DO PAPEL DE VÍTIMA AO DE ACUSADA NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL: ANÁLISE DA LEI 14.245/2021 SOB A PERSPECTIVA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
7 de novembro de 2025FROM THE ROLE OF VICTIM TO THAT OF ACCUSED IN THE CONTEXT OF SEXUAL VIOLENCE: ANALYSIS OF LAW 14.245/2021 FROM THE PERSPECTIVE OF THE DIGNITY OF THE HUMAN PERSON
Artigo submetido em 05 de novembro de 2025
Artigo aprovado em 07 de novembro de 2025
Artigo publicado em 07 de novembro de 2025
| Cognitio Juris Volume 15 – Número 58 – 2025 ISSN 2236-3009 |
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| Autor(es): Emília Maria Pereira de Oliveira[1] |
RESUMO: O presente artigo aborda a relevância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana no combate à violência sexual, a partir da análise do caso de grande repercussão social envolvendo Mariana Ferrer, que resultou em alterações legislativas no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, busca compreender de que forma o patriarcalismo contribuiu para a consolidação de uma cultura enraizada na sociedade, em que a mulher é historicamente vista como um ser inferior ao homem e tratada como objeto de satisfação sexual. Nesse contexto, o estudo tem como objetivo examinar a inversão de papéis que transforma a vítima em acusada nos crimes de violência sexual, analisando o contexto histórico do sistema patriarcal, a legislação vigente voltada ao enfrentamento desses crimes e a desqualificação das vítimas nos processos investigatórios e judiciais, com ênfase no caso mencionado. A pesquisa foi desenvolvida pormeio derevisão bibliográfica, documental e legislativa, bem como daanálise de um caso concreto. O trabalho está estruturado em quatro eixos principais: o sistema patriarcal no contexto histórico; a dignidade da pessoa humana; a violência sexual no cenário brasileiro; e a análise do caso Mariana Ferrer. Conclui-se que, apesar do sofrimento e da ausência de plena justiça, o caso em questão impulsionou o surgimento da Lei nº 14.245/2021, que representa um avanço significativo na proteção de vítimas e testemunhas diante da violência institucional durante a persecução penal, ao proibir atos atentatórios à dignidade moral e sexual, consolidando um importante progresso no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: violência sexual; dignidade da pessoa humana; patriarcalismo; revitimização; caso Mariana Ferrer.
ABSTRACT: This article analyzes how patriarchy has contributed to the consolidation of a culture rooted in society, in which women are seen as inferior to men and treated as objects of sexual gratification. It also seeks to understand the relevance of the Principle of Human Dignity in combating sexual violence, based on the analysis of the highly publicized case of Mariana Ferrer, which led to legislative changes in the Brazilian legal system. In this context, the study aims to examine the role reversal that transforms the victim into the accused in sexual violence crimes, addressing the historical context of the patriarchal system, the current legislation aimed at tackling these crimes, and the disqualification of victims in investigative and judicial processes, with a focus on the aforementioned case. The research was conducted through a bibliographic and documentary review, based on scientific articles, journals, legislation, and analysis of an actual case. The work was structured around four main axes: the patriarchal system in its historical context; the dignity of the human person; sexual violence in the Brazilian scenario; and the analysis of the Mariana Ferrer case. It is concluded that, despite the suffering and the absence of full justice, the case in question prompted the enactment of Law No. 14,245/2021, which represents a significant advance in the protection of victims and witnesses against institutional violence during criminal prosecution, by prohibiting acts that undermine moral and sexual dignity, consolidating an important step forward in the Brazilian legal system.
Keywords: patriarchal system; sexual violence; human dignity; victim discrediting; Mariana Ferrer case.
- INTRODUÇÃO
O patriarcado pode ser compreendido como uma forma histórica e social de dominação masculina sobre a figura feminina. Apesar das diferentes manifestações dessa estrutura ao longo dos períodos históricos, a imposição da obediência e o controle sobre a mulher constituem características constantes. Tal contexto contribuiu para que o ser feminino fosse visto como inferior e passível de objetificação, sobretudo de cunho sexual, fazendo com que o corpo da mulher passasse a ser tratado como objeto de satisfação para o homem.
No Brasil, com o processo de colonização, o homem detinha a autoridade e o poder, especialmente no âmbito familiar. Durante séculos, a mulher transitava do domínio paterno para o marital, sendo tratada como um objeto de troca. No período colonial, as esposas dos portugueses se limitavam aos cuidados domésticos, enquanto mulheres negras e indígenas eram submetidas à exploração sexual, sendo violentadas principalmente por aqueles que possuíam maior poder econômico. Assim, a dominação masculina ultrapassava os limites conjugais e atingia todas as mulheres, independentemente de classe ou origem.
Com a Independência e a Proclamação da República, as mulheres começaram a ser inseridas gradualmente em determinados serviços e na vida social. Contudo, a violência sexual contra elas persistia, refletindo a força das estruturas patriarcais. Nesse contexto, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, ganhou maior destaque em razão das atrocidades cometidas nesse período. A partir desse momento, consolidou-se uma preocupação crescente com a proteção da dignidade do ser humano, reconhecida tanto em tratados internacionais quanto na legislação interna. Essa preocupação foi elevada ao patamar de princípio da dignidade da pessoa humana, que passou a preconizar a igualdade entre todos os indivíduos como titulares de direitos e deveres.
