdicional massiva na proteção de direitos deste público. Concluiu-se que mesmo com decisões favoráveis a fim de afastar a necessidade da imprescindibilidade dos cuidados maternos, os tribunais continuam a negar o direito conferido baseando-se em uma restrição que o próprio artigo 112, §3º ou o artigo 117, da Lei de Execuções Penais não trazem.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Execução Penal. Gênero. Criminologia Feminista. Proteção à maternidade.

ABSTRACT: Between 2000 and 2022, the rate of imprisonment of women increased by more than 400%, a growth that was not accompanied, according to statistical information released by the Ministry of Justice, by the number of vacancies and infrastructure of prison units for this public. Given this reality, the article seeks to answer the following question: In relation to the rights of imprisoned mothers, what is understood about the indispensability of maternal care in the light of Law 13.769/18 and how has case law understood the issue? To this end, we started from the premise of the gender perspective, using studies on patriarchy, feminism, as well as feminist criminology. The proposal followed the bibliographic method and included research into the criminal legal system, the guiding principles of penal execution, as well as statistical analysis, and illustrated the matter with jurisprudential decisions as argumentative reinforcement. Finally, the research highlighted the urgent need for studies, investments and massive judicial action to protect the rights of this public. It was concluded that even with favorable decisions in order to rule out the need for maternal care, the courts continue to deny the right based on a restriction that Article 112, §3 or Article 117 of the Penal Execution Law does not contain.

KEYWORDS: Criminal law. Criminal execution. Gender. Feminist Criminology. Maternity protection.

1. INTRODUÇÃO

O encarceramento feminino vem sofrendo aumento importante no Brasil nas últimas décadas. Esse impacto é percebido não apenas no ambiente físico em termos de infraestrutura penitenciária, como também no aspecto social e político, pelo viés da precarização no tratamento que se dá às mulheres e às crianças submetidas ao sistema prisional.

Em 2000 o departamento penitenciário nacional contabilizou 10.285 mulheres presas entre as reclusas em cadeias públicas e penitenciárias (Ministério da Justiça, 2014). No relatório divulgado em julho de 2023 (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023, p. 279), os números de 2022 indicavam 45.388 mulheres, um aumento nas duas últimas décadas de mais de 400%.

Observa-se que a gradativa transferência para o sistema penitenciário não significou, necessariamente, uma melhoria das condições de vida destas internas. A questão do encarceramento feminino e, especificamente, o encarceramento materno, passou a servir de alerta tanto para os entes governamentais quanto para a sociedade civil que, nos últimos anos, têm produzido um volume maior em trabalhos acadêmicos, relatórios estatísticos, dispositivos legais e diretrizes de políticas públicas para apurar as reais circunstâncias do problema enfrentado e, assim, buscar meios mais eficazes de enfrentamento desta problemática.

Diante desse cenário, torna-se relevante a realização de estudos para um subgrupo ainda mais fragilizado, as mães encarceradas, que enfrentam desafios ainda mais complexos, como a separação de seus filhos e a necessidade de garantir um ambiente adequado para o seu desenvolvimento. A proteção dos direitos maternos e infantis deve ser uma prioridade em qualquer discussão relacionada ao encarceramento feminino no Brasil, devido ao direito fundamental de proteção à infância e à maternidade, prescrito no artigo 6º da Constituição Federal, e à prioridade absoluta dos direitos infanto-juvenis, nos termos do artigo 227 do texto constitucional.

Tal perspectiva funda as bases para a construção do presente trabalho, que visa buscar respostas para o seguinte problema: Em relação aos direitos da mãe encarcerada, o que se entende sobre imprescindibilidade do cuidado materno à luz da Lei n. 13.769/18 e como a jurisprudência pátria tem entendido a questão?

Embora, como se verá, a lei garanta um rol de direitos explícitos às mães 2.2, a jurisprudência maneja a concessão de benefícios considerando peculiaridades que muitas vezes são criticadas pela doutrina, denotando que existe um embate argumentativo nas diferentes esferas. As razões utilizadas para o afastamento da prisão domiciliar, seja na fase cautelar ou em sede de execução, têm se pautado muitas vezes na imprescindibilidade do cuidado materno sem que haja expressa disposição legal.

Insta consignar que o artigo se trata de pesquisa hipotético-dedutiva, baseada em método bibliográfico, com análise de livros, artigos científicos, dados estatísticos e outros trabalhos do gênero, utilizando-se, por fim, do aparato jurisprudencial como reforço argumentativo.

A princípio o trabalho buscará investigar como os aspectos relacionados ao gênero contribuem para a desatenção em políticas públicas voltadas à maternidade encarcerada. Neste tópico, serão abordadas questões como a dominação masculina através do patriarcado com breves apontamentos acerca da construção histórica desta cultura comportamental.

Ainda, trará breves apontamentos sobre os conceitos de feminismo e o ingresso deste movimento social na criminologia crítica e posterior criminologia feminista. Na sequência, buscará examinar os dispositivos legais coletados da legislação internacional e nacional de amparo à mãe encarcerada, transitando, ainda, pelos direitos conferidos às crianças de adolescentes à convivência familiar.

