LEGITIMIDADE JUDICIÁRIA PARA DECIDIR SOBRE CORTE DE SERVIÇO PÚBLICO EM CASOS SENSÍVEIS

LEGITIMIDADE JUDICIÁRIA PARA DECIDIR SOBRE CORTE DE SERVIÇO PÚBLICO EM CASOS SENSÍVEIS

1 de março de 2023 Off Por Cognitio Juris

JUDICIAL LEGITIMACY TO DECIDE ON CUTTING OFF PUBLIC SERVICES IN SENSITIVE CASES

Artigo submetido em 27 de janeiro de 2023
Artigo aprovado em 01 de fevereiro de 2023
Artigo publicado em 01 de março de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 45 – Março de 2023
ISSN 2236-3009

Autores:
Túlio Macedo Rosa e Silva[1]
Henrique Abdul Nour Tiosso[2]
Samuel Hebron[3]
Yury Dutra da Silva[4]

RESUMO: O presente artigo tem como fim abordar os aspectos jurídicos do corte dos serviços públicos essenciais em situações sensíveis, que podem envolver pessoas vulneráveis ou outros conflitos ético-normativos, com enfoque nas discussões sobre a legitimidade do Judiciário para decidir a conduta a ser adotada nessas ocasiões, a par da conexão íntima que tais prestações guardam com a dignidade dos usuários e que com o universo da implementação dos direitos sociais, cuja tutela encontra-se determinada a nível constitucional no Brasil.Para esse fim, foi utilizado o método descritivo-dedutivo, tendo natureza teórico-bibliográfica, ao analisar de forma qualitativa a natureza jurídica dos serviços públicos, sua relação com os direitos sociais e a ação do Poder Judiciário em sua efetivação. Busca-se, portanto, por meio de técnicas conceituais e normativas, traçar um caminho racional na delimitação do fenômeno estudado. 

Palavras-chave: Serviços Públicos. Justiça e Judiciário. Direitos Sociais. Legitimidade Judicial

RESUME: The purpose of this article is to address the legal aspects of cutting essential public services in sensitive situations, which may involve vulnerable people or other ethical-normative conflicts, focusing on discussions about the legitimacy of the judiciary to decide the conduct to be adopted on these occasions. , along with the intimate connection that such services have with the dignity of users and with the universe of the implementation of social rights, whose protection is determined at the constitutional level in Brazil. For this purpose, the article uses a descriptive-deductive method, having a theoretical-bibliographical nature, when qualitatively analyzing the legal nature of public services, their relationship with social rights and the action of the Judiciary in their effectiveness. The aim is, therefore, through conceptual and normative techniques, to trace a rational path in the delimitation of the thought phenomenon.

Keywords: Public Services. Justice and Judiciary. Social rights. Judicial Legitimacy

INTRODUÇÃO

Há uma intrigante relação entre os valores básicos à dignidade material de uma pessoa e as suas reais possibilidades de gozar prestações de natureza pública ou do que normalmente se conhece por serviços públicos.

A importância dos serviços dessa estirpe foi consagrada pela dicção do art. 175 da CRFB/88 que, ao mencioná-los, direciona sua vocação ao Estado, tendo nessa figura seu titular por excelência. Nessa linha, o texto constitucional tece uma estrutura compromissória (pluralista) em que, ao mesmo tempo em que são erigidos valores típicos de um liberalismo, também se implementam medidas e diretrizes aptas a garantir os predicados de um welfare state.

Dito isso, é preciso ter-se em conta que, na prática brasileira e em boa parte dos Estados ocidentais, a prestação dos serviços alcunhados públicos não necessariamente é posta a cabo exclusivamente pelo Estado em estrita acepção, sendo comum a prática de sua delegação a particulares, que passam a executar as atividades correlatas em regimes jurídicos híbridos, com ingerência tanto do que classicamente se nomina direito público quanto do regime privado. Essa circunstância desemboca num sem-número de cenários conflitivos, a exemplo das discussões sobre “equacionamento econômico e proteção da dignidade humana”, na esfera privada, traduzida em termos de “reserva do possível e mínimo existencial” na seara pública, sendo de especial importância a este estudo os momentos em que o Judiciário é instado a analisar a procedência de eventuais suspensões na prestação desses serviços.

Nesse sentido, a lei nº 8.987/1995 parece fornecer uma resposta geral em seu art. 6º, § 3o, autorizando a interrupção dos serviços em situações de emergência, por razões de ordem técnica, de segurança nas instalações e também por ocasião de inadimplemento do usuário. Nos casos de razões técnicas, de segurança das instalações ou de inadimplemento, é imprescindível que seja ofertado o aviso prévio; por inadimplemento, ainda se exige que seja considerado o interesse da coletividade. Essas disposições, porém, não dão conta de toda a complexidade envolvendo os casos de interrupção de prestações de serviços públicos, sobretudo os de natureza essencial, e os conceitos abertos insculpidos no dispositivo citado, a exemplo do “interesse da coletividade”, diversas vezes são o vetor hermenêutico para a autoridade judicial definir casuisticamente o acerto ou equívoco de dada interrupção.

Para além da lidimidade da suspensão do serviço, a legitimidade do próprio Judiciário para atuar sobre questões que dialoguem com a implementação de direitos sociais também desponta como uma das questões fundamentais a serem discutidas no panorama exposto, ao que tentarão estas linhas a providenciar algumas prefaciais respostas, tendo em cálculo a conformação político-jurídica brasileira, a teoria do Estado agasalhada e os contornos das discussões modernas sobre legitimidade democrática e atuação judicial na implementação de direitos prioritariamente da alçada realizadora dos demais poderes, destacadamente os de natureza social.

