LICITAÇÕES PARA STARTUPS NO BRASIL: ANÁLISE JURÍDICA DAS MODALIDADES DE CONTRATAÇÃO DE GOVTECHS À LUZ DO MARCO LEGAL DAS STARTUPS E DO EMPREENDEDORISMO INOVADOR
1 de junho de 2022BIDDING METHODS FOR STARTUPS IN BRAZIL: LEGAL ANALYSIS OF THE OF GOVTECHS HIRING MODALITIES IN LIGHT OF THE LEGAL FRAMEWORK OF STARTUPS AND INNOVATIVE ENTREPRENEURSHIP
Cognitio Juris Ano XII – Número 40 – Junho de 2022 ISSN 2236-3009 |
RESUMO: O presente trabalho faz uma análise da nova previsão de modalidade de licitação inserida no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei Complementar nº 182 de 2021 (Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador), com o objetivo de averiguar se o novo dispositivo legal é capaz de sanar as peculiaridades e dificuldades enfrentadas pelas startups, mais precisamente govtechs, na hora da contratação de prestação de serviços para a administração pública. Neste trabalho, utilizar-se-á da revisão bibliográfica, servindo-se de recursos como textos, livros, gráficos, artigos e a legislação que trata sobre o tema como base para atestar a hipótese de que a nova modalidade de licitação, que será minuciosamente debatida, atentou-se para as mudanças mercadológicas e de gestão ocorridas nos últimos tempos, principalmente em decorrência da indispensabilidade da inserção de tecnologia e processos de automação nos órgãos públicos, trazendo em seu texto legal normas que facilitam a contratação de govtechs pela administração, protagonizando um papel de modernização do Poder Público.
Palavras-chave: Licitação. Govtechs. Lei Complementar nº 182/2021. Startups.
ABSTRACT: The present paper is about the analysis of the new bidding modality forecast inserted in the Brazilian legal system by the Complementary Law no. 182 of 2021 (Legal Framework for Startups and Innovative Entrepreneurship), with the purpose of investigating whether the new legal device is able to solve the peculiarities and difficulties faced by startups, more precisely govtechs, when contracting the provision of services for the public administration. This work is a bibliographic research, using resources such as texts, books, graphs, articles and the legislation that deals with the subject as a basis to support the hypothesis that the new type of bidding, which will be thoroughly discussed, has paid attention to the market and management changes that have occurred in recent times, mainly due to the indispensability of the insertion of technology and automation processes in public agencies, bringing in its legal text rules that facilitate the hiring of govtechs by the administration, playing a role in the modernization of the government.
Keywords: Bidding. Govtechs. Complementary Law n. 182 of 2021. Startups.
1 INTRODUÇÃO
Sabe-se que o mercado e a forma de fazer negócios, desde a antiguidade até os dias atuais, estão em constante processo de evolução e, principalmente a partir do advento do que se chama de “indústria 4.0”, que proporcionou a inserção massiva de tecnologias e processos de automação nas relações comerciais, observou-se ainda mais a necessidade da realização de significativas mudanças nos modelos de negócios tradicionais.
Nesse contexto de demanda por inovação, tecnologia e automatização dos negócios, surgiram as startups. Apesar da existência de diversas características dessa “nova” modalidade de empresa, temos que as startups são empresas que possuem um modelo de negócio repetível e escalável e que geralmente ofertam soluções inovadoras e tecnológicas com grande potencial de crescimento. De acordo com os dados da abstartups (Associação Brasileira de Startups), a quantidade de startups no Brasil mais que triplicou durante os anos de 2015 a 2019, saltando de 4.151 para 12.727, o que representa um crescimento de 207% no número de tais empresas no país.
Os dados acima apresentados servem para demonstrar a consolidação do ecossistema brasileiro de startups, mostrando que é inimaginável desconsiderar o papel atual de inovação e automatização que é desempenhado por tais empresas, o que impulsiona uma transformação na forma de se prestar serviços. Diante disso, é cada vez mais comum e urgente a contratação pelo Poder Público dos serviços ofertados pelas startups. Isso porque há uma necessidade patente decorrente dos anseios dos órgãos públicos e da própria sociedade de se fazer mais com os orçamentos limitados, de oferecer respostas ágeis e personalizadas para os cidadãos e de conferir transparência aos atos praticados pelo Estado.
De fato, muitas dessas preocupações e desafios podem encontrar soluções nas propostas das startups que prestam serviço para os órgãos públicos, conhecidas como govtechs, que são definidas como empresas que tem como objetivo justamente gerar inovação para a gestão pública, tendo em vista a sua área de atuação, ou seja, o seu modelo de negócio, o uso da tecnologia e a proposta de automação dos serviços ofertados.
Contudo, apesar dessa inquestionável necessidade de modernização, o problema, muitas vezes, surge na forma de contratação de tais empresas pela Administração Pública. As alternativas convencionais de contratação pelo Poder Público até então disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro, seja as modalidades de licitações ou até mesmo as hipóteses de dispensa ou inexigibilidade, não se mostram completamente adequadas para suprir as especificidades inerentes às startups, mais precisamente govtechs, o que muitas vezes prejudicava a prestação do serviço, criando uma situação desfavorável para a empresa, assim como para a administração.
O Poder Legislativo, em uma tentativa de favorecer e facilitar esse tipo de contratação, em 02/06/2021, publicou no diário oficial da união a Lei Complementar nº 182, que instituiu o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador, e que prevê uma nova modalidade de licitação voltada para a contratação de soluções inovadoras pela administração pública, que promete ser uma alternativa viável e adequada para as relações entre os órgãos governamentais e as govtechs.
Conforme dito anteriormente, no decorrer desta pesquisa, empregar-se-á a metodologia da pesquisa bibliográfica, utilizando-se de recursos como textos, livros, artigos e a legislação prevista no ordenamento jurídico brasileiro que trate sobre o tema, realizando também uma análise de dados disponibilizados por instituições oficiais, mensurando as atividades das govtechs no Brasil a fim de verificar se a nova modalidade de licitação supracitada é suficiente para sanar as dificuldades e peculiaridades enfrentadas pelas govtechs na contratação com o poder público.
Dessa forma, ante a extrema importância e relevância deste tema para o ordenamento jurídico brasileiro, iniciaremos a construção do presente trabalho analisando o conceito de govtechs e qual o contexto histórico do surgimento dessas empresas, bem como o papel de protagonismo que elas desempenham na modernização do Poder Público. Logo em seguida, se analisará o ordenamento jurídico brasileiro a fim de verificar quais as alternativas de modalidades licitatórias utilizadas pelas startups que precedem a LC 182/21 fazendo um apanhado histórico que apontará as vantagens e desvantagens de cada modalidade. Por fim, estudar-se-á minuciosamente o Marco Legal das Startups verificando quais as novas previsões legais trazidas pelo legislador e se favorecem ou não a contratação de govtechs pelo Poder Público.
