JUSTIÇA E ÉTICA DE ARISTÓTELES, INFLUÊNCIA MORAL NO PENSAMENTO DE ROBERT ALEXY E APLICAÇÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

JUSTIÇA E ÉTICA DE ARISTÓTELES, INFLUÊNCIA MORAL NO PENSAMENTO DE ROBERT ALEXY E APLICAÇÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

10 de março de 2024 Off Por Cognitio Juris

ARISTOTLE’S JUSTICE AND ETHICS, MORAL INFLUENCE ON ROBERT ALEXY’S THOUGHT AND APPLICATION BY THE SUPREME FEDERAL COURT

Artigo submetido em 30 de dezembro de 2023
Artigo aprovado em 16 de janeiro de 2024
Artigo publicado em 10 de março de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 54 – Março de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Felipe Carvalho de Oliveira Lima[1] – ORCID 0000-0002-6582-1171

Resumo: Este artigo apresenta o conceito de justiça e moral de Aristóteles, sua influência em pensadores e doutrinadores como Robert Alexy na formação de sua teoria dos direitos fundamentais. Após essa análise teórica, analisa a utilização dos valores aristotélicos pelo Supremo Tribunal Federal e a estrutura das normas de direitos fundamentais de Robert Alexy quando do julgamento do Direito ao Esquecimento.

Palavras-chave: Justiça, Ética, Moral, Sopesamento, Supremo Tribunal Federal.

Abstract: This article presents Aristotle’s concept of justice and morality, its influence on thinkers and scholars such as Robert Alexy in the formation of his theory of fundamental rights. After this theoretical analysis, it analyzes the use of Aristotelian values by the Federal Supreme Court and the structure of Robert Alexy’s fundamental rights norms when judging the Right to be forgotten

Keywords: Justice, Ethics, Morals, Balancing, Federal Supreme Court

1 INTRODUÇÃO

O direito ao esquecimento trouxe e, ainda traz, discussões construtivas na ciência do Direito. Todavia, as abordagens doutrinárias e debates entre juristas vêm se mostrando enviesadas e limitadas, afastando aspectos fundamentais na concepção da ciência.

O presente artigo tem o objetivo de balizar conceitos fundamentais à aplicação da doutrina moderna, trazendo o pensamento aristotélico como berço dos princípios sopesados pelos ministros da Suprema Corte, bem como o resultado diverso obtido em julgamento similar pela Corte Constitucional Alemã.

Assim, o sopesamento de princípios passa por real necessidade de entender os conceitos de justiça, moral e a ciência do Direito? Qual o impacto de uma colisão de princípios com subjetivismo, pela Suprema Corte?

2 AS VIRTUDES ÉTICAS

Antes de analisarmos o quanto julgado pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ, conhecido como debate do direito ao esquecimento, é salutar trazer à baila conceitos de justiça e moral, pois são fundamentos essenciais à ciência do Direito. Sem o entendimento de determinados conceitos a análise dos vatos dos ministros do Supremo Tribunal Federal perdem porder de compreensão. Compreensão esta que é determinant para vericar se realmente a Corte Constitucional, de fato, está alicando os conceitos ou se estão somente utilizando palavras em seus votos para transmitir uma falsa profundidade.

Na perspectiva de Aristóteles tem-se que o homem não nasce bom ou justo, mas torna-se bom ou justo à medida que pratica tais atos. Assim, Aristóteles divide a natureza do homem bom em duas partes distintas: um corpo; uma alma. As atitudes são desenvolvidas com base nas virtudes da moral e nas virtudes intelectuais.

Inicialmente cumpre conceituar as virtudes éticas em Aristóteles, pois segundo o filósofo grego a ética se configura não como do dever ou do valor, mas sim como ética do fim, da felicidade, ensejando efetivamente na aspiração humana. Entende a ética como sendo uma disciplina prática, vinculada a ação do homem.

Trabalha-se a questão da ética em vistas ao Bem supremo para o qual todo ser humano tende, este é o Bem do ser humano, sistematizando e dividindo em i) virtudes dianoéticas, que estuda a parte da alma intelectiva – virtudes mais próprias e únicas do ser humano – e ii) virtudes éticas, que estuda a parte da alma sensitiva, essas são as virtudes práticas, ou seja, as virtudes morais dos seres humanos.

