LIVRE INICIATIVA ECONÔMICA NO CDC: A RESPONSABILIDADE DOS FORNECEDORES PELA SEGURANÇA EM ESTABELECIMENTOS DE CONSUMO

LIVRE INICIATIVA ECONÔMICA NO CDC: A RESPONSABILIDADE DOS FORNECEDORES PELA SEGURANÇA EM ESTABELECIMENTOS DE CONSUMO

1 de março de 2022 Off Por Cognitio Juris

FREE ECONOMIC INITIATIVE AT CDC: SUPPLIERS’ RESPONSIBILITY FOR SAFETY IN CONSUMER ESTABLISHMENTS

Cognitio Juris
Ano XII – Número 39 – Edição Especial – Março de 2022
ISSN 2236-3009
Autores:
Tales Manoel Lima Vialôgo[1]
Bruno Bastos de Oliveira[2]

Resumo: O presente artigo visa analisar o limite de responsabilidade dos fornecedores – no mercado de consumo brasileiro – pela segurança em seus estabelecimentos de consumo. Nesse caminho, foi elaborada uma reflexão sobre a livre iniciativa econômica, justificando a necessidade de um equilíbrio entre direitos fundamentais, para garantir a proteção dos vulneráveis, mas também o desenvolvimento econômico do país. O método de elaboração foi o dialético-jurídico, com pesquisa bibliográfica e também de julgados sobre o tema. Em conclusão, verificamos que não pode ser aplicada a teoria do risco integral dos fornecedores de produtos e serviços no mercado de consumo, pois cabe ao Estado a garantia de segurança pública.

Palavras-chave: Segurança. Estabelecimento. Responsabilidade. Estado.

Abstract: The present paper analyses the liability of suppliers – in the Brazilian consumer market – for safety in their consumer establishments. In this way, a reflection on free economic initiative was elaborated, justifying the need for a balance between fundamental rights, to guarantee the protection of the vulnerable, but also the economic development of the country. The method of elaboration was the dialectic-legal, with bibliographical research and also of judgments on the theme. In conclusion, we found that theory of integral risk of suppliers of products and services in the consumer market cannot be applied, since it is up to the State to guarantee public safety.

Keywords: Safety. Establishments. Liability. State.

1 INTRODUÇÃO

Como ponto de partida, vale a reflexão sobre a necessidade de um mercado livre. Mas também sobre as condições de o Poder Público promover tal liberdade. Para garantias como a livre e justa concorrência, a busca de pleno emprego e a livre iniciativa econômica, nosso sistema constitucional adotou, com o texto de 1988, o sistema neoliberal, onde embora exista a liberdade de mercado, é possível alguma intervenção estatal sobre a economia, desde que por força de lei. É uma garantia de que o empreendedorismo está conjugado em princípios fundamentais.

Ser empreendedor é um direito de todos. Construir uma empresa e transformá-la em um elemento nuclear para a vida, garantindo o sustento duradouro do negócio, é meta específica de todo empresário. Não se consolida uma investida no mundo competitivo e árduo do empresariado sem uma alta carga de dedicação, renúncias e perseverança.

Custear os investimentos, as verbas trabalhistas, os tributos e outros gastos atinentes ao próprio negócio, mantendo a qualidade do produto ou serviço, motivando os colaboradores e consumidores diariamente, é um desafio que poucos conseguem cumprir.

Enquanto a massa de trabalhadores e consumidores forma a demanda, a oferta irá surgir e ser abastecida conforme os empresários sobrevivam ao desafio de manter o negócio. Afinal, a trajetória de nossas vidas depende friamente daquilo que conquistamos com nosso trabalho.

O Direito, então, é um mecanismo de harmonização entre a livre iniciativa e a valorização do trabalho e proteção dos consumidores. Assim caminha a Constituição Federal de 1988, ao estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária, fundamentando a República Federativa na garantia do desenvolvimento nacional e nos valores do trabalho e da livre inciativa, conforme seus artigos 1º, inciso IV, 3º incisos l e ll e 170.

Existe uma expectativa de que o legislador ordinário irá fazer uso de uma balança de harmonização de interesses a fim de criar normas que compreendam a realidade do empresariado, mas que garantam a dignidade de trabalhadores e consumidores. Especificamente, no mercado de consumo, surge a figura do fornecedor, prevista na Lei 8.078/90, que institui o Código de Defesa do Consumidor – CDC.