Por fim, a fim de ilustrar e fomentar debate, o trabalho discutirá como vêm sendo aplicada a questão da imprescindibilidade do cuidado materno, termo cunhado pela Lei 13.769/18 que vêm sendo aplicado pela jurisprudência pátria para negar o benefício da prisão domiciliar, seja ela preventiva ou aquela insculpida no artigo 117, inciso III, da Lei de execuções Penais.

2. A QUESTÃO DE GÊNERO NO ENCARCERAMENTO FEMININO

“Não se nasce mulher, torna-se” (Beauvoir, 1967, p. 9) em nada se relaciona a seu sexo biológico, mas sim a sua redução enquanto ser humano por meio do discurso de que o seu sexo biológico permite que sua autonomia e liberdade sejam tolhidos.

É neste sentido a lição de Baratta (1999, p. 21) quando menciona que ninguém nasce com um papel pré-determinado de gênero, tal decorre de uma construção social e se desenvolve com o tempo, sendo o ponto de partida para avaliação crítica da divisão social do trabalho entre homens e mulheres.

A perspectiva de gênero traduz-se em fundamental importância, pois é através deste elemento, e não do sexo ou da sexualidade, que são construídas políticas públicas que buscam a igualdade (Alves, 2016, p. 7). O mesmo ocorre, por exemplo quando se trata de outras minorias, tais como idosos e pessoas com deficiência.

No contexto do tema discutido, é possível inferir que dentre tantas outras adversidades enfrentadas pela população feminina encarcerada, nota-se, desde logo, um aparato deficiente de informações e pesquisas específicas sobre a sua realidade (Lima, 2017, p. 13), assim como a ausência de políticas públicas voltadas para mulheres em situação de cárcere.

Conforme se vê, a importância de as discussões partirem da perspectiva de gênero auxiliam no melhor entendimento da sistematização em que está inserida a mulher enquanto encarcerada (Spindola, 2016, p. 8). Esta abordagem permite analisar não apenas as condições nas prisões, mas também as causas subjacentes do encarceramento feminino, como violência doméstica, pobreza e falta de acesso a serviços de saúde mental.

Por muito tempo a explicação tida como científica girava em torno da biologia dos sexos, utilizando-se do termo “ciência” para dar peso à ideia. Contudo, mesmo essa ciência foi construída pelo homem branco heterossexual ocidental, ou seja, vista pelo prisma androcentrista.

Louro (1997, p. 21-22) orienta que não se nega a biologia dos corpos, contudo, encontra-se em evidência as construções histórica e social assentadas sobre o aspecto biológico. Necessário, assim, reposicionar a discussão para o campo das ciências sociais, uma vez que é nesta seara que as relações cunhadas de desigualdade se desenrolam entre as pessoas.

Nesta senda, é válida a menção do termo patriarcado, que, diferente do que se possa pensar, não surgiu com o feminismo. Embora possa ter aprimorado seu sentido, Max Weber e Friedrich Engels já o abordavam como dos mais remotos sistemas de dominação, de maneira que Mendes (2014, p. 87) o definiu como uma “[…] manifestação e institucionalização do domínio masculino sobre as mulheres e crianças da família”.

Quanto ao feminismo, este pode ser compreendido inicialmente como o movimento social que reivindica direitos básicos sociais e políticos já outrora destinados e usufruídos pelos homens, também a melhoria na condição de vida das mulheres e o acesso a oportunidades equânimes.

Scavone (2008) lembra que o feminismo é delineado através de seus momentos históricos e dividido em três grandes fases (também nomeadas como as três grandes ondas): universalista, também denominada humanista ou, ainda, de lutas igualitárias pela conquista de direitos civis, políticos e sociais; a fase diferencialista, também chamada de essencialista, decorrente da busca pela afirmação das diferenças e da sua identidade; e a terceira fase, intitulada pós-moderna, conforme balizado pela autora, derivando do desconstrucionismo, que apoia a ideia de sujeitos múltiplos.

A primeira onda é notada na virada do século com o movimento sufragista, abarcando majoritariamente as reivindicações de mulheres brancas de classe média. A segunda onda tem início apenas em 1960 que se ocupa além dos acontecimentos políticos e sociais próprios à época, com a construção de uma base teórica (Capelesso, 2015).

O circuito europeu há muito concentrava grupos expressando suas insatisfações e revoltas frente modelo político e social, compostos pelas mais diversas minorias, mulheres, negros, jovens, dentre outros.

Impende ressalvar que essa ocultação da mulher no universo doméstico e privado já vinha sendo desfeita gradualmente, uma vez que a classe de mulheres trabalhadoras no setor fabril e no campo já abriam caminho para que outras posteriormente ocupassem hospitais, escolas, escritórios. Contudo, ainda assim assumindo papéis secundários e sendo gerenciadas ou dirigidas predominantemente por homens. Agora, porém, o movimento feminista denunciava a ausência da presença feminina em espaços públicos, na ciência, no mercado de trabalho, na literatura (Louro, 1997, p. 17).

Segundo Rabay e Carvalho (2011, p. 86), a chamada terceira onda do feminismo presente nos anos 90 traz à evidência ‘novas’ mulheres: negras[3], lésbicas, mulheres do terceiro mundo, transgêneros e outras. Essa fase do momento feminista direciona seu olhar tanto para as particularidades dos sujeitos quanto para as diversas formas de opressão, promovendo um movimento mais inclusivo e progressista

Ancorada nesta senda, encontra-se a criminologia feminista, que surge tardiamente a partir de um desdobramento da criminologia crítica, pois, conforme observa Campos (1998, p. 51) verificou-se que havia a exclusão da metade da população dentro do objeto de estudo daquela vertente.