Portanto, ser virtuoso, moral, do ponto de vista da ética aristotélica, é ter o hábito da bondade, da realização da boa ação, ou seja, o ser humano deseja ser justo, precisa praticar ações justas constantemente, bem como é por meio de ações reiteradas e deliberadas de prudência que o ser humano se torna virtuoso e moral.

[…] As virtudes, ao contrário, nós as adquirimos por tê-las inicialmente e tê-las posto em prática, tal como no que toca às artes. De fato, aprendemos, nesse caso, executando o que teremos que executar. Exemplo: homens se tornam construtores construindo e se tornam tocadores de lira tocando lira. Analogamente, é a realização de atos justos que nos torna justos, a de atos moderados que nos torna moderados, a de atos corajosos que nos torna corajosos; o que acontece nos Estados testemunha isso. Legisladores, com efeito, tornam os cidadãos bons treinando-os em hábitos, o que é a meta. De todo legislador, que, se não a atingir, será um fracasso, [tarefa] no que se distingue a boa constituição política da má. Ademais, as ações que constituem princípios ou instrumentos para a produção de quaisquer virtudes são idênticas àquelas que são instrumentos da destruição dessas virtudes […]. Se assim não fosse, não haveria qualquer necessidade de mestres, entendendo-se que todos já nasceriam bons ou maus profissionais. […] Em síntese, nossas disposições são geradas por atividades semelhantes. […][2]

Assim, a ética se faz presente no ser humano justo, virtuoso e moral. O equilíbrio, que é a justiça medida, a virtude da justiça, está na excelência moral e na prudência.

3 A JUSTIÇA DE ARISTÓTELES

Prosseguindo com o quanto constante alhures, o conceito de justiça e a construção do justo são temáticas sempre presentes na filosofia do direito, muito embora em diversas ocasiões as sociedades conceberam atos equivocados e apalavrados de justiça.

Uma das grandes excepcionalidades da filosofia do direito em Aristóteles expressa-se na sistematização filosófica da virtude moral da justiça. A justiça está em todas as demais virtudes, razão pela qual é a virtude universal do ser humano.[3]. É uma virtude prática ou moral.

Soma-se ao quanto exposto alhures, o ensinamento de Aristóteles que:

[…] na justiça se concentra toda virtude. A virtude, determina o modo que o humano se relacionará com outrem, além de dirigir seus próprios atos. E complementa que “[…] e é a virtude sobremodo completa […] porque quem a possui tem a capacidade de servir-se dela também em relação a outrem e não somente em relação a si mesmo […][4]

Para o Filósofo, dentre todas as virtudes, a justiça é a maior das virtudes. Desta feita, justo é quem põe em prática esta virtude, em potência ao deliberar e, em ato distribuir determinada coisa na relação humana, reportando-se à definição de justiça. O conceito de justiça, por isso, possui uma importante implicação política. Isso significa que a justiça se exercita e tem como referência a vida em sociedade, a vida na pólis.

Aristóteles ao tecer seus ensinamentos sobre justiça, nos presenteia com um verdadeiro arcabouçou temático, distinguindo a justiça entre justiça em sentido geral e em sentido específico.

A justiça em geral é tratada como: “o justo nesta acepção é, portanto, o proporcional, e o injusto é o que viola a proporcionalidade[5]”. Quanto a justiça em sentido específico, tem-se a citação de algumas subespécies, sendo a primeira destas a justiça distributiva; a segunda à justiça equitativa, a qual rege as relações contratuais entre os homens; a terceira a justiça recíproca

Avançando no conceito de justiça trazido por Aristóteles, tem-se que a justiça total consistiria em observar a lei, respeitar o que é legítimo e que vige para o bem da sociedade, pois a lei é uma prescrição de caráter genérico que se vincula a toda sociedade, de modo que sua finalidade é a realização da justiça comum.