Elemento nuclear da figura de fornecedor, descrita no caput do artigo 3º do CDC, o exercício da livre iniciativa econômica, em atividade tipicamente profissional, consumerista, gera uma série de implicações previstas em lei, dentre elas, o chamado risco da atividade.

Mas definir o alcance desse risco não é tarefa simples. Em meio a um vasto caminho de discordâncias doutrinárias e jurisprudenciais, as linhas que seguem pretendem esclarecer o cenário atual acerca dessa importante problemática.

2 INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA: FINS SOCIAIS DA NORMA JURÍDICA

          Não seria razoável exigir do Poder Legislativo um sistema normativo sem lacunas. A dinâmica das relações humanas e do desenvolvimento econômico exigiriam dos trabalhos legislativos uma capacidade extraordinária.

          Para isso foi criado o instituto da integração da norma jurídica, através do Decreto 4.657/42, atualmente denominado como Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB. Em seu artigo 4º, a LINDB dispõe que na omissão da lei, o magistrado recorrerá à analogia, costumes e princípios gerais do direito.

          Adota-se, então, um sistema baseado na teoria do ecletismo, onde a lei possui lacunas, mas o Direito não as possui, pois a integração da norma jurídica definida em lei irá preencher eventuais vazios legislativos.

          Na mesma lei de introdução, em seu artigo 5º, o legislador mantém a preocupação com a interpretação da norma jurídica, ao dispor que o magistrado deve sempre atender aos fins sociais da norma jurídica, buscando ainda compreender as exigências do bem comum.

          Vale confirmar que não foi despretensiosidade do legislador essa sequencia de artigos, mas sim o atendimento de uma circunstância lógico-sistemática, onde resta claro que o interprete de uma norma jurídica deverá sempre buscar os fins sociais em sua conclusão, e não os seus valores morais próprios. Esse é o que se denomina método de interpretação jurídica teleológico.

          Antônio Bento Bertioli traz a seguinte elucidação:

Em suma, a interpretação teleológica visa à descoberta dos valores que a lei tenciona servir. Sendo o direito uma ciência voltada para a realização de valores, jamais suas normas poderiam ser adequadamente interpretadas sem se atentar para os fins que visam realizar. Exemplo: o aviso prévio, previsto na CLT, tem por fim possibilitar ao empregado a obtenção de novo emprego; as férias, por sua vez, buscam a restauração de suas energias; consequentemente, a interpretação teleológica dessas normas consolidadas repele a possibilidade da concessão de férias no prazo do aviso prévio. (BETIOLI, 2013, p. 436)

É oportuno dizer que na análise teleológica o que está sendo determinado ao interprete é que este busque a finalidade social – a vontade – da norma jurídica, o que se faz buscando critérios de sentimento constitucional, melhor dizendo, pautando-se pela igualdade, aceitabilidade social e possibilidade de aplicação conforme a Constituição.

O que se busca não é a vontade do legislador – que é inerente às suas próprias convicções – mas a vontade social que fez surgir e existir determinada norma jurídica.

O método teleológico será, neste momento, instrumento essencial para os estudos que seguem adiante.

3 LIVRE INICIATIVA ECONÔMICA

Antes de adentrar ao tema proposto em delimitação, tendo em vista a proteção da livre iniciativa econômica como premissa fundamental deste ensaio científico, é necessário dispor acerca da ordem econômica na Constituição Federal de 1988.

Em cumprimento ao disposto no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o Estado instituiu a Lei 8.078/90, em cujo texto disciplinou o Código de Defesa do Consumidor.

Promovido por um conjunto de normas inovadoras, o Direito do Consumidor é elevado a um ramo autônomo, porém claramente dependente de ter seus princípios conjugados com outros ramos do direito, em especial o Direito Econômico e o Direito Concorrencial.

Princípio comum a todas essas áreas do Direito, a livre iniciativa econômica é fundamento de promoção de um mercado com oportunidades e liberdade para os empreendedores.

André Ramos Tavares traz elucidadora explicação acerca da concepção ampla que deve ter o interprete ao analisar o princípio da livre iniciativa.