2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO SURGIMENTO DAS STARTUPS E ALTERNATIVAS EXISTENTES PARA CONTRATAÇÃO DE GOVTECHS PELO PODER PÚBLICO.
Primeiramente, anteriormente à análise do Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador propriamente dito e, consequentemente, anterior também a análise da hipótese levantada no presente trabalho, faz-se necessário entender o que é uma govtech, qual a sua importância e, principalmente, o porquê desse modelo de negócio possuir peculiaridades que precisam ser observadas quando da contratação com a Administração Pública. Portanto, para isso, a presente seção tem por finalidade efetuar um apanhado histórico de surgimento dessas empresas, debruçando-se também pelo seu conceito e, por fim, analisando as legislações que tratam sobre o tema de licitação e contratação de soluções inovadoras que precederam a Lei Complementar n. 182/2021.
Para entender acerca do surgimento e conceito das govtechs, se faz necessário antes compreendermos que desde 2010 estamos vivenciando, a nível mundial, a Quarta Revolução Industrial (SCHWAB, 2016), que representa um novo passo na relação entre a sociedade e a tecnologia e é capaz de causar profundas mudanças econômicas, sociais e culturais. A revolução digital é caracterizada por meio da crescente interação entre os meios físico, digital e biológico, através da internet, inteligência artificial, robótica, tecnologias neurais, internet das coisas, blockchain, aprendizado de máquina, big data, entre outros.
O mundo 4.0 é reconhecido por suas 4 principais características: volatilidade, incerteza, complexidade (infinidade de dados disponíveis e variáveis interconectadas), e ambiguidade (impossibilidade predizer comportamentos e situações futuras amparados em decisões passadas). Em decorrência da nova configuração tecnológica, a esfera da economia é reestruturada, e, passa a ser generativa (ARTHUR, 2009): um sistema complexo em constante evolução. Seu foco muda da otimização de operações fixas para a criação de novas combinações e novas ofertas configuráveis, cujos elementos – consumidores, investidores, empresas, autoridades governamentais – reagem aos padrões que esses elementos criam. Em suma: ordem e equilíbrio cedem espaço a abertura e indeterminação e surgimento de novidades perpétuas.
O Direito de tradição linear e cartesiana, com processos burocráticos e demorados, se torna incapaz de garantir equilíbrio econômico e social, e precisa ser redesenhado e repensado em sua observação e produção normativa em face das novas tecnologias e do novo paradigma da velocidade, complexidade e disrupção que a era digital traz consigo. Com efeito, diversas tecnologias que surgem diariamente não possuem equivalente normativo ou regulamentação específica, o que gera um grande ruído no mundo jurídico.
Nota-se, então, que a velocidade do progresso tecnológico e suas consequências econômicas e sociais ensejam uma nova forma da norma se compatibilizar com a realidade fática, num jogo entre regulação que permita a inovação, mas que também não ponha em risco os seus usuários. As tecnologias disruptivas estabelecem uma agenda urgente de reforma legal para que seja possível gerenciar os riscos e consequências deste novo paradigma.
O descompasso entre a atuação e as novas formas de funcionamento de mercado e da sociedade tem reflexos na intervenção estatal especialmente quanto a sua oportunidade, momento, forma e justificativa. Bennett (2013, p. 6) diagnostica três aspectos que desafiam a normatização estatal: conexão regulatória (harmonização do arcabouço normativo já existente com o cenário fático atual); problema de andamento (risco de regulação abrangente demais ou muito cautelosa, capaz de inviabilizar a tecnologia); e o momento mais eficiente para regulação, se logo quando a disrupção acontece ou se após o seu estabelecimento na sociedade.
As startups são desdobramentos desse novo paradigma de mundo. As startups surgiram no ambiente do Vale do Silício, localizado no estado de Carolina do Norte nos Estados Unidos, aproximadamente na década de 90. Como se sabe, o Vale do silício é um dos maiores centro tecnológicos do mundo, abrigando diversas startups desde o seu surgimento até os dias atuais. Essas empresas surgiram em um ambiente no qual diversos empreendedores estavam em busca de um negócio que fossem facilmente sustentáveis e de alta lucratividade.
Adentrando no conceito de startups, Erick Ries, criador da renomada metodologia “Startup Enxuta”, atribui como a definição de startup “(…) uma instituição humana projetada para criar novos produtos e serviços sob condições de extrema incerteza” (RIES, 2012, p.24). De fato, uma das principais características dessas empresas é o seu modelo de negócio que tem por objetivo o desenvolvimento de um produto que, geralmente, irá transformar um segmento com um produto tecnológico, que seja repetível e escalável. Por causa disso, a maioria das startups estão em fase inicial de suas atividades e buscam explorar soluções inovadoras para o mercado.
A partir da compreensão de que startups são empresas que geralmente estão na fase inicial do seu negócio e que desenvolvem soluções inovadoras capazes de transformar as relações negociais em determinados seguimentos, passemos a análise do conceito de govtechs, que será o alvo do nosso estudo no presente artigo científico. De antemão, é de extrema importância estabelecer que as govtechs são um tipo de startup, com a peculiaridade de que voltam os seus esforços para atuar em um determinado ramo –– governamental. Dessa forma, temos que são empresas que buscam desenvolver soluções inovadoras que irão incrementar, aperfeiçoar ou até mesmo auxiliar com a gestão dos órgãos públicos, afetando direta ou indiretamente, a sociedade como um todo, já que são administrados por esses órgãos.
Sobre o conceito propriamente dito, o BrazilLAB, que é o primeiro hub de inovação GovTech no Brasil, define esse modelo de empresa como “(…) a infraestrutura de tecnologia e soluções inovadoras que os departamentos do governo usam para fazer seu trabalho interno ou fornecer serviços aos seus ‘clientes’, ou seja, os cidadãos”. Através de simples análise do exposto até o momento, percebe-se que as govtechs podem propiciar à Administração Pública uma grande modernização na sua gestão, podendo também exercer papel de protagonista, capitaneando a inserção de tecnologia e processos de automação nos órgãos públicos.
Ressalta-se que, conforme já mencionado na introdução do presente trabalho, com o decorrer dos anos, há uma urgente necessidade de modernização da gestão do Poder Público, principalmente ante às inovações tecnológicas que são inerentes à forma de se gerir pessoas e fazer negócio no mundo, sobretudo no Brasil. Mais do que isso, em decorrência da pandemia do COVID-19, houve uma massiva aceleração da transformação do mundo digital, o que denota ainda mais a urgência de atualização do Poder Público, para que os seus serviços fiquem condizentes com a realidade enfrentada em um mundo pós-pandêmico, que urge cada vez mais pelo digital.