Portanto, ao observar-se o conceito, tem-se de ser fundamental o trabalho do legislador, pois determinará o Bem comum da sociedade e refletirá no justo de cada cidadão. Ademais, a concepção de justiça de Aristóteles permanece relevante hoje em dia, pois representa uma importante opção ao dogmatismo e ao positivismo jurídico, bem como pela essência política, sendo o direito natural uma parte do direito político e perceptível nos julgamentos da Corte Constitucional.

4 A MORAL

Outro fator importante à aplicação da ciência do Direito, repousa na O pensamento aristotélico e seus ensinamentos influenciaram filósofos, teólogos e juristas nos séculos seguintes, porquanto tanto a Moral como a ciência do direito possuem conteúdos éticos, ensejando em condutas éticas ou jurídicas.

Do ponto de vista de Aristóteles tem-se que o homem não nasce bom ou justo, mas torna-se bom ou justo à medida que pratica tais atos. Referido pensamento enseja na divisão da natureza do homem bom em duas partes distintas: um corpo; uma alma. As atitudes são desenvolvidas com base nas virtudes da moral e nas virtudes intelectuais. Essa questão também é observada no pensamento de Tomás de Aquino, que a moral é uma ciência do ato humano, ou seja, prática.

Aqui influenciado por Aristóteles, Aquino conceitua que como o fim do homem é a felicidade eterna, propõe um estudo dos princípios gerais da moral, que poderiam conduzir o homem a esse fim. Todavia, sem a liberdade não há moral, e esta tem seu fundamento na razão (virtude de Aristóteles).

De acordo com Aquino, o homem deve agir em vista do fim, sendo ele racional e tendo, portanto, domínio sobre os seus atos pela razão prática e pela vontade. Na intenção de distinguir fim e bem, Aquino define o bem como algo “que toda coisa deseja[6]” e este se apresenta ao intelecto como verdadeiro e, portanto, algo desejável à vontade. O papel da razão prática, portanto, é de suma importância, pois, por meio dela, o homem tem a possibilidade de conhecer as realidades contingentes, e estas ficam à mercê da vontade[7].

para agir bem, é necessário que não só a razão esteja bem disposta pelo hábito da virtude intelectual, mas que a potência apetitiva também o esteja pelo hábito da virtude moral. Tal como o apetite se distingue da razão, assim também a virtude moral se distingue da intelectual. E como o apetite é princípio dos atos humanos enquanto participa, de algum modo, da razão, assim o hábito moral tem a razão de virtude humana, na medida em que se conforma com a razão[8]

A moral é, portanto, um conjunto de normas de atos do homem na sociedade, é o modo como ele deve se comportar no cotidiano, é a moral de vida. Busca, acima de tudo, o próprio aperfeiçoamento, estabelecendo regras que são assumidas pela pessoa.

5 Teoria de Robert Alexy

Prosseguindo com os conceitos alhures, tem-se que do ponto de vista do Direito, o Doutrinador busca estabelecer o regramento de uma sociedade delimitada pelas fronteiras do estado, sendo um subconjunto da Moral.

Esta reflexão é importante, pois o jurista alemão Robert Alexy vincula o Direito à Moral, no sentido de justiça, reforçando uma ligação entre ambos e afirmando que o Direito em essência pretende ser justo, ainda que não realize a justiça.

Partindo desse pressuposto, Alexy complementa o pensamento de Kelsen, cuja obra trouxe um conceito de que a que a norma é uma moldura na qual comporta várias possibilidades e que escolha entre essas possibilidades é sempre um ato político, sempre arbitrário ou de valores do julgador, mas não depende da ciência do direito e sim de uma escolha política.

Na realidade, a questão trazida alhures merece um esclarecimento, pois Kelsen, na Teoria Pura do Direito, conceitua interpretação com “uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior”[9]. Desta forma, Kelsen distingue a interpretação em autêntica e não autêntica, sendo a primeira realizada pelo órgão aplicador (“’órgãos’ encarregados ‘burocraticamente’ da tarefa de ‘aplicar’ o direito”[10]), enquanto a segunda, por uma pessoa privada, que não seja um órgão jurídico, e pela ciência jurídica, ou seja, por um aplicador político.