A liberdade de iniciativa garantida constitucionalmente não se restringe à liberdade de iniciativa econômica, sendo esta apenas uma de suas dimensões. A livre-iniciativa de que fala a Constituição há de ser, realmente, entendida em seu sentido amplo, compreendendo não apenas a liberdade econômica, ou liberdade de desenvolvimento de empresa, mas englobando e assumindo todas as demais formas de organização econômicas, individuais ou coletiva, como a cooperativa (art. 5º, XVIII, e art. 174, §§ 3º e 4º), e a própria liberdade contratual e comercial. (TAVARES, 2006, p. 239)

Elaborando uma ideia de via de mão dupla, onde produção e possibilidade de consumo estariam em simetria, a conclusão que se verifica é um realismo ingênuo, um cenário econômico muito distante do capitalismo distorcido que foi impregnado já há muitas décadas.

Se por livre iniciativa, quer o legislador constituinte esclarecer – e diferente disso não poderia ser – que o indivíduo deve ter liberdade de empreender, de comprar, de contratar, de trabalhar, de criar, enfim, de ter suas próprias atividades sob metas específicas, porque há tanta dificuldade em alcançar tal amplitude em seu estado inato?

Não é novo o discurso de erradicar a pobreza, de busca de pleno emprego, diminuição das desigualdades sociais, enfim, de políticas públicas para crescimento da economia com sustentabilidade. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU – onde as metas certamente não serão atingidas por nenhum dos Estados das Nações Unidas – repetem esse discurso – como diferente também não poderia ser –, mas a corrupção manipula a indústria, que por sua vez exige dos Governos uma vista grossa, e o mercado distribui dominação econômica para poucos favorecidos.

Então, certamente os ramos ditos protecionistas – como o Direito do Trabalho, Direito Ambiental, Direito do Consumidor – possuem uma justificativa histórica. Os escudos criados pelo legislador para proteção dos vulneráveis possuem como fontes materiais os traumas históricos da humanidade.

Isto é certo. Assim como também é certo que defender a proteção, não precisamente irá conduzir a abolir princípios antagônicos. Por exemplo, no Direito do Trabalho a garantia de pleno emprego, o princípio da continuidade da relação de emprego, não significa que os empregadores não poderão contratar empregados temporários, mas sim que somente nas hipóteses previstas em lei poderão ser utilizados os contratos por tempo determinado.

No modelo neoliberal adotado na ordem jurídica brasileira, incumbe ao legislador promover – ainda que de forma precária – as flexibilizações legais dos direitos protecionistas, sob pena de inviabilizar a concretude do princípio da livre iniciativa.

Para dar prosseguimento, então, é possível concluir no seguinte enunciado: desde que não viole princípios protecionistas, tendo como fundamento os costumes e o desenvolvimento sustentável, deve o legislador adequar os textos normativos para que sejam vetores que impulsionem a livre iniciativa econômica, promovendo assim o crescimento das oportunidades no mercado nacional.

Assim como tal dever é conferido ao legislativo, também o Poder Judiciário deve interpretar as normas nos mesmos ditames sociais, visto que a livre iniciativa – além de princípio da ordem econômica – é um fundamento da República Federativa brasileira.

Por ora não há espaço para maior aprofundamento nesta esteira. Mas era preciso tal reflexão para melhor deslinde dos próximos passos.

Em seu artigo 1º, o Código de Defesa do Consumidor dispõe acerca do fundamento constitucional da norma consumerista. Declara o legislador, no citado dispositivo, que o CDC é uma norma de ordem pública e interesse social, por inteligência dos artigos 5º, XXXII, 170, V, ambos da Constituição de 1988, e do artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Vale lembrar que o artigo 170 dispõe acerca da ordem econômica, fixando como finalidade dessa ordem a garantia de existência digna a todos, observados os critérios de justiça social. Neste mesmo dispositivo a valorização do trabalho e a livre iniciativa são declarados como fundamentos da ordem econômica no Brasil.

Em seu inciso V, o artigo 170 confere ao dever de defesa do consumidor um caráter de princípio a ser observado na regulamentação do mercado, o que não significa ser o CDC uma norma limitadora da liberdade de iniciativa, mas sim uma eficaz ferramenta de equilíbrio entre a proteção da parte vulnerável e a promoção da evolução tecnológica e econômica.