Esta pesquisa seguirá o método descritivo-dedutivo, tendo natureza teórico-bibliográfica, ao analisar de forma qualitativa a natureza jurídica dos serviços públicos, sua relação com os direitos sociais e a ação do Poder Judiciário em sua efetivação. Busca-se, portanto, por meio de técnicas conceituais e normativas, traçar um caminho racional na delimitação do fenômeno estudado. 

Para tanto, as fontes jurídicas de pesquisa albergam ampla pesquisa bibliográfica e cotejo de dados, bem como fruto de uma abordagem crítica sobre os elementos informativos fornecidos pelos documentos em referência, considerado o suporte de pesquisas a artigos científicos, doutrina jurídica e repositórios de jurisprudência especializada.

I – DOS SERVIÇOS PÚBLICOS, SUA NATUREZA JURÍDICA E LIAME COM OS DIREITOS SOCIAIS

Para Fritz Fleiner (1933), serviço público seria ”o conjunto de pessoas e meios que são constituídos tecnicamente em uma unidade e destinados a servir permanentemente a um fim específico”. Laubadère (1957), por sua vez, via o serviço público como “toda atividade de uma coletividade pública visando a satisfazer um objetivo de interesse geral”.Manuel Maria Diez (1961), com uma abordagem material, define o instituto como “a prestação que a Administração efetua de forma direta ou indireta para satisfazer uma necessidade de interesse geral”.

Na doutrina de Jean Rivero (1995), a expressão serviço público pode ser tomada em dois sentidos ou acepções básicas. Num primeiro momento, fala-se em seu sentido subjetivo, em que são levados em cálculo os órgãos e instituições do Estado. Nessa esteira, seriam exemplos de serviço público os órgãos de fiscalização tributária e as autarquias previdenciárias. Quanto ao sentido objetivo, tem-se que ele diz respeito à atividade propriamente dita realizada pelo Estado, por intermédio dos seus agentes, quando da efetivação das aludidas comodidades.

Como de fácil vislumbre, a acepção objetiva é a que mais ecoa no mundo jurídico, sendo também ela o objeto principal de análise deste estudo. Ao longo da história, foram consagrados alguns critérios para a definição do que viria a ser serviço público. O primeiro é o critério orgânico, sendo a premissa básica dessa corrente a de que os serviços públicos, como atividade que são, devem ser prestadas por órgãos oficiais, em outras palavras, pelo próprio Estado. Nesse viés, a delegação dos serviços a terceiros, não componentes da estrutura estatal, ficaria comprometida ou mesmo inviabilizada.

A crítica que se faz a esse critério surge de uma constatação objetiva dos fatos: a delegação de serviços públicos é uma realidade inegável. O Estado, como estatui a própria teoria da reserva do possível, não dispõe de todos os recursos necessários para realizar integralmente as necessidades da coletividade, e é nesse momento que surge o importante papel das entidades privadas prestadoras de serviço público, destacadas auxiliadoras em uma sistemática de wellfare state.

Ainda há o critério formal, que estabelece ser nota marcante dos serviços o regime público a que se submetem. Esse critério, a bem da verdade, não atende a todo o complexo enredamento da operacionalização dos serviços, que podem ser exercidos efetivados em regime não absolutamente público, convocando a incidência parcial de normas de natureza privada. Hodiernamente, para além de um sistema puramente público ou privado, fala-se em um regime jurídico híbrido para algumas entidades e atividades exercidas em prol da coletividade.

Ademais, interessante aludir ao critério material que prioriza a natureza da atividade exercida. Serviço público, assim, seria aquele que atende direta e primordialmente ao interesse da coletividade. Aqui cabe menção ao célebre caso M. Terrier, ocorrido na França. Em 1903, a cidade de Saône-et-Loire sofria com a explosiva ampliação do número de víboras, sem que fosse possível à prefeitura controlar a situação que já se tornava urgente. Por conta disso, a prefeitura dessa municipalidade ofereceu aos seus moradores determinada quantia por cada unidade morta do animal. A população cooperou, contudo, o elevado número de espécimes abatidos não permitiu que a Prefeitura arcasse a contento com o encargo assumido, de modo que M. Terrier demandou contra o poder público em função dos valores não recebidos a título de contraprestação pelas atividades prestadas no abatimento de víboras. Na decisão do caso, entendeu-se que a atividade se tratava de verdadeiro serviço público (Long, 2007), ainda que prestada por particulares, daí sua importância no contexto do critério ora analisado.

Do todo dito, percebe-se que em diferentes momentos e locais variou a concepção de serviço público. Portanto, embora o critério material seja bem articulável, ele não é completo ou unívoco, podendo, porém, ser considerado prioritário. Merecem menção, aliás, as críticas endereçadas a essa ótica por não levar em consideração as atividades que atingem o interesse da maioria de forma indireta. Assim, nem todo serviço que o Estado presta possui essa característica; por vezes atuações aparentemente não voltadas à consecução do interesse do todo, acabam por realizá-lo em via colateral. Além disso, é possível dizer que se trata de conceito incompleto porquanto o mero favorecimento da coletividade precisaria, ademais, vir acompanhada de registro legal (tipicidade) para ser considerado cabalmente serviço público.

Como se percebe, ao cabo dessa prefacial abordagem, os critérios caracterizadores do serviço público, isoladamente, não são capazes de dar conta da extensão conceitual do instituto. Deve-se, pois, quando da abordagem da acepção que tome por base a análise do kritérion, optar pelo conglobamento dos aqui expostos, a fim de se obter uma compreensão mais fidedigna do que venha a ser o serviço público.