Ademais, há de se rememorar também que a gestão dos órgãos públicos impacta diretamente na vida dos cidadãos brasileiros, o que gera uma necessidade patente decorrente dos anseios dos próprios órgãos públicos e da sociedade como um todo, de se concretizar mais ações, ainda que possuam o orçamento limitado e de oferecer respostas ágeis e personalizadas para os cidadãos o que confere transparência aos atos praticados pelo Estado, obedecendo ao seu dever constitucional.
Hoje no Brasil já contamos com diversas startups que possuem soluções inovadoras que tem como o intuito melhorar a gestão no setor público. Apenas a título de exemplo, temos a “Colab[3]”, uma govtech que desenvolveu uma plataforma buscando tornar um cidadão inativo em um cidadão colaborativo. Através da plataforma, o cidadão pode manter contato com o poder público e indicar problemas ou melhorias necessárias em sua cidade, como, por exemplo, um buraco em uma Avenida. Outro exemplo é a govtech “Gove” que utiliza de inteligência artificial para avaliar as contas de um determinado município e indicar possíveis erros e formas de economia entre receita e despesa.
De fato, as startups podem desempenhar um importante papel para a melhoria da gestão do setor público brasileiro. Ocorre que as empresas que possuem esse modelo de negócio – especificamente as govtechs – possuem algumas peculiaridades que precisam ser incentivadas e superadas na hora da contratação da prestação dos seus serviços. É que, geralmente, a burocracia e lentidão dos procedimentos públicos não condizem com a realidade dessas empresas, que dialogam diretamente com a agilidade e tecnologia, necessitando de medidas que combatam essa dor referente a contratação com o Poder Público.
Na obra “As startups govtech e o futuro do governo no Brasil” foi realizado um relatório conjunto entre o CAF – banco de desenvolvimento da América Latina e o BrazilLAB, que tinha por objetivo analisar esse ecossistema no Brasil, delimitando especialmente a participação das startups, buscando justamente entender quais são as barreiras encontradas por essas empresas na hora da contratação pela administração pública. Analisando um trecho desta obra, podemos perceber que a burocracia e a falta de interesse dos gestores públicos na modernização dos seus entes são os principais fatores que incomodam os empreendedores à frente das govtechs.
Todas as startups entrevistadas apontaram a dificuldade de efetivação de contratos como o principal entrave ao desenvolvimento dos seus negócios. As dificuldades principais são decorrentes da legislação base que rege a contratação pelo setor público, apontada como atrasada e não condizente com a contratação de produtos ou serviços de base tecnológica e inovação. Além disso, foram apontados outros problemas, como a mentalidade atrasada do gestor, que muitas vezes sequer ouviu falar em inovação no setor público, a dificuldade de encontrar um gestor capaz de assumir a responsabilidade pela realização de uma contratação inovadora, pois temem a responsabilização pessoal por seus atos públicos (DOMINGUEZ, 2020).
Isto se dá pelo fato de que a legislação que servia como parâmetro para a contratação de solução tecnológica ou inovadora por parte do Poder Público era, predominantemente, voltada para as empresas que possuem modelo de negócios tradicionais e não possuindo, portanto, sinergia com as govtechs, o que dificulta ainda mais o processo de modernização da gestão pública, uma vez que, como visto, essas empresas voltam-se justamente para produzir produtos tecnológicas que prometem facilitar o comando dos órgãos públicos e da sociedade em geral.
É que as normas contidas nos dispositivos que tratam sobre licitações e contratação da administração pública, aqui citam-se como exemplo a Lei n.8.666/93, é eivada de procedimentos burocráticos, tais como observância às mais variadas especificações técnicas, predeterminação da solução ou produto que deve ser desenvolvido, critério de escolha como menor-preço em alguns casos, ante as suas especificidades. Todas essas disposições citadas apenas a título de exemplo, não estão de forma alguma inseridas no ecossistema das govtechs, dificultando, ou até mesmo afastando essas empresas.
Neste ponto, é necessário dizer também que a dispensa ou inexigibilidade da licitação não parece ser o melhor caminho ou solução para contratar com as startups. De fato, sabe-se que esses institutos são maneiras de frustrar a concorrência, entregando para um só fornecedor a exclusiva prestação do serviço, o que, principalmente na visão da administração pública em geral, não é uma boa alternativa, haja vista que criará um monopólio da prestação desse serviço.
Se invertemos o ponto de vista e pensarmos até mesmo no interesse das govtechs, não seria interessante utilizar-se da inexigibilidade da licitação, colocando-se como único fornecedor de tal solução, uma vez que para esse tipo de contratação deve ser considerado uma solução genuinamente inovadora, ou seja, que inexistia anteriormente, o que, certamente, não poderia ser atesta, ante a inexistência de competidores que ajudassem a estabelecer parâmetros e paradigmas das soluções.
Ao longo dos anos, enquanto o mundo vinha se digitalizando e modernizando cada vez mais, o ordenamento jurídico brasileiro tentou de algumas formas estar em consonância com essa necessidade de passar por um processo tecnológico, de automação. Portanto, criou alguns mecanismos e dispositivos que pudessem auxiliar na contratação de empresas que oferecem soluções inovadoras para o Estado e, principalmente, que essas empresas voltassem os seus interesses para a prestar os seus serviços em forma de beneficiar a administração. Contudo, conforme se verá a seguir, as legislações inseridas no ordenamento jurídico que visaram sanar a dor supramencionada não obtiveram êxito em trazer para os entes administrativos os serviços prestados pelas govtechs
A primeira alternativa pensada pelo legislador foi a Lei n. 10.973/2004, mais conhecida como a Lei da Inovação, que buscou estabelecer medidas que fomentassem a pesquisa científica, a inovação e a tecnologia no ambiente produtivo, já prevendo, ainda no ano de 2004, o processo de modernização que seria ocasionado pela transformação digital. Ressalta-se que, conforme debatido anteriormente, o legislador ainda naquele ano não tinha a completa ciência dessa real necessidade no âmbito da administração pública, o que foi extremamente aguçado em decorrência das mudanças culturais ocasionadas pela pandemia do COVID-19.
Nesta lei, previu-se no artigo 20, parágrafo quarto, uma hipótese de dispensa de licitação para o fornecimento, em escala ou não do produto ou processo inovador que fosse resultante das pesquisas, desenvolvimento e inovações encomendadas (BRASIL, 2004). De antemão, percebe-se que a alternativa escolhida pelo legislador que, na sua visão, fomentava a contratação de soluções inovadoras, foi através da dispensa de licitação do órgão público. Ocorre que, conforme já visto anteriormente, a dispensa e a inexigibilidade de licitação não é a forma mais adequada para realizar a contratação desse tipo de serviço, considerando, principalmente, o modelo de negócio de quem os presta.