A livre iniciativa, seja como fundamento da república federativa ou como princípio constitucional, possui uma densidade normativa de atuação imprescindível, pois representa o direito de atuar, explorar, em qualquer atividade econômica de relações privadas. Neste aspecto é necessário pontuar que não poderá – esse direito fundamental de liberdade – sofrer qualquer restrição estatal, senão em virtude de lei.

Tal correlação entre a livre iniciativa econômica e a defesa do consumidor faz surgir uma relativização ao sistema neoliberal – que permeia a Constituição de 1988 –, onde é preciso que o Estado intervenha nas relações privadas, disciplinando a proteção do consumidor com a criação de limites para a liberdade de iniciativa.

Como visto liberdade de iniciativa é uma garantia vinculada a diversas dimensões de ações humanas, e não apenas no âmbito econômico. Mas certamente é neste meio que sua disciplina merece maior cuidado. O Estado não deve permitir que a livre iniciativa se torne um mecanismo de plena liberdade econômica, sob pena de expor a grave risco o mercado de consumo, as oportunidades de trabalho e a livre concorrência. Por outra via, a dosimetria da medida do protecionismo jurídico deve ser harmoniosa com a necessidade de o Poder Público promover o pleno desenvolvimento tecnológico e econômico das atividades empresariais.

Ao interpretar as linhas do Código de Defesa do Consumidor, o interprete deve considerar que os critérios de segurança jurídica dependem de uma leitura e aplicação da norma jurídica com razoabilidade, com equilíbrio entre os princípios do direito, em especial os antagônicos em determinada situação concreta. Não haverá, via de regra, a necessidade de um direito fundamental ceder perante o outro, sendo exceção da cedência recíproca, cabendo ao jurista, sempre que possível, conciliar os interesses.

Feitas tais ponderações, é possível, agora, refletir acerca da proteção da livre iniciativa econômica, quando o interprete tiver de responder a seguinte perturbação: qual é o limite de responsabilidade civil dos fornecedores perante os consumidores e também em relação a terceiros – estranhos às relações de consumo – em atos criminosos ou homicidas praticados por indivíduos externos à atividade econômica? Deve ser aplicada a teoria de risco integral? Não haverá qualquer excludente para os fornecedores?

Considerando o princípio da livre iniciativa econômica, qual é o limite da responsabilidade dos fornecedores?

4 RESPONSABILIDADE CIVIL NA LEI 8078/90:

4.1 Linhas Gerais

Para que o ordenamento jurídico resolva de maneira justa os conflitos existentes nas relações jurídicas, é preciso que os interpretes das normas conheçam o limite de atuação do texto legal nos casos concretos.

Não há como definir juridicamente a extensão do dano, sem saber a extensão do texto normativo.

Essa premissa ganha especial relevância quando da análise do assunto aqui pretendido. Ora, afinal, qual o alcance do Código de Defesa do Consumidor na responsabilidade civil?

O primeiro dispositivo que merece destaque é o artigo 6º, que define os direitos básicos do consumidor, fixando em seu inciso VI “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”.

Em seguida o artigo 7º, em seu parágrafo único, in verbis: “Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo”.

Repare: a norma declara a responsabilidade solidária, para quando houver mais de um autor pela ofensa ao consumidor. Além disso, este mesmo artigo traz importante delimitação hermenêutica, qual seja, dos danos previstos nas normas de consumo, leia-se, danos especificamente de consumo, afinal, de que outro tipo de dano a lei consumerista haveria de tratar!

Dando prosseguimento, nos artigos 8º, 9º e 10º, o Código prevê disposições acerca da saúde e segurança do consumidor.

Importante notar que em tais artigos o legislador também deixa muito claro o campo de atuação da norma, senão vejamos:

No artigo 8º traz a cláusula geral de não serem oferecidos no mercado produtos que acarretem riscos à saúde ou segurança do consumidor, com óbvia exceção daqueles latentes ou inerentes ao próprio produto, como por exemplo os fumígenos. Nestas exceções haverá, sempre, a regra de prestar as devidas informações ao consumidor, mesmo se tratando de nocividade ou periculosidade latente, pela inteligência do artigo 9º.