Entretanto, apesar do respaldo jurídico e moral conquistado por esse princípio, a violência sexual ainda se configura como uma das formas mais cruéis de violação à dignidade humana, inclusive durante a persecução penal. Sob essa ótica, o presente artigo aborda a relevância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana no combate à violência sexual, a partir da análise de um caso envolvendo Mariana Ferrer, que resultou em alterações legislativas no ordenamento jurídico pátrio. Busca-se compreender de que forma o patriarcalismo contribuiu para a consolidação de uma cultura enraizada na sociedade, na qual a mulher é historicamente vista como um ser inferior ao homem e tratada como objeto de satisfação sexual.
Os objetivos específicos do estudo consistem em: apresentar as características da sociedade brasileira marcada pelo patriarcalismo, com ênfase nos direitos sexuais das mulheres e no discurso de dominação masculina; analisar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e as formas como ele é violado nos crimes sexuais, tanto na prática delituosa quanto na atuação de agentes do sistema de justiça criminal; examinar os avanços legislativos no enfrentamento da violência sexual; e, por fim, verificar as principais violações de direitos sofridas por Mariana Ferrer, especialmente no que diz respeito à sua dignidade humana, bem como compreender como essas violações impulsionaram o surgimento da lei que leva seu nome.
A pesquisa foi desenvolvida por meio de revisão bibliográfica e documental, utilizando artigos científicos, periódicos e legislação, bem como análise do caso concreto. Essas fontes permitiram uma abordagem histórica e contemporânea, possibilitando compreender as raízes profundas do patriarcado e as transformações do ordenamento jurídico brasileiro no enfrentamento à violência sexual.
A análise da legislação é realizada a partir do caso que deu origem à Lei nº 14.245/2021, conhecida como Lei Mariana Ferrer. A vítima, durante a persecução penal, teve sua dignidade humana profundamente ferida, sendo exposta a uma situação vexatória promovida por operadores do Direito. O episódio reflete o machismo estrutural e a permanência do patriarcado na sociedade brasileira, na qual o corpo da mulher ainda é frequentemente visto como objeto de prazer sexual masculino. Apesar disso, o caso impulsionou importantes mudanças legislativas, voltadas à prevenção de atos de revitimização e à reafirmação da condição humana e da dignidade das mulheres diante da violência sexual.
- O SISTEMA PATRIARCAL NO CONTEXTO HISTÓRICO
Com o decorrer da história, observou-se a relevância da reprodução para a organização social e econômica das comunidades. Desde o momento em que os animais passaram a desempenhar papel essencial na economia, seja pelo fornecimento de carne, pelo uso na agricultura ou pelo auxílio em atividades de transporte, compreendeu-se a necessidade de maior disponibilidade de força de trabalho. Nesse contexto, consolidou-se a lógica de que quanto mais filhos houvesse, maior seria o auxílio nas atividades do campo. A mulher, por sua vez, foi identificada como elemento central nesse processo, sendo reduzida à função de reprodutora, essencial para garantir a continuidade da força braçal.
Com o avanço da agricultura e a domesticação dos animais, consolidou-se uma divisão sexual do trabalho: enquanto às mulheres eram atribuídas funções relacionadas ao lar e ao cuidado com as crianças, aos homens cabia o desenvolvimento de atividades de caça, coleta e defesa. Esse processo levou ao sedentarismo e ao estabelecimento de comunidades fixas, característica marcante da chamada Idade da Pedra Lascada (Vicentino, 1997).
À medida que o homem passou a compreender sua participação ativa na reprodução, fortaleceu-se sua posição de provedor, instaurando-se, no seio familiar, uma relação de dominação. A mulher, nesse cenário, foi relegada a uma posição de subordinação, tendo sua identidade social atrelada quase exclusivamente à maternidade e à reprodução da descendência. Tal perspectiva encontra eco até mesmo na etimologia da palavra “família”, que remonta ao termo latino famulus, significando servo ou escravo. Em sua origem, a família representava um conjunto de pessoas subordinadas a uma autoridade masculina, impondo-se à mulher a obrigação de obediência ao marido, concebido como amo e senhor (Porto; Amaral, 2014).
Esse modelo consolidou-se no patriarcado, compreendido como uma forma histórica e social de dominação masculina sobre a mulher. No âmbito patriarcal, os homens detêm os meios de reprodução da vida e do patrimônio, estabelecendo entre si um pacto implícito de manutenção da supremacia masculina. Dessa maneira, o corpo feminino é transformado em objeto de uso, destinado tanto à reprodução quanto à satisfação sexual. Como destaca Saffioti (2004), trata-se de um sistema de opressão em que a sujeição das mulheres extrapola o campo doméstico, alcançando dimensões simbólicas, sociais e culturais.
O patriarcado, contudo, não se manifesta de maneira uniforme em todas as sociedades. Existem diferenças de grau e intensidade, a depender do contexto histórico, religioso e cultural. A subordinação feminina, entretanto, possui como fundamento uma justificativa comum: a naturalização da superioridade masculina. Assim, ainda que variem os níveis de dominação, seja na Grécia Antiga, na Roma clássica ou nas sociedades contemporâneas ocidentais e orientais, a essência do fenômeno permanece a mesma: a imposição da obediência e do controle sobre as mulheres, legitimada por discursos de natureza biológica e cultural (Saffioti, 2004).
Essa herança histórica contribuiu para consolidar a ideia de que o espaço da mulher deveria restringir-se ao lar, aos cuidados com os filhos e ao atendimento das necessidades do companheiro. Consequentemente, sua participação social, política e econômica foi invisibilizada ou desvalorizada, reforçando estigmas de fragilidade e inferioridade. Tal construção social, baseada na desigualdade de gênero, fomentou práticas de violência, sobretudo a violência sexual, que afetam não apenas a integridade física, mas também a subjetividade e a dignidade das mulheres.