Para que se possa ter uma ideia dos distintos conceitos formulados por renomados nomes da doutrina clássica, convém colacioná-los de forma não exauriente. Assim é que no âmbito da doutrina nacional os estudiosos também não são uníssonos quanto ao conceito do instituto em apreço. Parece ser comum, apesar disso, o critério formal – quanto ao regime jurídico, portanto – entre os grandes autores.

Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles (2015) visualizou o serviço público como “todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniência do Estado”. Por sua vez, Celso Antônio Bandeira de Mello (2012) assevera que “serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade e comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais-, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo”.

José dos Santos Carvalho Filho (2008), com a didática que lhe é própria e atento à limitação dos retromencionados critérios tomados individualmente, define o serviço público como “toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade”.

Nessa quadra já é possível identificar os caracteres fundamentais dos serviços públicos, também seus elementos conceituais. Decerto, o serviço público constitui atividade e, para além disso, trata-se de atividade material, vale dizer, a atuação realizadora das utilidades alcunhadas por Celso Antônio não se encerra no plano da abstração normativa, mas opera-se concretamente, como tarefa exercida pelo Estado ou seus delegados.

Outro ponto marcante das comodidades públicas é que elas possuem, ao contrário do poder de polícia, natureza ampliativa, implicando aumento da esfera de interesses do particular. O serviço público surge sempre ao amparo do indivíduo, seja de forma assistencial ou fomentadora, não se prestando a reduzir seu espectro de atuação, sua zona de liberdade.

Ademais, como dito, o serviço público, segundo o talhado no art. 175 da Constituição Federal, em regra, é prestado diretamente pelo Estado, o que não elide a possibilidade de ser ministrado por particulares, por meio de concessão ou permissão, após o devido procedimento licitatório. Isso configura a delegabilidade do exercício dos serviços de natureza pública.

Não se perca de vista, apesar disso, que a aludida delegabilidade não desnatura a finalidade pública do serviço. As relações econômicas subjacentes a esse possível aspecto das comodidades públicas, não afasta a prerrogativa do Estado de regulamentar, controlar ou mesmo alterar o serviço, na medida em que ainda seu titular.

Outro caráter do instituto em perscrutação (já aludido em linhas anteriores) é o regime a que se submete. Durante algum tempo prevaleceu o entendimento de que os serviços públicos deveriam circunscrever-se integralmente em um regime de direito público. Isso se devia, sobretudo, ao fato de que tais prestações constituiriam atividade típica do Estado, havendo de selar-se por princípios e regras nativos do Direito Administrativo (Grau, 2015).

Hoje, pela dinâmica e necessária flexibilização na prestação das utilidades públicas, já se entende que normas de natureza privada podem adentrar a esfera dos serviços públicos. Assim, a concepção mais acertada é de que o regime a que se submetem esses serviços, hodiernamente, pode ser de natureza pública ou híbrida – quando um tipo essencialmente público é tangenciado ou sofre interações do privado.

Destaca-se nesse particular a questão atinente à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor no âmbito das relações travadas entre prestadora e usuário dos serviços públicos. O art. 7º da Lei nº 8.987/95 dispõe expressamente acerca da possibilidade de diálogo normativo com o diploma consumerista no campo da prestação de serviços públicos. Trata-se de aplicação subsidiária. Contudo, a Lei nº 8.987/95 não é a “Lei do Serviço Público”, apenas abarca aqueles prestados em sede de concessão e permissão, na esteira da autorização constitucional, o que não põe fim à discussão acerca da aplicação subsidiária do CDC no âmbito dos serviços públicos, quiçá sua integral incidência.

Ainda no diapasão das características do serviço público, há falar-se das necessidades da coletividade que se buscam sanar por meio dele. Esse ponto é interessante porquanto, num primeiro momento, poder-se-ia concluir que tais necessidades devem ser aquelas essenciais, porém, a atuação estatal não pode ser engessada pela significação do referido termo, na medida em que prestações de ordem colateral podem ser eleitas serviços públicos. No mais das vezes, desde que não rompida a ordem constitucional, isso dependerá quase que exclusivamente da vontade do legislador, perfazendo-se uma zona de tipicidade legal para que se possa referir determinada prestação como sendo ou não serviço público.

Dessarte, considerados todos os aspectos já mencionados, as discussões doutrinárias e as reservas feitas ao Judiciário, é preciso considerar que se vive hoje uma verdadeira sociedade do consumo e, portanto, uma sociedade dos serviços. As utilidades que satisfaçam os critérios políticos para serem elencadas como espécie dos serviços aqui abordados serão prioritariamente prestadas pelo Estado, mas também poderão sê-lo por particulares. O fato é que esse universo de comodidades, que pode representar a iluminação de uma casa, o abastecimento de recursos hídricos ou a conexão com outras pessoas (direito à interação social) se relacionam intimamente com os direitos de segunda dimensão (Vazak, 1979), conclamando uma conduta positiva do poder público, classicamente realizada pela função executiva, mas que, em cenários de falha, lacuna ou incongruência (a exemplo interrupções irregulares), invocam a atuação colmatadora da função judicante, cuja legitimidade será analisada mais detidamente em tópico próprio.

II – PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

Como aponta Bandeira de Mello (2012) o usuário é a figura “estelar” na prestação dos serviços públicos, pois é para ele que o serviço existe[5]. Nesse sentido, esclarece Dinorá Grotti (2021) que o termo usuário é “o vocábulo que melhor define o beneficiário de um serviço público” pois é quem “goza de uma atividade que, por uma parte lhe é devida, como integrante do corpo social que o Estado constituiu como instrumento de proteção e fortalecimento dos valores fundamentais da pessoa humana”.

Em igual sentido, aponta Alexandre Aragão (2013), que a designação de determinado serviço como de caráter público, expressa a importância que o ordenamento estatal dá a determinadas atividades, entendidas como essenciais à coesão social e geográfica do país. Nas palavras do referido autor “os serviços públicos não são em si um direito fundamental, mas meios de realização de direitos fundamentais autonomamente considerados”.