O legislador cuidou também da hipótese dos chamados produtos com nocividade ou periculosidade exagerada, conforme previsão do artigo 10, no qual está proibido o fornecimento de produto ou serviço com alto grau de risco à saúde ou segurança dos consumidores.

Mais uma vez o autor da lei andou bem, não deixando dúvidas sobre o limite da responsabilidade dos fornecedores pela segurança e saúde dos consumidores, que reside claramente na garantia da fruição dos serviços e utilização adequada dos produtos oferecidos no mercado, sem que importe em riscos de nocividade ou periculosidade além dos latentes – aqueles já conhecidos pelo indivíduo padrão.

Acerca de tal atuação da lei, o artigo 12 prevê a responsabilidade solidária e objetiva dos fornecedores primários acerca dos defeitos dos produtos, regra esta que se repete para os serviços no artigo 14, caput.

Importante lembrar que defeituosos são os produtos ou serviços que não entreguem aos consumidores a segurança que deles se espere.

Mais a frente, o artigo 17, traz preciso avanço e modernização para o texto normativo, integrando ao ordenamento brasileiro a figura do consumidor bystander, a saber aquele vitimado dos chamados acidentes de consumo. Leonardo de Medeiros Garcia, ao comentar o citado dispositivo, traz didática explicação:

Abrange o conceito de bystander aquelas pessoas físicas ou jurídicas que foram atingidas em sua integridade física ou segurança, em virtude do defeito do produto, não obstante não serem partícipes diretos da relação de consumo. Imagine uma pessoa que, ao atravessar a rua, é atropelada por veículo que perdeu o freio. Esta pessoa não é consumidora stricto sensu (art. 2o, caput), uma vez que não adquiriu nenhum produto ou serviço como destinatário final. Ao contrário, foi vítima de um acidente de consumo. Assim, poderá se valer do CDC como consumidor equiparado para pleitear indenização à montadora fabricante do veículo em virtude do defeito ocasionador do dano (falha no freio). (GARCIA, 2017, p. 196).

A equiparação de outros sujeitos à qualificação de consumidores, conforme o CDC, depende claramente da falta cuidados de segurança praticada pelos fornecedores, e razoavelmente se limita tal exigência, melhor dizendo, não se pode exigir aquilo que não é possível prever, afinal a atividade econômica está sendo exercida com a proteção do princípio da livre iniciativa.

Mas vale aqui lembrar: o consumidor é vulnerável. Então, como harmonizar tais interesses?

Retomando a breve análise do texto da lei, no artigo 18 e seguintes, o legislador trata da responsabilidade dos fornecedores de produtos e serviços pelos vícios de qualidade e quantidade, trazendo em seu bojo a responsabilidade objetiva e solidária. Trata especificamente da ampla defesa do consumidor nas circunstâncias em que os produtos se tornem impróprios ou inadequados para a sua finalidade ou os serviços sejam prestados de maneira irregular, de modo a gerar vícios, o que traz ao consumidor direitos, como por exemplo o de rescindir o contrato de consumo, trocar o produto impróprio ao consumo, a reexecução do serviço prestado de forma inadequada, o de eventual indenização, dentre outros.

Mais a frente, o artigo 25 traz a proibição de cláusula contratual que prejudique o consumidor em seu direito de ser indenizado, e em seu parágrafo primeiro reitera pela solidariedade entre os responsáveis por danos causados aos consumidores.

Traz, então, o texto legal consumerista suficiente tratamento acerca das responsabilidades dos fornecedores de produtos e serviços acerca de defeitos e de vícios, garantindo aos consumidores direitos relativos ao próprio contrato de consumo e de indenização. Resta saber se o alcance das previsões do código abrange a responsabilidade de fornecedores em decorrência de atos de terceiros, o que depende da análise das hipóteses excludentes.

4.2 Excludentes de responsabilidade

Embora seja o consumidor a parte mais fraca da relação de consumo, de certo que não agiria corretamente o legislador se decidisse por adotar a aplicação do risco integral da atividade econômica, imputando aos fornecedores uma circunstância de obrigação absoluta perante os consumidores.

Fala-se em risco integral quando a legislação fixa uma reponsabilidade objetiva integrada com o exercício de determinada atividade, sem prever qualquer excludente de responsabilidade.