2.1 O sistema patriarcal enraizado no Brasil e a sua relação com a violência sexual
No século XVI, com o processo de colonização do Brasil, consolidou-se um modelo patriarcal que atribuía à figura masculina a autoridade e o poder dentro da sociedade, especialmente no âmbito familiar. Nesse contexto, a mulher devia obediência tanto ao pai, quando solteira, quanto ao marido, após o casamento, perpetuando uma cultura de submissão que marcou profundamente a estrutura social brasileira.
Nas uniões legitimadas pela Igreja e pelo Estado, o papel de cada sexo era rigidamente delimitado por costumes, tradições e pela própria legislação vigente. O homem era reconhecido como chefe da família, detentor do poder de decisão e provedor material, enquanto à mulher cabia o governo doméstico e a assistência moral dos filhos. Como afirma Samara (2002), “o poder de decisão formal pertencia ao marido, como protetor e provedor da mulher e dos filhos, cabendo à esposa o governo da casa e a assistência moral à família”.
A interiorização do território brasileiro intensificou os fluxos migratórios, especialmente masculinos, em busca de melhores condições de vida ou mesmo de aventuras. A partir do século XVIII, esse processo provocou transformações no papel social das mulheres, que passaram a exercer funções além do lar e da maternidade. Contudo, tais atividades, em geral, não eram remuneradas ou eram desempenhadas em condições precárias, reforçando a visão de inferioridade feminina dentro de uma sociedade dominada por homens.
No período colonial, a forte influência da Igreja Católica moldava os costumes sociais. As esposas dos portugueses restringiam-se ao cuidado do lar e dos filhos, além da frequência aos cultos religiosos. Entretanto, em meio à desigualdade demográfica, tornou-se recorrente a exploração sexual de mulheres indígenas e africanas escravizadas. Esses corpos eram apropriados como objetos de prazer, submetidos a práticas de violência sexual sistemática, legitimadas pela lógica colonialista e patriarcal. Assim, a dominação masculina ultrapassava os limites da vida conjugal e se estendia ao controle violento sobre mulheres subalternizadas, evidenciando uma relação de poder que reduzia sua existência à satisfação sexual masculina.
Com a independência do Brasil, a proclamação da República e, posteriormente, a abolição da escravidão, as mulheres passaram gradualmente a se inserir em determinados serviços e espaços sociais. Contudo, os avanços eram limitados e permeados por restrições legais. Até meados do século XX, por exemplo, a mulher solteira ainda dependia da autorização paterna para diversas atividades, e a mulher casada necessitava da anuência do marido para trabalhar ou exercer determinados direitos civis. Ademais, até 1940, a legislação penal reforçava a moral patriarcal, a perda da virgindade era juridicamente associada à criminalidade, e a “honestidade” feminina era medida pela quantidade de parceiros sexuais (Oliveira, 2012).
Diante desse panorama, compreende-se que a cultura patriarcal foi instaurada no Brasil desde a colonização, estruturando-se sobre a ideia de inferioridade feminina e da necessidade de constante tutela masculina, pelo pai, no período da solteirice, ou pelo marido, após o matrimônio. Ainda que pequenas conquistas tenham sido alcançadas ao longo dos séculos, a desigualdade de gênero permaneceu evidente, manifestando-se tanto nas disparidades salariais quanto na invisibilização social da mulher. Ademais, a associação do corpo feminino como objeto de uso masculino consolidou-se como um dos pilares da violência sexual, especialmente direcionada às mulheres indígenas e africanas escravizadas. Nesse sentido, a violência sexual pode ser compreendida como um desdobramento histórico da cultura patriarcal, reforçada e legitimada pela estrutura social e jurídica brasileira.
- A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A ATUAÇÃO CONCRETA DO ESTADO NA SUA EFETIVAÇÃO
A palavra “dignidade” origina-se do latim dignitas, que remete a tudo aquilo que é digno de consideração, respeito, importância ou estima. Ao longo da tradição, o termo esteve vinculado à ideia de decência, mas, em sua concepção jurídica contemporânea, passa a significar um valor inerente ao ser humano, que, pela simples condição de existir, deve ser reconhecido como portador de dignidade e, por consequência, respeitado em sua integridade física, moral e social.
A noção de dignidade atravessa diferentes épocas, assumindo contornos variados em cada período histórico. Todavia, foi a partir da Segunda Guerra Mundial que ganhou relevo sem precedentes, em razão das atrocidades cometidas em nome de ideologias que pregavam a soberania e a falsa ideia de superioridade de uma “raça”. Nesse cenário, a dignidade passou a ser diretamente associada ao indivíduo e à sua condição humana universal.
É oportuno ressaltar que constituições anteriores já mencionavam expressamente a dignidade, como a Constituição de Weimar de 1919, a Constituição Portuguesa de 1933 e a Constituição Brasileira de 1934, todas situadas em contextos de intensas transformações políticas e sociais. Contudo, o marco definitivo ocorreu no pós-guerra com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que elevou a dignidade da pessoa humana a parâmetro central na luta pelos direitos fundamentais, consolidando-a como “Princípio da Dignidade da Pessoa Humana”.
Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 consagrou explicitamente a dignidade como fundamento da República Federativa do Brasil, prevista no art. 1º, inciso III, da CRFB/88. A previsão ganha relevância considerando o período anterior, marcado pelo regime da Ditadura Militar iniciado na década de 1960, no qual direitos foram suprimidos, liberdades cerceadas e a própria condição humana desprezada. Assim, a inserção da dignidade como fundamento constitucional significou o reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos e obrigações, tornando-se o “início e o fim que baseia o ordenamento jurídico brasileiro” (Brugnara; Júnior, 2017).