Daí a importância de uma principiologia própria a incidir sobre o regime jurídico dos serviços públicos, que visa proteger não apenas o usuário enquanto “consumidor de utilidades públicas”, mas, principalmente, os direitos fundamentais relacionados à adequada prestação dos serviços públicos.

 Nesse sentido, houve uma construção doutrinária dos princípios jurídicos aplicáveis aos serviços públicos. Aponta Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2022), inspirando-se na Escola do Serviço Público Francesa, três princípios fundamentais incidentes sobre o regime: (i) continuidade do serviço público, (ii) mutabilidade do regime jurídico; (iii) igualdade dos usuários.

Já Celso Antônio Bandeira de Mello (2012), de forma ampliativa, elenca dez princípios incidentes aos serviços públicos: (i) dever inescusável do Estado em prover a prestação; (ii) supremacia do interesse público; (iii) adaptabilidade; (iv) universalidade; (v) impessoalidade; (vi) continuidade; (vii) transparência; (viii) motivação; (ix) modicidade das tarifas; (x) controle.

De maneira geral, nota-se que os princípios que norteiam os serviços públicos reforçam a centralidade do usuário frente ao titular ou prestador do serviço. Corroborando tal interpretação, desponta o princípio da continuidade do serviço público, essencial à proteção do usuário e que ora busca-se analisar de forma mais detida.

Retoma-se, para tanto, Bandeira de Mello (2012) que define o princípio da continuidade do serviço público como a “impossibilidade de sua interrupção e o pleno direito dos administrados a que não seja suspenso ou interrompido”.

Já Karina Harb (2017), em sua definição, chama atenção para o objeto sobre o qual incide a proteção dada pelo princípio da continuidade, ao afirmar que:

O princípio da continuidade do serviço público, como é de se depreender, significa que os serviços públicos não devem ser interrompidos, dada a sua natureza e relevância, pois são atividades materiais escolhidas e qualificadas pelo legislador como tais em dado momento histórico, em razão das necessidades de determinada coletividade.

É dizer que, o princípio da continuidade é tão mais importante quanto mais essencial é o serviço que visa resguardar, no caso, quando se analisa o serviço público como meio à consecução de um direito fundamental.

De forma exemplificativa, tome-se o serviço de abastecimento de água, sem o qual as pessoas veem-se desprovidas de insumo elementar à vida humana ou ainda o serviço de coleta de lixo, sem o qual abrem-se as portas para a proliferação de doenças, cujos danos podem ser irreversíveis à saúde humana. Constata-se, por meio destes exemplos, que a continuidade dos serviços públicos é elemento indissociável da dignidade da pessoa humana em suas múltiplas dimensões.  

Além da proteção ao usuário, o princípio da continuidade possuí outra faceta, qual seja, a de impor à Administração Pública – ou seu delegado – o dever de garantir a efetiva prestação do serviço à coletividade. Dito de outra forma, o princípio da continuidade pode ser interpretado como um prolongamento do princípio da legalidade, uma vez que a lei, ao alçar determinado serviço a condição de público, exige do Estado a garantia de sua prestação de forma adequada e de acordo com a lei.

Portanto, a aplicação do princípio da continuidade traz consequências jurídicas à Administração Pública e aqueles submetidos as regras de direito público. Como aponta Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2022), decorre do princípio da continuidade: (i) a aplicação da teoria da imprevisão e o (re)equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, para permitir a continuidade do serviço; (ii) a inaplicabilidade da exceptio non adimpleti contractus contra a administração pública; (iii) previsão de institutos tendentes a evitar descontinuidade dos serviços, como a encampação e a requisição de materiais e recursos de particulares; (iv) imposição de prazos rigorosos aos contraentes junto à Administração.

Em que pese a centralidade e importância do princípio da continuidade na garantia da adequada prestação dos serviços públicos aos usuários, deve-se sopesar que o princípio não está revestido de caráter absoluto, encontrando mitigações e limitações a depender de situações fáticas específicas.

Nesse sentido, o artigo 6º, §3º da Lei nº 8.987/95 disciplinou que não se considera como descontinuidade do serviço aquelas decorrentes de interrupção, a qualquer tempo, por emergência ou, quando precedida de aviso prévio, as motivadas por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações. Também não se considera como descontinuidade do serviço o corte por inadimplemento do usuário, devendo-se para tanto considerar o interesse da coletividade[6].

As interrupções emergenciais e de ordem técnica nos serviços públicos não possuem maiores discussões jurídicas, pois decorrente de fatos inevitáveis (emergências decorrentes de caso fortuito ou força maior) ou necessários (manutenções preventivas nas infraestruturas). Assim, por mais que possam causar transtornos momentâneos aos usuários, tais intervenções são indispensáveis para a regular prestação dos serviços. 

A controvérsia jurídica dá-se com relação a possibilidade de corte do serviço público decorrente de inadimplemento do usuário, em especial quando feito por um delegado privado do poder concedente, o qual é desprovido do poder de polícia.

Isso porque, como visto, os serviços públicos são meios para a realização de direitos fundamentais, implicando que o corte de tais serviços é, em última análise, a supressão de uma garantia fundamental.

Por outro lado, como bem aponta Karina Harb (2017), parte da doutrina defende que o corte dos serviços aos usuários inadimplentes é uma forma de garantia da própria continuidade do serviço, tendo em vista que aqueles que não pagam pelos serviços acabam onerando e comprometendo a qualidade da prestação, ao distribuir todo o custo de operação do sistema aos usuários adimplentes ou forçar o concessionário de serviço público a arcar com o prejuízo.