Ante o quadro exposto, Alexy elabora a sua teoria dos direitos fundamentais com base na tipologia das normas jurídicas, cujas espécies são regras e princípios e, para tanto, desenvolveu suas teses com base na superação da dicotomia existente entre direito positivo e direito natural.

Segundo o jurista alemão, “quem deseja saber qual conceito de direito é correto ou adequado precisará relacionar três elementos: o da legalidade conforme o ordenamento, o da eficácia social e o da correção material[11]”.

Assim, as normas de direito fundamental são distintas em dois grupos: (i) normas diretamente ordenadas pela Constituição; (ii) normas adscritas/condicionadas ao primeiro grupo.

Neste contexto tem-se, com relação ao primeiro grupo, as normas correspondem textualmente postas na constituição, já no tocante ao segundo grupo, estas são o resultado de uma interpretação que torna mais claro o dispositivo constitucional.

Assim, para o jurista princípios e regras são normas, com base no argumento de que ambos expressam um dever ser. Sendo que a diferença entre os dois repousa não no grau, mas, na diferença qualitativa[12].

Ademais, referida distinção não é nova, reforçando a reunião de regras e princípios sob o conceito de norma, pois ambos dizem o que deve ser, vez que o conceito de norma engloba regras e princípios, pois a norma prescreve algo. O direito é deontológico, diz o que deve ser (ciência do dever e da obrigação).

Assim, para Alexy[13]:

PRINCÍPIOS: são mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida da satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas

REGRAS: são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige. Contêm determinações

Referida distinção mostra-se com maior clareza nos casos de colisões entre princípios e de conflitos entre regras, em que duas normas aplicadas isoladamente levariam a resultados inconciliáveis entre si e a forma de solução do conflito traz a distinção entre regras e princípios.

Sobre esse ponto de conflito de regras e colisão de princípios, Alexy traz que no conflito de regras somente será encontrada a solução se em uma delas há cláusula de exceção, o que eliminaria o conflito ou se uma das regras for declarada inválida. Com relação a colisão entre princípios a solução dar-se-á quando um dos princípios em colisão cede, o que não significa sua invalidez ou cláusula de exceção, tendo como fiel da balança as circunstâncias aplicadas ao caso concreto.

Assim, conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios ocorrem na dimensão do peso (além).

Todavia, para uma melhor caracterização e compreensão à aplicabilidade de sua teoria, Robert Alexy traz os valores à tese, sustentando que há duas características em comum que ligam imediatamente princípios e valores. De um lado, assim como se fala em conflito e ponderação de princípios, fala-se em conflito e ponderação de valores. De outro, cumprir-se parcial ou gradualmente um princípio é equivalente à realização gradual dos valores. Portanto, defende que o princípio se diferencia porque está no nível deontológico, enquanto que o valor está no nível axiológico.

Esta diferenciação nos reporta ao quanto trazido à baila no início do artigo, pois há uma confusão entre o que tem um valor daquilo que é um valor.

Ante a essas questões, Alexy nos brinda com a lei de ponderação, subdividida em três planos[14]:

1 — Definir a intensidade da intervenção, ou seja, o grau de insatisfação ou afetação de um dos princípios;

2 — Definir a importância dos direitos fundamentais justificadores da intervenção, ou seja, a importância da satisfação do princípio oposto;

3 — Realizar a ponderação em sentido específico, i.e., se a importância da satisfação de um direito fundamental justifica a não satisfação do outro.

Portanto, as colisões de direitos fundamentais em sentido amplo ocorrem entre direitos fundamentais individuais e interesses fundamentais coletivos, sendo que não há uma relação de precedência incondicionada, ocorrendo o sopesamento no caso concreto.

6 DIREITO AO ESQUECIMENTO E O JULGAMENTO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Diante do conceito de justiça, moral e a aplicação na ciência do Direito, bem como analisando a Tese do sopesamento de Robert Alexy, vislumbramos referidos conceitos quando do julgamento do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ, conhecido como debate do direito ao esquecimento.