Ainda, há de se ressaltar que a Lei de Inovação não voltou os seus esforços para o desenvolvimento de dispositivos que pavimentassem o caminho da contratação das govtechs, uma vez que a própria legislação se ateve ao fomento e incentivo à pesquisa e desenvolvimento tecnológico, não tratando de procedimento licitatório em si. Outra disposição que não possui uma grande harmonia com o ecossistema das startups e que, por si só, é um grande empecilho para a prestação de serviço dessas empresas, é o fato de que a disposição adota a dispensa de inexigibilidade diz respeito apenas a soluções previamente encomendadas pelo desenvolvedor. Fato é que as govtechs, por muitas vezes, iniciaram as suas atividades através de uma ideia que visa sanar determinada dor, não desenvolvendo soluções de acordo com o que foi encomendado pelos órgãos públicos.
Outro ponto digno de nota diz respeito a uma recente modalidade de licitação introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo novo Marco Legal das Licitações, a figura do diálogo competitivo. Pensando justamente na necessidade de contratação de soluções inovadoras pela administração, a Lei n. 14.133/21, a nova lei de licitações estabeleceu essa modalidade segundo a qual os participantes da licitação dialogam com a administração para construírem e escolherem a melhor solução para o problema apresentada. Contudo, apesar do avanço, tal dispositivo só é possível quando não há solução disponível no mercado, passando justamente por essa construção, o que afasta as govtechs que já possuem um produto desenvolvido, o que representa a maioria delas.
Por fim, outro ordenamento jurídico mais recente que também se preocupou, em uma específica disposição, com a inovação no âmbito do setor público foi a Lei n. 12.462/2011, que trouxe para a legislação o Regime de Contratação Diferenciado. Essa legislação possibilitou que nos casos de contratação integrada de obras e serviços, que é possível ser realizada nos certames licitatórios que envolvam inovação tecnológica ou técnica, não é necessário a elaboração prévia do projeto básico, o que ajuda a desburocratizar o certame. Contudo, tal medida, por si só, é mui incipiente e não chega perto de sanar todas as dificuldades encontradas pelas govtechs na hora de prestar o seu serviço. Dessa forma, temos que os dispositivos que tentaram aproximar, inserir ou trazer soluções inovadoras para o âmbito da administração pública não obtiveram êxito, seja pela falta de simbiose com o ecossistema dessas empresas, seja pela incipiência das disposições.
2.1 – ANÁLISE DA LEI COMPLEMENTAR Nº 182/2021 NO TOCANTE À NOVA MODALIDADE DE LICITAÇÃO INTRODUZIDA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
A presente seção tem por finalidade analisar minuciosamente a Lei Complementar nº 182 de 2021 (Marco Legal das startups e Empreendedorismo Inovador) atentando-se para as novas disposições trazidas pelo referido diploma legal no tocante à nova modalidade de licitação introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, denominada simplesmente de modalidade especial pelo anteriormente mencionado dispositivo, apontando os avanços e as dificuldades criadas pelo legislador com o intuito de atestar se essa nova forma de contratação é capaz de superar as barreiras da contratação de govtechs pelo Poder Público e trazer inovação para a Administração Pública.
Analisando a lei supracitada, percebe-se, de antemão, no primeiro capítulo que trata sobre a contratação de soluções inovadoras que, de forma muito clara, o legislador busca estreitar os laços entre as pessoas físicas e jurídicas que ofertam serviços de tecnologia e soluções inovadoras com a Administração Pública. Conforme já mencionado anteriormente, essa aproximação entre as govtechs e o poder público decorre não de uma faculdade do legislador, mas sim de uma necessidade de avanço tecnológico, assim como da inserção de processos de automação na gestão dos órgãos públicos, o que traz dois principais benefícios para a sociedade como um todo: transparência e agilidade na prestação de serviços.
Mais do que a aproximação de soluções inovadores com o Poder Público, o referido dispositivo legal traz à baila também a necessidade/dever do Estado em fomentar práticas inovadoras, acelerando a cadeia produtiva nos seus setores, o que demonstra, mais uma vez, que o objetivo do Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador é realmente pavimentar e facilitar o caminho das contratações dessas empresas. Tais constatações podem ser facilmente comprovadas quando da análise do capítulo VI da Lei Complementar, mais precisamente no seu artigo 12.
Art. 12. As licitações e os contratos a que se refere este Capítulo têm por finalidade:
I – resolver demandas públicas que exijam solução inovadora com emprego de tecnologia; e
II – promover a inovação no setor produtivo por meio do uso do poder de compra do Estado.
Neste ponto, se faz necessário destacar a importância da previsão de incentivo e fomento para as govtechs pelos órgãos governamentais no decorrer de toda a Lei Complementar. Isto porque tais empresas possuem uma modalidade de negócio na qual necessitam de investimentos – financeiros ou não – na sua fase inicial para executar os seus planos, ou até mesmo para desenvolver e aperfeiçoar o seu produto. Fomentar o ambiente de negócios das govtechs, seja através de incentivo financeiro ou de medidas que desburocratizam a sua contratação, é um grande indicativo inicial de que o referido diploma legal busca amenizar as barreiras enfrentadas por essas empresas.
Além do exposto até então, mais uma disposição que merece ser observada no diploma legal em debate é a possibilidade de todos os entes da Administração Pública, direta ou indireta, incluindo também as empresas públicas e sociedade de economia mista, no que couber, utilizarem-se das regras discriminadas no Marco Legal das Startups e de Empreendedorismo Inovador. Tal previsão, por mais que seja comum nas legislações que abordam o tema de licitação e contratação com os órgãos públicos, se faz essencial para expandir os horizontes das áreas de atuação e, por conseguinte, de contratação das govtechs, uma vez que terão um amplo mercado de atuação que conta desde os órgãos públicos até as sociedades de economia mista.
De fato, percebe-se até então que, em uma análise preliminar, a Lei Complementar n. 182 de 2021 busca aproximar a tecnologia e as soluções inovadoras com o poder público. Prova disso, é o artigo 13 dessa legislação, que pode ser considerada uma das suas maiores inovações quando o tema é licitação e contratação com o Poder Público, no sentido de trazer, expressamente, uma previsão que é pouco usual no ordenamento jurídico brasileiro. É que o supramencionado artigo aduz que a administração pública poderá contratar pessoas físicas para o teste de soluções por elas desenvolvidas ou a serem desenvolvidas.
Art. 13. A administração pública poderá contratar pessoas físicas ou jurídicas, isoladamente ou em consórcio, para o teste de soluções inovadoras por elas desenvolvidas ou a ser desenvolvidas, com ou sem risco tecnológico, por meio de licitação na modalidade especial regida por esta Lei Complementar. (BRASIL, 2021).