Atualmente caminham estudos no sentido de uma criminologia interseccional que considere fatores como classe social, gênero, raça ou etnia, bem como demais fatores que possam influenciar o encarceramento em massa. Sobre a interseccionalidade, discorrem Germano, Monteiro e Liberato (2018) no sentido de que é operada como ferramenta analítica para compreender distintas práticas de discriminação que se entrecruzam e se prolongam, decorrentes de uma combinação de desvantagens sociais atreladas ao gênero, raça, etnia, dentre outros.

Como visto, deve-se pontuar que essa trajetória pela busca de equiparação de direitos transita por políticas públicas sensíveis ao gênero e do reconhecimento das interseções entre gênero, raça, classe social e outros fatores que afetam as experiências das mulheres, especialmente aquelas que estão envolvidas no sistema prisional. A luta pela igualdade de gênero e a compreensão das complexas dinâmicas que a circundam são essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa para todos, independentemente de seu sexo, gênero ou identidade.

3. A MÃE ENCARCERADA E SEUS DIREITOS NA LEGISLAÇÃO PENAL

A mulher na legislação penal brasileira pode ser percebida em passagens muito pontuais e de maneiras inespecíficas, tendo em vista suas peculiaridades. Buscar-se-á analisar como a legislação penal internacional influenciou a temática, assim como estudar como a lei brasileira ampara a mulher encarcerada.

No que se refere ao ambiente prisional a que estão inseridas, como lembra Freitas (2014, p. 08-09), o baixo índice de criminalidade e consequente encarceramento fomentavam a despreocupação com o tema, abrigadas como delinquentes ocasionais em um sistema que operava ao arrepio de qualquer formalidade.

Apenas na década de 20 o Estado passa a deter maior controle e gerência dos estabelecimentos prisionais destinados às mulheres, porém, ainda com eventuais cessões à administração religiosa destas unidades carcerárias, até a gradual formação do sistema como se conhece hoje.

Em muito pouco o ambiente físico das prisões femininas colabora para o fim de qualquer opressão ou reprodução de mecanismos de opressão masculina, uma vez que o aparato estrutural se revela completamente deficiente ao buscar atender às necessidades básicas exigidas pela condição de ser mulher. É importante reforçar que mesmo nas unidades masculinas é desolador o cenário da assistência médica fornecida, por exemplo (Fabrini; Fernandes, 2020).

No tocante à dignidade das mulheres encarceradas muito se deve explorar. A autora Queiroz (2015) lembra que o sistema penal tende a tratar presídios femininos e masculinos da mesma forma, o que significa ignorar que “elas precisam de papel higiênico para duas idas ao banheiro em vez de uma, de Papanicolau, de exames pré-natais e de absorventes internos. Muitas vezes elas improvisam com miolo de pão […]”.

As necessidades para se tratar uma mulher encarcerada com dignidade são diferentes, naturalmente, daquelas exigidas para o homem encarcerado[4]. Como se pode absorver do excerto acima, é impossível afastar cuidados especiais com a saúde feminina, demandas como a menstruação, a gestação, aleitamento e o exercício da maternidade. Logo, é crucial reconhecer que a saúde e a proteção à maternidade são direitos fundamentais titularizados pela população encarcerada, destacando a importância de políticas e medidas que garantam o respeito a esses direitos no contexto da execução penal.

Nesta senda, impende assinalar uma tímida diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais. Como muito bem explanado pela doutrina do Ministro Gilmar Mendes (Mendes, Coelho e Branco, 2009, p. 278), a expressão “direitos humanos” ou “direitos do homem” é guardada para referir-se às demandas intrínsecas ao homem, a pessoa humana.

No que se refere ao termo direitos fundamentais, está relacionado àquelas figuras de direitos básicos destinados a cada pessoa sob a égide de um diploma normativo de um Estado, ou seja, são direitos garantidos e limitados no espaço e no tempo, uma vez que assegurados quando cada Estado os inclui em sua legislação (Mendes, Coelho e Branco, 2009, p. 278).

Inserido no arcabouço dos princípios norteadores da execução penal encontra-se o princípio da dignidade da pessoa humana. Piovesan (2017, p. 86) o define como superprincípio, norteador do direito interno e internacional, ponto de partida e chegada, sentido da ordem jurídica.

O princípio da dignidade da pessoa humana, corolário de diversas garantias de proteção à pessoa, constitui-se de um valor básico inviolável que todo ordenamento jurídico deve assegurar, sendo que suas limitações só podem ocorrer em caráter estritamente excepcional (Moraes, 2002, p.128-129).

Já o princípio da humanidade, este é pano de fundo de todos os demais princípios penais, e se coloca como obstáculo maior do recorrente anseio de redução dos presos à categoria de não pessoas, na linha das teses defensivas do direito penal do inimigo (Roig, 2016, p. 23).

O princípio, regulador de políticas criminais, visa proteger a integridade física e moral do condenado, desde a correta dosimetria e racionalidade na aplicação da pena até o modo de execução da pena privativa de liberdade. É com base nesta racionalidade que são vedadas, na maioria dos países, as penas de morte e as prisões perpétuas, visto sua baixa eficácia preventiva e inexistente senso de humanidade (Batista, 2007, p. 99).