Traz-se ao artigo o julgado específico, pois este agrupa em um tema questões constitucionais e de tratado em direito civil, possuindo importantes aspectos práticos e demonstra a teoria do sopesamento contida na tese de Robert Alexy. Sob a névoa do tema, de uma forma bem simples, podemos dizer que de um lado temos: o direito à liberdade de expressão e comunicação, proibição de censura, direito de comunicação da imprensa. De outro lado, temos a garantia constitucional da dignidade da pessoa humana expressada principalmente no resguardo da inviolabilidade da personalidade, nos direitos à imagem, à honra, à vida privada e à intimidade. É um tema sensível que traz à tona direitos individuais e coletivos importantes, em ambos os lados.

Em síntese a ação perante o Supremo Tribunal Federal repousa no poder de impedir em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos, licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação. Consiste no direito de “ser deixado em paz”, de impedir a divulgação de informações não contemporâneas e que possam causar a pessoa envolvida diversos transtornos e constrangimentos.

Assim, o direito ao esquecimento torna-se importante e polêmico justamente pela natureza dos direitos fundamentais que são colididos, com previsão constitucional, de um lado, da liberdade de expressão, de comunicação, da liberdade de imprensa e da proibição da censura e, do outro, do direito ao esquecimento ancorado no fundamento da dignidade da pessoa humana e na proteção dos direitos da personalidade, dentre eles a proteção do nome, da vida privada, da honra e da intimidade.

Portanto, como verificamos na tese de Robert Alexy, ante a existência de conflito entre direitos fundamentais: “liberdade de expressão x direitos da personalidade”, é que se faz necessária a ponderação/sopesamento para verificar-se qual deverá “ceder” na análise de uma situação concreta.

O caso analisado pelo Supremo Tribunal Federal teve origem em um programa veiculado pela TV Globo (Linha Direta), cujo episódio específico, veiculado em 2004, apresentou dramatização buscando reconstituir o trágico caso da menina Aída Curi, que foi brutalmente assassinada em 1958. Por meio do recurso extraordinário, familiares da vítima de um crime de grande repercussão nos anos 1950 no Rio de Janeiro buscam reparação pela reconstituição do caso decorrente da exibição do programa, aspirando o reconhecimento do direito ao esquecimento da tragédia familiar que os assolou.

Quando do voto dos ministros da Suprema Corte percebe-se cabalmente o sopesamento dos princípios tidos em colisão e a análise do caso concreto com conclusões. O primeiro a votar foi o relator Min. Dias Toffoli, que concluiu pela ideia de poder obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos é incompatível com a Constituição Federal de 1988, e eventuais excessos ou abusos devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais. Destacou que a veracidade da informação e a licitude da obtenção e do tratamento dos dados pessoais são relevantes para a análise da legalidade de sua utilização. Para ele, um comando jurídico que estabeleça o tempo como restrição à divulgação de informação verdadeira, obtida licitamente e tratada adequadamente, precisa estar previsto em lei, de modo pontual e claro. “Não pode ser fruto apenas de ponderação judicial”, observou.

Para o relator do caso o princípio da liberdade de informação prevalece ao direito a personalidade:

No caso dos autos, conquanto não se trate, propriamente, de biografia audiovisual, mas de programa jornalístico com reconstituição dos fatos por encenação de atores, que, portanto, mescla documentação de uma época com a apresentação da história de vida da vítima, compreendo aqui aplicável a mesma ratio do julgado. Ademais, todos os crimes são de interesse da sociedade, mas há aqueles em que, por seu contexto de brutalidade, tornam-se objeto de documentação social e jornalística, sendo sua descrição e seus contornos alvo de farto registro. Tais registros (em fotos, livros, reportagens da época e testemunhos) não são, em princípio, violadores da honra ou da imagem dos envolvidos, mesmo no que toca à vítima.

Em ponderação distinta, o Min. Edson Fachin reconheceu o direito ao esquecimento. Porém, em relação ao caso concreto, entendeu que a pretensão dos familiares da vítima não pode se sobrepor à liberdade de expressão e ao direito à informação. Para ele, o direito ao esquecimento decorre de uma leitura sistemática do conjunto de liberdades e direitos fundamentais, e a informação veiculada no programa televisivo ultrapassa a esfera individual e faz parte de um acervo público que envolve, também, jornais e revistas. Segundo Fachin, o caso retrata uma dimensão histórica e conecta passado e futuro de crimes contra a mulher. A seu ver, não houve excesso no relato produzido pela emissora nem desrespeito ao direito de personalidade dos familiares, e o programa se manteve na seara própria de discussão pública do caso.