Entretanto, para que o princípio não permaneça apenas no plano normativo, faz-se necessária a atuação concreta do Estado. A efetividade da dignidade depende de políticas públicas que assegurem condições de vida adequadas, respeitando a natureza humana em sua integralidade. Nesse sentido, Agra (2014) afirma:
A dignidade da pessoa humana representa um complexo de direitos que são inerentes à espécie humana, sem eles o homem se transformaria em coisa, res. São direitos como a vida, lazer, saúde, educação, trabalho e cultura que devem ser propiciados pelo Estado e, para isso, pagamos tamanha carga tributária. Esses direitos servem para densificar e fortalecer os direitos da pessoa humana, configurando-se como centro fundante da ordem jurídica.
A dignidade humana é, portanto, valor máximo e absoluto dentro do ordenamento jurídico. Tal princípio pressupõe o reconhecimento da igualdade entre todos os seres humanos, reforçando que as pessoas são iguais em direitos e deveres, independentemente de qualquer característica pessoal, seja ela econômica, cultural ou social. Trata-se de um valor que independe do reconhecimento estatal, mas que exige a ação do Estado para sua concretização no mundo real.
A esse respeito, Brugnara; Júnior (2017) esclarecem:
Para Kant, a dignidade do ser humano se baseia no caráter racional da pessoa, sendo esta digna por natureza, pelo simples fato de ter nascido com vida. A dignidade, neste contexto, seria uma qualidade que o ser humano possui, sem qualquer condição prévia, e não uma concessão estatal. Se a dignidade humana é atributo e não permissão por parte do Estado, não interessa se determinado ordenamento jurídico a reconhece ou não.
Dessa forma, percebe-se que o reconhecimento da dignidade humana transcende a legislação, pois decorre de uma condição ontológica, fundamentada na própria racionalidade e liberdade do indivíduo. A Constituição de 1988, ao considerá-la como fundamento da República, promoveu não apenas a positivação desse valor, mas também a redefinição da relação entre Estado e cidadão, estabelecendo que o ordenamento jurídico deve ser construído a partir e para a pessoa humana.
Assim, ao reconhecer a dignidade como princípio estruturante, a Carta Magna garantiu que o Estado brasileiro passasse a enxergar cada indivíduo como centro e finalidade de sua atuação. Mais do que isso, assegurou que os direitos fundamentais se tornassem o eixo da vida em sociedade, determinando que a função primordial do direito é a proteção da condição humana em sua totalidade.
3.1 A relação do Princípio da Dignidade Humana com a violência sexual
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (DPH) passou a receber atenção significativa após períodos históricos marcados por grandes tragédias, nos quais vidas humanas foram impiedosamente ceifadas e o caos se instaurou de maneira intensa em diversas regiões do mundo. Esse contexto histórico conduziu à formulação e fortalecimento de normas internacionais que buscam proteger a dignidade humana, refletindo-se também no ordenamento jurídico interno de muitos países, incluindo o Brasil.
No âmbito interno, a dignidade da pessoa humana visa assegurar que todos os indivíduos, independentemente de sua condição social, econômica, política ou religiosa, possam gozar plenamente de uma vida digna. A concretização deste princípio ocorre quando os direitos básicos do indivíduo são efetivamente garantidos, abrangendo, entre outros, o acesso à saúde, à integridade física, à segurança, ao lazer e, de maneira geral, ao bem-estar. Trata-se, portanto, de um valor central que orienta a organização do Estado e a proteção de direitos fundamentais.
O princípio da dignidade humana ocupa posição de destaque em nosso ordenamento jurídico, sendo sua relativização admitida apenas em hipóteses excepcionais. Mesmo nesses casos, a mitigação só é possível quando o princípio da dignidade se contrapõe a outro princípio constitucional de igual relevância. Em todas as demais situações, prevalece, por se tratar de norma garantidora da existência digna de todos os seres humanos, cuja aplicabilidade é incontestável (Brugnara; Júnior, 2017).
Apesar de sua consolidação formal tanto na legislação brasileira quanto no direito internacional, a dignidade humana frequentemente não é respeitada na prática social. Um exemplo emblemático dessa lacuna ocorre quando indivíduos são vítimas de violência, especialmente no caso da violência sexual contra mulheres. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define violência sexual como:
[…] todo ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou insinuações sexuais indesejadas; ou ações para comercializar ou usar de qualquer outro modo a sexualidade de uma pessoa por meio da coerção por outra pessoa, independentemente da relação desta com a vítima, em qualquer âmbito, incluindo o lar e o local de trabalho.
Historicamente, a violência sexual acompanha a humanidade desde tempos remotos, sendo intensificada em períodos marcados pelo predomínio do patriarcado, em que a mulher era tratada como mero objeto de satisfação sexual masculina. Tal violência configura uma tentativa de controle social e cultural sobre o corpo feminino, gerando danos psicológicos profundos e sofrimento intenso. Embora a violência sexual também possa atingir homens, a mulher permanece como a principal vítima dessa forma brutal de subjugação (Nascimento, 2019).
A Organização das Nações Unidas (ONU) reforça que a coerção sexual pode se manifestar de diversas formas, incluindo força física, intimidação psicológica, extorsão e ameaças, além de situações em que a vítima esteja impossibilitada de oferecer consentimento, seja por efeitos do álcool, drogas, sono ou incapacidades mentais, entre outros casos.
Os efeitos da violência sexual são complexos e abrangem dimensões físicas, psicológicas e emocionais. Vítimas frequentemente experienciam sentimentos de culpa e vergonha, internalizando a responsabilidade pelo ato sofrido. Ademais, é comum que os traumas afetem a sexualidade da mulher, especialmente em relacionamentos posteriores, evocando memórias dolorosas do agressor. Assim, a violência sexual configura uma violação direta da dignidade humana, afetando a integridade física e psíquica da vítima, atingindo aspectos íntimos e fundamentais do ser (Nascimento, 2019).