Em 2010 surge um dos grandes marcos internacionais em prol da mulher encarcerada: as Regras de Bangkok. Cingem-se em diretrizes mínimas que têm por escopo estabelecer princípios e regras de uma boa organização penitenciária e das práticas relativas ao tratamento de prisioneiros (Cerneka, 2012. p. 18)

Dentre elas, merecem destaque temas como o cuidado com a saúde mental, exame médico no ingresso ao sistema e exames preventivos. Indica diretrizes para a revista íntima, por exemplo, conforme consta no artigo 21 que declara que os funcionários deverão atuar com “profissionalismo e sensibilidade e deverão preservar o respeito e a dignidade ao revistarem crianças na prisão com a mãe ou crianças visitando presas” (CNJ, 2016).

Ainda, o pacto (CNJ, 2016) aborda realidades duras, como a necessidade de sempre que possível a mulher encarcerada ser alocada em prisões próximas ao seio familiar (regra 4), que lhes sejam fornecidas instalações que possibilitem satisfazer às necessidades de higiene específicas das mulheres (regra 5), indicação de não se utilizar instrumentos de contenção durante o parto (regra 24), respeito às queixas de abusos de detentas (regra 25) e o direito de poderem passar o máximo de tempo possível com seus filhos (regra 50).

Em que pese sua aprovação tenha se dado em 2010 pela Assembleia Geral da ONU, o documento foi traduzido para o português somente em 2016 (CNJ, 2016), demonstrando com isso a ineficiente aplicabilidade do instrumento normativo em nossa realidade prisional. Até mesmo essa lenta incorporação em nosso arcabouço legislativo traduz a exorbitante indiferença com tema tão relevante.

Ao se reconduzir a investigação para o campo nacional, deve-se pontuar que com o advento da atual Constituição a Lei de Execução Penal, delineada a seguir, pôde ser vista sob o prisma democrático e obter os instrumentos legais necessários para trilhar o caminho do humanismo e da dignidade da pessoa humana.

A Lei de Execução Penal brasileira passou a vigorar a partir de 1984, estabelecendo um conjunto de assistências e garantias aos presos e às presas brasileiros. Dentre elas é possível citar assistência jurídica, médica, pedagógica, social, religiosa e material.

Em termos de garantias específicas à população feminina, é possível destacar a separação da população carcerária por gênero, bem como o direito a estabelecimentos adequados à sua condição, como necessidade de celas especiais para gestantes, para o aleitamento materno e creches.

Ainda, cabe lembrar que o art. 5º, inciso L, da Constituição Federal, bem como o art. 83, §2º, da Lei de Execução Penal, resguardam o direito de os filhos permanecerem com as mães durante o período da amamentação. Este dispositivo é reafirmado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelas Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil (CNJ, 2016).

Ressalte-se que, ainda que haja uma discrepante diferença no número de visitas íntimas que ocorrem em prisões masculinas e femininas, é assegurado esse direito a ambos os sexos, medida que é condicionada à estrutura do estabelecimento penal, tais como segurança e espaço físico, bem como ao comportamento do preso ou presa (Resolução nº 01, de 27 de março de 2000, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça).

Ao final de 2018 foi publicada a Lei n. 13.769/18, que alterou alguns dispositivos da Lei de Execução Penal, inserindo os parágrafos terceiro e quarto ao artigo 112 da legislação. A mudança alterou as regras de progressão de regime para mulheres gestantes, mães ou responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência.

Em um breve retrospecto, deve-se registrar que o advento da lei só foi possível graças ao Habeas Corpus 143.641/SP, que merece algumas considerações. A ousada impetração foi realizada pelas entidades Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (Cadhu), Defensoria Pública da União e, tendo como amici curiae o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a Pastoral Carcerária e o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC).

O remédio constitucional incluiu como pacientes todas as mulheres, gestantes, puérperas, mães e crianças até 12 anos e as próprias crianças, que se encontrassem em prisão cautelar (provisória) e buscava a conversão desta medida em prisão domiciliar.

A decisão pode impressionar num primeiro instante, porém, é importante resgatar que em 2017 o Supremo Tribunal Federal concedeu prisão domiciliar à esposa de um ex-governador ao argumento de que o crime não teria sido praticado com violência ou grave ameaça e que ela possuía filhos menores de 12 anos (STF, HC 151057/DF, Relator(a): Min. Gilmar Mendes, Decisão Monocrática, julgado em 18/12/2017, Processo Eletrônico DJe-018 Divulg. 31/01/2018 Public. 01/02/2018)[5]. Cabe destacar que a ré em questão era condenada por crimes de lavagem de dinheiro.

Com base nesta decisão e buscando sobretudo a garantia dos princípios de igualdade e de humanidade foi impetrado o Habeas Corpus 143.641/SP e daí também o caráter histórico da decisão, proferida em 20 de fevereiro de 2018 pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

De volta às minúcias da lei, cabe lembrar que as mulheres contempladas pelo estatuto legal devem ser gestantes, puérperas, genitoras de crianças ou deficientes ambos sob sua guarda. Ademais, o crime por ela praticado não pode ser cometido mediante violência ou grave ameaça ou qualquer crime contra seus descendentes.