Ao analisarmos as ponderações dos demais ministros, percebe-se claramente a colisão de princípios e o sopesamento de cada ministro.

Ministro Alexandre de Moraes:

O reconhecimento genérico, abstrato e amplo do direito ao esquecimento configura censura prévia. Não há permissão constitucional para limitar preventivamente determinado conteúdo e observou que, por mais que sejam sensíveis, os fatos não podem ser apagados da crônica jornalística, policial e da justiça. Em relação ao caso concreto, entendo que, apesar da gravidade do ocorrido e do lapso temporal, o programa recontou, no presente, fatos reais e concretos que ocorreram no passado de maneira lícita, objetiva, respeitosa e sem deturpação.

Ministro Nunes Marques:

No Brasil, ainda não há o direito ao esquecimento como categoria jurídica, individualizada e autônoma, e que cabe ao Poder Legislativo normatizar a imensa quantidade de sutilezas geradas por esse direito

Ministro Ricardo Lewandowski:

A liberdade de expressão é um direito de capital importância, ligado ao exercício das franquias democráticas. Enquanto categoria, o direito ao esquecimento só pode ser apurado caso a caso, em uma ponderação de valores, de maneira a sopesar qual dos dois direitos fundamentais (a liberdade de expressão ou os direitos de personalidade) deve ter prevalência. “A humanidade, ainda que queira suprimir o passado, ainda é obrigada a revivê-lo”.

Ministro Marco Aurélio:

O artigo 220 da Constituição Federal, que assegura a livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação, está inserido em um capítulo que sinaliza a proteção de direitos. Não cabe passar a borracha e partir para um verdadeiro obscurantismo e um retrocesso em termos de ares democráticos. Os veículos de comunicação têm o dever de retratar o ocorrido. Por essa razão, entendo que decisões do juízo de origem e do órgão revisor não merecem censura, uma vez que a emissora não cometeu ato ilícito.

Ministro Luiz Fux:

É inegável que o direito ao esquecimento é uma decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana, e, quando há confronto entre valores constitucionais, é preciso eleger a prevalência de um deles. O direito ao esquecimento pode ser aplicado. Mas, no caso dos autos, observo que os fatos são notórios e assumiram domínio público, tendo sido retratados não apenas no programa televisivo, mas em livros, revistas e jornais.

Ministra Carmen Lúcia:

Não há como extrair do sistema jurídico brasileiro, de forma genérica e plena, o esquecimento como direito fundamental limitador da liberdade de expressão e, portanto, como forma de coatar outros direitos à memória coletiva. Não é possível, do ponto de vista jurídico, que uma geração negue à próxima o direito de saber a sua história. Quem vai saber da escravidão, da violência contra mulher, contra índios, contra gays, senão pelo relato e pela exibição de exemplos específicos para comprovar a existência da agressão, da tortura e do feminicídio?

Diante dos votos dos ministros e do sopesamento dos princípios, a corte constitucional vinculou a seguinte tese:

É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social – analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral, e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.

Percebe-se que a Corte Constitucional brasileira sopesou e concluiu, no caso concreto, que o direito ao esquecimento não seria aplicado ao caso, diferente da conclusão que a Corte Alemã teve ao julgar o caso Lebach, no qual concluiu que:

Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do criminoso. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível área da vida, o princípio da proporcionalidade: Segundo este, a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, p.ex. na forma de um documentário. Um noticiário posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face da informação atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (ressocialização)[15]

Portanto, o sopesamento de princípios passa por real necessidade de entender os conceitos de justiça, moral e a ciência do Direito, pois uma análise superficial pode impactar a sociedade e trazer consequências comportamentais futuras.