Em sentido semelhante, advogando pela legalidade do corte de serviços públicos por inadimplemento do usuário, aduz Caio Tácito (2005) que o pagamento e a prestação dos serviços são “obrigações conexas e reciprocamente condicionantes: não há obrigação de pagar sem o funcionamento regular e contínuo do serviço, e – de igual forma – não haverá obrigação de continuidade do fornecimento sem o regular pagamento da tarifa, que exprime o custo do serviço fornecido”.

Entretanto, parte da doutrina interpreta com comedimento a possibilidade do corte dos serviços públicos essenciais. Nesse sentido, conforme doutrina de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2019) deve-se questionar sobre:

à possibilidade de interrupção na prestação do serviço, por falta de pagamento. Quando o serviço é essencial, como fornecimento de luz ou de água, sua interrupção deve ser adotada em casos extremos, uma vez que a empresa concessionária dispõe de outros meios para obter a satisfação de seus créditos, em especial o processo judicial de execução. Trata-se de aplicação do princípio da razoabilidade, que exige a adoção de medida adequada em relação ao fim a ser atingido; se a concessionária dispõe de outros meios para obter a satisfação de seu crédito, não deve privar o usuário da obtenção de um serviço público essencial.

Tal posição nos parece a mais razoável frente a realidade brasileira. Isso porque, em que pese a adoção de mecanismos de subsídio, como tarifas sociais ou adoção de modelos de concessão patrocinada, uma parcela expressiva da população brasileira vive em frágeis condições financeiras, o que pode resultar, em algum momento, no inadimplemento da tarifa de algum serviço público.

Tal situação mostra-se ainda mais aguda tendo em vista o atual cenário social e econômico. Isso porque, a pandemia da COVID-19, além do enorme estrago em termos de vidas humanas, impactou severamente os mais vulneráveis, cujos rendimentos médios caíram expressivamente[7], comprometendo, assim, a capacidade de arcar com despesas relacionadas, dentre outras coisas, às tarifas cobradas pela prestação de serviços públicos. 

Logo, entende-se razoável que, para além de sopesar a essencialidade do serviço, deve-se ponderar sobre a condição de miserabilidade do inadimplente antes que se dê cabo do corte de serviços essenciais, em especial aqueles relacionados a utilidades indispensáveis à vida, como abastecimento de água e energia elétrica.

Isso porque, as repercussões sobre o corte de serviços essenciais são típicos problemas policêntricos, que no conceito de Jeff King (2012), representam problemas cuja melhor solução demanda a compreensão de assuntos complexos, com uma infinidade de relações de causa e efeito, das quais derivam múltiplas soluções, demandando atuação tanto no âmbito das políticas públicas, quanto do Poder Judiciário.

Em que pese tal ponderação, o Superior Tribunal de Justiça pacificou há tempos o entendimento no sentido da legalidade do corte de serviços essenciais ante o inadimplemento do usuário, desde que submetido a aviso prévio[8], conforme disciplina do artigo 6º, §3º e 4º da Lei nº 8.897/95.

Entretanto, é de se esperar que, dada a nova dinâmica social imposta pela COVID-19 e seus ainda presentes desdobramentos, o Judiciário seja cada vez mais pressionado a arbitrar questões relacionadas à garantia de serviços públicos, uma vez que, como visto, são meios indispensáveis a realização de direitos fundamentais.

Assim, passa-se a analisar de forma mais detida a legitimidade do Poder Judiciário para influenciar a garantia ou suspensão de serviços públicos essenciais, em especial no conturbado cenário vivido no cenário pandêmico.

III – LEGITIMIDADE DO JUDICIÁRIO NA GARANTIA E SUSPENSÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

Como demonstrado nos Capítulos 1 e 2, há estrita ligação entre os serviços considerados essenciais e os direitos fundamentais, garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A promoção dos direitos sociais está no centro da atuação do Estado, tendo em vista que são previstos distintos instrumentos de intervenção no domínio socioeconômico para efetivar tais garantias.

Cenário especialmente desafiador para a manutenção dos direitos sociais, que já não eram plenamente efetivados, se deu com a Pandemia da Covid-19, que se dá a partir do ano de 2020. Diante da experiência europeia, o que se viu no Brasil foi a negligência inicial da União em reconhecer a gravidade da Pandemia. Quando se consulta a linha temporal, constata-se que em 07 de março de 2020 a Presidência menciona que “a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propaga pelo mundo todo” (PODER 360, 2021).

Com o alastramento do coronavírus no Brasil, a União, Estados e Municípios passam a lidar com uma crise sanitária que ameaça direitos fundamentais. De acordo com o Painel Coronavírus, são quase 700 mil mortes de brasileiros com coronavírus[9]. E esse número não leva em consideração circunstâncias relacionadas, como aqueles que não puderam acessar serviços básicos de saúde com os hospitais lotados.

Diante da negligência da União, que apostou inicialmente na manutenção das atividades socioeconômicas, de modo que o ambiente de normalidade permitisse ao vírus a propagação, a crise se generalizou. A complacência na determinação de isolamentos sociais prolongou os efeitos da Pandemia, assim como a desídia na compra de vacinas. E, para além dos casos extremos de perdas de vidas, houve grave prejuízo socioeconômico, com o agravamento de desigualdades. O Boletim “Direitos na Pandemia”, em sua última edição do ano de 2021, sintetiza esses eventos:

A inflação normativa reflete o descalabro da resposta brasileira à pandemia: no momento em que fechamos esta edição, ultrapassamos os 210 mil mortos e mais de uma a cada dez pessoas mortas pela doença no mundo encontram-se no Brasil; o Estado do Amazonas sufoca, sem oxigênio para os pacientes infectados pelo coronavírus; a vacinação ainda não acontece de forma coordenada e organizada no país; o Poder Executivo Federal mantém a postura negacionista, renunciando aos seus deveres mais elementares no que se refere à coordenação do Sistema Único de Saúde (SUS), e hipotecando o que poderia ser o maior trunfo brasileiro diante da emergência: a prática de um federalismo cooperativo e solidário.