Apesar dessa disposição não se referir diretamente e unicamente a contratação das govtechs, objeto da nossa análise na Lei Complementar n. 182, ela merece ser destacada pelo seu potencial de se construir um paradigma na contratação de soluções inovadoras pelos órgãos públicos. Esse diploma legal possibilita que a administração pública contrate, além de empresas que oferecem serviços tecnológicos, constituídas pelos grandes conglomerados e startups, os programadores individuais, desde que tenham soluções tecnológicas para oferecer, o que, certamente, aumenta a concorrência no setor, podendo servir como uma balança na hora da precificação do serviço, possuindo potencial de significar uma contratação com o preço mais baixo, gerando uma possível economia para os órgãos.
Ainda sobre o artigo 13 da Lei, especificamente no seu parágrafo primeiro, há de se destacar outra novidade extremamente relevante e que possui a proposta de solucionar um dos principais calos dos serviços ofertados pela govtechs. O legislador conferiu à Administração Pública a faculdade de delimitar o escopo da licitação apenas quanto ao problema que deverá ser resolvido e dos resultados tecnológicos esperados, dispensando, portanto, descrições detalhadas e específicas acerca do objeto a ser contratado, assim como suas especificações técnicas o que, por muitas vezes, gera um processo extremamente burocrático e é um dos principais pontos que são alvo de judicialização dos resultados da licitação que envolvem soluções tecnológicas.
§ 1º A delimitação do escopo da licitação poderá restringir-se à indicação do problema a ser resolvido e dos resultados esperados pela administração pública, incluídos os desafios tecnológicos a serem superados, dispensada a descrição de eventual solução técnica previamente mapeada e suas especificações técnicas, e caberá aos licitantes propor diferentes meios para a resolução do problema; (BRASIL, 2021)
Possibilitar que as próprias govtechs ou os demais licitantes dos procedimentos licitatórios que ofereçam soluções tecnológica, notadamente no âmbito da modalidade especial abordada pela Lei Complementar n. 182/2021, indiquem qual é a melhor forma de solucionar o problema apresentado pela Administração Pública, favorece de forma contundente a contratação dessas empresas. Primeiramente, porque se obtém uma maior desburocratização do procedimento licitatório, uma vez que os prestadores de serviços não terão que despender uma grande quantidade de tempo atentando-se a longa lista de todas as especificações técnicas dos produtos e tendo que apresentar imensos documentos para comprovar que cumprem os tais requisitos, o que confere mais tempo para a empresa focar em aprimorar o produto que será apresentado.
Há de se destacar que o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador, através do artigo mencionado anteriormente, abriu uma grande margem para os licitantes utilizarem-se da sua expertise e know how para apresentar um produto que melhor solucione o problema apresentado pela Administração Pública, sem a necessidade de seguir uma solução previamente mapeada e imposta pelo Órgão Público, até mesmo porque, por muitas das vezes, o próprio Poder Público não tem a convicção de qual é o melhor remédio para a cura da sua dor, afinal, ela pode sequer ter sido apresentada ao mercado ainda, tratando-se de uma solução genuinamente inovadora.
De fato, essa previsão da desnecessidade de vinculação de uma solução previamente mapeada pelo licitador põe fim a uma grande indagação das govtechs que sempre foi e ainda remanesce como uma grande barreira para qualquer contratação de soluções inovadoras por meio de procedimento licitatório: como aplicar uma solução verdadeiramente inovadora e disruptiva quando se tem a indicação pela própria Administração Pública, licitador, de qual é solução que deve ser adotada ou quais são as especificações técnicas que devem ser utilizadas ou até mesmo qual o produto que deve ser desenvolvido. Esse é um dos motivos pelo qual o parágrafo primeiro do artigo treze do referido diploma legal é essencial para o favorecimento desses tipos de contratação.
Outro ponto relevante de discussão que pode vir a ser uma indagação válida ante a grande liberdade de escolha de soluções dos licitantes e, portanto, deve ser esclarecida, é se essa possibilidade de oferta de um produto inovador pelas govtechs, que poderá não seguir um modelo ou as especificações técnicas previamente estabelecidas pelo licitador, abordado no parágrafo anterior, será aferido, de forma técnica e segura, por profissionais qualificados que tenham a capacidade de apurar se a proposta apresentada pelo licitante é capaz de solucionar verdadeiramente o problema apresentado no edital pelo órgão público, afinal, a solução deve, necessariamente, ser validada.
A primeira parte da resposta para essa indagação perpassa pela forma como o referido diploma legal estabeleceu o critério de formação da comissão licitante, que irá avaliar as propostas ofertadas. Em seu parágrafo terceiro, ainda do mesmo art. 13, o legislador decidiu que será formada uma comissão especial que conterá, no mínimo, três pessoas de reputação ilibada e de necessário reconhecido conhecimento no assunto, das quais uma deverá ser servidor público integrante do órgão para o qual será prestado o serviço, como já é de praxe na maioria dos procedimentos licitatórios, e uma deverá ser professor de uma instituição pública de educação superior que seja relacionado com o tema da contratação.
Percebe-se, através da disposição apresentada, o cuidado e a atenção que teve o legislador em trazer para o certame licitatório profissionais que realmente tenham capacidade técnica para averiguar as soluções inovadoras que serão apresentadas e que estejam em contato direto com a área sobre a qual recairá a licitação, como é o caso dos professores universitários que ministrem disciplinas relacionadas ao objeto da licitação, em uma elegante e nobre menção a essa classe de profissionais. Ressalta-se também que ter um corpo qualificado na comissão que irá avaliar as propostas favorece também as govtechs que terão a possibilidade de apresentar sua solução em um alto nível de debate técnico.
Por sua vez, a segunda parte da resposta que complementa a indagação anteriormente apontada, consiste nos critérios escolhidos para o julgamento das propostas. De antemão, é válido mencionar que os critérios selecionados pelo legislador vão mais além do que simplesmente validar a solução ofertada para garantir que ela será capaz de resolver o problema apontado pela Administração Pública quando da publicação do edital. Os critérios escolhidos brilhantemente pelo legislador são, juntamente com o disposto no §2º, art. 13, da Lei Complementar n. 182/21, já comentado anteriormente, as duas principais novidades legislativas que pavimentam a ponte entre as govtechs e o Poder Público.
§ 4º Os critérios para julgamento das propostas deverão considerar, sem prejuízo de outros definidos no edital:
I – o potencial de resolução do problema pela solução proposta e, se for o caso, da provável economia para a administração pública;
II – o grau de desenvolvimento da solução proposta;
III – a viabilidade e a maturidade do modelo de negócio da solução;
IV – a viabilidade econômica da proposta, considerados os recursos financeiros disponíveis para a celebração dos contratos; e
V – a demonstração comparativa de custo e benefício da proposta em relação às opções funcionalmente equivalentes.