- A VIOLÊNCIA SEXUAL NO CENÁRIO BRASILEIRO
A violência contra as mulheres é um fenômeno que integra a organização social de gênero no Brasil, fortalecida historicamente pelo patriarcado. Por meio dela, as mulheres são socialmente controladas, tanto no âmbito privado quanto no público. Nesse contexto, a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) define, em seu art. 7º, incisos I a V, as diversas formas de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, as quais são praticadas predominantemente em desfavor das mulheres.
Sob essa ótica, o presente texto volta-se à análise da violência sexual, que é conceituada pela referida lei como:
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade; que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
Dessa forma, a violência sexual apresenta amplitude em sua caracterização, pois não se restringe à apropriação física ou à penetração, mas abarca também condutas que envolvem o controle e a desvalorização da sexualidade da vítima, bem como o cerceamento de seus direitos reprodutivos. Isso ocorre, por exemplo, quando a mulher é privada do uso de métodos contraceptivos ou induzida a uma gestação indesejada. Assim, o controle sobre a mulher ultrapassa o campo dos direitos sexuais e alcança diversas dimensões de sua vida, transformando o ser feminino em objeto de dominação e poder.
Os danos causados pela violência sexual ultrapassam os aspectos físicos, sendo ainda mais devastadores por sua natureza “invisível” e pelo profundo impacto psicológico que produz. As consequências incluem medo constante, depressão, ansiedade, estresse pós-traumático e alterações significativas na autoestima, distorcendo a percepção que a vítima tem de si mesma. Dessa maneira, a mulher passa a sentir-se permanentemente vulnerável, como se sua segurança e integridade estivessem sempre ameaçadas.
Destarte, o histórico dos crimes que atentam contra a dignidade sexual das mulheres no Brasil possui raízes profundas, consolidadas desde o período em que a mulher era vista como objeto de satisfação masculina e, muitas vezes, utilizada como moeda de troca. Durante muito tempo, o ordenamento jurídico brasileiro convalidou e legitimou tais práticas, reforçando uma estrutura patriarcal que resultou na lamentável “cultura do estupro”. Contudo, as diversas formas de violência sexual passaram a ser tipificadas no Código Penal Brasileiro de 1940, representando um avanço significativo na proteção da dignidade humana das vítimas.
4.1 Desqualificação das mulheres vítimas de crimes sexuais
A violência sexual é uma das mais brutais violações dos direitos humanos, cujas consequências extrapolam a dimensão física e repercutem profundamente na esfera psicológica, emocional e social da vítima. Trata-se de uma experiência traumática que não se encerra no ato em si, mas se perpetua ao longo do tempo, especialmente entre a denúncia e o julgamento, quando a vítima é obrigada a revisitar a dor já vivida. Ainda que o ordenamento jurídico brasileiro tenha avançado significativamente em termos de legislação protetiva e reconhecimento dos direitos das mulheres, a realidade cotidiana revela um cenário permeado por barreiras institucionais e culturais que tornam o acesso à justiça um caminho árduo, solitário e, muitas vezes, revitimizador.
Entre os fatores mais enraizados na cultura brasileira que dificultam a denúncia e a responsabilização dos agressores está o descrédito atribuído à palavra da vítima. Historicamente, a sociedade tende a questionar sua versão dos fatos, desqualificando-a por aspectos subjetivos ou morais, como suas vestes, o local onde se encontrava ou o consumo de bebidas alcoólicas. Esse comportamento reflete uma estrutura social patriarcal que, ao longo do tempo, consolidou a imagem da mulher como responsável pela própria vitimização.
Até mesmo quando a vítima decide buscar ajuda dos órgãos competentes, o sistema de justiça, ainda que devesse acolher e proteger, acaba reproduzindo padrões de violência simbólica, impondo a ela uma nova carga de sofrimento, sob o disfarce da formalidade processual. Conforme apontam Balreira, Filho, Mota, Plácido e Sabino (2025):
“A revitimização – ou vitimização secundária – é potencializada por práticas judiciais e policiais que submetem as vítimas a múltiplos interrogatórios e avaliações, frequentemente permeados por julgamentos morais sobre seu comportamento, vestimenta ou histórico sexual”.
Além da violência institucional, a vítima enfrenta o julgamento social, que insiste em buscar justificativas para o injustificável, a prática de crimes sexuais que violam de forma direta a dignidade e a autonomia do corpo feminino. A sociedade, ao invés de se solidarizar, tende a duvidar, o que agrava o sofrimento psíquico e gera um profundo sentimento de impotência. Essa dinâmica produz um ciclo perverso de silêncio, em que muitas mulheres preferem não denunciar para evitar reviver o trauma e ser submetidas à humilhação pública.
Outro ponto crucial é a dificuldade probatória nesses casos. Os crimes sexuais, por natureza, ocorrem em contextos de isolamento e confiança, muitas vezes dentro de relações familiares, afetivas ou profissionais. Assim, a palavra da vítima, na maioria das vezes, é a principal ou única prova disponível. No entanto, em vez de ser valorizada como meio legítimo de prova, é colocada em dúvida, como se fosse um elemento de menor relevância jurídica. Essa prática reforça a cultura do descrédito, legitimando, de forma velada, a impunidade.