Em sede de execução da pena privativa de liberdade também se vislumbrou mudança. No caso das mulheres, somam-se os requisitos anteriores, bem como já haver cumprido 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior, a primariedade e bom comportamento carcerário[6], não integrar organização criminosa, bem como a ressalva de que o cometimento de novo crime doloso ou falta grave implicará na revogação do benefício.

Consoante a análise feita pelo Instituto Terra e Trabalho e Cidadania, um dos impetrantes do HC 143.641/SP, tendo em vista a deficiência de dados atualizados pelo poder público, não há como dimensionar quantas mulheres podem ter acesso ao benefício. A entidade pondera ainda que os critérios para obtenção da benesse, especialmente a primariedade, a integração de organização criminosa e o atestado de bom comportamento podem obstaculizar em muito esse direito (D’ávila, 2018).

4.     A VISÃO JURISPRUDENCIAL SOBRE A IMPRESCINDIBILIDADE DO CUIDADO MATERNO NA CONCESSÃO DE PRISÃO DOMICILIAR

Desde logo, é preciso entender que a mulher infratora e a mulher enquanto mãe ocupam diferentes lugares, seja na sociedade ou mesmo em sua própria vida privada. As figuras opostas que se contrapõem drasticamente entre a sagrada e maternal e a segunda, a figura do inimigo, do desvio, mostram-se, na visão de Braga (2015, p. 527-529), irreconciliáveis. Neste ponto, quando surge no cenário o sistema de justiça criminal, este busca tornar dócil este corpo desviante, fazer com que ele reproduza aquilo que dele é esperado, ou seja, o exercício da natureza feminina. Essa régua atua sobre a mulher, a gestante, o bebê e a criança de primeira infância que se encontram sob a batuta da normativa penal, tudo para a adequação e normalização comportamental.

A Lei de Execução Penal traz em seu artigo 117, inciso III, que somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental. A disposição data da criação da lei e como se vê, não determina em sua redação a imprescindibilidade do cuidado, contudo, o termo passou a ser adotado com o advento da Lei n. 13.769/18 para afastar o benefício conferido às mães em situação de privação de liberdade.

A prisão domiciliar, como ditada pelo artigo mencionado, é o direito que o apenado ou apenada possuem de cumprir a reprimenda imposta, seja cautelarmente ou na fase executória em sua residência particular. Ela tem como principal objetivo equilibrar a necessidade de punição com a proteção de direitos fundamentais, como o direito à liberdade e o princípio da presunção de inocência na sua modalidade preventiva e, na aplicação executória normalmente assume o caráter humanitário (condenado maior de 70 anos, acometido de doença grave, gestante ou a hipótese já mencionada de mãe com filho menor ou com deficiência).

Como visto, apesar de a Lei n. 13.769/18 ter trazido um alento à uma parcela da população carcerária feminina, a divergência jurisprudencial sobre alguns temas sensíveis que são abordados pela legislação acende um alerta a qual se deve debruçar-se. No que tange à progressão de regime, dispositivos como o artigo 112, §3º, inciso V, da Lei de Execução Penal que discorre sobre a impossibilidade de concessão de regime domiciliar a apenadas que forem integrantes de organizações criminosas, geraram certo debate no início da aplicação da norma e revela a complexidade inerente à interseção entre o direito penal e os direitos humanos no contexto da execução penal de mulheres e, mais especificamente, na garantia dos cuidados maternos no sistema prisional.

Isso porque aplicou-se às condenadas por associação para o tráfico de drogas a impossibilidade, até que gradualmente o entendimento foi sendo guiado pelo princípio da legalidade estrita, até que decisões como o Habeas Corpus 200.630 (Relator Ministro Edson Fachin, 2ª Turma, j. 19.10.2021) pouco a pouco mudaram tal entendimento para que se aplicasse a lei tal como posta, abrangendo apenas o crime de organização criminosa.

Outro importante julgado a ser citado é o HC 143.641/SP, (Relator Ministro Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, j. 20.02.2018), que concedeu a ordem “para determinar substituição da prisão preventiva pela domiciliar – sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP, de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, enquanto perdurar tal condição”, sendo “excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes, ou ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelos juízes que denegarem o benefício”. Na mesma linha seguiram: HC 168.524/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, DJe 03.02.2020 e HC 162.182-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJe 16.4.2019.

A despeito dos avanços citados, há também julgados controversos, objeto de profunda análise e crítica por meio de órgãos ligados à defesa dos direitos humanos, como as denegações em Habeas Corpus proferidas por Tribunais Superiores (STF e STJ) que indicam que a prática jurisdicional ainda está adstrita a indeferimentos não relacionados ao dispositivo aplicável ao caso (artigo 318-A do Código de Processo Penal), mas relacionadas à “situação excepcionalíssima” mencionada no Habeas Corpus Coletivo 143.641 (Costa, Nascimento e Silva, 2023, p. 39).

Tal situação excepcionalíssima, não obstante tenha sido mencionada pelo citado remédio heroico, não foi incluída na Lei e, segue sendo aplicada com base na Resolução nº. 369, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2021) que estabelece procedimentos e diretrizes para a substituição da privação de liberdade de gestantes, mães, pais e responsáveis por crianças e pessoas com deficiência, nos termos dos artigos 318 e 318-A do Código de Processo Penal. Com isso, passou a não ser incomum deparar-se com seu uso para a denegação da ordem e manutenção de uma prisão preventiva, como se pode perceber em Habeas Corpus como o HC 202052 AgR (Relatoria do Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 19.10.2021).