As 3.049 normas relativas à Covid-19 coletadas por nossa pesquisa no âmbito da União corroboram a ideia de que onde há o excesso de normas há pouco direito. Trata-se de um acervo normativo que resulta do embate entre a estratégia de propagação do vírus conduzida de forma sistemática pelo governo federal, e a tentativas de resistência dos demais Poderes, dos entes federativos, de instituições independentes e da sociedade (PODER 360, 2021, p. 2).

O trabalho de Neri (2021) sintetiza o aprofundamento da desigualdade com a Pandemia da Covid-19, de modo que a renda dos mais pobres é atingida em maior proporção do que a dos mais ricos. O autor realiza essa constatação a partir do recorte dos 50% mais pobres com os 10% mais ricos da população brasileira. Entre o quarto trimestre de 2019 e o primeiro trimestre de 2021, o declínio na renda dos menos abastados foi de 21%, decorrente especialmente do desemprego.

Neri (2021) constata o aprofundamento da desigualdade decorrente da Pandemia da Covid-19 a partir do Índice de Gini, cuja existência se destina a essa finalidade. Entre o quarto trimestre de 2019 e o primeiro trimestre de 2021, o aumento da desigualdade é praticamente equivalente àquele observado entre os anos de 2014 e 2019, quando também há um aprofundamento da crise econômica no país.

É nesse contexto que o acesso a serviços públicos essenciais resta ameaçado, diante das dificuldades para manutenção de renda e capacidade de adimplemento das obrigações por parte dos cidadãos. Por outro, há interesses econômicos na prestação de tais serviços, que por vezes são executados a partir de concessões públicas, mediante procedimento de transferência de exploração para a iniciativa privada.

No caso do Estado do Amazonas, por exemplo, os serviços essenciais de acesso à água e ao saneamento básico, assim como o de fornecimento de energia elétrica, indispensáveis para a materialização da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, estão sob o controle da iniciativa privada. E, durante a pandemia da Covid-19, as concessionárias possuíam aspirações de manter seus indicativos econômicos, em especial o lucro.

É nesse contexto que a atuação do Poder Judiciário assume especial relevância: quando as políticas públicas podem não ser capazes de garantir ou prover os direitos fundamentais.

E essa atuação constitui um dos instrumentos de intervenção do Estado na ordem econômica, que não está restrita a aspectos de pleno funcionamento dos mercados, em uma visão tecnocrata da economia e do funcionamento da sociedade (BARROSO, 2001).

Barroso (2001) defende que os princípios elencados como integrantes da Ordem Econômica subordinam toda a atuação do Estado. E, além da atuação nas políticas públicas de Governo, estes princípios devem ser utilizados para a interpretação de todas as legislações seguintes, em nível constitucional ou infraconstitucional. Grau (2008) situa a ordem econômica como parcela da ordem jurídica, de modo que é criado um sistema de princípios e regras.

O domínio econômico, regido pela Ordem Econômica (enquanto regras jurídicas), deve cumprir com propósitos relacionados à existência digna e justiça social. É por este motivo que integram pontos centrais desta Ordem Econômica o prestígio a empresas de pequeno porte, a defesa do meio ambiente, a livre concorrência e a livre iniciativa (BRASIL, 1988).

Grau (2008) aponta para o fato de que a Ordem Econômica não é expressa apenas no capítulo que se inicia com o artigo 170 da Carta Magna. Há elementos associados aos incisos do artigo anteriormente mencionado que se encontram esparsos em outros trechos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A análise da valorização do trabalho, como propõe Barroso (2001), não pode ser dissociada do artigo 7º, que trata do rol de direitos assegurados aos trabalhadores (BRASIL, 1988).

Mello (1999) disserta que os incisos do artigo 170 não podem ser lidos de forma isolada, nem mesmo independente do seu caput. A Ordem Econômica, tal como foi estabelecida, impõe ao Poder Público e à sociedade o respeito aos princípios de funcionamento e princípios fins. Então, sob a prerrogativa da livre iniciativa, não podem ser esvaziados direitos relacionados à valorização do trabalho humano, ou à preservação do meio ambiente.

E tais conclusões, no sentido de que a Ordem Econômica, tal como a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 a concebeu, submete-se a direitos fundamentais, são essenciais ao contexto da Pandemia da Covid-19. Afinal, como foi demonstrado no trabalho de Neri (2021), o percentil mais pobre da população brasileira foi especialmente atingido pela perda de renda, comprometendo a capacidade de adimplir com as prestações que estão relacionadas ao acesso de direitos básicos.

Como destaca Cortez (2020), até o século passado, o Poder Judiciário não estivera no centro das discussões de políticas públicas. Tratava-se do “agente não convidado”, afinal não constituíra poder eleito, nem mesmo teria legitimidade para intervir no campo da política, que se propõe à execução das diretrizes do Estado com o pressuposto de exercer a escolha majoritária.