A percepção social distorcida das mulheres vítimas de violência sexual está associada a preconceitos estruturais que as rotulam como “mentirosas”, “vingativas”, “interesseiras” ou “ressentidas”. Esses estigmas são reproduzidos por meios de comunicação, por discursos sociais e até por profissionais que deveriam atuar de forma técnica e empática. O resultado é um sistema que, em vez de promover a justiça, marginaliza a vítima, deslocando o foco do agressor para a conduta da mulher. Assim, a violência sexual se torna um crime de difícil enfrentamento, marcado pela invisibilidade e pela inversão de papéis, a mulher deixa de ser vista como vítima e passa a ser tratada como culpada, como se tivesse provocado ou consentido com a violência sofrida.
Essa inversão é visível nas audiências e interrogatórios, quando as vítimas são submetidas a perguntas de teor inquisitório e moralizante, como: “Você estava sozinha?”, “Por que demorou tanto a denunciar?”, “Você bebeu por quê?” ou “Como estava vestida?”. Tais questionamentos, longe de contribuírem para o esclarecimento dos fatos, apenas reforçam a culpabilização e o constrangimento, criando um ambiente hostil que desestimula a denúncia. Como reforçam Balreira, Filho, Mota, Plácido e Sabino (2025), essa estrutura de julgamento moral “afasta as vítimas do sistema de justiça, favorecendo a errônea ideia de que a violência sexual é um crime pouco recorrente e que só é levado a sério mediante provas robustas”.
Em suma, a desqualificação das vítimas de violência sexual continua sendo uma prática recorrente, mesmo diante de avanços normativos e institucionais. O sistema jurídico, ainda marcado por resquícios de um pensamento patriarcal e machista, frequentemente coloca a palavra da mulher em xeque, buscando justificativas para a conduta criminosa e, assim, perpetuando a inversão de papéis.
A discrepância entre o discurso institucional e a realidade vivida pelas mulheres é evidenciada por dados recentes. De acordo com o Instituto Patrícia Galvão (2021), “embora 84% das mulheres acreditem que as denúncias de violência sexual devam ser levadas a sério, mais da metade afirma ter medo de não ser respeitada ou ouvida pelas autoridades”. Tal dado evidencia o abismo existente entre o discurso de proteção e a prática cotidiana das instituições, demonstrando que a luta contra a violência sexual não depende apenas de leis, mas de uma profunda mudança cultural, institucional e social.
Portanto, reconhecer o descrédito da palavra da vítima como uma forma de violência simbólica é essencial para transformar o modo como o sistema de justiça e a sociedade lidam com esses crimes. O combate à violência sexual exige mais do que punição: requer escuta qualificada, acolhimento, empatia e o rompimento definitivo com uma cultura que insiste em duvidar de quem mais precisa ser acreditada.
4.2 A legislação vigente no enfrentamento à violência sexual
Desde 1500, no período da invasão portuguesa, quando o Brasil foi transformado em colônia, já existia previsão do crime de estupro. O delito estava previsto no Livro V das Ordenações Afonsinas, sob o Título VI, intitulado “Da molher forçada, e como fe deve a provar a força”. Quando o crime ocorria em local ermo, a mulher precisava demonstrar cinco sinais que indicavam como deveria apresentar a queixa contra o agressor, dentre eles, ir chorando pelo caminho e dirigir-se diretamente à Justiça, sem se desviar para outro lugar (Nascimento, 2019).
A primeira legislação brasileira a utilizar a palavra “estupro” foi o Código Criminal de 1830, que previa os crimes sexuais no Capítulo II, “Dos Crimes contra a segurança da honra”. Já o Código Penal de 1890 também fazia referência aos crimes contra a dignidade sexual, mas novamente colocava em questão a moral da vítima. O artigo 268 mencionava uma pena máxima de seis anos caso o crime fosse cometido contra uma “mulher branca honesta”, o que revela o caráter discriminatório e moralizador do dispositivo.
Em 1981, o Estado brasileiro assinou a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, representando um avanço importante, ainda que teórico, na luta contra as diversas formas de violência e violação de direitos sofridas pelas mulheres.
O Código Penal de 1940, instituído pelo Decreto-Lei nº 2.848/1940 e ainda vigente no Brasil, trouxe uma ampliação significativa no tratamento dos crimes sexuais, passando a tipificar condutas além do ato de penetração, como a importunação sexual, em que o toque físico não é elemento essencial do tipo penal. Por ser o código penal mais longevo da história brasileira, ele precisou ser constantemente atualizado para acompanhar as transformações sociais.
Um marco simbólico dessas mudanças foi a Lei nº 11.106/2005, que retirou do texto normativo a expressão “mulher honesta”, presente desde 1940, representando uma ruptura com o moralismo patriarcal que, por décadas, restringiu a proteção penal às mulheres consideradas “de boa reputação”. Até então, os crimes sexuais eram de ação penal privada, ou seja, a própria vítima deveria contratar um advogado e mover a ação, mesmo em meio à fragilidade emocional e psicológica que o trauma impõe. Como explica Nascimento (2019):
Isso significa que a mulher vítima de violência sexual, se quisesse ver o agente pagar pelo crime, deveria contratar um advogado e dar impulso ao processo, com todos os encargos e o desgaste que isso implica. Sabe-se que um processo judicial pode durar anos e é submetido aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Imagine-se quantas vezes essa mulher não teria que se deparar com o seu agressor, principalmente durante a instrução processual, e quantos traumas o desenrolar do processo não poderia desencadear?.
A Lei nº 12.015/2009 representou uma das reformas mais significativas do Código Penal. Ela alterou o título dos crimes sexuais, que deixaram de ser classificados como “crimes contra os costumes” e passaram a ser considerados “crimes contra a dignidade sexual”, reconhecendo a autonomia e os direitos individuais da vítima. Além disso, modificou a natureza da ação penal, tornando-a pública condicionada, e, em determinados casos, como quando a vítima é menor de idade, pública incondicionada. Outro ponto relevante foi a unificação dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, incorporando este último ao tipo penal do estupro (Nascimento, 2019).