Sérgio Cavalieri Filho, ao iniciar a análise acerca das hipóteses excludentes, traz o seguinte pensamento introdutório.

Mesmo na responsabilidade objetiva é indispensável o nexo causal. Esta é a regra universal, quase absoluta, só excepcionada nos raríssimos casos em que a responsabilidade é fundada no risco integral, o que não ocorre no Código do Consumidor. Inexistindo relação de causa e efeito, ocorre a exoneração da responsabilidade, conforme enfatizado em várias oportunidades. Essa é a razão das regras dos arts. 12, § 3º, e 14, § 3º, do Código do Consumidor, porquanto, em todas as hipóteses de exclusão de responsabilidade ali mencionadas, o fundamento é a inexistência do nexo causal entre o dano sofrido pelo consumidor e o defeito do produto ou do serviço. (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 334).

Assim é que em seus artigos 12, § 3º e 14, §3º, o Código em estudo apresenta as hipóteses de exclusão da responsabilidade dos fornecedores pelos defeitos em produtos e serviços.

Nos citados dispositivos, trouxe a lei circunstâncias ligadas diretamente com o objeto do contrato: o produto ou o serviço. Deve o fornecedor comprovar que não colocou o objeto no mercado; que embora tenha colocado o objeto no mercado, o defeito inexiste; ou ainda que ocorreu culpa exclusiva de terceiro ou do próprio consumidor.

Uma primeira questão torna-se necessária para elucidar do tema aqui proposto: o rol de excludentes do Código de Consumo é taxativo ou exemplificativo?

É premissa comum no direito protecionista que as regras jurídicas devem ser interpretadas sempre de forma mais favorável à parte vulnerável da relação jurídica. Assim é também no direito do consumidor. Neste sentido, uma fria conclusão levaria a afirmar que se trata de cláusula esgotativa, não cabendo outras possibilidades de exclusão da responsabilidade dos fornecedores, que não aquelas já previstas no bojo da lei de consumo.

Partindo dessa primeira ideia, vale lembrar das hipóteses previstas no artigo 393 do Código Civil de 2002, que expressamente inclui o caso fortuito e a força maior como causas de exclusão da obrigação de reparar danos.

Supondo que um indivíduo armado entra em um restaurante e atira contra os consumidores que ali estão. Poderá o consumidor atingido pelos disparos ingressar com ação de reparação de danos contra o estabelecimento de consumo?

A questão merece profunda análise, pois não havendo um posicionamento uniforme acerca das hipóteses de exclusão previstas no CDC, surgirão muitas divergências.

5 FORÇA MAIOR E CASO FORTUITO COMO EXCLUDENTES

          Por se tratarem de conceitos cujo significado jurídico é ainda debatido na doutrina, é de boa didática esclarecer que a corrente do presente autor, diferenciando tais institutos, é a da inevitabilidade na força maior e da imprevisibilidade no caso fortuito. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho trazem o mesmo tratamento.

“a característica básica da força maior é a sua inevitabilidade, mesmo sendo a sua causa conhecida (um terremoto, por exemplo, que pode ser previsto pelos cientistas); ao passo que o caso fortuito, por sua vez, tem a sua nota distintiva na sua imprevisibilidade, segundo os parâmetros do homem médio. Nessa última hipótese, portanto, a ocorrência repentina e até então desconhecida do evento atinge a parte incauta, impossibilitando o cumprimento de uma obrigação (um atropelamento, um roubo)”. (GAGLIANO, 2002, p. 291)

          Retornando ao ponto do atirador no restaurante, e considerando a explicação doutrinária, estaria o exemplo configurando uma situação de imprevisibilidade, melhor dizendo, caso fortuito.

          No Código de Defesa do Consumidor não há previsão expressa de caso fortuito. Daí se conclui que, sendo taxativo o rol da lei de consumo, haverá sim responsabilidade do fornecedor, independentemente de nexo de causalidade.

          Autores que seguem a corrente de Nelson Nery Júnior entenderão como não aplicável a excludente de caso fortuito nas relações de consumo. (NERY JR, 1992, p. 56)

          Em sentido antagônico surge a aplicação subsidiária do Código Civil, posição majoritária entre autores e jurisprudência. Daí fala-se em distinguir fortuito interno e fortuito externo.