Este cenário é alterado, no entanto, mediante a construção de um arcabouço normativo, expresso pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que consagra dois aspectos fundamentais. O primeiro é a existência de direitos fundamentais basilares, que estão no cerne da própria fundação da Ordem Constitucional, tornando-os indispensáveis e mandatórios. O segundo é que ao Poder Judiciário é estabelecido o dever de intervir quando tais direitos não são assegurados (BARROSO, 2009). São as lições do autor sobre a “Doutrina da Efetividade”:

6. O reconhecimento de força normativa às normas constitucionais foi um importante conquista do constitucionalismo contemporâneo. No Brasil, ela se desenvolveu no âmbito de um movimento jurídico-acadêmico conhecido como doutrina brasileira da efetividade. Tal movimento procurou não apenas elaborar as categorias dogmáticas da normatividade constitucional, como também superar algumas crônicas disfunções da formação nacional, que se materializavam na insinceridade normativa, no uso da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento. A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa.

7. Nessa linha, as normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, são dotadas do atributo da imperatividade. Não é próprio de uma norma jurídica sugerir, recomendar, alvitrar. Normas constitucionais, portanto, contêm comandos. Descumpre-se a imperatividade de uma norma tanto por ação quanto por omissão. Ocorrida a violação, o sistema constitucional e infraconstitucional deve prover meios para a tutela do direito ou bem jurídico afetados e restauração da ordem jurídica. Estes meios são a ação e a jurisdição: ocorrendo uma lesão, o titular do direito ou alguém com legitimação ativa para protegê-lo pode ir a juízo postular reparação. Existem mecanismos de tutela individual e de tutela coletiva de direitos (BARROSO, 2009, p. 5).

A consequência prática é de que o Poder Público e os agentes particulares estão diretamente vinculados a obrigações relacionadas a direitos fundamentais estabelecidas pela Ordem Constitucional. Então se a Constituição consagrou direitos subjetivos, sejam de natureza política, individual, social ou difusa, todo o ordenamento jurídico deve contemplar normas que os consagrem. E, segundo a lição de Barroso (2009, p. 6), “O Poder Judiciário, como consequência, passa a ter papel ativo e decisivo na concretização da Constituição.”

Essa atuação do Poder Judiciário deriva da constatação de que a escolha majoritária, o representante eleito para a materialização dos fins estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pode atuar, de modo voluntário ou involuntário, para vulnerar os direitos fundamentais. É nesse contexto que se autoriza a intervenção do Poder Judiciário, a partir de decisões de juízes e tribunais, para interferir em deliberações de órgãos de representação política (BARROSO, 2009).

Durante a Pandemia da Covid-19, a combinação de fatores como a velocidade de sua disseminação, os impactos socioeconômicos imediatos, bem como a negligência do Poder Público, impõem desafios aos agentes políticos. E muitos desses desafios estão relacionados à capacidade de manutenção do acesso a serviços públicos essenciais, especialmente quando há interesses tão contrapostos, representados pela iniciativa privada como executora de tais serviços públicos.

Aguillar (2016) pontua que o ato de intervir do Poder Judiciário em questões de ordem econômica é fenômeno recente na história do Brasil, que ganha força a partir da década de 80. Não por acaso a coincidência com o período de promulgação e vigência da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. O autor sintetiza que o patrimonialismo, característico dos períodos monárquico e ditatoriais no país, sempre fora impeditivo para a atuação do Poder Judiciário em políticas públicas (e econômicas).

No contexto da Pandemia da Covid-19, porém, estivera inafastável a atuação do Poder Judiciário da manutenção de direitos fundamentais, que são consagrados pelo princípio da universalidade. E os serviços públicos considerados essenciais são verdadeiros meios de materialização desses fins, que se confundem com os próprios pressupostos de existência do Estado. Toma-se como exemplo a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas que impediu a realização de cortes de fornecimento de serviços essenciais durante o estado de calamidade pública:

Agravo de Instrumento. Ação Revisional. Energia. Fornecimento. Interrupção. Débito em Discussão Judicial. Cobrança. Impossibilidade. Caução. Desnecessidade. Legislação estadual. Pandemia. Covid-19.

1. A concessionária de serviço público não pode suspender o fornecimento de energia elétrica do imóvel do consumidor com relação à dívida discutida judicialmente, até o julgamento da lide, salvo no que diz respeito aos débitos não questionados, desde que observadas as formalidades legais.

2 A determinação de caução visa garantir a efetiva indenização dos prejuízos que eventualmente a parte adversa venha a sofrer, somente para as situações em que não restou demonstrada a possibilidade de concessão da tutela de urgência.

3. No âmbito do Estado do Amazonas é impossível a interrupção / suspensão do fornecimento de energia elétrica enquanto perdurar o estado de calamidade pública, em decorrência da Covid-19.

4. Recurso conhecido e desprovido.

(TJ-AM – AI: 40076781520208040000 AM 4007678-15.2020.8.04.0000, Relator: Elci Simões de Oliveira, Data de Julgamento: 16/08/2021, Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: 16/08/2021)

O exemplo acima demonstra que o Poder Judiciário tem papel relevante na manutenção dos serviços públicos essenciais em contextos de grave crise socioeconômica, como foi a decorrente da Pandemia da Covid-19. Esses serviços são indispensáveis para a materialização de direitos fundamentais, assegurados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

E a legitimidade para intervir no domínio econômico, no âmbito de relações privadas e contratuais, também não deve ser contestada. A Ordem Econômica consagrou princípios e direitos que devem conciliar as demandas da iniciativa privada com as finalidades em que se funda o Estado, notavelmente a de garantir existência digna aos seus cidadãos.

CONCLUSÕES

O presente artigo buscou explorar a complexa relação entre a natureza jurídica dos serviços públicos, o dever de continuidade na prestação destes e a atuação do Judiciário em garanti-los em situações críticas.

Concluiu-se ao longo da análise que a construção do conceito de serviço público caminha ao lado da efetivação dos direitos sociais. Isso porque, como visto, os serviços públicos constituem meio para a realização dos direitos humanos em suas múltiplas dimensões, essenciais à concretização da dignidade da pessoa humana.