Outras legislações recentes também desempenham papel essencial no enfrentamento à violência sexual. As Leis nº 13.718/2018 e nº 13.772/2018 ampliaram a proteção da dignidade sexual e o escopo de punição. A primeira revogou o artigo 61 da Lei de Contravenções Penais, transformando a importunação ofensiva ao pudor em importunação sexual, tipificada no artigo 215-A do Código Penal, com penas mais severas. Além disso, criou o artigo 218-C, que trata da pornografia de vingança, prática infelizmente recorrente, especialmente após o término de relacionamentos. Já a Lei nº 13.772/2018 acrescentou o Capítulo I-A – “Da exposição da intimidade sexual” – e o artigo 216-B ao Código Penal, consolidando a tutela da intimidade e ampliando o combate aos crimes digitais de caráter sexual (Nascimento, 2019).
A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, também representou um marco histórico na proteção da mulher vítima de violência. Em seu artigo 7º, inciso III, define a violência sexual como uma das formas de agressão, reconhecendo que ela ultrapassa a dimensão física e atinge a liberdade e a autodeterminação da mulher. Posteriormente, a Lei nº 14.245/2021 reforçou a proteção à dignidade da vítima e das testemunhas, acrescentando uma causa de aumento de pena ao crime de coação no curso do processo, com o objetivo de coibir práticas que buscam ridicularizar ou desmoralizar a mulher. Essa lei demonstra uma importante mudança cultural e jurídica ao combater a revitimização e a culpabilização da vítima, resguardando sua dignidade humana como sujeito de direitos.
Portanto, embora os avanços legislativos tenham ampliado o reconhecimento e a proteção da dignidade sexual, a realidade brasileira ainda está distante de garantir uma vida segura e livre de violência para as mulheres. A vítima, além de suportar a dor física e psicológica causada pelo crime, muitas vezes é colocada no papel de acusada, como se fosse a principal responsável pela violência que sofreu. Essa inversão de papéis, infelizmente ainda comum, evidencia que o combate à violência sexual exige mais do que leis, demanda uma transformação profunda das estruturas sociais, culturais e institucionais que perpetuam o descrédito e o silenciamento das mulheres.
- UMA ANÁLISE DO CASO MARIANA FERRER
Mariana Ferrer era uma jovem de apenas 21 anos de idade à época dos fatos, atuando como influenciadora digital e modelo. Naquele período, exercia a função de embaixadora do clube Café de La Musique, um beach club de luxo situado em Florianópolis-SC, responsável por divulgar o espaço em suas redes sociais. Em dezembro de 2018, foi convidada a participar de um evento promovido no local. No dia seguinte, registrou um boletim de ocorrência, relatando que havia sido dopada e, posteriormente, estuprada por um empresário identificado como André de Camargo Aranha.
Diante da inércia das autoridades responsáveis pela investigação, em maio de 2019 Mariana decidiu utilizar suas redes sociais para narrar publicamente o ocorrido. A repercussão foi imediata, e a pressão social levou o Ministério Público de Santa Catarina a oferecer denúncia contra o acusado, que passou a responder judicialmente pelo crime de estupro de vulnerável. As provas apresentadas eram consistentes: laudos periciais confirmaram que o material genético encontrado na roupa íntima da vítima era compatível com o do réu, além de depoimentos testemunhais, vídeos e exames médicos que indicavam rompimento recente do hímen. Ainda assim, a justiça não foi feita.
Em 9 de setembro de 2020, o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, julgou improcedente a denúncia, absolvendo o réu. O episódio, no entanto, ficou marcado não apenas pela decisão judicial, mas pela postura degradante do advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, que, em plena audiência, utilizou fotos pessoais da vítima, retiradas de redes sociais e descontextualizadas, para desqualificar sua moral e questionar seu caráter. O advogado proferiu falas ofensivas e constrangedoras, afirmando que Mariana publicava imagens em “posições ginecológicas” e “chupando o dedinho”, numa tentativa de transferir à vítima a culpa pela violência sofrida. Essa conduta representou uma forma de violência institucional e simbólica, em que a mulher, já vitimada, foi submetida a novo sofrimento dentro do próprio sistema de justiça.
Durante a audiência, Mariana Ferrer implorou por respeito. Em lágrimas, pediu apenas que sua dignidade humana fosse reconhecida, mas foi ignorada e tratada de forma humilhante por aqueles que deveriam zelar pela legalidade e pela proteção dos direitos fundamentais. A ausência de intervenção dos demais operadores do direito reforçou a percepção de cumplicidade institucional com a violência simbólica que ali se instaurava. Mesmo diante das provas, Mariana foi revitimizada, questionada e exposta, como se ela fosse a acusada, e não a vítima de um crime que destruiu seus sonhos e marcou sua trajetória pessoal e profissional.
A repercussão do caso foi imediata, gerando comoção nacional e internacional. As imagens da audiência, amplamente divulgadas, provocaram uma onda de indignação e debates sobre o tratamento dispensado às vítimas de violência sexual no Brasil. O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, expressou publicamente seu repúdio, afirmando que “As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram” (Universa Uol, 2020).
O episódio serviu como marco para a criação da Lei nº 14.245/2021, conhecida como Lei Mariana Ferrer, que visa coibir práticas atentatórias à dignidade da vítima e de testemunhas, especialmente durante atos processuais, reforçando o dever ético e jurídico de respeito à integridade moral e psicológica de todos os envolvidos.