          Como a própria expressão já sugere o fortuito interno está relacionado com a atividade do fornecedor, como por exemplo um acontecimento inevitável que ocorre no momento da fabricação do produto, ao passo que externo é o fortuito que não se relaciona com a atividade econômica, seria então circunstância onde não existe defeito no produto ou no serviço, mas sim um fato integralmente isolado e sem qualquer vínculo com o fornecedor, como ocorre na hipótese do atirador no restaurante.

          Ora, se o fortuito ocorre de forma externa, não parece justo imputar ao fornecedor a responsabilidade de indenizar o consumidor atingido. Sérgio Cavalieri Filho defende igualmente o fortuito externo como excludente.

“Em conclusão, o fortuito externo, em nosso entender verdadeira força maior, não guarda relação alguma com o produto, nem com o serviço, sendo, pois, imperioso admiti-lo como excludente da responsabilidade do fornecedor, sob pena de lhe impor uma responsabilidade objetiva fundada no risco integral, da qual o Código não cogitou.” (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 340).

          Leonardo Medeiros Garcia traz idêntico posicionamento quando afirma que “somente o fortuito externo excluiria a responsabilidade do fornecedor, justamente por não guardar nenhuma relação com a atividade negociai, sendo fato estranho a esta”. (GARCIA, 2017, p. 164).

          Ora, o legislador consumerista não trouxe previsão acerca do caso fortuito justamente para se evitar uma incorreta interpretação do alcance da responsabilidade civil inerente da relação de consumo.

          Este é o sentido que mais se aproxima da segurança jurídica, pois o fortuito interno é ônus da responsabilidade objetiva, logo, não exclui o dever de indenizar. Ao passo que, sendo externo o caso fortuito, não há como integrá-lo com o risco da atividade econômica, e, portanto, não deve ser tratado como fato gerador da reponsabilidade do fornecedor.

          Assim já julgou o Superior Tribunal de Justiça, quando da análise do Recurso Especial 1.440.756, onde se discutia a responsabilidade pela segurança dos consumidores em caso de disparos feitos dentro de uma sala de cinema em um shopping.

Na ocasião, entendeu a Terceira Turma do STJ que não seria razoável exigir das equipes de segurança de um cinema ou do próprio shopping evitar investidas homicidas.

1. É do terceiro a culpa de quem realiza disparo de arma de fogo para dentro de um shopping e provoca a morte de um frequentador seu. 2. Ausência de nexo causal entre o dano e a conduta do shopping por configurar hipótese de caso fortuito externo, imprevisível, inevitável e autônomo, o que não gera o dever de indenizar (art. 14, § 3.º, II, do CDC) (RECURSO ESPECIAL Nº 1.440.756 – RJ (2013/0321068-2)

A mesma turma recursal, julgando o Recurso Especial 1.642.397, aplicou novamente a hipótese excludente em caso de um roubo ocorrido em estacionamento gratuito de uma rede atacadista.

No caso, a prática do crime de roubo, com emprego inclusive de arma de fogo, de cliente de atacadista, ocorrido em estacionamento gratuito, localizado em área pública em frente ao estabelecimento comercial, constitui verdadeira hipótese de caso fortuito (ou motivo de força maior) que afasta da empresa o dever de indenizar o prejuízo suportado por seu cliente. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.642.397 – DF – 2016/0317323-2)

Caminhando em outra corrente, em decisão mais recente daquela primeira, a Quarta Turma Recursal do STJ, entendeu tratar-se, sim, de responsabilidade do shopping a segurança dos consumidores em caso de atiradores em suas dependências.

O acórdão recorrido está em conformidade com a jurisprudência desta Corte, no sentido de que é dever de estabelecimentos como shopping centers zelar pela segurança de seu ambiente, de modo que não há falar em força maior para eximi-los da responsabilidade civil decorrente de roubos violentos. (AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.027.025 – SP – 2016/0312980-5)

Na prática da atividade jurisdicional, certamente é sempre melhor individualizar cada caso sob julgamento e análise, pois por óbvio que as peculiaridades é que levarão o julgador a chegar a uma conclusão. Porém, se espera que a uniformização jurisprudencial atinja um posicionamento que não ignore a realidade social, a dificuldade de atuar no mercado empresarial e, principalmente, os deveres do Estado.