Nota-se recorrentemente que a maior parte das situações encontradas são de mulheres envolvidas com a prática do crime de tráfico de drogas, mormente naquelas ações com resultado pela denegação da ordem, pois, conforme pontua Braga (2015, p. 329) o fato de ser rotulada como criminosa automaticamente a deslegitima como uma boa mãe. A questão da situação excepcionalíssima levantada pelo Conselho Nacional de Justiça é delicada e foge à própria regra do estrito cumprimento da norma penal adotado no primeiro posicionamento mencionado, eis que deriva de resolução.

Além da situação mencionada, há ainda o caso do artigo 112, §3º e incisos da Lei de Execuções Penais, dispositivo que o presente artigo se propõe a discutir: a imprescindibilidade dos cuidados maternos. A título descritivo, o artigo trata da forma progressiva da pena, enquanto o parágrafo determina que no caso de mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, os requisitos para progressão de regime são cumulativamente cinco: não ter cometido crime com grave ameaça ou violência à pessoa ou contra filho ou dependente, cumprir 1/8 (um oitavo) do regime anterior, primariedade e bom comportamento carcerário, e não integração em organização criminosa.

Observa-se de muitos julgados anteriores ao segundo semestre de 2022, seja em segunda instância ou emanados pelos Tribunais Superiores, que os pleitos pela concessão de prisão domiciliar muitas vezes vinham sendo denegados sob o argumento de “imprescindibilidade dos cuidados maternos”, seja porque encontram-se com genitores paternos, maternos ou outros responsáveis mesmo quando se invocava o anterior artigo 117, inciso III da Lei de Execução Penal, que nada mencionava sobre este termo.

A Lei de Execução Penal quando dita sobre a progressão de regime estabelece que “No caso de mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, os requisitos para progressão de regime são, cumulativamente”. No dispositivo penal, em não havendo maiores especificações, indica ao destinatário da norma que basta a responsabilidade legal para que reste configurada a situação abarcada pela norma.

A imprescindibilidade aventada na resolução vai na contramão de todas as garantias e amparo que se pode dar a uma mãe que se encontra em situação de encarceramento. Uma questão que envolve outras esferas, como a de assistência social, conselho tutelar e proteção à infância torna-se matéria penal com o fito de dificultar seu acesso à família e proteção dos filhos.

Em 07.06.2022, no AgRg no HC n. 731.648/SC, de relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik, (relator para acórdão Ministro João Otávio de Noronha), na Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça findou consignado que consoante posto no artigo 318, inciso V, do Código de Processo Penal, a concessão de prisão domiciliar às mães de crianças menores de até 12 (doze) anos não está condicionada à comprovação da imprescindibilidade de cuidados maternos, uma vez que se revela legalmente presumida.

O Ministro consignou em sua decisão que uma vez que o delito não se enquadrava em crime cometido com violência ou grave ameaça, praticado contra os filhos e ausente situação excepcional que desautorizasse a medida deveria ser concedida por razões humanitárias e para proteção integral da criança.

No mesmo sentido passou a entender o Supremo Tribunal Federal, a exemplo das considerações tecidas pelo Ministro Edson Fachin que cita em seu voto que o legislador propositalmente não incluiu a imprescindibilidade da mãe nos cuidados da criança quando da redação da norma (Viapiana, 2022).

Contudo, em que pese o posicionamento firmado, é possível encontrar decisões recentes que vão na direção oposta dos entendimentos mais humanitários (a exemplo do HC 223915 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 06.03.2023), o que demonstra a atualidade e relevância da discussão.

Notou-se em muitos estados a negativa da concessão de prisão domiciliar em agravo à execução sob o argumento de que a criança não se encontra desamparada (a exemplo do TJSP, Agravo de Execução Penal 0007521-15.2023.8.26.0996, Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Criminal, Data do Julgamento: 03/08/2023; TJSC, Agravo em Execução 80006778820238240018, Quinta Câmara Criminal, Data de Julgamento: 17/08/2023 e TJDF, Agravo em Execução Penal 07304037020228070000, 3ª Turma Criminal, data de julgamento: 17/11/2022). Ainda, sob o mero argumento da ausência de comprovação da imprescindibilidade (TJPR, Agravo em Execução Penal 4003985-54.2022.8.16.4321, 3ª Câmara Criminal, J. 05.08.2023).

No artigo terceiro do Estatuto da Criança e do Adolescente encontra-se estabelecida normativa máxima de proteção aos direitos na infância e adolescência restando consignado que gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes assegurado por lei ou outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para o fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Nesta senda, cumpre destacar o princípio da convivência familiar, consagrado tanto no artigo 227, da Constituição Federal quanto no artigo 19, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que representa um dos pilares fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro no que tange à proteção do núcleo familiar. Ele postula que a família é a base da sociedade e tem um papel central na formação e no desenvolvimento de crianças e adolescentes, assim como que eles possuem o direito de serem educados no seio de sua unidade familiar. Logo, implica reconhecer que, na maioria dos casos, o ambiente familiar é o mais adequado para o crescimento saudável e para a promoção do pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes.