O primeiro critério estabelecido pelo legislador, constante no inciso I do parágrafo quarto, levou em consideração, prioritariamente, a efetividade da solução proposta pelo licitante, isto é, se a solução apresentada realmente atende completamente ao objeto contido no edital, acabando com determinada dor do Poder Público que tenha sido indicada. Deve se considerar também, ainda que a inteligência do dispositivo nos indique que seja em segundo plano, o potencial da proposta em trazer economia para os órgãos públicos. Tal critério sendo considerado como o primeiro ponto de atenção para as escolhas das propostas pela comissão que ficará a cargo da licitação – e não o menor valor apresentado, por exemplo – é de grande valia para as govtechs que focarão os seus esforços em produzir um produto realmente inovador e de qualidade, uma vez que por esses fatores o serão avaliados e não somente pelo valor financeiro da proposta.
O segundo critério diz respeito ao grau de desenvolvimento da proposta, ou seja, a comissão licitante irá avaliar, de forma técnica e precisa, qual é o estágio, em termos de amadurecimento e finalização do produto, no qual a solução tecnológica apresentada se encontra. Se está finalizado, avançado para a finalização ou em estágio inicial, por exemplo. O referido critério possui uma grande harmonia e dialoga de forma esplêndida com o ambiente de negócios das startups, estando inclusas nesse meio as govtechs, alvo de estudo do presente trabalho.
É que, como se sabe e visto anteriormente, esses tipos de empresas geralmente surgem a partir de uma ideia ou da idealização de um produto ou serviço inovador, estando um grande percentual delas em um estágio de empresa inicial, necessitando de investimentos para poder alavancar o seu negócio ou produto. Dessa forma, muitas startups apesar de possuírem propostas e soluções genuinamente inovadoras e que poderão vir a ser no futuro uma quebra de paradigma no mercado e um grande alívio para a dor da administração pública, não estão com a solução finalizada, mas ainda em desenvolvimento.
Então, através dessa possibilidade inserida de forma inteligente e proposital no ordenamento jurídico brasileiro, as govtechs que eventualmente não tiverem um produto cem por cento finalizado, com todos os acabamentos, com a validação de mercado necessária a esses segmentos, mesmo assim, estão inclusas pela legislação e poderão participar do certame licitatório, apresentar a sua proposta e até mesmo serem escolhidas como sendo o vencedor da licitação, obviamente que isso somente acontecerá caso a comissão licitante julgue no sentido da proposta apresentada pela empresa ser a que mais se adeque aos problemas e necessidades da administração pública que foram considerados no edital, ainda que por ventura necessite de alguns ajustes.
Nessa mesma linha de raciocínio, há de se fazer um importante adendo que virá validar e encorpar o que foi dito no parágrafo anterior, no sentido de que o legislador, propositalmente, preocupou-se em atender os licitantes e, por conseguinte, as startups que estejam em uma fase de vida inicial e não possuam uma solução finalizada ou com um alto grau de maturidade. Mais do que simplesmente possibilitar que um produto inacabado seja passível de contratação pela administração pública, o §7º do art. 14 da Lei Complementar n. 182 traz, expressamente, que o órgão licitador poderá pagar antecipadamente uma parcela do contrato a fim de viabilizar a implementação da etapa inicial do projeto das govtechs, o que dialoga diretamente com o modelo de negócio dessas empresas. Tal disposição também é um forte indício que o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador quebra importantes barreiras na hora da contratação dessas empresas.
Art. 14. Após homologação do resultado da licitação, a administração pública celebrará Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI) com as proponentes selecionadas, com vigência limitada a 12 (doze) meses, prorrogável por mais um período de até 12 (doze) meses.
§ 7º Os pagamentos serão feitos após a execução dos trabalhos, e, a fim de garantir os meios financeiros para que a contratada implemente a etapa inicial do projeto, a administração pública deverá prever em edital o pagamento antecipado de uma parcela do preço anteriormente ao início da execução do objeto, mediante justificativa expressa.
No terceiro critério de avaliação das propostas eleito pelo legislador, percebemos que se engloba a mesma lógica do segundo critério, discorrido no parágrafo anterior, uma vez que estabelece a análise da viabilidade e da maturidade do modelo de negócio do projeto apresentado. Contudo, a leitura do inciso se permite fazer uma importante ressalva: ao mesmo passo que o Marco Legal das Startups abrange os empreendimentos e soluções que não estejam no seu estágio final, traz um alerta para a comissão que estará a cargo da análise das propostas sobre a necessidade do que foi apresentado ser de possível aplicação, possuindo um produto minimamente estruturado, afinal, a solução deve ser capaz de sanar o problema disposto no instrumento convocatório.
Somente no quarto critério de avaliação das propostas que o dispositivo legal traz à baila fatores econômicos que devem ser considerados, aduzindo que se deve analisar a viabilidade econômica da proposta, ante o orçamento disponível para a contratação. Tal critério decorre do fato de que apesar da clara necessidade da introdução de inovação e tecnologia no setor público, encorajada escancaradamente pelo Marco Legal em debate, tais contratações e procedimentos licitatórios não podem ultrapassar os limites legais previstos nas leis orçamentárias, devendo sempre respeitar o teto de gasto de cada ente da administração, sendo acolhida uma proposta que se enquadre na realidade financeira.
O quinto e último critério escolhido pelo legislador também diz respeito a questões econômicas-financeiras, ou seja, se atém à análise do montante estabelecido pelo licitante como forma de contraprestação do seu serviço, o que se assemelha mais com a maneira em que usualmente e mais frequentemente são escolhidas a propostas fora do enquadro do Marco Legal das Startups e de Empreendedorismo Inovador. O inciso estabelece que deve ser levado em consideração também o custo-benefício da solução apresentada, realizando-se uma comparação com as outras propostas que apresentem uma funcionalidade equivalente, ou seja, que também são capazes de sanar, na mesma medida ou em uma medida próxima, o problema objeto do certame licitatório.
O supramencionado critério desempenha um importante papel de favorecimento para a contratação de soluções inovadoras. É que ele servirá como uma forma de incentivo para que as soluções que sejam ofertadas possuam, verdadeiramente, um diferencial competitivo. Ou seja, tem-se que a solução apresentada pelos licitantes, estando abrangido as startups e govtechs nesse meio, deverá ser tão genuinamente inovadora a ponto de que não possua outra proposta que poderá desempenhar uma função equivalente e que possua um preço mais acessível. Além disso, o referido inciso servirá também para acirrar a concorrência entre os licitantes, assim como desempenhará um papel de sistema de freios e contrapesos para os valores das propostas.