7 CONCLUSÃO

Ante as considerações e embasamentos presentes nos votos dos ministros da Suprema Corte Brasileira, percebe-se que em tese todos efetivamente realizaram um sopesamento de princípios e diante da colisão, elegeram qual deveria prevalecer.

Todavia, ao analisarmos o caso análogo julgado pela Suprema Corte Alemã nos deparamos com uma distinção de conclusão, muito embora o sopesamento tenha sido parecido no tocante aos princípios que colidiam.

Uma questão importante para se trazer à baila é justamente uma valoração da moral nos votos os ministros do Supremo Tribunal Federal, muitas vezes superando a justiça, o que leva quase a uma questão de subjetivismo, de opinião por sobre o direito e se distanciando do quanto formulou Robert Alexy: “o Direito em essência pretende ser justo, ainda que não realize a justiça”.

Esse aspecto, portanto, tem impacto sobre a construção de antecedentes da Suprema Corte, pois ao tratar o tema sobre a perspectiva moral, não articula uma boa aplicação ao direito ao esquecimento, ou seja, traz um sopesamento de fachada e impregnado de subjetivismo, o que não é permitido no posicionamento dos ministros da corte constitucional e acarreta mudança social.

8 Referências

108 SCHWAB, Jürgen. Cinquenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 488. 82, apud George Marmelstein Lima, Proteção Judicial dos Direitos Fundamentais: Diálogo Constitucional entre o Brasil e a Alemanha, 2007

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Iª IIª e, V.IV, Q. 58, a. 2. São Paulo: Loyola, 2004.

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. 5ª tiragem. São Paulo. Malheiros Editores. 2017.

ALEXY, Robert. El Concepto y la Validez del Derecho y Otros Ensayos. Barcelona: Gedisa, 1994.

ALEXY, Robert; NARCISO Leandro Xavier Baez. Dignidade humana, direitos sociais e não positivismo incluso. 1ª ed. Florianópolis. Qualis. 2015.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Mário da Gama. 1ª ed. São Paulo. Editora Mandamu. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1010606/RJ – Rio de Janeiro. Relator: Ministro Dias Toffoli. Pesquisa de repetitivo Geral. Tema 786. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5091603 >.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo. Martins Fontes. 1998

MASCARO, Alysson. Filosofia do direito. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2019.

SGARBI, Adrian. Introdução à Teoria do Direito. 1ª ed. São Paulo. Marcial Pons. 2013. WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. Tradução Thereza Christina Ferreira Stummer, Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Discurso Editorial, 1999.


[1] Mestrando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Especialista em Direito Administrativo, em Compliance e em Direito Eleitoral. Atuação perante tribunais de contas e tribunais superiores. Ocupei cargos em autarquias federais e prefeituras.  Atualmente, coordeno a área de Contencioso Estratégico, atuando tanto em demandas de Direito Civil quanto Direito Público.

[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 1103a31-b25.

[3] MASCARO, Alysson. Filosofia do direito. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 60-61.

[4] Ibidem, 1129b30-33.

[5] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 1131-b

[6] Aquino, Tomás de. Suma Teológica. Iª IIª e, V.IV, Q. 58, a. 2. São Paulo: Loyola, 2004

[7] Aquino, Tomás de. Suma Teológica. Iª IIª e, V.IV, Q. 58, a. 2. São Paulo: Loyola, 2004

[8] Aquino, Tomás de. Suma Teológica. Iª IIª e, V.IV, Q. 58, a. 2. São Paulo: Loyola, 2004

[9] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. p. 387

[10] SGARBI, Adrian. Teoria do Direito – primeiras lições. p. 445

[11] ALEXY, Robert. El Concepto y la Validez del Derecho y Otros Ensayos. Barcelona: Gedisa, 1994

[12] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. 5ª tiragem. São Paulo. Malheiros Editores. 2017

[13] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. 5ª tiragem. São Paulo. Malheiros Editores. 2017

[14] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. 5ª tiragem. São Paulo. Malheiros Editores. 2017.

[15] 108 SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 488. 82, apud George Marmelstein Lima, Proteção Judicial dos Direitos Fundamentais: Diálogo Constitucional entre o Brasil e a Alemanha, 2007.