O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que a retirada da criança ou do adolescente do convívio familiar só pode ocorrer em situações excepcionais e mediante decisão judicial fundamentada, que leve em consideração o melhor interesse da criança ou do adolescente. Mesmo nos casos de acolhimento institucional as medidas de separação devem ser utilizadas com austeridade, buscando sempre a reintegração familiar como objetivo principal.

Em estudo sobre os impactos do encarceramento materno no desenvolvimento psicossocial dos filhos, Stella (2019, p. 109) aponta que inicialmente o bebê convive em uma completa dependência da genitora. Nesse sentido, no primeiro ano de vida o advento da prisão pode culminar no comprometimento do vínculo e dificuldades no assentamento da confiança. Até os dois anos, podem ter problemas de autoconfiança e de ajustamento a regras sociais (Stella, 2009, p. 109).

De três a cinco anos conseguem perceber e recordar eventos traumáticos, sem, contudo, alçarem maturidade para o processamento e ajustamento da situação sem auxílio. Já dos seis aos doze anos podem vivenciar a exclusão social associada ao estigma do encarceramento materno, tornando-se mais vulnerável a dificuldades escolares e comportamentos agressivos (Stella, 2009, p. 109).

O fato de uma mãe permanecer encarcerada, muitas vezes abandonada pela família[7], favorece a dispersão dos seus filhos que experenciarão sua ausência muitas vezes longe dos irmãos e de qualquer referência familiar que lhes traga segurança. Essa separação forçada, decorrente da ausência de políticas eficazes de alternativas à prisão, em muito contribui para a desestruturação do núcleo familiar e problemas de desenvolvimento, conforme apurado pelo estudo acima.

Neste contexto, o ponto nefrálgico cinge-se ao seguinte questionamento: como tornar-se indispensável ao cuidado da prole quando o Estado corta o elo que existe entre mãe e filho? A dor materna fundamentalmente vivenciada pelos seus filhos é contrária ao tratamento do melhor interesse da criança previsto e defendido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa contradição evidencia a necessidade premente de reformas e de uma abordagem mais sensível e humanitária, que promova não apenas o bem-estar das mães encarceradas, mas também a proteção dos direitos e interesses das crianças.

Neste diapasão, o que se nota é que, ainda que se tenha decisões no sentido de que não seja necessária a imprescindibilidade dos cuidados maternos, ou ao menos sua comprovação, o fato é que ainda se verificam diversas decisões em tribunais estaduais e mesmo nas cortes superiores que não seguem este entendimento. Isso gera um cenário jurídico complexo e desigual, em que mães encarceradas de diferentes estados do país podem encontrar tratamentos judiciais divergentes, criando um ambiente de incerteza e insegurança jurídica que diverge do que se espera de um sistema de justiça coerente e equitativo.

Relevante assinalar que, excetuados os casos de crimes com violência e grave ameaça e contra os filhos, a questão não deveria ser tratada como o é, individualmente, haja vista que a maternidade, embora vivenciada de modo singular por cada pessoa é biologicamente comum, transformando, em geral, corpos e emoções.

Por derradeiro, o sistema forense deveria reconhecer que, para além de um requisito formal, a manutenção do vínculo entre mãe e filho é crucial para o bem-estar físico e emocional de ambos, influenciando principalmente na vida da criança. De modo que a prisão domiciliar em casos como estes não pode ser analisada como um privilégio, mormente porque a realidade doméstica em que a maioria destas mulheres estará inserida não é de conforto ou luxo, mas sim uma medida que reconhece a importância da maternidade e do apoio a primeira infância, sendo, também medida de promoção de justiça social.

5. CONCLUSÃO

É inegável que há muito tempo a execução penal brasileira é conduzida em meio a grande crise. São inúmeros e graves os problemas relacionados à infraestrutura deficiente, superlotação e violações inúmeras no que toca aos direitos humanos, de modo que se torna especialmente relevante a preocupação quanto as condições deficitárias para mães encarceradas, como a falta de estruturas adequadas para a maternidade nas prisões, agravam ainda mais esse problema, impactando negativamente não apenas as detentas, mas também o desenvolvimento saudável de seus filhos.

No presente estudo, buscou-se apurar o longo caminho percorrido entre o ser mulher e os porquês de uma longa trajetória de tratamento inferior, principalmente no ambiente prisional, outrora majoritariamente ocupado apenas por homens. Também, compreender desde os aspectos de gênero até o arcabouço legislativo que envolvem a delicada questão da maternidade encarcerada.

Para aclarar o entendimento da questão, fez-se uma breve investigação acerca do universo do gênero, buscando demonstrar a importância de se tratar do tema sob o prisma da perspectiva de gênero. Como levantado, as mulheres são fruto de um histórico cruel de abuso, desprezo e dominação e, por essa razão, sua causa deve ser trabalhada a partir de uma política pública específica que atenda suas particularidades e diferenças, como ocorre com diversas outras minorias castigadas por diferentes formas de exploração.

O trabalho intentou aclarar questões sobre um tipo de mulher que ainda nenhuma onda feminista abarcou: a reclusa, particularmente a mãe em situação de privação de liberdade. Através da pesquisa majoritariamente bibliográfica tratou-se de buscar respostas ao seguinte questionamento: Em relação aos direitos da mãe encarcerada, o que se entende sobre imprescindibilidade do cuidado materno à luz da Lei n. 13.769/18 e como o poder judiciário têm entendido a questão?