Dessa forma, tendo analisado os critérios de avaliação das propostas de forma minuciosa, bem como as disposições do artigo 13, especificamente em seus parágrafos primeiro e segundo, que possibilitam que o instrumento convocatório verse somente acerca do problema que deve ser resolvido, sem a necessidade de cumprimento das mais variadas especificações técnicas, temos que esses dispositivos são as duas principais frentes que lideram e abrem caminho para a facilitação ou favorecimento da contratação das govtechs pelo Poder Público, seja pela desburocratização do procedimento licitatório propiciada ou pela atenção que a legislação teve em considerar as dificuldades enfrentadas por essas empresas, principalmente no estágio inicial do seu negócio.
Contudo, apesar de tais dispositivos serem os principais pontos que mais chamaram atenção no sentido de favorecer esse tipo de contratação, há de se considerar que existem outras disposições no decorrer da lei que, juntamente com o artigo 13, §1º e §4º, desempenham um papel fundamental que facilita justamente que as startups contratem com a administração pública, trazendo assim, inovação para o setor público. É o caso do parágrafo 7º da Lei Complementar n. 182/2021, que é uma previsão já conhecida no ordenamento jurídico brasileiro e vem sendo adotado em algumas outras legislações que tratam sobre o tema de licitação e contratação com o Poder Público.
Depreende-se da leitura da dicção legal do artigo referido no parágrafo anterior que a fase de habilitação dos licitantes, ou seja, a análise da documentação e da qualificação das empresas para verificar se o participante irá ter condições de arcar com a execução adequada do objeto licitado, fase que é inerente a todo e qualquer certame licitatório, somente será efetuada após a fase de julgamento das propostas, passando por essa etapa somente os proponentes vencedores do procedimento, como já ocorre, por exemplo, na Lei 10.520/02 (Lei do Pregão) e como foi adotado como sendo a regra na Lei nº 14.133/21 (nova lei de licitação).
Habilitar somente as empresas vencedoras do certame é outra medida que certamente interessa às empresas tecnológicas que visam ofertar soluções de inovação para o Poder Público, uma vez que certamente desburocratiza o processo, conferindo maior celeridade ao certame, o que gera economia de tempo e até mesmo financeira para as govtechs. Fazendo alusão a maior agilidade no procedimento invertido de habilitação e julgamento das propostas no pregão, haja vista que essa inversão também ocorre no âmbito do Marco Legal das Startups, o professor Matheus Carvalho preceitua:
(…) A inversão de fases do pregão enseja maior rapidez no procedimento licitatório, isso porque, no pregão, primeiramente são classificadas as propostas, deixando a fase de habilitação por último. Também, procede-se a fase de adjudicação antes da homologação do certame pela autoridade competente. (CARVALHO, 2018, p.496).
Outra disposição da lei que merece atenção e que certamente contribui para o encurtamento das barreiras da atualização e modernização dos órgãos públicos através da contratação do trabalho das govtechs é a previsão trazida nos §9º e §10º do artigo 13, já visto anteriormente. Assim como já ocorre no âmbito das legislações do pregão e do pregão eletrônico, a Administração Pública, após o julgamento e escolha das propostas vencedoras apresentadas pelos licitantes, pode negociar com os selecionados para tentar conseguir condições financeiras mais vantajosas. Ou seja, é dizer que ao órgão licitado é permitido utilizar-se de sua barganha para convencer e acordar com o vencedor da modalidade especial da licitação melhores condições para a realização do contrato.
Contudo, como já fora relembrado, essa previsão já existia no ordenamento jurídico brasileiro, portanto, é anterior à publicação da Lei Complementar 182/2021, não se vislumbrando, em um primeiro momento, algo novo, que já não vinha sendo praticado nos contratos do setor público. Porém a verdadeira inovação dessa legislação encontra-se no §10º, que possibilitou que a Administração Pública aceite uma oferta superior à estimativa de mercado, caso entenda e demonstre comparativamente o custo-benefício da proposta.
Isto quer dizer que, como a própria legislação traz, caso uma govtech, por exemplo, apresente um valor pela contraprestação do seu serviço que seja superior ao que geralmente é adotado por um serviço similar no mercado, mesmo assim, a sua proposta poderá ser aceita, caso reste demonstrado que a sua solução possui um diferencial competitivo de difícil replicação. Tem-se que o próprio Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador encarregou-se de elencar algumas hipóteses nas quais são cabíveis a aceitação de um importe superior à estimativa.
A primeira hipótese se configura caso o licitante apresente uma superioridade em termos de inovação, a segunda em caso de o licitante propor uma redução do prazo de execução do objeto do contrato e, por último, caso demonstre que o seu produto possui uma maior facilidade de manutenção, manuseio ou operação. Há de se remorar que, obviamente, não é possível ultrapassar o valor máximo estipulado no instrumento convocatório. Essa faculdade, uma vez prevista na legislação, chama, de certo, a atenção das startups e demais empresas que ofertam uma solução inovadora para a gestão dos órgãos públicos, uma vez que valoriza e reconhece o trabalho dos licitantes, fomentando, ainda que de não seja de forma direta através de recursos financeiros, propostas que possuam um forte diferencial competitivo, já que ainda que tenha um maior custo, ainda poderão ser contratadas pelo seu custo-benefício.
Um último tópico que merece ser destacado, haja vista que, assim como as disposições que foram apresentadas até aqui, contribui veementemente para a abertura e consolidação do caminho para a prestação de serviço das govtechs no setor público é o artigo 15 da lei, que possibilita que mesmo após o encerramento do Contrato Público para Solução Inovadora, que é o contrato firmado com o licitante vencedor, pode a Administração Pública celebrar, com o mesmo contratado, um novo contrato de fornecimento do produto que contém a solução inovadora para que seja integralizado à infraestrutura tecnológica ou ao processo de trabalho do licitador, dando um aspecto de continuidade do trabalho desenvolvido durante toda a prestação de serviço, o que é de grande valia para os licitantes.
Até este momento percebe-se que o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador veio realmente para cumprir a promessa de ser o precursor ou, em outros termos, o ponto de virada que irá facilitar a inserção de inovação, tecnologia e automação para a gestão pública. Sobre isso, não restam dúvidas. Contudo, há de se fazer apenas dois contrapontos que poderiam ter sido olhado com mais carinho e atenção por parte do legislador. Primeiramente, temos que observar que a Lei Complementar estipulou um limite máximo de R$ 1,6 milhões por CPSI (Contrato Público para Solução Inovadora), o que pode ser considerado um montante baixo, dada a grandeza das propostas, que possuem potencial para revolucionar a forma de prestação de serviço no setor público.