Assim, para além de enxergar a prestação dos serviços públicos como mera utilidade de caráter econômico a ser prestada em regime de direito público aos indivíduos, deve-se ter em mente que são, em realidade, a forma como ganham vida direitos essenciais à coletividade.

Por isso que para além de um conceito jurídico, os serviços públicos são revestidos de um conteúdo histórico, tendo em vista que é um dado povo em determinada época que alça alguns serviços a categoria de “públicos”, razão pela qual merecem um regime jurídico diferenciado.

Verificou-se também, que a continuidade dos serviços públicos não pode ser resumida a mera garantia do equilíbrio econômico-financeiro do prestador, seja ele estatal ou privado. Isso porque, em um país em que ainda persistem índices de pobreza elevados, as chances de inadimplemento tarifário em algum momento da vida do indivíduo são altas, razão pela qual deve-se ter um olhar protetivo aos vulneráveis.

Se de um lado deve-se ter um especial cuidado com a saúde financeira das concessões, pois essenciais à boa manutenção das infraestruturas necessárias a realização dos serviços, por outro não se pode descuidar da precária condição econômica que incide sobre milhões de famílias brasileiras.

Em outras palavras, não se pode negar às pessoas em situação de vulnerabilidade financeira o mínimo existencial em acesso aos serviços públicos básicos, como tratamento de água e esgotamento sanitário, energia elétrica, transporte etc.

Portanto, esse delicado equilíbrio econômico-social, cuja complexidade e repercussão social exigem atuação tanto no âmbito das políticas públicas – seja por subsídios governamentais aos vulneráveis, tarifas sociais ou esquemas patrocinados de concessão – quanto de uma atuação presente do Poder Judiciário, que não pode se omitir quando demando a solucionar questões envolvendo a prestação de serviços públicos que, em última instância, são questões envolvendo a efetivação de direitos sociais.

Isso porque, o princípio da continuidade do serviço público não está revestido de caráter absoluto, podendo ceder em situações que justifiquem o corte dos serviços, como aquelas de caráter técnico ou quando do inadimplemento imotivado por parte do usuário.

Porém, a crítica que se faz ao corte dos serviços públicos decorrente do inadimplemento é a da possibilidade de o prestador manter seu equilíbrio econômico-financeiro ou cobrar débitos inadimplidos por meio de formas menos gravosas aos usuários, a exemplo das execuções judiciais.

 Nesse sentido, em especial durante a pandemia de COVID-19, o Judiciário foi acionado para arbitrar questões complexas envolvendo o corte de serviços públicos essenciais decorrentes do inadimplemento, em especial pelo empobrecimento geral da população.

Concluiu-se pela legitimidade do Poder Judiciário em tratar destas questões, em especial nas situações de imobilismo do Poder Executivo, pois não se pode afastar o caráter universal dos serviços públicos, bem como a importância destes para concretização de direitos fundamentais.

Assim, citou-se o exemplo do Estado do Amazonas, onde o Poder Judiciário, com respaldo em lei estadual, proibiu o corte de serviços essenciais durante a pandemia do COVID-19, sob o entendimento da impossibilidade de negar às famílias em situação de vulnerabilidade acesso ao mínimo existencial em matéria de serviços públicos.

Questão que fica é se superada a fase mais aguda da pandemia, ainda persistindo os problemas socioeconômicos dela decorrentes, tal entendimento será mantido.

Por certo o Judiciário será chamado a se manifestar sobre o tema no futuro. Certo é que a relação dialética entre o interesse/saúde financeira dos prestadores dos serviços públicos e o direito dos usuários persistirá, com o choque entre a equação econômico-financeira das concessionárias de um lado e o princípio da continuidade do serviço público de outro.

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[1]Doutor e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor Adjunto da Escola de Direito da Universidade do Estado do Amazonas, ministrando disciplinas no curso de Graduação e no Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Direito Ambiental. Professor de Cursos de Pós-Graduação (Especialização). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direitos Humanos Fundamentais, Direito do Trabalho e Direito Processual. Juiz do trabalho. E-mail tuliomasi@hotmail.com

[2] Mestrando do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Bacharel em Direito pela PUC-SP. Advogado. E-mail para contato: htiosso@gmail.com

[3] Mestrando no Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do

Amazonas (PPGDA/UEA). Procurador do Município de Manaus. E-mail para contato: samuelhebron2727@gmail.com

[4] Mestrando do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela UniBras. Bacharel em Direito pela UEA. Analista do Ministério Público do Amazonas. E-mail para contato: yuridutrasilva@gmail.com

[5] A própria Constituição de 1988 em seu artigo 175, II, estabeleceu que a lei disporá sobre os direitos dos usuários dos serviços públicos, denotando assim a importância que tal figura possui no ordenamento jurídico brasileiro. 

[6] Por interesse da coletividade entende-se o corte dos serviços públicos em estabelecimentos de interesse e atendimento ao público, como hospitais, universidades, penitenciárias, etc.

[7] FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Disponível em: Mapa da nova pobreza: Estudo revela que 29,6% dos brasileiros têm renda familiar inferior a R$ 497 mensais | Portal FGV; Acesso em 03 de dezembro de 2022.

[8] Nesse sentido: REsp 363.943/MG, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Seção, DJ 1º.3.2004, p. 119; EREsp 302.620/SP, Rel. Ministro José Delgado, Rel. p/ Acórdão Ministro Franciulli Netto, Primeira Seção, DJ 3.4.2006, p. 207; REsp 772.486/RS, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ 6.3.2006, p. 225; AgRg no Ag 1.320.867/RJ, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 19.6.2017; e AgRg no AREsp 817.879/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 12.2.2016.

[9] COVID-19. Painel Coronavírus. Acesso em: https://covid.saude.gov.br/