5.1 A repercussão no surgimento da Lei 14.245/2021
Motivado pelos abusos e humilhações sofridos por Mariana Ferrer durante audiência judicial, a bancada feminina da Câmara dos Deputados apresentou o Projeto de Lei nº 5.096/2020, com o objetivo de criminalizar a violência institucional, compreendida como ações ou omissões praticadas por agentes públicos que resultem na revitimização da vítima e de suas testemunhas, provocando sofrimento físico, psicológico ou moral. A proposta buscou reconhecer e punir comportamentos que, mesmo no exercício da função pública, atentem contra a dignidade e os direitos humanos das mulheres vítimas de violência sexual.
O caso, amplamente divulgado e debatido, despertou indignação não apenas na bancada feminina, mas também em instituições e órgãos governamentais, como o Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que enviou ofícios às corregedorias competentes solicitando a apuração das condutas do magistrado, do advogado de defesa e do representante do Ministério Público. A omissão desses agentes diante da série de humilhações sofridas pela vítima representou uma afronta direta à sua dignidade humana, expondo-a a uma situação pública de constrangimento e vexame (Meneses, 2023).
O Projeto de Lei nº 5.096/2020 foi aprovado na Câmara dos Deputados em novembro de 2020 e, posteriormente, no Senado Federal, em março de 2022. A sanção presidencial resultou na promulgação da Lei nº 14.245/2021, conhecida como Lei Mariana Ferrer, que promoveu alterações em importantes diplomas legais: a Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019), o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940), o Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/1941) e a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei nº 9.099/1995).
A Lei 14.245/2021 representa um avanço relevante no enfrentamento da violência institucional e na proteção da dignidade das vítimas de crimes sexuais. Sua principal finalidade é assegurar a integridade física e psíquica das vítimas durante a persecução penal, vedando a utilização de elementos, provas ou manifestações que não guardem relação direta com o objeto do processo, especialmente aquelas destinadas a constranger, desqualificar ou humilhar a vítima.
Entretanto, é profundamente simbólico, assim como igualmente lamentável, que tenha sido necessário que uma mulher passasse por tamanho processo de exposição, dor e humilhação para que fosse sancionada uma lei destinada a garantir algo tão elementar: o respeito à dignidade humana. O caso Mariana Ferrer evidencia as falhas estruturais do sistema de justiça, que, em vez de acolher e proteger, acabou reproduzindo as mesmas violências que deveria combater.
O que Mariana enfrentou, desde o registro da notícia-crime até a prolação da sentença, representa uma grave violação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto na Constituição Federal de 1988 e consagrado em tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Esse episódio expôs não apenas a fragilidade institucional na proteção das mulheres, mas também os resquícios persistentes de uma cultura patriarcal e machista que insiste em subjugar a figura feminina, relegando-a a um papel de inferioridade e objetificação sexual.
Assim, o caso se transformou em um divisor de águas na discussão pública sobre a violência institucional e a necessidade de humanização do sistema de justiça. A criação da Lei Mariana Ferrer não apenas consagra juridicamente alterações penais, mas simboliza uma conquista social e política que reafirma que a mulher vítima de violência sexual deve ser tratada com respeito, empatia e humanidade, atributos que, embora pareçam óbvios, ainda precisam ser reafirmados no âmbito da justiça brasileira.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer da história, as mulheres conquistaram diversos direitos em comparação a um passado de dominação extrema, marcado pelo patriarcalismo e pelo machismo. A luta pela liberdade sexual e pela dignidade é constante e, apesar dos avanços do ordenamento jurídico brasileiro, o direito, na prática, nem sempre é efetivamente concretizado. Nos crimes de violência sexual, observa-se que a mulher ainda é frequentemente desacreditada, encontrando um sistema de tutela jurisdicional permeado por falhas e uma sociedade que, em muitos casos, não oferece o devido respaldo à vítima.
A análise realizada evidenciou que as raízes históricas do patriarcalismo mantêm forte relação com a estrutura social que naturaliza a violência sexual e descriminaliza a vítima, subjugando-a de diferentes formas. Verificou-se, nos tópicos anteriores, que, mesmo diante dos avanços legislativos e da valorização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, tanto em âmbito nacional quanto internacional, a mulher continua sendo alvo de múltiplas formas de violência, desde o assédio até o estupro, além de ser vítima de um sistema judiciário deficiente, que frequentemente a reduz à condição de objeto sexual.
O caso emblemático de Mariana Ferrer exemplifica essa realidade dolorosa, em que a vítima foi exposta à humilhação e à revitimização durante o processo judicial. A partir desse episódio, constata-se que o patriarcalismo e o machismo estrutural permanecem fortemente presentes na sociedade contemporânea, inclusive nas instituições jurídicas, perpetuando a inferiorização da figura feminina diante do homem.
Dessa forma, conclui-se que o sistema penal, que deveria garantir a tutela jurisdicional do Estado, acaba por reproduzir práticas de violência institucional, revitimizando a mulher ao longo do processo penal. A vítima passa a ser tratada como culpada pelo crime cometido contra si, tendo sua dor descredibilizada com base em estereótipos relacionados a suas vestimentas, comportamento, falas ou origem social. Assim, a mulher deixa de ser reconhecida como sujeito de direitos, sofrendo uma segunda violência – simbólica e institucional.
Apesar do sofrimento e dos danos quase irreversíveis enfrentados por Mariana Ferrer, o caso resultou em um marco legislativo importante: a promulgação da Lei nº 14.245/2021 (Lei Mariana Ferrer), que busca coibir práticas atentatórias à dignidade de vítimas e testemunhas, promovendo mudanças significativas em diversos diplomas normativos. Tal avanço representa um passo essencial para o fortalecimento da proteção jurídica da mulher e para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e livre de violência de gênero.
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[1] Discente do curso de Direito da UFRN.