Por fim, não se pode deixar de expor a falta de diálogo e harmonia com a Lei 14.133/2021, mais conhecida como o Novo Marco Legal das Licitações, que tem como um dos seus objetivos justamente reunir em uma só legislação normas que versem sobre contratação do Poder Público e que estavam esparsas nos mais variados dispositivos. De fato, não houve menção ou uma relação de subsidiariedade entre a Lei Complementar 182/2021 e a Lei 14.133/2021. Ainda, assim, considerando todo o exposto, é evidente e cristalino que o Marco Legal das Startups foi um grande avanço para a contratação de govtechs pela Administração Pública.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme depreende-se do decorrer da pesquisa, no presente trabalho objetivou-se analisar a Lei Complementar n.182/2021, mais conhecida como o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador, a fim de atestar a hipótese de que a referida legislação introduzida no ordenamento jurídico brasileiro facilita e pavimenta o caminho da contratação de startups, mais precisamente govtechs, com a Administração Pública, ante a necessidade de inserção tecnológica na gestão dos órgãos públicos e, considerando também, as barreiras enfrentadas nas licitações por empresas que possuem esse modelo de negócio.
A forma de se fazer negócios com o Poder Público, assim como a sua gestão, vem mudando ao redor do mundo, o que não é diferente do Brasil, motivo pelo qual criou-se uma urgência de modernização da administração pública. Demonstrou-se também que o número de startups, aqui inclui-se as govtechs, que são empresas que se voltam justamente para oferecer soluções tecnológicas para os órgãos públicos, vem em constante crescente e que podem ser uma alternativa viável para sanar essa dor, inserindo-se processos de automação e, consequentemente, de tecnologia, o que servirá como um benefício para a sociedade como um todo.
Em seguida, fez-se um apanhado histórico do surgimento das startups e das govtechs, analisando também os seus conceitos, quais são os objetivos de tais empresas e explicou-se as particularidades e o porquê de o seu modelo de negócio necessitar de um procedimento licitatório diferente das opções que vinham sendo praticadas no Brasil. Dessa forma, analisou-se também as legislações que tratam sobre o tema de licitação e contratação de soluções inovadores por parte do Poder Público e que eram anteriores ao advento do Marco Legal das Startups, identificando os pontos que dificultavam que a prestação de serviço ocorresse, gerando, consequentemente, um atraso tecnológico na Administração.
Exemplo disso, conforme visto, é a Lei n. 10.973/2004, ou simplesmente Lei da Inovação, que trouxe uma hipótese de dispensa de licitação nos casos em que empresas desenvolvessem “atividades de pesquisa e de reconhecida capacitação tecnológica no setor, visando à realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico”, o que não chamava a atenção das govtechs haja vista que tal ordenamento direcionou o dispositivo para uma criação intelectual, diferindo da proposta do produto que é ofertado por essas empresas, haja vista a sua solução já anteriormente desenvolvida visando um modelo de negócio repetível e escalável.
Na segunda seção, adentrou-se efetivamente no objetivo geral do presente trabalho de conclusão de curso, analisando minuciosamente os dispositivos inseridos no Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador, apontando quais as novidades que os artigos trazem e de qual forma e sentido eles ajudam e facilitam que os órgãos públicos possam contar com a prestação dos serviços das startups, considerando as barreiras existentes na hora dessa contratação. Verificou-se que o referido diploma legal conta com 02 principais inovações que juntas formam o principal motivo que nos permite dizer que essa legislação atende a hipótese de que a lei facilita a contratação de govtechs.
A primeira delas reside no artigo 13 da Lei, especificamente no seu parágrafo primeiro, que possibilitou que as próprias govtechs ou os demais licitantes dos procedimentos licitatórios que ofereçam soluções tecnológica, indiquem qual é a melhor forma de solucionar o problema apresentado pela Administração Pública, sem a necessidade de observância a exigências e especificações técnicas, o que conferiu aos licitantes maior liberdade na confecção do seu produto e, consequentemente, da sua proposta e serviu também como medida de desburocratização da licitação, tornando o processo mais ágil do que as possibilidades existentes e anteriores a modalidade especial.
A segunda é baseada no critério de escolha das propostas estabelecidas pelo legislador. Restou-se devidamente demonstrado que os critérios que serão analisados preocupam-se muito mais com a qualidade, maturidade e resolutividade da solução apresentada, ou seja, se ela é capaz realmente de atender ao problema que fora o exposto quando da publicação do instrumento convocatório, do que com os aspectos econômico-financeiros da proposta. Prova disso é que o critério que menciona a análise de valores está inserido somente no inciso IV. Além disso, está previsto na supramencionada legislação a possibilidade de adiantamento de um montante inicial para possibilitar a implementação das etapas iniciais do projeto, o que diálogo diretamente com o modelo de negócio das govtechs.
Ao final da segunda seção, foi efetuado um contraponto acerca de situações específicas que poderiam ter sido dadas uma maior atenção por parte do legislador, são elas: a) o limite máximo de R$ 1,6 milhões por CPSI (Contrato Público para Solução Inovadora, o que pode vir a ser um problema, ante os grandes valores que geralmente são tratados e negociados por essas empresas; b) a falta de diálogo e harmonia com a Lei 14.133/2021, mais conhecida como o Novo Marco Legal das Licitações, que é o dispositivo mais recente que tem por objetivo reunir em uma só legislação disposições que tratam do tema de licitação, não havendo uma relação de vínculo ou subsidiariedade entre ambas as leis.
Portanto, através do exposto, tem-se que o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador, apesar das situações que poderiam ter sido analisadas com uma maior atenção, conforme exposto no parágrafo anterior, trouxe disposições genuinamente inovadoras, inexistentes no ordenamento jurídico brasileiro e que visaram, de uma forma muito clara e objetiva, encurtar a distância existente entre os serviços prestados por empresas de tecnologia, startups e govtechs com a administração pública.
Dessa forma, a publicação da Lei Complementar n. 182/2021 estabeleceu um marco de grande avanço em direção à inserção de tecnologia, com a consequente modernização do Poder Público, através da facilitação e desburocratização da contratação de soluções inovadoras ofertadas por esses tipos de empresas que terão, cada vez mais, interesse e apoio para construir produtos que aprimorem a gestão pública, beneficiando não só os órgãos, como a sociedade geral.
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[1] Pós Graduando em Direito Tributário (IBET). Bacharel em Direito (Unipê). Advogado. Email: danilo@cmrdadvogados.com.br
[2] Doutoranda em Ciências Jurídicas no Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas do CCJ/UFPB, na área de concentração em Direitos Humanos e Desenvolvimento. Mestre em Direito Econômico (UFPB). Membra da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (ANNEP) e da Academia Brasileira de Meios Adequados à Solução de Conflitos (ABMASC). Professora Universitária. Advogada. Email: juliana.coelho@academico.ufpb.br