A busca permeou parte dos problemas enfrentados pelas mães encarceradas, assim como a descrição do aparato legislativo que as assiste, com principal enfoque na proteção conferida pela legislação internacional, como as Regras de Bangkok, pela Lei de Execução Penal e a modificação trazida em 2018 pela Lei 13.769/18. A lei traz uma série de requisitos para que gestantes e mães que sejam responsáveis por crianças menores de 12 anos ou responsáveis por deficientes tenham o direito a cumprir sua prisão provisória em regime domiciliar. Além disso, estabeleceu novas regras para progressão de regime para mulheres nestas mesmas condições.

A pesquisa foi guiada por análise bibliográfica, utilizando entendimentos jurisprudenciais como reforço argumentativo e, a partir disso, concluiu que mesmo com decisões favoráveis para o fim de afastar a necessidade da imprescindibilidade dos cuidados maternos tribunais continuam a aplicar a exigência evidenciando sobremaneira a persistência de desafios na interpretação e implementação das normas legais relacionadas às mães encarceradas.

Os fundamentos que embasaram a conclusão do estudo encontram-se afixados na debatida ausência de perspectiva de gênero ao se dedicar ao estudo do tema, claramente perceptível na forma como a legislação vêm sendo interpretada pelos tribunais. Isso ressalta a necessidade premente de uma análise mais aprofundada sobre como as questões de gênero afetam a aplicação da lei e a tomada de decisões judiciais, especialmente no que diz respeito às mães encarceradas, a fim de promover uma abordagem mais equitativa e justa em relação a essas mulheres que são ainda mais vulneráveis.

Desta maneira, em um breve resumo, os resultados apurados pelo trabalho revelam que os progressos para se garantir integral proteção a mulher encarcerada, especialmente sobre a maternidade, são tímidos e ainda insuficientes. Como na lei analisada, termos nebulosos ou discutíveis têm sido usados para endurecer sua aplicação, ao invés de garantir maior cobertura às mães privadas de liberdade. Esta incerteza evidencia a necessidade premente de reformas e uma perspectiva de gênero mais profunda na abordagem da execução penal, visando garantir a proteção dos direitos fundamentais das mães e dos seus filhos.

É primordial pontuar que as condições deficitárias enfrentadas pelas mães encarceradas não apenas afrontam os direitos humanos, mas também ameaçam diretamente o princípio da convivência familiar assegurado na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. A prisão domiciliar, quando aplicável de acordo com a legislação, não deveria ser vista pelo escólio jurisprudencial como um privilégio, mas sim como uma medida que reconhece a importância da maternidade e do apoio à primeira infância.

Dentro do contexto já abordado, situações como essa revelam que grande parte da problemática enfrentada no trabalho deriva da própria construção social de uma mentalidade pouco empática com a condição feminina. O mundo, moldado pela perspectiva do homem branco europeu, frequentemente empurra as mulheres para uma posição de absoluta fragilidade resignadas dentro deste mesmo pensamento, que passou a ditar toda a sociedade.

Sabe-se que estudos sobre essa área não possuem o condão de esgotar o tema. Porém, a intenção principal desta provocação é, justamente, incitar um maior debate sobre as condições em que sobrevivem as mães encarceradas no Brasil e destacar a importância do exame de todo o aparato legislativo penal sob uma perspectiva muito mais humana: a de gênero. Garantir direitos básicos a mães encarceradas não decorre apenas de um imperativo humano, mas também a preservação de um vínculo fundamental entre mãe e filho, possibilitando sua redenção, a cura e quiçá um recomeço para não apenas uma, mas duas vidas entrelaçadas.

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[1] Pós-graduada em Direito Público pela ESMAFE-PR, Pós-graduada em Direito Penal e Criminologia e em Direito Penal e Processo Penal ambas pela Uninter. E-mail:livia.gmoro@gmail.com

[2] Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestre e bacharel em Direito pela mesma Instituição. Professora universitária. Advogada. E-mail: lygiamariacopi@gmail.com

[3] Aqui não se pode deixar se sublinhar a extrema importância dos escritos de Angela Davis sobre a mulher negra e todo universo de discriminação racial e social a que esse público é submetido.

[4] À título de registro, cabe a bela citação de da Ministra Carmen Lúcia, quando diz que se trata de um valor que “não se aperfeiçoa na existência isolada de um ser; a liberdade manifesta-se na relação com o outro; a igualdade pede a presença daquele a quem se iguala” (Rocha, 2004, p. 78)

[5] Em 2016, com fundamento no Estatuto da Primeira Infância, o Superior Tribunal de Justiça já havia concedido liminar pela substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar para uma mãe acusada pelo crime de tráfico de drogas (STJ – HC 351.494 – SP (2016/0068407-9), Relator(a): Min. ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Decisão Monocrática, julgado em 10/03/2016, DJe 14/03/2016 PUBLIC 14/03/2016).

[6] A ser atestada pela direção do estabelecimento prisional.

[7] Apenas 20% das mulheres privadas de liberdade recebem visitas. Disponível em <https://www.plural.jor.br/noticias/vizinhanca/apenas-20-das-mulheres-presas-recebem-visitas>