Nesta esteira, vale lembrar que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, o que se constata pela simples leitura do artigo 37, § 6º da norma constitucional de 1988.

Flávio Tartuce, ao comentar os julgados que se orientam pela responsabilização dos fornecedores por atos criminosos de terceiros, como aqueles acima tratados, traz posicionamento contrário a tal corrente.

Com o devido respeito, há uma ampliação exagerada da responsabilidade dos entes privados quando, na verdade, quem deveria responder seriam os entes públicos, pela flagrante falta de segurança. A questão passa por uma necessária revisão da responsabilidade civil estatal, diante da falsa premissa da responsabilidade subjetiva estatal, por omissão dos entes e agentes públicos. (TARTUCE, 2018, p.240)

Este tema produz diversas linhas de pensamento, mas o direito positivo garante o alcance da responsabilidade civil na medida em que exista texto legal para embasar o dever de indenizar. Como se viu, o Código de Defesa do Consumidor não traz expressamente um dever de os estabelecimentos privados estarem com segurança preventiva de roubos e atos homicidas. O Código Civil traz a previsão do caso fortuito como excludente, sendo aceito o fortuito externo pela jurisprudência.

Resta então resolver se roubos e atos homicidas configuram ou não como fortuito externo. Com o devido respeito aos julgados contrários, o presente autor entende configurada a excludente.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É certo que existem muitos fatores que irão impulsionar o pensamento de justiça, sendo que cada um possui suas próprias razões e sentidos do que parece justo ou não.

Não cabe ao Poder Judiciário sempre saber a única resposta correta, e nem se deve exigir tal capacidade de nossa magistratura.

Como visto, a ferramenta que promove uma filtragem na hermenêutica é a utilização do método teleológico, onde o interprete irá buscar a vontade da maioria, a finalidade social da norma jurídica, possibilitando que o magistrado consiga desligar-se de suas convicções morais e julgar conforme os ditames sociais – plano de fundo de todo o sistema normativo.

Em prosseguimento, o princípio da livre iniciativa econômica exige do sistema jurídico uma viabilidade prática, onde o mercado atenda aos preceitos da livre e justa concorrência, defesa dos consumidores e trabalhadores, sustentabilidade, função social de contratos e das propriedades e garantia da liberdade de iniciativa econômica, de modo que todos esses preceitos fundamentais – por inteligência do artigo 170 da Constituição Federal de 1988 – estejam em simetria.

Por fim, no tocante ao ponto que chama a atenção este ensaio científico, não há dúvidas de que não deve o fornecedor, comerciante, responder por atiradores e crimes com arma de fogo praticados em suas dependências. O que se discute é no tocante aos shoppings, se a segurança contratada deve ter preparo para conter criminosos e atiradores. Certo é também que a jurisprudência ainda deve aprimorar sua análise.

Vale sempre lembrar também que é comando constitucional o dever do Estado em preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas, pela inteligência do artigo 144 da Constituição Federal de 1988.

Assim é que em certos casos a responsabilidade é da segurança pública, e não do fornecedor de produtos e serviços.

Dizer que o Estado não possui qualquer responsabilidade perante atiradores em shoppings não parece uma posição razoável, pois a legislação brasileira não possui previsão de que os estabelecimentos comerciais devem evitar atos homicidas e outros crimes contra a vida em suas dependências, mas sim que possuem obrigação de zelar pela segurança dos consumidores, logo, respondendo pelo que se denomina fortuito interno.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de Setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm>. Acesso em: 28. Maio. 2020.

BETIOLI, Antônio Bento. Introdução ao Direito: lições de propedêutica jurídica tridimensional. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de direito do consumidor. 5. ed. – São Paulo: Atlas, 2019.

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[1] Advogado, Mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru-SP. Professor titular do curso de Direito das Faculdades Integradas de Bauru-SP, Coordenador da Pós Graduação em Advocacia Cível e Trabalhista das Faculdades Integradas de Bauru-SP.

[2] Doutor em Direito pela UFPB. Professor do Programa de Pós-graduação – PPGD UNIMAR – Mestrado e Doutorado.